Sobre intervenções DE militares e DAS FFAA na política brasileira
Paulo Roberto de Almeida
Cerca de um ano atrás, mais exatamente na data antigamente muito comemorada entre os militares do 31 de março, dia consagrado como o do início da “Revolução de 31 de março de 1964”, e que andava um pouco esquecida desde os anos lulopetistas – pelo motivo óbvio de que muitos companheiros se encontravam entre as vítimas do regime militar –, o presidente Jair Bolsonaro fazia um apelo para que as Forças Armadas comemorassem novamente aquela data. Entendo que, muito a contragosto, os três comandantes das forças singulares e o Ministro da Defesa assinaram uma “Ordem do Dia” para ser nos quarteis e demais unidades das FFAA pela passagem da data. Lembro-me de ter lido e considerado com satisfação a “boa saída” dos comandantes militares, por meio de um texto que escondeu os aspectos incômodos do regime, ressaltou o tradicional compromisso da corporação militar com a preservação da ordem, com a promoção da democracia (aqui muitos franziriam os sobrolhos, como se dizia antigamente) e o seu absoluto acatamento dos valores e princípios constitucionais. No mesmo dia, o jornalista Mario Sabino, redator principal do site O Antagonista, divulgava um ensaio bastante crítico sobre a mesma data.
Aproveitei esses dois textos para juntar reflexões antigas sobre o papel das FFAA e dos militares na política brasileira e apresentei essas ideias num trabalho que pode ser lido, em sua versão completa (ou seja, incorporando todos eles), neste registro:
Imagino que, com a crise pandêmica do Covid-19, não deverá haver nenhuma comemoração de “31 de março”, mas é possível que o “capitão-presidente” insista ainda assim sobre essa data altamente simbólica no passado, mas desprovida de maior impacto no contexto atual. Alguns, saudosistas do regime militar, vivem no passado, e desde as crises e manifestações políticas de 2013-2016, continuam insistindo numa inacreditável “intervenção militar constitucional”, sem atentar minimamente para a total contradição nesses termos. Mas, como esse termo de “intervenção militar” na política sempre desperta paixões desencontradas na população, e sobretudo entre os acadêmicos e entre os próprios militares.
Vou, portanto, reproduzir – com pequenas alterações de forma, meu trabalho 3442, mas unicamente com respeito à “memória histórica” do que são, ou do que foram, as intervenções militares do passado, eventualmente prenunciando alguma nova, na presente conjuntura, que identifico como sendo uma crise de governança, em vista da total inépcia do atual presidente, e da intromissão indevida, e altamente prejudicial ao nosso sistema político-partidário e ao regime democrático (relações entre poderes), dos seus filhos e de outros personagens profundamente perturbadores do funcionamento do governo e do próprio Estado. Minha intenção precípua é apenas a de distinguir entre o que vejo como intervenções “de militares” (como atores) na política e intervenções “das Forças Armadas” na política brasileira.
Minha “tese” sobre as intervenções militares é a de que 1964, diferentemente do que se prega habitualmente, não foi um golpe militar dado pelas FFAA, a exemplo de outras intervenções dos militares na política, mas sim foi uma crise político-militar, resolvido com a intervenção de militares na política, sem que houvesse, inicialmente, a intenção explícita de tomar o poder para nele se perpetuar, pelo menos inicialmente. O que ocorreu logo depois, e o prolongamento do regime por mais de duas décadas, foi consequência da dinâmica criada pelo movimento que se desenvolveu nos primeiros dias de abril de 1964, e do papel de alguns de seus protagonistas. Explico essa minha "tese", para que isso fique muito claro.
Só reconheço TRÊS oportunidades nas quais as FFAA tomaram o poder no Brasil, e nem 1889, nem 1964 pertencem a esses três únicos exemplos ou se enquadram no contexto geral das intervenções militares na política dos países latino-americanos. Quando eu escrevo FFAA, com maiúsculas, estou referindo-me às Forças Armadas enquanto corpo constituído do Estado brasileiro, ou seja, os comandantes militares atuando em conjunto, e com o consenso do conjunto das tropas, por ocasião de algum evento político com significado maior para a história do país. Distingo esse acrônimo, as FFAA, das intervenções de militares na política, muito mais numerosas, pois que situadas no contextos de graves crises políticas nas quais os militares também foram envolvidos, individualmente ou como setores das FFAA, ou que se envolveram a título político por julgarem que era de seu dever, ou sua vontade, participar de eventos, fatos e processos que também tocavam gravemente nos destinos do país.
