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sábado, 13 de abril de 2024

O Brasil e sua identidade ocidental - Paulo Roberto de Almeida

 O Brasil e sua identidade ocidental


Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

As respostas consignadas nas cinco questões apresentadas a seguir foram feitas para atender a consulta formulada por doutorando em relações internacionais, e encaminhadas previamente a longa entrevista online efetuada sobre a questão em janeiro de 2024 (não disponível). Como os argumentos podem apresentar algum interesse para outros estudantes, ou para o debate geral em torno do assunto, permito-me torná-los públicos.

Brasília, 13 de abril de 2024. 

 

1. Sabe-se que as identidades dos Estados são construídas por meio de um processo ativo e elaborado que envolve múltiplos agentes. Na sua opinião, quais são os papéis desempenhados pelo Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) e pela diplomacia presidencial na formulação da identidade internacional contemporânea do Brasil? 

PRA: Trata-se de um complexo processo de construção da identidade nacional brasileira que se desenvolveu ao longo de mais de um século, precedendo inclusive a própria aquisição da autonomia política nacional. A diferenciação de percepções sobre suas próprias identidades entre os colonizadores portugueses e os naturais do Brasil foi sendo acumulada desde o século XVIII, quando a produção de metais e pedras preciosas a partir do território brasileiro – nomeadamente ouro e diamantes das “minas gerais” – entrou em decadência e o sentimento de “extorsão” e de “espoliação” dos agentes da Coroa portuguesa se fez de forma mais perceptível, gerando a chamada “inconfidência mineira”, ou seja, a proclamação da independência do território das minas. Isso se estendeu até com a vinda da Família Real portuguesa ao Brasil, em 1808, e resultou na primeira revolta independentista, a revolução de 1817 em Pernambuco, de breve duração: a repressão portuguesa foi especialmente brutal. 

A Revolução do Porto, em 1820 e a necessidade de a principal colônia portuguesa se fazer representar nas Cortes de Lisboa representaram um passo decisivo na construção dessa identidade nacional, pois os trabalhos da constituinte revelaram de pronto contradições entre as aspirações dos brasileiros e o desejo lusitano de reverter o então Reino Unido ao de Portugal à antiga situação de colônia. Deputados das províncias do Brasil – mais do Sul do que do Norte e Nordeste – romperam com o texto da primeira Constituição do reino de Portugal, retornaram clandestinamente ao Brasil e passaram a lutar pela sua independência.

Não se pode falar, obviamente, de diplomacia presidencial na época da autonomia nacional, mas a diplomacia, sim, foi essencial em forjar essa nova identidade, como revelado no livro do embaixador Rubens Ricupero, A Diplomacia na Construção do Brasil, 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal, 2017), e assim continuou durante todo o Império e mais além. Essa identidade foi forjada nas negociações de fronteiras e nas disputas com os vizinhos do Prata, ainda que a defesa do tráfico e da própria escravidão tenha caracterizado igualmente uma parte dessa identidade, mesmo não reconhecida. No período contemporâneo, esse processo vem sendo reforçado via múltiplos canais, mas é óbvio que a diplomacia presidencial desempenhou um papel mais ativo desde a era Vargas (1930-1945 e depois 1951-54). O Itamaraty encarnou como poucas instituições nacionais essa pretensão de representar o Brasil como possuindo plena autonomia em sua projeção externa, o que é uma combinação de fatores ideológicos, instrumentais e conceituais. Mas não se pode dividir claramente o papel de um ou outro “personagem” na construção dessa identidade, uma vez que o Brasil não é uniforme nesse tipo de percepção, dependendo do governo, das personalidades que detêm o poder alternadamente e também porque o Itamaraty se mostra claramente submisso ao poder político em cada governo.

 

2. Historicamente, o conceito de Ocidente é um elemento de continuidade na estrutura identitária brasileira. No entanto, hoje o país possui uma relutância em se posicionar quer como totalmente integrado no ‘Ocidente’, quer completamente separado do ‘Ocidente’. Sendo assim, na sua opinião, como o Brasil manifestou sua identidade Ocidental na política externa dos governos petistas de Lula da Silva e Dilma Rousseff?

PRA: Essa noção de “Ocidente” é criada de forma mais consistente na Guerra Fria, quando havia uma clara bipartição do poder entre os dois grandes impérios remanescentes da Segunda Guerra Mundial. Anteriormente, a noção era mais cultural ou baseada nos valores do cristianismo e da identificação com o mundo europeu e, logo em seguida, americano. Durante a fase mais aguda da Guerra Fria, nos anos 1950-60, o Brasil se definia claramente como pertencente ao “mundo ocidental”, dado o papel central do anticomunismo na política brasileira desde pelos menos o entre guerras. Mas, ainda sob a ditadura militar, e muito por obra da diplomacia profissional, essa noção de Ocidente foi se diluindo no projeto mais amplo de construção de uma identidade própria do Brasil, como pertencente ao mundo em desenvolvimento e, portanto, menos restrito a identidades ideológicas e mais focado nos interesses econômicos e tecnológicos de uma fase de grande crescimento da capacidade produtiva nacional. O Itamaraty acompanhou, e de certa forma participou ativamente, desse processo de construção de uma nova identidade nacional, mais instrumental do que conceitual ou ideológica. 

