Não existem falhas de mercado; se falhas existem, elas
são de governo, 2: uma crença não provada, mas disseminada
Paulo Roberto de Almeida
Com meus agradecimentos ao José Matias-Pereira
No primeiro artigo desta
série, “Adam Smith vai ao cerrado”, eu me dediquei a comprovar a existência e o
funcionamento perfeito da chamada “mão invisível” de Adam Smith – que não é uma
“teoria”, como muitos acreditam e afirmam, mas se trata de uma simples
constatação de bom senso – por meio de um trecho do romance-macondiano de
Arnaldo Barbosa Brandão, Encaixotando
Brasília, (Brasília: Verbena, 2012), que descreve, em linguagem colorida e
totalmente apropriada ao assunto, como os mercados são capazes de contornar
qualquer restrição imposta por governos incautos, criando, a partir do tino
empresarial de microempresários improvisados, as mais surpreendentes respostas
a essas “falhas de governo”, por meio do oferecimento dos mais insólitos
produtos, mas que respondem a uma demanda perfeitamente configurada. Quem não
teve a oportunidade de ler esse primeiro artigo, pode fazê-lo aqui: Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2015/11/nao-existem-falhas-de-mercado-se-falhas.html).
Estou lendo agora o
excelente manual didático de José Matias-Pereira, Finanças Públicas: A Política Orçamentária no Brasil (3a.
ed.; São Paulo: Atlas, 2006), livro que me instruiu perfeitamente bem sobre os
arcanos, meandros, labirintos e procedimentos góticos, alguns até kafkianos, da
nossa estrutura burocrática que preside à confecção, administração e
operacionalização da política orçamentária no Brasil, que recomendo à atenção
de todos os interessados nesse árido capítulo de nossas políticas públicas da
área econômica, ao lado de um outro manual que também me parece excelente: Fabio
Giambigi e Ana Cláudia Alem, Finanças
Públicas: Teoria e Prática no Brasil (4a ed.; Rio de Janeiro:
Elsevier, 2011).
E o que leio, logo no
prefácio à 3a. edição de Matias Pereira? Esta frase que me parece
sintomática de toda uma escola de economia – aliás de várias, mas com ênfase
nas keynesianas – que me parece mais a invocação de um credo do que uma verdade
objetiva e cientificamente provada:
[A] preocupação da teoria das finanças
públicas (...) se articula em torno da existência das falhas de mercado que
tornam necessária a presença do governo, do estudo das funções do governo, da
teoria da tributação e do gasto público. (p. 16)
O autor reconhece
imediatamente, na sua Introdução, seu embasamento teórico, mais uma vez um
questão de adesão, mais do que de fundamentação lógica:
Destacamos neste livro a importância da
teoria keynesiana para o entendimento do estudo de Finanças Públicas... (p. 29)
Pergunto: por que
keynesiana? Por que não miseniana, que a precede, ou a da escola austríaca, à
qual Ludwig von Mises está ligado? Acredito que se trata, com todo o respeito
pelo autor, de um “defeito de fabricação”: nas faculdades brasileiras de
economia se estuda exclusivamente a teoria keynesiana, que não precisa disputar
com nenhuma outra qualquer espaço intelectual, ou fazer qualquer esforço de
fundamentação lógica ou provar sua validade por meio de algum tipo de
embasamento empírico.
Esse entendimento é
corroborado imediatamente após, ao enfatizar o autor as fontes de sua abordagem
das finanças públicas:
O referencial teórico deste livro está
apoiado, em grande parte, na teoria das finanças públicas (Musgrave, 1959;
Musgrave & Musgrave, 1989), que se articula em torno da existência das falhas de mercado que
torna necessária a presença do governo, do estudo das funções do governo, da
teoria da tributação e do gasto público, tendo como referência o objetivo-fim
do Estado, que é o bem comum. (p. 29; ênfase acrescida PRA; os livros citados
são os seguintes: Richard A. Musgrave: The
Theory of Public Finance. New York: McGraw-Hill, 1959; R. A. M. e Peggy B.
Musgrave: Public Finance in Theory and
Practice. 5th. ed.; Singapore: McGraw-Hill, 1989)
Pode-se admitir
perfeitamente que as finanças públicas estejam inextricavelmente vinculadas a
ações e funções de governo, e a toda uma parafernália a isso inerente, qual
seja, a tributação (mais uma prática do que uma teoria, diga-se de passagem),
mas não se percebe como e por que as finanças públicas teriam de estar
centradas em torno de supostas “falhas de mercado”, que não são exatamente
caracterizadas. Pode-se inclusive admitir como razoável que a finalidade maior
do Estado é o bem comum, embora existam fundadas dúvidas de que isso seja
universal, ou essencialmente inerente ao Estado, ou a todo Estado que se
conhece. Mas, admitamos que possa ser verdade, o que não torna necessariamente
verdade o fato de as finanças públicas estarem articuladas em torno de supostas
falhas de mercado: pode tranquilamente admitir uma suposta ação benfeitora do
Estado mesmo na ausência completa de falhas de mercado – teoricamente possível,
pelo menos, tanto quanto sua existência, também teoricamente admissível – ou na
sua existência independente de qualquer necessidade de “teoria da tributação”.
Não se pode negar, a
priori, a inexistência de “falhas de mercado” – embora minha tese,
provavelmente principista e preconceituosa seja de que, precisamente, elas não
existem – mas por que não admitir, ao mesmo tempo a existência de “falhas de
governo”, que me parecem as mais factíveis, possíveis e passíveis de
acontecerem? Não existe, contudo, ao longo do livro, uma digressão ou
explicação paralela para a possível existência de “falhas de governo”, como
existe uma suposição que também me parece principista e preconceituosa de que
existem, sim, “falhas de mercado” que necessitam ser corrigidas pelo Estado.
