Antes mesmo do início do governo Lula, em dezembro de 2002, eu já fazia uma análise de sua possível (ou provável) política externa, com base nas informações disponíveis sobre as posturas internacionais do PT, o que talvez não tenha agradado a alguns de seus próceres, ou aos responsáveis por essa política no Itamaraty.
O fato é que, ao iniciar o governo Lula, tendo sido meu nome cogitado para dirigir o mestrado em diplomacia promovido pelo Instituto Rio Branco, ele foi recusado, ou vetado (para dizer mais claramente), pelos dirigentes dessa diplomacia, tanto apparatchiks do partido quanto os profissionais do Itamaraty a serviço do PT.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 de janeiro de 2019
Revista Espaço Acadêmico, n. 19, dezembro de 2002, v. 2, n. 19 (2002)
link:
http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35920
pdf:
http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35920/751375139054
A política externa do novo governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva: retrospecto histórico e avaliação programática
Paulo Roberto de Almeida
Resumo
A primeira constatação que se pode fazer a propósito da provável política externa do futuro governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva é a de que se tratará de uma diplomacia evolutiva, tanto em seus contornos conceituais como em seu modus operandi. No dia seguinte à sua eleição consagradora no segundo turno das eleições presidenciais, e não conhecido ainda o nome que integrará seu futuro governo na qualidade de chanceler – que poderia ser tanto um representante da diplomacia profissional, como um “civil” com conhecimento da área –, pode-se dizer que o PT percorreu um longo caminho de construção tentativa de um pensamento em política externa, desde o programa de cunho socializante do partido criado mais de duas décadas atrás, até o programa da campanha presidencial de 2002 e, mais importante, o primeiro pronunciamento oficial do presidente eleito, em 28 de outubro de 2002.
Palavras-chave
diplomacia brasileira; posições; PT; ideologia diplomática;
Direitos autorais 2002 Revista Espaço Acadêmico
Ficha de registro desse trabalho:
977. “A Política
Externa do novo Governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva: retrospecto
histórico e avaliação programática”, Washington, 28 outubro 2002, 14 pp.
Síntese das posições de política externa do PT e do candidato Lula nas disputas
eleitorais de 1989, 1994, 1998 e 2002. Publicado como nota na Revista Brasileira de Política Internacional
(ano 45, n. 2, julho-dezembro 2002, pp 229-239; disponível em Scielo, link: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-73292002000200011&lng=en&nrm=iso&tlng=pt). Publicado na revista eletrônica Espaço Acadêmico (Maringá: ano II, n.
19, dezembro 2002; links: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35920; pdf: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35920/751375139054). Relação de Publicados n. 380 e 381.
A Política Externa do novo Governo
do Presidente Luís Inácio Lula da Silva: retrospecto histórico e avaliação
programática
Paulo
Roberto de Almeida *
A primeira constatação que se pode fazer a propósito da provável política
externa do futuro governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva é a de que se
tratará de uma diplomacia evolutiva, tanto em seus contornos conceituais como
em seu modus operandi. No dia
seguinte à sua eleição consagradora no segundo turno das eleições
presidenciais, e não conhecido ainda o nome que integrará seu futuro governo na
qualidade de chanceler – que poderia ser tanto um representante da diplomacia
profissional, como um “civil” com conhecimento da área –, pode-se dizer que o
PT percorreu um longo caminho de construção tentativa de um pensamento em
política externa, desde o programa de cunho socializante do partido criado mais
de duas décadas atrás, até o programa da campanha presidencial de 2002 e, mais
importante, o primeiro pronunciamento oficial do presidente eleito, em 28 de
outubro de 2002.
Com efeito, o programa fundacional do PT previa uma “política
internacional de solidariedade entre os povos oprimidos e de respeito mútuo
entre as nações que aprofunde a cooperação e sirva à paz mundial. O PT
apresenta com clareza sua solidariedade aos movimentos de libertação
nacional...” Não constava, do primeiro programa, menção explícita à “política
externa”, mas, o “plano de ação” contemplava os seguintes pontos em seu item
“VI- Independência Nacional: contra a dominação imperialista; política externa
independente; combate a espoliação pelo capital internacional; respeito à
autodeterminação dos povos e solidariedade aos povos oprimidos”.
