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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Relacoes internacionais do Brasil: 5 pontos essenciais para as eleicoes presidenciais de 2018 - Paulo Roberto de Almeida

Estas são as notas que havia elaborado previamente à entrevista concedida a jornalista do Instituto Millenium sobre possíveis temas eleitorais, mas que não utilizei na gravação, a não ser por defender ideias, digamos assim, "similares" às que vão aqui expostas. A leitura deste texto não dispensa, portanto, uma audição da gravação feita, que está disponível nas coordenadas abaixo: 

Relações internacionais do Brasil: 5 pontos essenciais para as eleições presidenciais de 2018

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: Entrevista em formato de podcast para o Instituto Millenium; finalidade: abordar questões de política externa relevantes nas eleições de 2018]


Introdução: a baixa incidência relativa das relações externas nas eleições de 2018
As relações internacionais do Brasil, à diferença talvez de ocasiões anteriores, não deverão assumir papel relevante na campanha presidencial e nos debates eleitorais em 2018, uma vez que não existem grandes crises que afetem o Brasil ou que tenham uma interface externa, como podem ter sido, por exemplo, o problema da dívida externa e dos acordos com o Fundo Monetário Internacional em ocasiões passadas. Ainda em 2002, para relembrar uma dessas ocasiões, o Partido dos Trabalhadores, junto com os chamados movimentos sociais, organizava manifestações, petições, plebiscitos contra o pagamento da dívida externa, contra o projeto americano de um acordo comercial hemisférico, a Alca, Área de Livre Comércio das Américas, assim como se manifestava de maneira geral contra supostas ameaças vindas dos investimentos diretos estrangeiros em setores considerados estratégicos pela esquerda brasileira.
Tudo isso ficou para trás agora, como a própria ameaça de uma suposta “crise internacional”, já amplamente superada em 2014, para justificar a deterioração da situação econômica brasileira, amplamente provocada pela gestão inepta e corrupta do mesmo Partido dos Trabalhadores nas eleições presidências daquele ano. A tremenda crise que o Brasil viveu entre 2015 e 2017, e que ainda exerce seus efeitos devastadores em termos do número de desempregados – mais de 13 milhões, sem falar do tradicional subemprego e dos já excluídos do mercado de trabalho –, essa crise que eu chamo de A Grande Destruição lulopetista da economia – depois da Grande Depressão dos anos 1930 e da Grande Recessão de 2008 – foi inteiramente fabricada no Brasil, mas os companheiros ainda tentavam atribuir seus efeitos a uma não existente crise internacional, totalmente inventada por uma propaganda distorcida.
Atualmente, a despeito do baixo crescimento europeu, a maior parte das economias nacionais vem crescendo a taxas satisfatórias, com destaque para países da Ásia Pacífico e mesmo para alguns vizinhos latino-americanos, que resolveram se integrar à economia mundial, como são, por exemplo, os membros da Aliança do Pacífico. O Brasil, infelizmente, vai demorar algum tempo para retomar taxas adequadas de crescimento econômico, em função dos problemas acumulados pela gestão incompetente do PT nos dez anos que vão de 2006 a 2016.
Não há, portanto, grandes culpas a atribuir à situação econômica internacional pelas nossas dificuldades presentes, o que deve deslocar o debate eleitoral para os problemas já detectados nos últimos dois anos, e que ainda demandam equacionamento adequado: a grave crise fiscal, as reformas estruturais não feitas, entre elas, em primeiro lugar, a da Previdência, uma rebaixa dos níveis extorsivos de tributação, a continuidade dos programas de redução das despesas públicas, excessivas e justamente responsáveis pelos desajustes atuais, na União e nos estados, assim como a melhoria dos péssimos indicadores de desempenho educacional, o principal fator que incide sobre os níveis de produtividade, notoriamente baixos no caso do Brasil.
Ainda assim, existem diversos pontos das relações internacionais do Brasil que podem ser suscitados na campanha eleitoral e que vale a pena abordar ainda que de maneira sintética, pois deles dependem um melhor desempenho econômico do país, capazes de contribuir para o emprego, para o crescimento, para o aumento da renda e para uma maior inserção internacional do Brasil. Vamos a eles.