Quais foram, pois essas três únicas oportunidades, no quadro das muitas intervenções de militares na política, que aliás começam no próprio Império e passam notadamente na proclamação da República, que NÃO é, segundo essa minha tese, uma intervenção das FFAA na política, e sim o envolvimento de militares com a política. 1889 é um movimento político, com grande envolvimento de militares republicanos, vários “jacobinos”, que conseguem a própria participação do chefe do Exército (apenas do Exército e não da Marinha) na deposição do gabinete de Ouro Preto (tal como concebia esse movimento o próprio marechal Deodoro da Fonseca, tomado de surpresa, ou enganado, pelos oficiais republicanos). A República é um movimento político com expressiva participação de militares, não um mero golpe militar, ao estilo das quarteladas de caudilhos latinos.
A primeira intervenção das FFAA (e apenas dos comandantes do Exército e da Marinha) na política, depois de todas as agitações de tenentes e outras patentes em episódios da política brasileira nos primeiros 30 anos da República, se dá exatamente em outubro de 1930, quando essa junta de dois comandantes militares (a Aeronáutica ainda não existia enquanto Força) depõe o presidente Washington Luís, o mantém detido por poucos dias, até que as forças do líder revoltoso Getúlio Vargas chega ao Rio de Janeiro e toma posse de um governo provisório, tal como ocorreu com Deodoro em 1889. Ou seja, as FFAA efetuaram essa intervenção para evitar um possível sangrento embate entre forças legalistas e forças revoltosas, que poderia ocorrer nos limites entre os estados de S. Paulo e Paraná, a famosa “batalha de Itararé”, que não ocorreu, e deu margem a que Aparício Torelly, famoso humorista da época, se autoproclamasse “Barão de Itararé”, e assim passasse a assinar suas saborosas crônicas que vão, justamente, até o golpe de 1964 (atenção: eu disse golpe, e não revolução).
A segunda intervenção das FFAA na política brasileira se deu exatamente 15 anos depois, em outubro de 1945, quando elas depõem o ditador Getúlio Vargas, que fazia ensaios continuístas no poder, depois que as FFAA, seus soldados e oficiais participaram da defesa da democracia nos campos de batalha da Segunda Guerra. Não o fizeram exatamente por amor à democracia, mas o ditador estava recebendo o apoio do Partido Comunista e do seu líder, Luís Carlos Prestes, os mesmos que tinham intentado tomar o poder pela força, comandados pela III Internacional e pelo Partido Comunista da União Soviética, em novembro de 1935, ocasião na qual vários soldados e oficiais foram mortos pelos revoltosos comunistas. A partir de então, o Brasil e as FFAA se tornaram oficialmente anticomunistas, e assim permanecerão até hoje, inclusive em 1964, quando militares se envolveram na política novamente, depois de vários outros exemplos ao longo dessas décadas. Assim como 1889, 1937 não é um golpe militar, e sim um golpe de líderes políticos, com participação e apoio de militares, até de sua alta cúpula, mas não um movimento planejado e implementado pelas FFAA para ser o início de um regime militar, com um plano de governo para a ocasião.
Venho ao meu terceiro episódio de intervenção das FFAA na política brasileira, que não é 1964, sequer 1961, e menos ainda as diversas revoltas e ações militares, ou de militares, em 1954 (suicídio de Getúlio, para evitar uma possível intervenção das FFAA na política), em 1955 (garantia pelo general Lott à posse de JK, eleito minoritariamente) e outros episódios menores (revoltas locais de militares). Em 1961 ocorreu, sim, uma reação das FFAA e dos militares na política, mas de forma improvisada e desorganizada em função da crise aberta com a renúncia de Jânio Quadros, um processo que se arrastou por mais de duas semanas, até que se chegasse, no âmbito do Congresso, ao remendo do parlamentarismo também improvisado (e removido um ano depois). Tampouco 1964 se encaixa na “teoria” do golpe militar, e não constitui, em minha visão, uma intervenção das FFAA na política, que poderia, sim, ocorrer, caso o presidente ousasse uma ruptura democrática (fechar o Congresso, por exemplo), de acordo com a visão do chefe do Estado Maior à época, general Castello Branco, um grande democrata e um dos raros intelectuais (com Golbery) do Exército. 1964 foi um movimento civil-militar, empurrado por governadores ambiciosos, e pela ansiedade das classes médias ante o descalabro inflacionário e político do inepto João Goulart, que patrocinou diversos episódios de quebra de hierarquia nas FFAA (sargentos em setembro de 1963 em Brasília, cabos e marinheiros em 1964, arroubos irresponsáveis sobre um “dispositivo militar” e outro “sindical” no grande caos que foi o seu governo) e ensejou a reação das FFAA e dos militares a partir do gesto ousado de um único general, Olympio Mourão Filho, ao mobilizar tropas e tanques em Juiz de Fora para, irrealisticamente, “depor” Goulart no Rio de Janeiro. Deu no que deu, ao precipitar o movimento, e a direita militar fez o resto, mas nisso Castello Branco não teve parte.