Como se vê, uma plataforma típica dos partidos esquerdistas da América Latina
no período clássico da Guerra Fria e dos “movimentos de libertação nacional”.
Desde então, o partido e seus dirigentes evoluíram sensivelmente, mas o
itinerário não deixou de ser algo errático, ou pelo menos hesitante (ou
relutante) na adesão a princípios consagrados da política externa brasileira,
como poderia ser observado mediante um exame perfunctório dos principais temas
de relações internacionais do Brasil selecionados como plataforma de campanha
nas eleições presidenciais de 1989 até hoje. Vejamos rapidamente algumas dessas
posições.
Em 1989, a principal característica do candidato Lula era sua
identificação com a luta dos oprimidos da América Latina. O candidato do PT
apresentou um amplo e abrangente programa de governo e, segundo se depreendia
das resoluções políticas adotadas pelo Partido em seu IV Encontro Nacional
(junho de 1989), pretendia propor uma “política externa independente e
soberana, sem alinhamentos automáticos, pautada pelos princípios de
autodeterminação dos povos, não-ingerência nos assuntos internos de outros
países e pelo estabelecimento de relações com governos e nações em busca da
cooperação à base de plena igualdade de direitos e benefícios mútuos”.
Mesmo se esses princípios não diferiam muito da política externa
efetivamente seguida pelo Brasil, ainda assim uma vitória do
candidato-trabalhador, representaria uma reavaliação radical das posturas
brasileiras na área, já que a “Frente Brasil Popular” prometia adotar uma
“política antiimperialista, prestando solidariedade irrestrita às lutas em
defesa da autodeterminação e da soberania nacional, e a todos os movimentos em
favor da luta dos trabalhadores pela democracia, pelo progresso social e pelo
socialismo”. Um hipotético Governo da Frente defenderia a “luta dos povos
oprimidos da América Latina” e Lula chegou mesmo a propor a “decretação de uma
moratória unilateral para ‘solucionar’ a questão da dívida externa”.
Aliás, na proposta que o PSB – um dos membros da Frente – apresentou de um
“programa mínimo” das esquerdas para as eleições presidenciais de 1989, se
defendia a “imediata suspensão de qualquer pagamento relacionado com a dívida
externa”, a constituição de um “entendimento entre os diversos países devedores
com vistas a fortalecer o não-pagamento” e o estabelecimento de “relações
fraternas com todos os partidos que tenham como objetivo a construção da
democracia e do socialismo com o objetivo de unir esforços na preparação de uma
alternativa à crise do modo de produção capitalista”.
Em 1994, o candidato do PT lançou-se em campanha
à frente de todos os demais, tendo preparado-se, aliás, para disputar novamente
a presidência praticamente desde o final das eleições de 1989. Alguns meses
depois dessas eleições, o líder do PT tinha com efeito anunciado, em coalizão
com alguns outros partidos de esquerda, a formação de um “governo paralelo”,
seguramente um dos poucos exemplos de shadow
cabinet ao sul do Equador. Infelizmente, a experiência não chegou realmente
a frutificar, pelo menos no que se refere à atividade de um “ministro paralelo”
das relações exteriores. Não se teve notícia de que o chanceler “paralelo” –
designado na pessoa do filósofo e professor Carlos Nelson Coutinho – tivesse
avançado um programa, ou sequer elementos, de uma “política externa
alternativa”, com propostas concretas para o relacionamento internacional do
Brasil.
Em todo caso, a partir desse período, Lula passou
a viajar bastante pelo Brasil e ao exterior e patrocinou em São Paulo um “foro”
de partidos de esquerda da América Latina, que depois consolidou-se como
reunião periódica de formações “progressistas” da região e contrárias às
supostas ou reais políticas “neoliberais” de estabilização econômica no
continente. A despeito de uma condenação genérica do chamado “consenso de
Washington”, o candidato do PT também desenvolveu um maior conhecimento a
respeito das opções na frente externa, tendo chegado a posições definidas,
embora nem todas explícitas, em relação aos grandes problemas internacionais
enfrentados pelo Brasil.