1. Abertura econômica internacional e liberalização comercial
A primeira tarefa de uma política externa renovada, e consequentemente também a de sua diplomacia profissional, é a de contribuir para um processo de crescimento sustentado da produtividade na economia, pela redução do custo do capital e pelo aperfeiçoamento do capital humano, os dois elementos mais importantes da produtividade total de fatores, junto com as demais externalidades positivas que cabe ao Estado prover de forma eficiente.
A melhor maneira que eu vejo de atingir esses objetivos passa por uma abertura econômica ampla e pela liberalização comercial, ou seja, um acolhimento mais dinâmico de investimentos diretos estrangeiros e a redução de nossa ainda alta proteção tarifária. Ambas medidas constituem, essencialmente, decisões de política doméstica, bem mais do que de política externa, que pode porém auxiliar na implementação desses dois objetivos maiores. Mas a maneira de fazê-lo é necessariamente uma tarefa de política interna, tanto por razões estruturais quanto conjunturais, e é fácil identificar as razões.
O Brasil é hoje um país introvertido, o mais fechado do G-20, o grupo de nações economicamente mais importantes do mundo, que todas possuem coeficientes de abertura externa bem superiores ao exibido pelo Brasil. Ou seja, somos nós que estamos errados, não os outros, ao manter restrições ao capital estrangeiro e barreiras muito elevadas contra as importações. Grande parte de pequenos e grandes contrabandos, em nível individual ou já como obra de grupos criminosos, se deve, na verdade, ao enorme protecionismo comercial praticado pelo Brasil. Somos nós que somos fechamos ao mundo, somos nós que condenamos o povo a consumir produtos caros e de baixa qualidade, somos nós que obrigamos nossos empresários a se abastecer internamente a custos bem mais altos, o que os torna pouco competitivos externamente e que justamente redundou nessa desindustrialização precoce a que assistimos sob o desastroso regime econômico do lulopetismo, e que nos levou à maior recessão de toda a nossa história. Em resumo, somos estruturalmente, sistemicamente protecionistas e o mundo não tem absolutamente nada a ver com isso.
Temos, portanto, de corrigir isso, o que implica, obviamente tratar da questão da nossa incorporação às chamadas cadeias globais de valor, o fenômeno característico do atual estágio das relações econômicas internacionais. Todos os economistas sabem, mas os empresários também, que a maior parte do comércio internacional não se dá em nível de produtos acabados, mas sim com base em partes e peças, acessórios, bens e insumos intermediários, muitas vezes transacionados entre filiais das mesmas empresas, ou entre companhias associadas, componentes diversos fabricados nos mais diferentes países que depois são assemblados naquele que apresenta as melhores condições para sua fase final, com base na mão-de-obra ou na automação (mas as duas estão intimamente ligadas atualmente), que é a confecção última antes de se lançar o produto no mercado.
O Brasil está singularmente ausente dessas cadeias de valor, como existem hoje disseminadas em quase todos os continentes, com destaque para o Atlântico Norte e, crescentemente para a bacia do Pacífico, ou seja a Ásia oriental e a costa pacífica do hemisfério americano. A esse respeito, as políticas setoriais da gestão lulopetista entre 2003 e 2016 foram singularmente desastrosas, típicas reproduções do que já era inadequado em décadas passadas, que foram as políticas substitutivas de importações, tal como preconizadas pelo pessoal da velha Cepal e ainda hoje, pasmem, por certos economistas da UniCamp. Essas políticas, industriais e comerciais, se baseavam na proteção comercial das indústrias nacionais, no pesado apoio dado pelo Estado às empresas já instaladas no país – ainda que fossem estrangeiras, como as montadoras de automóveis – e em diversos outros mecanismos fiscais e financeiros de apoio e de generosos subsídios. Foi o caso, por exemplo, do Inovar-Auto, da dupla Guido Mantega-Fernando Pimentel, um típico exemplo daquilo que eu chamo de stalinismo industrial, ou seja, a tentativa ilusória de tentar fazer uma indústria de automóveis num circuito fechado ao próprio Brasil e os sócios do Mercosul.
Além de totalmente equivocada em suas concepções e efeitos práticos, essa medida ainda infringiu compromissos internacionais do Brasil no âmbito da OMC, em função dos quais o Brasil foi condenado no sistema de solução de controvérsias dessa organização, tendo de modificar vários pontos de sua legislação discriminatória. O governo ainda não anunciou como será o sistema substitutivo ao censurado pela OMC, mas minha postura é a de que políticas setoriais devem, não apenas serem o máximo possível homogêneas e universais – ou seja, sem beneficiar exclusivamente um ramo ou outro – mas também conformes a nossas obrigações internacionais.
Quanto ao método de se efetuar essa abertura econômica e essa liberalização comercial, muitos recomendam negociações externas com parceiros comerciais do Brasil, novos ou velhos, no plano multilateral ou regional, eventualmente bilateral. Eu diria que não vejo muito espaço, atualmente, para grandes negociações externas, uma vez que existe um retraimento no plano multilateral, depois do fracasso quase completo da Rodada Doha da OMC, compensado por um avanço nos arranjos minilateralistas, nos planos plurilateral e bilateral. Mas este é um caminho praticamente barrado para os membros do Mercosul, que se encontram ainda na etapa já superada do simples acesso a mercados, quando a maior parte dos países e dos blocos já se encontram envolvidos em acordos de segunda ou de terceira geração. Cabe ainda reconhecer a baixa disposição dos países do Mercosul e dos membros da União Europeia em oferecer reais concessões, mesmo em acesso a mercados, quando se constata o insucesso repetido das diversas fases do longuíssimo processo de negociações birregionais UE-Mercosul.
Esse cenário pouco propenso a barganhas negociadoras recomendaria, portanto, uma medida bem mais simples: a abertura unilateral, ou seja, a redução não negociada das nossas próprias tarifas aduaneiras, que muitos acusariam ser uma concessão sem barganha, o que me parece rematada bobagem. Cabe relembrar, se as pessoas ainda não sabem, que as tarifas são punições contra o nosso próprio bolso, pois somos nós que pagamos, não os exportadores, assim como é um completo absurdo a aplicação de PIS-Cofins sobre as importações, quando produtos importados não têm absolutamente nada a ver o financiamento da seguridade social nacional.
Tudo isso, ou seja, a imposição de tarifas aduaneiras proibitivas – ou seja, a continuação da substituição de importação do passado – e a extensão do PIS-Cofins a produtos importados – que os industriais brasileiros consideram ser apenas uma equalização das condições de concorrência, quando essa medida deveria ser considerada inconstitucional – ocorre porque os empresários nacionais afirmam não poder concorrer com a produção importada pois a carga tributária no Brasil é excessiva. Isso é mais um absurdo: se os industriais nacionais consideram que não podem concorrer com produtos estrangeiros isentos de tributação deveria lutar pela extinção da tributação extorsiva, não impor as mesmas condições aos bens importados, tornando-os mais caros aos consumidores nacionais.
Em outros termos, nessa e em outras áreas da economia nacional, o ambiente de negócios no Brasil se encontra completamente deformado, e é preciso mudar isso de forma urgente, pois os industriais brasileiros vêm perdendo mercados estrangeiros e nichos de mercado no próprio Brasil.