Mas cabe registrar que o “anti-ocidentalismo”, não explícito ao início, mas presente doravante, se forja a partir do fortalecimento das forças de esquerda, socialistas e antiamericanas, nos anos 1970 e concretamente, explicitamente, desde a assunção ao poder do PT e seus aliados na mesma franja de opinião. Existe, a partir de então, governos Lula e Dilma (2003-2016) e ainda mais forte sob Lula 3, essa rejeição do Ocidente, por velhos e novos motivos, entre eles a noção de que o Ocidente está decadente e que novas forças estão emergindo no mundo. O que era antes puro resquício do antiamericanismo tradicional dos esquerdistas dos anos 1960 tornou-se, desde o surgimento do BRIC – depois BRICS e agora BRICS+ – uma clara orientação antiamericana e antiocidental. Trata-se, portanto, de uma postura explicitamente antiocidental, por motivos claramente ideológicos, uma vez que não se sabe ao certo quais vantagens poderiam trazer essas novas alianças, no confronto com o tradicional relacionamento com os países “ocidentais”.

 

3. Como o Brasil manifestou sua identidade Ocidental na política externa do governo de Jair Bolsonaro?

PRA: O governo Bolsonaro não pode ser considerado como parâmetro para qualquer avaliação da postura política-ideológica na política externa, pois tratou-se de um amálgama de ignorância com velhos preconceitos ultrapassados até na direita anticomunista dos meios militares. Ocorreu uma adesão acrítica dos novos donos do poder – de nenhuma maneira da diplomacia profissional –à visão do mundo da direita americana e, mais irracional ainda, à postura do seu líder Donald Trump. Não se pode, portanto, falar de Brasil ou de identidade nacional nesse caso, e sim de impulso desconectado de qualquer movimento real na sociedade em favor de um dos supostos polos de poder, mais por anticomunismo primário do que por uma reflexão ponderada sobre os interesses reais do Brasil (comércio com a China, por exemplo, nosso principal parceiro comercial e sustentáculo dos superávits absolutamente necessários ao equilíbrio das transações correntes). 

Não existe uma identidade Ocidental nessa política externa por não corresponder a um novo alinhamento da sociedade, muito menos ainda do Itamaraty, com novos ou velhos parâmetros de alianças externas. Tudo era proclamação sem qualquer racionalidade instrumental, e sem suporte no establishment diplomático profissional. 

 

4. Sabendo que o Brasil possui hoje uma identidade internacional multifacetada, de que forma, na sua opinião, a incorporação da identidade de ‘país em desenvolvimento’ e de ‘potência emergente’ afetou a identidade ocidental do Brasil? 

PRA: A noção de “país em desenvolvimento” está plenamente incorporada ao ethos diplomático e integrada nas posturas adotadas nos foros internacionais. A noção de “potência emergente” é mais o produto de analistas externos, dos meios jornalísticos ou acadêmicos, do que própria à “ideologia” do Itamaraty. Não se pode dizer que essas noções tenham afetado uma suposta “identidade ocidental” do Brasil, pois que essa identidade depende dos governos que ocupam o poder. Com exceção do esquerdismo do PT, nenhum dos governos de centro rejeitaram essa noção, mas ela não ocupa um lugar central nas concepções feitas sobre o país pela diplomacia ou pela opinião pública bem-informada do Brasil. Todos admitem nossa formação e cultura ocidentais, mas a noção de país em desenvolvimento, que pretende dotar-se de uma capacitação moderna nos terrenos econômico e tecnológico, é bem mais presente na imagem que a sociedade se faz de si mesma.

 

5. Na sua opinião, houve, em algum momento da história recente do país, uma ruptura, isto é, uma mudança significativa, na forma em que o Ocidente era percebido pela política externa brasileira?

PRA: Sim, ocorreu, e de forma explícita desde os primeiros governos do PT e de forma mais acentuada neste terceiro mandato de Lula, talvez por excesso de confiança de que possa surgir uma “nova ordem global” não comandada, não controlada ou não tutelada pelos Estados Unidos, mas isso é apenas a expressão de um anti-imperialismo anacrônico e enviesado – válido apenas contra os EUA – e de um antiamericanismo vulgar. O governo de Lula 3 é claramente antiocidental, mais por falta de uma reflexão adequada sobre a questão do que por alguma teoria conspiratória ao estilo da que existia sob o bolsolavismo diplomático esquizofrênico da gestão anterior. No governo Bolsonaro, assessores amadores, ignorantes em política internacional, seguiam as correntes da franja lunática existente sobretudo nos Estados Unidos caracterizada pelo antiglobalismo e antimultilateralismo, uma verdadeira aberração do ponto de vista da diplomacia profissional. Aquilo, sim, foi uma ruptura com padrões tradicionais da diplomacia brasileira. A ruptura atual é basicamente uma ignorância da esquerda rústica com respeito ao que significa o Ocidente para o Brasil e para suas oportunidades de desenvolvimento econômico e social no contexto de uma democracia de mercado, associada às liberdades iluministas da tradição ocidental. O anti-ocidentalismo petista é bem mais o reflexo de seu antiamericanismo anacrônico (e claramente contrário aos interesses nacionais do Brasil); alegoricamente, seria uma espécie de “doença de pele”, que vai passar, assim que pessoas mais esclarecidas dirigirem o país e a sua diplomacia.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4566, 22 janeiro 2024, 4 p.; revisão: 13/04/2024

 

Também disponível neste link da plataforma Academia.edu: https://www.academia.edu/117446360/4566_O_Brasil_e_sua_identidade_ocidental_2024_