O PT foi também o que primeiro definiu um
programa de Governo para as eleições de 1994, com propostas bem articuladas,
mas por vezes contraditórias, que refletiam um intenso debate interno entre as
diversas correntes do partido. Alguns grupos representativos de “minorias”
(negros, ecologistas, homossexuais e outros grupos de “excluídos” ou
“marginalizados”) lograram incluir suas reivindicações específicas nesse
programa. Com base no programa do Partido e em texto assinado pelo próprio
candidato, quais foram, em todo caso, os principais elementos da agenda do PT
em relação à política externa nacional e às relações internacionais nesse ano
do Plano Real (definido pelo PT como um “estelionato eleitoral”)?
O problema básico da política externa brasileira, tal
como detectado no programa, foi designado como sendo a ausência, “há mais de
quinze anos, de um projeto nacional de desenvolvimento”, opinião reafirmada
pelo candidato em artigo publicado no
Boletim
da Associação dos Diplomatas Brasileiros.
Lula reconhecia, também em acordo com o programa, que “durante os governos
militares, mais particularmente no período do general Geisel, existia um
projeto nacional, politicamente autoritário e socialmente excludente” que, a
despeito das críticas que seu partido pode fazer, “abriu brechas para que o
Brasil reorientasse sua política externa”. Em 1994, segundo o programa,
persistia “inercialmente a política externa daquele período, adequada
empiricamente às novas realidades...”. Mas, em face do quadro de mudanças, o
“Governo Democrático e Popular deveria desenvolver uma política externa que
buscará simultaneamente uma inserção soberana do Brasil na mundo e a
alteração das relações de força
internacionais contribuindo para a construção de ordem mundial justa e
democrática”.
O programa de então destacava como áreas prioritárias da
“nova política externa” a América Latina e o Mercosul, referindo-se aqui, de
forma equivocada, ao “Merconorte”. Ele não deixava tampouco de dar ênfase às
“relações de cooperação econômica e nos domínios científico e tecnológico, com
uma correspondente agenda política”, na esfera Sul-Sul, com países como a
China, Índia, Rússia e África do Sul e com os países de língua portuguesa.
Algumas iniciativas internacionais eram listadas, como, por exemplo, a
“rediscussão dos problemas das dívidas externas dos países periféricos”,
propostas sobre a fome e a miséria no mundo ou ainda a convocação de uma
conferência internacional – “de porte semelhante à ECO-92” – para discutir a
situação do trabalho no mundo e medidas efetivas contra o desemprego. O
programa também prometia recuperar o Ministério das Relações Exteriores, “cuja
estrutura foi sucateada nos últimos anos”.
Em seu artigo assinado, depois de listar algumas das
transformações por que passou o mundo no período recente, o candidato Lula
indicava alguns elementos para a formulação da “nova política externa para o
Brasil”. “Em primeiro lugar, o Brasil só poderá ter uma política externa
consistente se tiver um claro projeto nacional de desenvolvimento, com o
correspondente fortalecimento da democracia, o que significa universalização da
cidadania, do respeito aos direitos humanos, reforma e democratização do
Estado”. Esse projeto nacional de desenvolvimento compreende um “modelo de
crescimento que favoreça a criação de um gigantesco mercado de bens de consumo
de massas que permita redefinir globalmente a economia, dando-lhe, inclusive,
novas condições de inserção e de cooperatividade internacionais”. “Em segundo
lugar, o Brasil não pode sofrer passivamente a atual (des)ordem mundial. Ele
tem de atuar no sentido de buscar uma nova ordem política e econômica
internacional justa e democrática”.
Considerando que a política externa é, antes de mais nada, uma questão de
política interna, o candidato reafirmava seus pressupostos de atuação: “A
política externa não vem depois da definição de um projeto nacional. Ela faz
parte deste projeto nacional”. Parafraseando Clausewitz, o candidato do PT,
portanto, também poderia hipoteticamente dizer: “A política externa é a
continuação da política interna por outros meios”.