2. O problema do Mercosul e da integração regional na América do Sul
O Mercosul, de 2003 a 2016, deixou de ser uma ferramenta para a inserção internacional do Brasil, tal como tinha sido concebido no início dos anos 1990, e tornou-se um problema triplo: diplomático, econômico e de política comercial. Os desvios quanto aos objetivos do TA, detectados ainda na fase 1995-1999, foram ampliados depois da crise argentina, e tremendamente potencializados pelo curso errático das políticas adotadas pelas administrações Kirchner e Lula a partir de 2003. O tripé essencial para a continuidade do bloco – liberalização comercial para dentro, política comercial unificada para fora e coordenação de políticas macro e setoriais – foi totalmente desvirtuado a partir daquela época, em favor de uma politização indevida das instituições próprias ao bloco, seguindo-se uma verdadeira anarquia institucional.
No campo das negociações externas, ocorreu um desastre incomensurável, ao se adotar uma postura defensiva baseada no mínimo denominador comum, que passou a ser o protecionismo ordinário argentino. A implosão ideológica da Alca e a crença ingênua num acordo com a UE foram dois passos irrefletidos no caminho da insensatez. Nada avançou a partir de então, a não ser acordos ridículos na dimensão Sul-Sul, e um com Israel, apenas para compensação visual. Não estranha, assim, que vizinhos mais sensatos tenham procurado suas próprias soluções para comércio e investimentos, ao negociar acordos com os EUA, com a UE e outros parceiros, e ao adotar seus próprios esquemas de liberalização real dos fluxos comerciais (Aliança do Pacífico), já pensando na grande integração produtiva que terá seu centro na bacia do Pacífico e até no Índico, reunindo todos os grandes atores do comércio internacional (dos EUA à Austrália e NZ, e toda a Ásia Pacífico integrada na globalização). Brasil e Mercosul estão totalmente ausentes desse novo universo absolutamente central da atual e futura economia mundial.
Pior ainda foi a expansão indevida, totalmente política, do Mercosul em direção de vizinhos pouco propensos a adotar os mecanismos básicos da união aduaneira tal como definida em 1991 e supostamente implementada (com defeitos) em 1995. O ingresso desastroso da Venezuela, a suspensão ilegal do Paraguai, a abertura apressada e injustificada a parceiros incapazes de cumprir os requisitos básicos do TA e do POP (como Bolívia, Equador, talvez Suriname) não apenas não retificam o que foi feito de errado no Mercosul, como acrescentam novos problemas ao edifício instável do bloco.
Existem diferentes problemas no e do Mercosul, nenhum deles derivado de mecanismos e instituições do próprio bloco, todos eles derivados de políticas, atitudes e comportamentos das administrações nacionais. Os problemas se situam na zona de livre comércio, mas também na união aduaneira. Nem consideramos aqui o problema da Venezuela, que derivou de seu próprio caos econômico: ela sequer deveria ter sido admitida, alias de forma irregular, e também demorou para que ela fosse colocada em quarentena e mantida isolada das negociações externas.
No plano do livre comércio, caberia fazer um mapeamento dos impedimentos práticos à sua total consecução, e isolar esses setores numa espécie de “caixa amarela”, para então começar a discussão sobre seu enquadramento ou dispensa semipermanente. No campo da união aduaneira, caberia, igualmente, contabilizar e identificar os fluxos que são levados ao abrigo e fora da TEC, para um diagnóstico mais detalhado da situação. O mais importante, porém, seria um exercício de exame das políticas comerciais dos quatro membros – uma espécie de TPRM-OMC, adaptado às configurações do bloco – com vistas a ter um panorama real, e realista, sobre todas as políticas nacionais compatíveis e incompatíveis com os objetivos do bloco. Apenas a partir desse diagnóstico mais preciso se poderá partir para o terreno das prescrições de políticas, algumas simplesmente diplomáticas, mas a maior parte dependente de definições nas próprias políticas comerciais e industriais do Brasil (e dos sócios).
Impossível fazer qualquer proposta realista sobre o maior problema diplomático do Brasil sem partir de uma visão muito clara quanto às demais definições de políticas nacionais, no campo econômico, certamente, mas também no das relações com a Argentina e com os demais parceiros prioritários do Brasil (que não são os do Ibas, do Brics, ou fantasias sulistas do gênero, mas), basicamente, EUA, UE, China, Argentina, demais sul-americanos, e todos os demais, nessa ordem. Em síntese, o Mercosul precisaria voltar a ser um componente na estratégia brasileira de inserção internacional na economia mundial, não o problema que ele é hoje. 

3. O problema do Brics: o que fazer com um grupo heterogêneo?
Trata-se, provavelmente, do primeiro agrupamento que surgiu nos anais da diplomacia mundial não por indução interna, mas por sugestão externa. A sugestão não tinha qualquer caráter diplomático, mas se tratava de uma assemblagem de oportunidades visando unicamente altos ganhos para investidores privados, conjunção efetuada sob o signo de uma sigla atraente, que possuía apelo suficiente, do ponto de vista jornalístico, para seduzir até mesmo experientes diplomatas e um ou outro homem de Estado. 
O problema do Brics, para o Brasil, é que ele não deveria existir, pelas “leis naturais” da diplomacia, ou em função dos interesses nacionais do Brasil. O Brasil seria um país suficientemente maduro, pelo menos no que toca sua diplomacia, para atuar em completa independência, sem muletas de qualquer grupo, formal ou de ocasião, no plano multilateral, bilateral, regional. Mas este já é um outro problema, de mentalidade, ou comportamental, que caberia examinar em outro contexto. Vamos ficar no problema do Brics para o Brasil.
A constituição do grupo engaja a responsabilidade internacional do Brasil, enquanto nação respeitada na comunidade de nações. A complicação é dupla: o Brics amarra o Brasil a propostas e iniciativas que não teriam e não têm nada a ver com os seus interesses nacionais, bilaterais, regionais ou multilaterais, com países que diferem amplamente, por suas características, do tipo de ação diplomática que conviria conduzir nesses âmbitos, e em função de agendas que seriam melhor conduzidas em total autonomia de ação, em quaisquer frentes que se possa pensar: na governança mundial, nas questões da paz e da segurança internacional, nos valores humanitários e dos direitos humanos, na gestão dos recursos naturais, nas negociações multilaterais, enfim, num sem número de terrenos.
O Brics não é um problema para o Brasil, que pode manter suas relações com cada um deles mediante canais já testados por sua diplomacia. Mas o Brics representa uma camisa de força que pode comprometer sua margem de ação internacional. Os ganhos aparentes de presença e de visibilidade internacional são claramente ofuscados pela amarras contraditórias que se tem de fazer no contexto do grupo. Um balanço de ganhos e perdas pode comprovar esse diagnóstico.