A terceira, e única, intervenção das FFAA, e não de “simples” militares, na política, se refere, não ao Ato Institucional n. 5, em dezembro de 1968, uma reação autoritária ainda comandada pelo presidente, enquanto chefe das FFAA, mas sobretudo enquanto chefe de Estado, e sim ao impedimento do vice-presidente Pedro Aleixo de assumir o poder, em agosto de 1969, quando as FFAA se constituem em Junta Militar e emitem a Emenda Constitucional n. 1 (à Constituição de 1967), e ficam no poder até a eleição, pelo Congresso, do general Emílio Médici, como novo presidente do Brasil, da mesma forma como tinha sido o Congresso que havia “eleito” o general Castello Branco como “presidente” do Brasil, em princípio até 1965, data de nova eleição presidencial no quadro da Constituição de 1946.
Esta é a minha visão das intervenções das FFAA, de um lado, e de militares, de outro, na política brasileira ao longo do século e meio republicano. Atualmente, no governo confuso do presidente Bolsonaro, com militares eleitos e outros escolhidos para participar no governo, em diversos níveis, o que temos é o mais próximo possível de uma intervenção de militares e das FFAA na política, sem o ser, pois não há uma crise declarada, não há um movimento em curso, não existe um programa de governo das FFAA, ou de militares, para conduzir o país, como talvez surgiu bem depois de março-abril de 1964. O assunto “governo militar” foi finalmente decidido entre o final de 1964 e o início de 1965, dando início a um regime não previsto inicialmente, e que tampouco estava planejado para durar tanto tempo; foi durando por inépcia da esquerda, que foram as verdadeiras responsáveis pela ditadura que finalmente se estabeleceu, e que teve vários ciclos, como demonstraram Elio Gaspari, Marco Antonio Villa e diversos outros historiadores ao longo do tempo, inclusive brasilianistas, como Tom Skidmore.
Resumindo, o que temos hoje é uma espécie de “maçonaria militar” – como já houve outros episódios em nossa história, a independência, a própria República e outras coisas que seria preciso identificar). Eu digo “maçonaria” num sentido lato, e não estrito, pois nem sei se os militares que “mandam” no governo Bolsonaro – que tem uma outra metade, a “kakistocracia”, comandada por uma família medíocre – são ou foram, ou integram de fato, uma das maçonarias existentes no Brasil. Pode ser que sim ou pode ser que não, o que não tem a menor importância. O que é importante é que os militares atualmente “no poder” já estão organizados nesse sentido desde 2013, e mais formalmente entre 2016 e 2017, quando aceitaram conviver com um “cavalo pangaré” no comando da República, pois era o único que tinha restado da grande mixórdia da política brasileira, tingida pela megacorrupção dos companheiros e dos tucanos, e pela mediocridade da classe política de forma geral. Eles, os militares – e não ainda as FFAA – sabem o que NÃO querem, mas não sabem ainda (ou não podem) o que querem, ainda que alguns deles saibam exatamente o que é preciso fazer.
Feitas estas longas digressões sobre as relações das FFAA e dos militares com a política – para que se possa distinguir entre uma situação e outras – passo agora a essa questão, sem sentido, de demandas por uma “intervenção militar constitucional”, o que, como já disse, é totalmente contraditório, ou não obedece a nenhuma lógica racional. Ao que parece, muitos acreditam, apostam e até desejam uma NOVA INTERVENÇÃO das FFAA na política, eventualmente em função da mediocridade geral da política e das elites brasileiras. Para que isso pudesse ocorrer, as FFAA, e não apenas os “militares”, deveriam se manifestar e declarar estar prontas para exercer um “poder moderador”, que não está absolutamente previsto na Constituição.
Seriam, de fato, as FFAA as ÚNICAS forças democráticas do país, e não os partidos e os parlamentares atualmente no exercício dos seus respectivos mandatos? Não creio, e não creio que os comandantes militares – os três de cada arma e o ministro da Defesa – tenham suficiente clareza quanto a esse papel “tutelar” que elas exerceriam durante um curto período de transição, até o estabelecimento de um novo governo, em face do total descalabro da atual administração. Uma “solução” estaria na renúncia – voluntária ou forçada – do atual presidente e a assunção do vice-presidente, como mandatário efetivo até o final de 2022, presidindo, portanto, o processo eleitoral no país nos dois anos finais do atual mandato. O que parece claro, no presente momento, é que as crises que nos levaram das manifestações de 2013, ao impeachment de 2016, e às eleições de 2018, representaram uma nova oportunidade perdida para o Brasil.
Finalizo, portanto, com uma conhecida frase de Roberto Campos, para quem o Brasil é um país “que não perde oportunidade de perder oportunidades”. Por enquanto ainda estamos nisso, mas espero que estejamos melhor preparados para chegar a 2022. Afinal de contas, teríamos muita coisa a repensar em função do bicentenário de nossa Independência, em setembro daquele ano. Espero que estejamos um pouco melhor então.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 de março de 2019