Em 1998, já em sua terceira candidatura, desta vez por uma coligação ¾ a
“União do Povo Muda Brasil”, com PT/PDT/PCdoB/PSB/PCB ¾ Lula esforçou-se por
colocá-la sob o signo da continuidade e da inovação, este último aspecto
apresentando-se, desde o início da campanha, sob a forma de uma aliança
política privilegiada com seu concorrente trabalhista das experiências
anteriores, o líder do PDT Leonel Brizola. Este antigo líder da história
política brasileira chegou a causar constrangimentos para o então relativamente
moderado candidato “dos trabalhadores”, ao defender uma postura intransigente
em relação ao capital estrangeiro e às privatizações de empresas públicas,
chegando mesmo a declarar que não só esse processo seria interrompido mas que
algumas das leiloadas seriam suscetíveis de reversão ao domínio estatal num
eventual governo da coligação.
O próprio candidato à presidência defendeu uma
redução das importações por via de medidas governamentais, embora de caráter
tarifário, o que garantiria a transparência da política comercial de um Governo
do PT e seus aliados partidários. As “Diretrizes do Programa de Governo”
da coalizão popular acusavam o Governo FHC de ter praticado uma abertura
“irresponsável” da economia e de ter desnacionalizado a “nossa indústria e
nossa agricultura, provocando desemprego e exclusão social”. A ênfase na perda
de soberania econômica do País era aliás o ponto forte da campanha de Lula na
área internacional, elemento combinado a uma política externa de tipo
voluntarístico que se propunha mudar a forma de inserção do Brasil no mundo a
partir da manifestação da vontade política, aqui ignorando aparentemente as
linhas de força nas instituições internacionais e nas relações com os demais
países, parceiros ou “adversários” na atual ordem econômica mundial.
O Ponto 12 dessas diretrizes, “Presença
soberana no mundo”, defendia, de forma conseqüente, uma “política externa,
fundada nos princípios da autodeterminação”, que faria — segundo o texto,
“expressará nosso desejo” de ver — o Brasil atuar “com decisão visando alterar
as relações desiguais e injustas que se estabeleceram internacionalmente”.
Ainda nessa mesmo linha, um eventual Governo liderado pelo PT lutaria “por
mudanças profundas nos organismos políticos e econômicos mundiais, sobretudo a
ONU, o FMI e a OMC”. Com efeito, documento liberado quando do agravamento da
crise financeira, em princípios de setembro de 1998, avançava a proposta de
“participar da construção de novas instituições financeiras internacionais”,
uma vez que “as atualmente existentes — FMI, OMC, BIRD — são incapazes de
enfrentar a crise”. De forma ainda mais explícita, a coalizão de Lula pretendia
combater o Acordo Multilateral de Investimentos em fase de negociação na OCDE,
considerado como “atentatório à soberania nacional”.
De maneira mais positiva, o programa enfatizava a
intenção de fortalecer as relações do Brasil com os outros países do Sul, “em
especial com os da América Latina, da África meridional e aos de expressão
portuguesa”. O processo de integração subregional, finalmente, era visto muito
positivamente, mas ficava claro o desejo de efetuar uma “ampliação e reforma do
Mercosul que reforce sua capacidade de implementar políticas ativas comuns de
desenvolvimento e de solução dos graves problemas sociais da região”. Depreendia-se,
contudo, das declarações de diversos membros da coalizão que o Mercosul era
considerado como uma espécie de “bastião antiimperialista”, em contraposição ao
projetos norte-americanos de diluir esse esquema num vasto empreendimento
livre-cambista do Alasca à Terra do Fogo. De forma geral, a ALCA se apresentava
como um anátema na política externa de um Governo liderado pelo PT, perdendo
apenas em importância na escala de inimigos ideológicos para o neoliberalismo e
a globalização selvagem promovida pelas grandes empresas multinacionais.
Já em 2002, o cenário mudou substancialmente, com a expressão inédita de
um novo realismo diplomático, a começar pela política de alianças buscada pelo
candidato Lula, desta vez não unicamente à esquerda, mas envolvendo em especial
o Partido Liberal, que forneceu seu candidato a vice. Ainda que partindo na
frente de todos os demais candidatos, tanto em termos de candidatura oficiosa
como no que se refere aos índices de aceitação eleitoral, o candidato do PT e o
próprio partido foram desta vez extremamente cautelosos na formulação das bases
da campanha política, a começar pelas alianças contraídas com vistas a
viabilizar um apoio “centrista” ao candidato. Lula foi também bastante
cauteloso na exposição de sua idéias, ainda que algumas delas, ainda no início
da campanha, tenham sido exploradas por seus adversários (como por exemplo o
apoio às políticas subvencionistas da agricultura européia ou a proposta de que
o Brasil deveria deixar de exportar alimentos até que todos os brasileiros
pudessem se alimentar de maneira conveniente). Nessa fase, ele ainda repetia
alguns dos velhos bordões do passado (contra o FMI e a Alca, por exemplo), que
depois foram sendo corrigidos ou alterados moderadamente para acomodar as novas
realidades e a coalizão de forças com grupos nacionais moderados que se pensava
constituir de forma inédita.