4. Relações com os países desenvolvidos
Existem muitos desafios nas relações com os países desenvolvidos, quaisquer que sejam eles; mas as oportunidades são ainda maiores. Na última década e meia, sob o lulopetismo, o Brasil se orgulhou de conduzir uma política externa voltada para o Sul. Não consigo imaginar como alguém pode se demonstrar satisfeito com andar com uma perna só, ou usar uma única mão nas tarefas diárias, ou tapar voluntariamente um olho, para conduzir o seu carro assim, de forma caolha. Sempre achei isso uma atitude de restrição unilateral incompreensível,na medida em que, sendo o mundo amplo, diverso e diversificado, não haveria nenhum motivo para se amputar a si próprio, preferindo uma situação de menores escolhas, do que uma outra, totalmente aberta ao leque de oportunidades oferecidas por todos os países do globo, aliás, mais do que um leque, um círculo inteiro de possibilidades de cooperação e de intercâmbio, em total liberdade mental. Os que escolhem usar tal tipo de viseira só podem fazê-lo por preconceito ideológico ou por discriminação política.
Todo determinismo geográfico é, por natureza, contraproducente. Não se poderia esperar, por exemplo, obter o estado da arte em ciência e tecnologia quando se restringem as escolhas a determinados parceiros do globo, ainda que eles sejam chamados de “parceiros estratégicos”.
A primeira inconsequência é justamente a de dividir o mundo entre desenvolvidos e em desenvolvimento, como se duas únicas categorias mentais, dois universos puramente conceituais, fossem capazes de resumir e abranger toda a complexidade e multiplicidade das situações humanas e sociais, num planeta variado que exibe todos os tipos de avanços civilizatórios, um continuum histórico que vai de tribos primitivas a sociedades do conhecimento, baseadas em inteligência artificial. O capital humano nunca teve pátria, apenas os governos é que limitam a liberdade do capital humano. As grandes descobertas, as maiores invenções acabam beneficiando o conjunto da humanidade.
Mas, alguns espíritos tacanhos consideraram que, em virtude do fato bem estabelecido de que a maior parte das invenções, descobertas e inovações ocorrem bem mais nos países já avançados, isso consagraria algum monopólio natural, uma tendência à concentração do conhecimento, e do seu desfrute, e que os países menos avançados só poderiam ser “explorados” pelos primeiros. Assim, passam a recomendar esquemas de cooperação no âmbito Sul-Sul, como se duas ignorâncias pudessem ser substitutos a uma grande sabedoria. A Constituição brasileira já caiu nessa erro monumental, ao consagrar no seu texto de 1988 a proibição de que universidades brasileiras tivessem em seu corpo docente professores estrangeiros, equívoco felizmente eliminado alguns anos depois.
Não se pode dispor de nenhuma fórmula mágica para impulsionar o processo de desenvolvimento brasileiro contando apenas com a cooperação internacional, seja ela com países avançados ou com “parceiros estratégicos” do Sul maravilha. Os desafios principais estão mesmo no próprio país, pois as evidências relativas aos ganhos de escala permitidos por uma educação de qualidade são tão notórios que não seria preciso insistir neste ponto. O Brasil precisa empreender uma revolução educacional, em todos os níveis. De onde sairão os ensinamentos adequados para esse empreendimento monumental? Ora, as respostas são tão evidentes que sequer me concedo o direito de expressar qualquer preferência geográfica. Se alguém aí pensou em Xangai, não na China, mas Xangai, como exemplo e modelo de uma educação de qualidade, tal como refletido nos exames do PISA, estou inteiramente de acordo: façam como Xangai, que já é, para todos os efeitos práticos, mais avançada do que qualquer país desenvolvido em matéria de educação de qualidade. 

5. A necessidade de reformas estruturais e o pedido de ingresso na OCDE
O Brasil necessita de reformas estruturais importantes, a serem implementadas nos planos interno e externo, e é nesse contexto que se situa a importante decisão tomada pelo atual governo no sentido de solicitar adesão plena do Brasil à OCDE. Ela constitui, não um “clube de países ricos”, mas um “clube das boas práticas”, e pode contribuir para esse processo de reformas profundas que o Brasil deve perseguir no seu próprio interesse nacional. A OCDE possui notória expertise e vasta experiência nos terrenos das reformas fiscais, setoriais e sociais, com destaque para as áreas de políticas comercial, industrial, tecnológica e educacional, ou seja, tudo o que o Brasil necessita para deslanchar um novo salto no plano do crescimento sustentado. Os requerimentos de entrada podem, aliás, apoiar as reformas.
As reformas mais difíceis são, sem dúvida alguma, a fiscal e a tributária, uma conectada à outra, mas aqui também o know-how acumulado pela OCDE nessa área pode se revelar valioso, em várias dimensões. Na política comercial, os estudos da OCDE já provaram fartamente que restrições a um comércio mais livre redundam sempre num declínio da produtividade do trabalho, e portanto dos padrões de vida. O protecionismo comercial brasileiro dificulta, e de fato impede, uma maior integração de nossas empresas às cadeias globais de valor, que constituem o lado mais conspícuo da globalização microeconômica, que é onde se processa, junto com as ferramentas de comunicação social, o lado mais relevante desse fenômeno abrangente e inescapável.
A política externa brasileira sempre teve como princípio organizador uma mal definida “diplomacia do desenvolvimento”. Tratava-se, na verdade, mais de um slogan e, mesmo, uma ideologia, do que propriamente uma doutrina adequadamente elaborada, resultando de uma combinação improvisada de prescrições vagamente influenciadas pelo desenvolvimentismo latino-americano da CEPAL e de demandas de tratamento preferencial e mais favorável para países em desenvolvimento emanadas da UNCTAD. Ao abrigo dessas correntes de pensamento, ocorriam vibrantes discursos defendendo “espaços de políticas econômicas” em prol de “projetos nacionais de desenvolvimento”, o que servia de razão, de justificativa e de defesa para o protecionismo tarifário, para as restrições aos investimentos estrangeiros em determinados setores, para os monopólios estatais em indústrias ditas “estratégicas”, para restrições aos fluxos de bens, de serviços e de capitais em nome do equilíbrio do balanço de pagamentos, da preservação da autonomia tecnológica, ademais de diversos outros expedientes, mal coordenados entre si, mas que de fato atuaram contrariamente ao grande objetivo pretendido, que era o de romper a barreira do subdesenvolvimento para alcançar o patamar das nações ricas.
O Brasil não esteve sozinho nesses experimentos desenvolvimentistas, já que acompanhamos os mesmos tipos de políticas da maioria dos países latino-americanos, que, se bem sucedidas em sua implementação reiterada e teimosa ao longo de décadas, deveriam levar o continente àquele grande objetivo. Ora, o que se assistiu, ao longo do período, foi a superação gradual dos países latino-americanos pelos da Ásia Pacífico, praticamente uma troca de lugares na economia mundial, tanto em termos de pautas exportadoras, de diversificação industrial, de ofertas competitivas em bens e serviços, quanto da atração de investimentos diretos estrangeiros. A América Latina, e com ela o Brasil, reduziu seus índices de participação nos intercâmbios mundiais, ao passo que os países da Ásia Pacífico começaram a ocupar frações crescentes desses fluxos globais.
Está, portanto, mais do que na hora de substituir essa mal definida “diplomacia do desenvolvimento com preservação da autonomia nacional” por uma vigorosa política de “integração à economia mundial”, com a adoção consequente de medidas econômicas e de políticas setoriais visando à inserção das empresas brasileiras nos padrões competitivos da globalização. A OCDE poderá subsidiar a redefinição dessas políticas no novo sentido pretendido, mesmo quando a adesão formal não se realize, pois nada deveria impedir o Brasil de reformar soberanamente o conjunto de políticas nas áreas industrial, comercial e tecnológica na direção da integração mundial, abandonando o prejudicial nacionalismo pretensamente autonomista, mas que é de fato redutor de nossas possibilidades de progresso econômico.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 18 de janeiro de 2018


domingo, 22 de outubro de 2017

Consequencias economicas da vitoria do PT (2002) - Paulo Roberto de Almeida

Continuando em meus exercícios pedagógicos para instruir os companheiros nas artes da governança, eu formulava no artigo abaixo, um segunda série de recomendações, que encontrava importantes para um bom exercício do poder.
Eu ainda achava -- que ingênuo eu era -- que eles eram educáveis, flexíveis, e que iriam exercer o poder de acordo com o que pregavam em seus textos pré-eleitorais. Eu sabia que entre eles havia bandidos, como em qualquer partido, só não imaginava que seriam tantos, e em tão alto grau de desfaçatez no roubo, na fraude, na falcatrua. Mas isso só deu para perceber quando começaram a mentir deslavadamente logo depois de terem assegurado a vitória, quando também passaram a abusar das facilidades do poder em causa própria. O resto é história.
Mas, naquela altura – e estou falando aqui de 29 de setembro, ou seja, antes mesmo das eleições – eu pensava que eles poderiam ser educados...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/10/2017