Este ponto não é
investigado a fundo, mas simplesmente exposto como uma situação de fato
existente, sem que se investiguem as origens, as formas, os tipos e as
modalidades de tais “falhas”. Uma primeira suposição transparece através da
citação de uma autora brasileira em um livro sobre “planejamento no Brasil”:
... posiciona-se Lafer (1987: 15-16) no
sentido de que ‘o planejamento governamental se faz necessário, não para
substituir o sistema de preços (...) mas para corrigir-lhe as distorções...’
(p. 69; o livro citado é o Betty Mindlin Lafer, Planejamento no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1987)
Não se sabe, porém, quais
seriam essas distorções do sistema de preços, pelo menos aquelas distorções que
derivam inteiramente desse “sistema” – o que já me parece uma incongruência em
si, pois não existe um sistema, e sim uma relação entre oferta e demanda, que
determina um determinado preço de mercado – e não de uma intervenção de
governos sobre esses preços de mercado. Parece-me existir aqui uma curiosa
tendência a provar a existência de certos desequilíbrios, disfunções, ou
“falhas” apenas pela afirmação de sua existência, justamente, não pela
comprovação empírica, factual, dessa existência. Para a autora, como para
Matias-Pereira, o equilíbrio estático de renda em um nível inferior do de pleno
emprego já seria um indicativo dessas “falhas de mercado”.
A fundamentação desse
entendimento do jogo econômico se baseia inteiramente na introdução de Keynes à
sua Teoria Geral do Emprego, dos Juros e
da Moeda (1936), quando este afirma que
‘...os postulados da teoria da teoria
clássica se aplicam apenas a um caso especial e não ao caso geral, pois a
situação que ela supõe acha-se no limite das possíveis situações de equilíbrio.
Ademais, as características desse caso especial não são as da sociedade
econômica em que realmente vivemos, de modo que os ensinamentos daquela teoria
seria ilusórios e desastrosos se tentássemos aplicar as suas conclusões aos
fatos da experiência.’ (Keynes, A teoria
geral do emprego, dos juros e da moeda. São Paulo: Atlas, 1982, p. 23; cf.
p. 71 de Matias-Pereira)
Registre-se que a maior
parte, senão a totalidade dos keynesianos ou dos economistas que lhe eram ou
são simpáticos, partem dessa simples afirmação para decretar que a teoria
clássica se aplicava apenas a um caso especial e que a teoria proposta por
Keynes se conforma numa teoria geral, digno de substituir a primeira. Mas com
base em quais evidências práticas Keynes poderia decretar isso? Apenas com base
nos desequilíbrios observados no funcionamento das economias capitalistas de
mercado a partir do entre guerras, e mais particularmente a partir de
1929-1931? Como poderia o economista britânico concluir que a sua “teoria” era
a que se ocuparia de casos “gerais”, ao passo que toda a teoria clássica e
neoclássica anterior havia simplesmente se ocupado de um caso “especial”?
Mistério dos mistérios...
Procurei no restante do
livro uma explicação para a existência das tais “falhas de mercado”, mas
confessado não ter encontrado nada que saciasse a minha curiosidade. Não que
não existissem afirmações auto-confirmadas desses desequilíbrios que teriam
sido “descobertos” por Keynes, como por exemplo esta frase emblemática do
pensamento do autor do livro:
É indiscutível
(eu sublinho, PRA) a importância da contribuição de Keynes em relação ao papel
dos gastos públicos como suplemento ao dispêndio privado. (...) Introduzindo o
conceito ex-ante, Keynes enfatizou a
diferença entre poupanças e investimento. (...) Dessa forma, quando ocorresse
insuficiência de demanda, o governo deveria assumir um papel ativo de
complementar os gastos privados... mesmo em obras aparentemente sem lógica
imediata, como abrir e fechar buracos... (p. 72)
Registre-se, mais uma vez,
que a tal “insuficiência de demanda” já seria, no conceito keynesiano (e no
entendimento de Matias-Pereira), uma “falha de mercado”, que o governo, sempre
no conceito de que o Estado só pode produzir o bem comum, procuraria corrigir
oferecendo sua própria “poupança”. Eu não sei como os keynesianos imaginam de
onde o governo vai retirar essa poupança, a menos que eles estejam entendendo
gastos inflacionários, derivados de emissões de puro papel, como o equivalente
de “perfeições de governo”, o que me parece inteiramente plausível.
O livro de Matias-Pereira
é uma preciosidade em termos de análise das finanças públicas e do seu
funcionamento no Brasil, não apenas teoricamente, mas de um ponto de vista
essencialmente prático. Mas o autor ficou nos devendo uma explicação cabal de
por que a teoria das finanças públicas deveria se articular em torno da
existência de “falhas de mercado”, se em nenhum momento ele fornece uma
descrição adequada da efetividade dessas “falhas” e, mais importante, de suas
formas de atuação. Permanece aliás um mistério para mim o fato de que essas
falhas, parcamente referidas e nunca explicitadas à exaustão, devam
necessariamente estar no centro de uma teoria e uma prática das finanças públicas.
Minha posição, tal como
exposta no título desta série, é a de que não existem as tais falhas de
mercado, mas isso requer uma explicação mais fundamentada que será feita no
terceiro artigo desta série.
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília,
17 de novembro de 2015.