Em matéria de política externa, mais especificamente, a intenção – aliás
partilhada com os demais candidatos e, de certa forma, implementada pelo governo
FHC – era a de ampliar as relações do Brasil com outros grandes países em
desenvolvimento, sendo invariavelmente citados a China, a Índia e a Rússia. No
plano econômico, o compromisso – também expresso pelos demais candidatos – era
o de diminuir o grau de dependência financeira externa do Brasil, mobilizando
para tal uma política de promoção comercial ativa, com novos instrumentos para
esse efeito (possivelmente uma secretaria ou ministério de comércio exterior).
Segundo a “Carta ao Povo Brasileiro”, divulgada por Lula em 22 de junho, o povo
brasileiro quer “trilhar o
caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de
exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas”. De
maneira ainda mais enfática, nesse documento, Lula afirmou claramente que a
“premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e
obrigações do País”.
Depois de algumas ameaças iniciais de se retirar das negociações da Alca
(que seria “mais um projeto de anexação [aos EUA] do que de integração”), Lula
passou a não mais rejeitar os pressupostos do livre-comércio, exigindo apenas
que ele fosse pelo menos equilibrado, e não distorcido em favor do parceiro
mais poderoso, o que constituiu notável evolução em relação a afirmações de
poucas semanas antes. O principal assessor econômico do candidato, deputado
Aloízio Mercadante foi bastante cauteloso na qualificação das eventuais
vantagens da Alca: “Esta não deve ser vista como uma
questão ideológica ou de posicionamento pró ou contra os Estados Unidos, mas
sim como um instrumento que pode ou não servir aos interesses estratégicos
brasileiros” (Valor Econômico,
15.07.02). Os contatos mantidos pela cúpula do PT com industriais, banqueiros e
investidores estrangeiros tendiam todos
a confirmar esse novo realismo diplomático, e sobretudo econômico, do
candidato.
De fato, os principais dirigentes do PT começaram, em plena campanha, a
se afastar cautelosamente das propostas tendentes a realizar um plebiscito
nacional sobre a Alca (organizado pela CUT, pelo MST e pela CNBB), uma vez que
ele teria resultados mais do que previsíveis, todos negativos para a
continuidade dessas negociações. De modo ambíguo, porém, o assessor Mercadante
parecia acreditar na possibilidade de um acordo bilateral com os EUA, sem
explicar como e em que condições ele poderia ser mais favorável do que o
processo hemisférico: “é importante que,
independentemente da Alca, o Brasil e os Estados Unidos iniciem um processo de
negociação bilateral direcionado para a ampliação do seu intercâmbio comercial
e a distribuição mais justa de seus benefícios”. O PT parecia assim ter
iniciado, ainda que de maneira hesitante, o caminho em direção ao reformismo
moderado.
O programa divulgado pelo candidato em 23 de julho de 2002 era bastante
ambicioso quanto aos objetivos de “sua” política externa, uma vez que prometia
convertê-la num dos esteios do processo de desenvolvimento nacional: “A política externa será um meio
fundamental para que o governo implante um projeto de desenvolvimento nacional
alternativo, procurando superar a vulnerabilidade do País diante da
instabilidade dos mercados financeiros globais. Nos marcos de um comércio
internacional que também vem sofrendo restrições em face do crescente
protecionismo, a política externa será indispensável para garantir a presença
soberana do Brasil no mundo.” Parece ter ocorrido aqui, ao contrário das
ocasiões anteriores, uma espécie de sobrevalorização da política externa, ou em
todo caso, uma esperança exagerada em suas virtudes transformadoras.