Administrando as relações econômicas internacionais do Brasil:
As conseqüências econômicas da vitória, 2ª parte
(da série: manual de economia política para momentos de transição)

Paulo Roberto de Almeida



Introdução: os grandes temas de “economia internacional” da nova maioria

Depois de ter divulgado o primeiro artigo desta série, apropriadamente intitulado “Companheiros, muita calma: trata-se agora de não errar!” (ver postagem anterior), no qual eu discorro sobre o novo centro político que está se formando no Brasil a partir da transição operada na campanha eleitoral presidencial, com algumas recomendações de política econômica pela vertente teórica ou conceitual, pretendo, neste segundo ensaio, abordar algumas questões práticas da “economia política externa” com as quais terá de se haver a nova maioria política. A justificativa é a de que elas são as mais suscetíveis de introduzir elementos de turbulência na gestão macroeconômica do País, que passa a estar sob a responsabilidade do novo centro, uma vez que essas questões já foram responsáveis, como se sabe, por toda uma série de tremores e suores frios nos mercados cambial e de títulos da dívida externa durante a maior parte da campanha presidencial.
Quais seriam os temas que integrariam um manual de economia internacional capaz de atender às necessidades da fase de transição a uma “nova economia política”? Eles seriam resumidamente os seguintes:
1. Desequilíbrios das transações correntes (“exportar é a solução?”);
2. Dívida externa (e suas relações com a dívida pública interna);
3. Regime cambial e paridade do real (“Chamem um operador experiente!”);
4. Controles de capital (e outros remédios amargos);
5. Relações com o FMI e pacotes de ajuda financeira (consenso sobre o dissenso);
6. Mercosul, Alca e OMC (malabarismos subregionais, hemisférico e multilateral);
7. Relações econômicas e políticas com o Império (não tem como escapar);
8. Investidores estrangeiros, especuladores internacionais et caterva (“Hello boys”);
9. Outros assuntos pertinentes (inclusive o valor de troca dos economistas da casa).

A bibliografia disponível sobre um possível bridge-building conceitual entre a nova síntese neoclássica e a “velha” teoria do valor (iniciada por Adam Smith, retomada por Ricardo e continuada por outros nomes mais famosos) não é muito extensa, razão pela qual seremos obrigados a operar sem notas de rodapé, o que em contrapartida facilita muito a leitura. Por outro lado, as bases conceituais da economia política do novo centro político estão obviamente mais perto do pensamento prebischiano e furtadiano do que do lado da teoria clássica do comércio internacional ou mesmo da nova teoria do comércio estratégico. Para o primeiro, que tende a se opor à globalização na medida em que ela ameaça as bases da soberania econômica nacional, o importante é romper a dependência por meio de um projeto de desenvolvimento econômico que garanta fontes autônomas de acumulação, em bases nacionais, ao passo que a segunda não apenas aceita como também recomenda a interdependência ativa, como forma de se lograr patamares mais elevados de avanço tecnológico. Nos últimos tempos, contudo, a “nova economia política” tem aceito algum tipo de composição com a abordagem liberal, muito embora ela ainda tenha dificuldades em admitir certas implicações práticas dos (sempre erráticos, por definição especulativos) movimentos financeiros internacionais ou as conseqüências indesejadas do livre-comércio. A “coexistência pacífica” tem porém avançado, lenta mas resolutamente.

1. Desequilíbrios das transações correntes (“exportar é a solução?”):
Trata-se de conhecido calcanhar de Aquiles da economia brasileira, desde que ela se organizou na era independente, sendo apenas compensados pelos saldos comerciais, o que estava difícil de se obter nos primeiros cinco ou seis anos de gestão neoliberal da economia, que permitiu a valorização cambial e abriu indiscriminadamente as portas às importações. A solução lógica é o aumento contínuo das exportações, algo bem mais consensual hoje em dia, mas que se chocava com uma antiga crença nas virtudes liberadoras do mercado interno.
Com efeito, há não muito tempo atrás os economistas chefes do novo centro proclamavam, com o aval da principal liderança, as “diretrizes” da “ruptura econômica”, que deveria ocorrer em vários níveis, entre eles a “inversão das prioridades da política econômica” e a “mudança do padrão de crescimento”, cujo núcleo dinâmico passaria a ser: ampliação do mercado interno, redistribuição da renda e substituição de importações, muito embora também se previsse um incentivo dirigido às exportações. Atualmente não se faz muita distinção entre mercado interno e externo, mas ainda subsiste o preconceito mercantilista contra as importações. Uma das soluções não precisaria tanto passar pela eliminação completa dos déficits de transações correntes, mas deve-se encontrar formas de financiá-los sem sobrecarregar demasiado a conta de capitais. Ademais da solução óbvia do aumento das exportações, uma das receitas recomendadas pelos economistas liberais seria aumentar a atratividade para os investimentos diretos, algo ainda não totalmente consensual na nova maioria, por duas razões muito simples: a sobrecarga futura sob forma de remessas relativas aos rendimentos do capital e uma desconfiança de princípio do capitalista estrangeiro (ele seria bem vindo, desde que aceitasse certos compromissos de desempenho ou atuasse em áreas selecionadas administrativamente como as mais benéficas do ponto de vista do governo, não do próprio capitalista).
Agora que a nova maioria assume o comando da economia que tal começar pela aprovação dos acordos de proteção e promoção recíproca de investimentos? Eles estão mofando há quase dez anos no Congresso porque incluem também ativos financeiros e porque ainda se acredita que cláusulas de arbitragem são lesivas à “justiça nacional”.