Com efeito, o candidato Lula pretendia, nada mais nada menos que
reorganizar o mundo e o continente sul-americano a partir de suas propostas
diplomáticas, o que denota ou excesso de otimismo ou desconhecimento quanto aos
limites impostos pela realidade internacional a esses grandes projetos
mudancistas no cenário externo, sobretudo vindos de um país dotado de recursos
externos limitados como o Brasil. “Uma nova política externa deverá igualmente contribuir para reduzir
tensões internacionais e buscar um mundo com mais equilíbrio econômico, social
e político, com respeito às diferenças culturais, étnicas e religiosas. A
formação de um governo comprometido com os interesses da grande maioria da
sociedade, capaz de promover um projeto de desenvolvimento nacional, terá forte
impacto mundial, sobretudo em nosso Continente. Levando em conta essa
realidade, o Brasil deverá propor um pacto regional de integração,
especialmente na América do Sul. Na busca desse entendimento, também estaremos
abertos a um relacionamento especial com todos os países da América Latina.”
Em contraposição ao candidato governista, supostamente herdeiro da
política de integração do presidente FHC mas de fato cético quanto a suas
vantagens para o Brasil, o candidato Lula era o mais entusiástico promotor do
Mercosul, mas ainda aqui com pouco realismo em relação às chances de uma moeda
comum no curto prazo ou a implantação de instituições mais avançadas: “É necessário revigorar o Mercosul,
transformando-o em uma zona de convergência de políticas industriais,
agrícolas, comerciais, científicas e tecnológicas, educacionais e culturais.
Reconstruído, o Mercosul estará apto para enfrentar desafios macroeconômicos,
como os de uma política monetária comum. Também terá melhores condições para enfrentar
os desafios do mundo globalizado. Para tanto, é fundamental que o bloco
construa instituições políticas e jurídicas e desenvolva uma política externa
comum.”
Persistia, igualmente, no programa, a atitude de princípio contrária à
Alca e um certo equívoco quanto aos objetivos de uma zona de livre-comércio,
pois que se via nesse processo a necessidade do estabelecimento de políticas
compensatórias, quando são raros os exemplos de acordos de simples
liberalização de comércio que contemplem tais tipos de medidas corretivas: “Essa política em relação aos países
vizinhos é fundamental para fazer frente ao tema da Área de Livre Comércio das
Américas (ALCA). O governo brasileiro não poderá assinar o acordo da ALCA se
persistirem as medidas protecionistas extra-alfandegárias, impostas há muitos
anos pelos Estados Unidos. (…) A
política de livre comércio, inviabilizada pelo governo norte-americano com
todas essas decisões, é sempre problemática quando envolve países que têm
Produto Interno Bruto muito diferentes e desníveis imensos de produtividade
industrial, como ocorre hoje nas relações dos Estados Unidos com os demais
países da América Latina, inclusive o Brasil. A persistirem essas condições a
ALCA não será um acordo de livre comércio, mas um processo de anexação
econômica do Continente, com gravíssimas conseqüências para a estrutura
produtiva de nossos países, especialmente para o Brasil, que tem uma economia
mais complexa. Processos de integração regional exigem mecanismos de
compensação que permitam às economias menos estruturadas poder tirar proveito
do livre comércio, e não sucumbir com sua adoção. As negociações da ALCA não
serão conduzidas em um clima de debate ideológico, mas levarão em conta
essencialmente o interesse nacional do Brasil.”
Um certo idealismo mudancista se insinua igualmente no programa, ao
pretender um eventual governo do PT conduzir uma “aproximação com países de importância regional, como
África do Sul, Índia, China e Rússia”, com o objetivo de “construir sólidas
relações bilaterais e articular esforços a fim de democratizar as relações
internacionais e os organismos multilaterais como a Organização das Nações
Unidas (ONU), o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do
Comércio (OMC) e o Banco Mundial”. Por outro lado, a antiga desconfiança
em relação ao capital estrangeiro cedeu lugar a uma postura mais equilibrada,
uma vez que se afirmou no programa de 2002 que o Brasil “não deve prescindir das empresas, da tecnologia
e do capital estrangeiro”, alertando então que os “países que hoje tratam de
desenvolver seus mercados internos, como a Índia e a China, não o fazem de
costas para o mundo, dispensando capitais e mercados externos”. Mas, se
advertia também que as “nações que deram prioridade ao mercado externo, como o Japão
e a Coréia, também não descuidaram de desenvolver suas potencialidades
internas, a qualidade de vida de seu povo e as formas mais elementares de
pequenos negócios agrícolas, comerciais, industriais e de serviços.”