2. Dívida externa (e suas relações com a dívida pública interna):
O problema está mais na geração de divisas para o seu serviço – quase metade das exportações – do que na sua magnitude, pois se reconhece que a dívida externa é hoje em dia majoritariamente privada (a despeito do crescimento da dívida interna indexada em dólar). Em todo caso, parecem longe os dias da moratória soberana, da renegociação unilateral ou mesmo da auditoria dos contratos, tendo sido contudo proclamado o ponto central da redução da fragilidade financeira externa. Não há muito consenso sobre como fazê-lo, além do ponto óbvio da redução da demanda por empréstimos externos, mas essa questão também está ligada aos níveis internos dos juros, o que se constitui em outro aspecto, necessariamente mais complexo, da mesma realidade.
O Estado é um “despoupador” líquido, daí a necessidade de superávits primários, que quanto maiores, menor pressão sobre a taxa de juros provocará, mas os economistas do novo centro continuam proclamando a necessidade de se reduzir os patamares desses superávits, como forma de aumentar os investimentos e os gastos sociais, o que atua obviamente contra a redução dos juros e a diminuição da pressão sobre o real, cuja paridade está bastante ligada à crença (ou à suspeita) em torno da capacidade do governo em honrar os pagamentos da dívida externa. A boa notícia do ponto de vista prático está na aceitação da intangibilidade dos contratos externos e na assunção da responsabilidade fiscal como norma de administração pública, o que certamente contribuirá para a gradual superação desse nó financeiro e monetário em médio prazo.
Notável aqui como as antigas divergências de enfoque no tratamento da questão das dívidas deram lugar a um razoável consenso conceitual e prático sobre o “que fazer”. O aspecto bizarro é continuarem os economistas do novo centro achando que o governo argentino ficou aplicando políticas neoliberais durante todo o período, esquecendo-se eles que ele nunca conseguiu cumprir com o requisito mínimo, até recomendado pelo FMI, de redução dos déficits públicos. As diatribes ainda remanescentes sobre o pagamento de juros altos aos banqueiros devem ser debitadas à preservação de velhos cacoetes verbais.

3. Regime cambial e paridade do real (“Chamem um operador experiente!”):
A condenação da valorização cambial é absoluta, com toques de vingança pessoal e proclamações do tipo “nós cansamos de avisar” (o que economistas de direita também fizeram). O estruturalismo e a esquerda, de modo geral, sempre encontraram virtudes no modelo de desvalorização cambial, algo aliás recomendado pelo FMI em 99% dos casos de ajuste macroeconômico desde 1973. Se esquece, por outro lado, como o expediente deixa a todos mais pobres e diminui a pressão por ganhos de competitividade no setor produtivo. Todo mundo está portanto de acordo com a flutuação “suja” hoje praticada.
Caberia deixar o passado em paz e tentar olhar para o futuro, isto é, um naquele em que o real conseguisse não apenas sobreviver saudavelmente como moeda nacional independente, como constituir-se também em base da futura moeda comum do Mercosul, como proclamam os integracionistas mais afoitos do novo centro (esquecendo-se, por certo, da tremenda renúncia de soberania econômica e política que isso implica). Para que isso se faça, seria interessante assegurar que o objetivo principal do Banco Central seja a defesa da moeda (isto é, a luta contra a inflação), não a perseguição do pleno emprego ou outros objetivos ainda mais esdrúxulos (como a “taxa de desconforto” trabalhista).
Que tal começar por dar independência ao Banco Central e constituir um comitê de política monetária mais amplo e realmente independente? Quem se dá ao trabalho de ler as minutas das reuniões do Copom sabe como a política de metas de inflação constitui uma aproximação bastante razoável daquele objetivo primordial. A tentativa de fazer o Banco Central cumprir outras finalidades que não essa, basicamente, resultará, a médio e longo prazo, no enfraquecimento da moeda nacional e, com Alca ou sem Alca, na ameaça continuada de dolarização em algum ponto do futuro. 

4. Controles de capital (e outros remédios amargos):
Alguns economistas de esquerda falam de controles de capital com um sorriso nos lábios, quase com uma secreta satisfação de estarem “punindo” capitalistas fraudadores, especuladores estrangeiros e outros sócios da “volatilidade”. Existem obviamente vários tipos de controles, e o menos pernicioso deles – na entrada, por meio de quarentena ou imposto parcial – já foi aplicado pelo Brasil em fases mais receptivas de ingresso de capitais. Na verdade, o que aqueles economistas estão pensando são em controles na saída, o que apenas contribuiria para a volta do mercado negro, ágio cambial e corrupção, sub ou superfaturamento no comércio exterior e outras mazelas associadas.
Há uma imensa dificuldade do pensamento dito estruturalista em reconhecer as virtudes da livre movimentação de capitais (barateamento do custo do capital, rápida mobilização de recursos em momentos de necessidade etc.), como se o mundo tivesse vivido desde sempre em tempos keynesianos (cujas recomendações, se esquece, foram concebidas para uma Inglaterra decadente e carente de divisas). A oposição parece ser mais de caráter ideológico do que de ordem prática, pois é possível combinar a abertura cuidadosa do setor financeiro com o levantamento progressivo das últimas restrições à movimentação dos capitais, objetivo de toda forma dependente de uma superação mais permanente dos problemas crônicos de transações correntes.
Existe, por outro lado, uma adesão quase universal, nesses meios, à Taxa Tobin, proclamada como a “grande receita” contra a volatilidade (até por altas personalidades da administração “neoliberal”), sem que se reconheça seus efeitos essencialmente nefastos para países como o Brasil, que continuarão a ser, durante algum tempo, importadores líquidos de capitais financeiros. Essa adesão incondicional a algumas idéias progressistas que vêm de fora do País – e que se repete igualmente no caso da Alca – revela talvez a preservação de um certo colonialismo conceitual, que impede nossos “progressistas” de pensarem com suas próprias cabeças nas melhores soluções para o País, a partir de uma perspectiva do Sul, não daquela comandada pelos interesses de sindicalistas do Norte.