O excessivo viés em favor do mercado interno foi corrigido no programa,
que tende por outro lado a esquecer a ênfase atribuída pelo governo FHC ao
crescimento das exportações: “Sem
crescimento dificilmente estaremos imunes à espiral viciosa do desemprego
crescente, do desarranjo fiscal, de déficits externos e da incapacidade de
honrar os compromissos internos e internacionais. O primeiro passo para crescer
é reduzir a atual fragilidade externa. (…) Para combater essa fragilidade,
nosso governo vai montar um sistema combinado de crédito e de políticas
industriais e tributárias. O objetivo é viabilizar o incremento das
exportações, a substituição competitiva de importações e a melhoria da
infra-estrutura. Isso deve ser feito tanto por causa da fragilidade das contas
externas como porque o Brasil precisa conquistar uma participação mais
significativa no comércio mundial, o que o atual governo menosprezou por um
longo período”.
Em suma, o candidato do
PT realizou um notável percurso em direção de uma postura mais realista no
campo da política externa, assim como no terreno mais geral das políticas
econômicas, notadamente no que se refere ao relacionamento com o capital
estrangeiro e com as instituições financeiras internacionais. Cabe registro, em
todo caso, a seu acolhimento, não totalmente desfavorável, em relação ao acordo
anunciado pelo governo de mais um pacote de sustentação financeira por parte do
FMI, desta vez pela soma inédita de 30 bilhões de dólares. A nota divulgada
pela campanha de Lula na ocasião foi bastante cautelosa no que se refere ao
cumprimento das obrigações externas, ainda que registrando negativamente o
encargo passado ao governo futuro de manter um superávit primário na faixa de
pelo menos 3,75% do PIB até 2004. Ao encontrar-se com o presidente FHC, a
pedido deste, para tratar da questão do acordo com o FMI, em 19 de agosto, o
candidato do PT reiterava seu entendimento de que as dificuldades decorriam do
“esgotamento do atual modelo econômico”, confirmando também, com franqueza, seu
compromisso afirmado na “Carta ao Povo Brasileiro”: o de que, “se vencermos as
eleições começaremos a mudar a política econômica desde o primeiro dia”.
Não obstante, Lula
oferecia uma série de sugestões para, no seu entendimento, “ajudar o País a
sair da crise”, muitas delas medidas de administração financeira, de política
comercial e de reativação da economia. O PT e seu candidato das três disputas
anteriores se esforçavam, dessa forma, em provar aos interlocutores sociais –
eleitores brasileiros – e aos observadores externos – capitalistas estrangeiros
e analistas de Wall Street – que o partido e seus aliados estavam plenamente
habilitados a assumir as responsabilidades governamentais e a representar os
interesses externos do País com maior dose de realismo econômico e diplomático
do que tinha sido o caso nas experiências precedentes.
Essa evolução moderada
foi confirmada, finalmente, no primeiro pronunciamento do presidente eleito, em
28 de outubro de 2002. Nesse texto, consciente da gravidade da crise econômica
e dos focos de tensão externa remanescente, Lula advertiu: “O Brasil
fará a sua parte para superar a crise, mas é essencial que além do apoio de
organismos multilaterais, como o FMI, o BID e o BIRD, se restabeleçam as linhas
de financiamento para as empresas e para o comércio internacional. Igualmente
relevante é avançar nas negociações comerciais internacionais, nas quais os
países ricos efetivamente retirem as barreiras protecionistas e os subsídios
que penalizam as nossas exportações, principalmente na agricultura.” A segunda frase, particularmente,
poderia, sem qualquer mudança, ter sido pronunciada pelo presidente Fernando
Henrique Cardoso, por seu chanceler ou por seu ministro da economia.
Também, diferentemente da “ameaça” de cessar as exportações de alimentos
até que todos os brasileiros pudessem se alimentar de maneira conveniente, Lula
traçou um retrato convincente das possibilidades nessa área: “Nos últimos três
anos, com o fim da âncora cambial, aumentamos em mais de 20 milhões de
toneladas a nossa safra agrícola. Temos imenso potencial nesse setor para
desencadear um amplo programa de combate à fome e exportarmos alimentos que
continuam encontrando no protecionismo injusto das grandes potências econômicas
um obstáculo que não pouparemos esforços para remover.” Igualmente, não há nada
aqui que não poderia receber o endosso – e de fato já integra o discurso – da
administração atuante até o final de 2002.
De modo geral, a “nova diplomacia” não parece
afastar-se muito da “velha”, com talvez uma afirmação mais enfática dos
“interesses nacionais” e da defesa da soberania: “É uma boa hora para reafirmar
um compromisso de defesa corajosa de nossa soberania regional. E o faremos
buscando construir uma cultura de paz entre as nações, aprofundando a
integração econômica e comercial entre os países, resgatando e ampliando o
Mercosul como instrumento de integração nacional e implementando uma negociação
soberana frente à proposta da ALCA. Vamos fomentar os acordos comerciais
bilaterais e lutar para que uma nova ordem econômica internacional diminua as
injustiças, a distância crescente entre países ricos e pobres, bem como a
instabilidade financeira internacional que tantos prejuízos tem imposto aos
países em desenvolvimento Nosso governo será um guardião da Amazônia e da sua
biodiversidade. Nosso programa de desenvolvimento, em especial para essa
região, será marcada pela responsabilidade ambiental.” Em outros termos,
abandonou-se a tese da Alca “anexacionista” em favor de uma negociação séria
dos interesses brasileiros nesses acordos de liberalização comercial.
A defesa do multilateralismo não destoa, em
praticamente ponto nenhum, das conhecidas posições defendidas tradicionalmente
pela diplomacia brasileira: “Queremos impulsionar todas as formas de integração
da América Latina que fortaleçam a nossa identidade histórica, social e
cultural. Particularmente relevante é buscar parcerias que permitam um combate
implacável ao narcotráfico que alicia uma parte da juventude e alimenta o crime
organizado. Nosso governo respeitará e procurará fortalecer os organismos
internacionais, em particular a ONU e os acordos internacionais relevantes,
como o protocolo de Quioto, e o Tribunal Penal Internacional, bem como os
acordos de não proliferação de armas nucleares e químicas. Estimularemos a
idéia de uma globalização solidária e humanista, na qual os povos dos países
pobres possam reverter essa estrutura internacional injusta e excludente.”
Em suma, atendidas algumas ênfases conceituais e a
defesa afirmada da soberania nacional, a política externa do governo que inicia
seu termo em janeiro de 2003 não destoará, substancialmente, da diplomacia
conduzida de maneira bastante profissional pelo Itamaraty no período recente,
conformando aliás uma concordância de princípio com a tradicional “diplomacia
do desenvolvimento” impulsionada pelo Brasil desde largos anos. No plano
operacional, parece inevitável o aumento do diálogo do Itamaraty com o
Congresso e outras forças organizadas da sociedade civil, como os sindicatos,
as organizações não-governamentais e representantes do mundo acadêmico.
Trata-se, em todo caso, de uma saudável inovação para uma instituição cujo moto
organizador parece consubstanciar-se na frase “renovar-se na continuidade”. Com
talvez alguma surpresas verbais, naturais em momentos de mudança paradigmática como
a que vive o Brasil, tanto a inovação como a continuidade parecem garantidas no
futuro governo sob a hegemonia do novo centro político brasileiro. As gerações
mais jovens do Itamaraty certamente receberam com bastante satisfação a
confirmação da mudança política no cenário eleitoral e parecem animadas com as
perspectivas de mudança – talvez até geracional – que podem operar-se na Casa
de Rio Branco. A confirmar-se a “continuidade da renovação”, o Itamaraty tem
todas as condições de emergir, nos próximos quatro anos, com uma nova
legitimidade no plano societal interno, ao ser implementada a nova diretriz de
colocar, de maneira mais afirmada, a política externa a serviço de um projeto
nacional de desenvolvimento econômico e social.
* Paulo Roberto de Almeida é doutor em ciências sociais e
autor do livro Formação da Diplomacia
Econômica no Brasil (2001).