5. Relações com o FMI e pacotes de ajuda financeira (consenso sobre o dissenso):
A situação está “maravilhosa”, comparando com a demonização do FMI que se fazia ainda bem recentemente, com xingamentos e slogans substituindo uma reflexão ponderada sobre o que pode e não pode fazer o FMI em prol da saúde financeira do Brasil. Independentemente de como negociará o futuro governo – de pé ou sentado –, o fato é que tornou-se possível aceitar alguns parâmetros básicos desse relacionamento feito de amor e ódio durante boa parte dos últimos 50 anos. Em todo caso, é bom que se saiba que a era dos grandes pacotes de ajuda financeira está chegando ao fim e nem sempre será possível ao Brasil esperar salvamento em qualquer circunstância, inclusive porque a tolerância dos governos dos países ricos com países emergentes está ficando menor (e as operações para eles tenderão a ficar mais caras).
Uma coisa é certa: a política de condicionalidades deve continuar, mas se o novo centro tiver objeções ideológicas contra esse tipo de “imposição”, a solução é muito simples e está ao alcance de qualquer um. Basta não entrar em acordo com o FMI e pagar tudo o que se deve do pacote anterior. Como regra de princípio, o FMI e o BIRD acatam totalmente a soberania econômica e política dos países membros. O mais importante no relacionamento com o FMI não é contudo o dinheiro que ele pode emprestar (ainda que este possa ser bem-vindo em determinadas circunstâncias), mas sim o aval a um conjunto de políticas e a transparência que ele assegura em relação às contas públicas, hoje em dia um requisito indispensável a qualquer país que pretenda participar dos mercados de créditos comerciais e de financiamentos de curto prazo. Esse tipo de chancela parece ter sido compreendida muito bem pelos “novos economistas”, ou será que não?

6. Mercosul, Alca e OMC (malabarismos subregionais, hemisférico e multilateral):
O terreno das políticas comerciais e das diferentes estratégias de negociação nos foros comerciais é aquele no qual a esquizofrenia econômica parece mais freqüente e disseminada, provavelmente por falta de (in)formação suficiente sobre o modo de funcionamento da OMC, sobre as implicações da Alca para a economia brasileira (e por uma visão ideológica desta última, como revelado pela “teoria anexacionista”) e em virtude de uma avaliação otimista dos méritos do Mercosul e seu papel em determinadas negociações (com a UE, por exemplo, vista de forma positiva em relação à Alca não se sabe bem em função de quais resultados esperados). Não é um campo no qual se possa recomendar um curso rápido de políticas comerciais – tanto porque a leitura de algum manual sobre o GATT eqüivale a tortura psicológica, melhor valendo freqüentar suas sessões –, mas pode-se exigir mais atenção aos documentos negociadores e bem menos aos daqueles grupos anti-globalizadores e anti-alcalinos que vivem repetindo bobagens sem sentido por puro espírito anti-capitalista e anti-imperialista (o que até é admissível, como brincadeirinha de jovens e discurso em assembléia da UNE, mas não em funções de responsabilidade num governo dotado de uma diplomacia respeitada).
O abismo que ainda existe entre economistas da “situação” e da “oposição” (deve haver inversão, dentro em breve) só vai ser preenchido na prática das negociações, o que implica alguma preparação técnica muito séria no plano interno. Em todo caso, como ocorreu com o FMI, a demonização da Alca não vai ajudar em nada o Brasil, cabendo sim defender de forma conseqüente nossos interesses e deixar o pessoal anti-alcalino gritando nas ruas. Uma coisa é certa: estes últimos estão fazendo o trabalho sujo para os sindicalistas americanos e os congressistas protecionistas, que não querem a Alca, assim como não queriam o Nafta. Algum sindicalista brasileiro é, por acaso, contrário à captura de empregos do Norte?: teria de dizer isso claramente para a nova maioria política. No mais, nossos problemas são mais de ordem interna – juros, capital, infra-estrutura, cultura exportadora – do que de ordem externa, ainda que não seja fácil equacionar alguns deles, a reforma tributária, por exemplo. Mas, quem sabe a Alca não consegue fazer aquilo que a classe política e os empresários não logram obter a despeito de tanta vontade retórica?
Quanto ao Mercosul, caberia também colocá-lo em sua dimensão própria, nem mais, nem menos do que ele pode razoavelmente, nas condições que são dadas, cumprir em favor da economia brasileira. Transformá-lo em “laboratório de experiências sociais” ou em escalão avançado de uma “mercocracia comunitária” não vai ajudar em nada na resolução de nossos atuais problemas de estabilidade macroeconômica – que são de todos os países membros – e pode até terminar por desacreditá-lo internacionalmente. Trata-se de um projeto relevante, talvez até mais diplomaticamente do que economicamente, e o Brasil deveria propor as bases de sua restruturação, com muito realismo e bom senso.

7. Relações econômicas e políticas com o Império (não tem como escapar):
Como diria Jean-Paul Sartre em relação ao marxismo, trata-se do “horizonte insuperável de nossa época”. Melhor assim encontrar os termos de uma boa convivência, respeitosa e respeitadora das soberanias e diferenças, do que insistir em se proclamar “do contra”. Quem pode ser do contra é o próprio Império, que tem condições de sustentar suas posições contra tudo e contra todos. Países fragilizados como o Brasil têm de ser a favor de alguma coisa, geralmente das soluções multilaterais, que já foram apontadas como a “arma dos mais fracos”. Que seja: não há como não continuar proclamando o princípio da igualdade soberana dos estados e de continuar exigindo o predomínio do direito internacional, mas no plano da diplomacia prática é preciso encontrar alguma forma de convivência com esse Big Brother incômodo e arrogante. De uma certa forma, ele também cumpre o seu papel histórico, que é o de garantir a segurança internacional, ainda que seja bastante desatento às preocupações de desenvolvimento de uma imensa maioria de países. Excluindo o mito da “relação especial” ou o da “divisão do trabalho”, não há muito o que se possa fazer para compor uma agenda bilateral minimamente equilibrada, mas alguns elementos diplomáticos e militares podem ser mobilizados na construção de um entendimento aceitável para ambas as partes.
A nova maioria pode, por exemplo, começar por aprovar o acordo de Alcântara (salvaguardas tecnológicas), assim como mudar a sua atitude em relação aos acordos de investimentos, pois ambas as posturas são totalmente ideológicas e não têm nada a ver com o interesse brasileiro. Aliás, de forma geral, recomenda-se mais pragmatismo e bem menos politização na conformação dessa relação “imperial”: o bom senso em relação aos interesses nacionais deve prevalecer em face dos julgamentos apressados que se fazem na avaliação dos “motivos secretos” do Império (geralmente em função das famosas teorias conspiratórias da história).

8. Investidores estrangeiros, especuladores internacionais et caterva (“Hello boys”):
A especulação, junto com a agiotagem, constitui uma das mais desprezíveis ações humanas, comportamento apenas comparável, na natureza, ao das aves predatórias, que se aproveitam do momento em que a vítima está enfraquecida para atacá-la e, se possível, esquartejá-la no ato. De acordo com a proposta acima? Como para a maior parte dos economistas alternativos, não há como legitimar o comportamento especulativo, a menos que se pare para pensar duas vezes e se constate, então, que a especulação não é, na verdade, um alienígena que ataca o Brasil de surpresa, aproveitando-se da instabilidade provocada pelos famosos “capitais especulativos”. Por que existem esses capitais? Já pensou que a instabilidade, em lugar de ser importada, pode ser um dado da realidade interna do País, provocada por políticas erráticas, por ameaças de retrocesso no ambiente regulatório, de nova auditoria nos contratos da dívida externa, de revisão das regras de privatização ou de concessão de serviços públicos, enfim, pelo discurso da “ruptura”?
Se pensou, continue pensando, pois este também é um terreno no qual a distância entre economistas de escolas diferentes é uma das mais profundas, constituindo talvez a área na qual a credibilidade do País mais se vê afetada pela retórica soberanista e de cunho nacionalista. Não que essas virtudes sejam dispensáveis, ao contrário, mas é que nesse terreno os requerimentos de desempenho costumam ser mais rigorosos do que as condicionalidades do FMI. Com efeito, continua-se a repetir que os capitais externos são bem-vindos, mas apenas se for para o “desenvolvimento econômico de qualidade”, que reforce a capacidade produtiva, impulsione a absorção de tecnologia e estimule a inovação. Assim, se o capital estrangeiro quiser vir para produzir com técnica defasada, sem compromisso com a superação da “fragilidade das nossas contas externas”, talvez já não seja mais bem-vindo, a menos é claro que aceite a orientação e a disciplina de algum tecnocrata esclarecido.
Não se trata aqui de uma questão de economia política, mas de um problema psicanalítico e eu ainda não conheço algum título próximo de “Freud para economistas”. Enquanto esse manual não aparece, recomenda-se um pouco de convivência com essa “wild bunch” de mega-investidores: eles em geral são cordatos e, salvo babar um pouco na gravata, não mordem na presença da própria “vítima”.

9. Outros assuntos pertinentes (inclusive o valor de troca dos economistas da casa):
Quando se fizer a crônica do transformismo político dos últimos anos, vai se constatar o quanto ocorreu uma discreta, subreptícia, mas efetiva e profunda evolução da nova maioria, indo dos antigos compromissos ideológicos com a “velha” economia política em direção de uma NEP adaptada aos nossos tempos de social-democracia algo descaracterizada por uma inconfessada adesão a premissas hayeckianas, ainda que elas sejam inconscientes. Torna-se surpreendente, ademais, constatar que esse largo caminho foi feito praticamente em três meses, sem manual de bordo e sem muitos mapas para iluminar o caminho. Em todo caso, todos são bem-vindos à realidade, cabendo agora, do ponto de vista do observador externo, examinar os dados do problema, ver as razões dessa “grande transformação” e tentar discutir os efeitos que tal atitude provocará dentro e fora da própria casa.
Em relação aos dados, não seria preciso grandes elaborações, bastando remeter à letra de antigos programas, de documentos cidadãos e mesmo de diretrizes aprovadas em encontros oficiais e como subsídios à plataforma eleitoral, e compará-los ao que está escrito atualmente e ao que vem sendo dito expressamente: “o mundo mudou,…”. Quanto às razões, tampouco seria preciso examinar os fundamentos teóricos da travessia, como revelados, por exemplo, nos limites conceituais da “acumulação primitiva” da velha economia política, na teoria sociológica da “lei de bronze” dos partidos políticos, ou na abordagem antropológica dos “ritos de passagem” (pós-adolescentes) de uma primeira geração de líderes políticos.
Os critérios são aqui mais pragmáticos, estando ligados ao “prêmio” final (and the prize is power). Eles têm a ver com o difícil diálogo com a sociedade com base nas antigas premissas pré-Bad Godesberg, com a falta de trânsito nas altas rodas da sociedade (dos capitalistas nacionais aos banqueiros de Wall Street), com as barreiras eleitorais na base do “eu sozinho”, enfim, com uma série de relações (condicionantes estruturais) que, segundo a linguagem do Manifesto, deixaram de corresponder às novas forças produtivas (necessidades políticas) e tinham tornado-se outros tantos grilhões: esses grilhões tinham de ser rompidos e eles foram rompidos.
No que se refere, em terceiro lugar, aos efeitos, ainda é muito cedo para uma avaliação precisa, mas seria preciso separar os internos dos externos. Neste último campo, caberia constatar, de imediato, o fim do “efeito espantalho”, pois a nova maioria passa a ter de administrar o capitalismo velho de guerra, com os ônus e bônus da nova situação, talvez mais dos primeiros do que dos segundos, o que não deixa de ser uma repetição tropical de outras experiências conhecidas por alguns irmãos mais velhos (e menos puristas). Entre os efeitos internos e externos, se situa a nebulosa dos amigos e companheiros de viagem: do movimento social, das instâncias internacionais (foros de São Paulo, de Porto Alegre, por exemplo) e outros tantos amigos e aliados incômodos que seria preciso acomodar sem alienar. Vai ser difícil aprovar resoluções e participar de plebiscitos como antigamente, como se eles não tivessem efeito sobre a ação governativa, mas esse é o problema dos custos ideológicos, quando se salta a barreira da prática. Existe alguma resposta clara à décima-primeira tese sobre Feuerbach?
Abordando, finalmente, a questão da reciclagem da “prata da casa” (manuais e resoluções incluídos), não há como evitar uma repetição do “déjà vu” em torno do “esqueçam o que eu escrevi”, pois é disso mesmo que se trata. Muitos acreditam, não se sabe bem se por crença religiosa ou avaliação racional, que a “diplomacia da cidadania” saberá como realizar a transição ideológica entre velhos hábitos e novas necessidades.
Em todo caso, a nova maioria tem todas as condições para realizar o que esses foros vêm prometendo-nos há pelo menos dez anos sem nunca ter, de fato, apresentado propostas concretas quanto às políticas alternativas que conseguiriam retirar o lucro e a exploração do centro do sistema econômico: se um outro mundo é possível – agora também em sua variante regional, uma outra América – seria preciso que nos dissessem, ou melhor, nos demonstrassem que isso pertence, não ao reino do utópico e ao domínio das exortações, mas ao universo das realizações concretas. Trata-se, aliás, de excelente oportunidade para demonstrar o valor de uso de tantos economistas alternativos, a menos, é claro, que eles pretendam passar a enfatizar agora o seu valor de troca. Nunca é tarde para a síntese metodológica e para o revisionismo nouvelle manière!

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 29 setembro 2002, 11 pp.