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sexta-feira, 29 de maio de 2020

Gênero e Carreira Diplomática (2008) - Paulo Roberto de Almeida

Mais um inédito...

Gênero e Carreira Diplomática

Entrevista concedida a
estudante, para pesquisa sobre:
Igualdade de gêneros na diplomacia brasileira


1) Qual é sua concepção a respeito do movimento feminista, se posicionando em muitas vezes, de forma "somos coitadas"?
PRA: O movimento feminista teve várias vertentes e diferentes orientações, no decorrer do seu desenvolvimento histórico, começando pela reivindicação de direitos políticos – o que já implicava a assunção de certa independência em relação aos homens, em sociedades caracteristicamente patriarcais – até ingressar, modernamente, numa fase madura, depois de passar pelo militantismo anti-machista do período de agressiva liberação sexual. Não tenho conhecimento preciso sobre essa orientação que configuraria fase de pretensa auto-comiseração, identificada com essa frase, ou postura, “somos coitadas”. Estou certo de que ocorreu essa atitude, e que ela pode ter sido bastante disseminada entre as mulheres que se identificavam com o movimento “feminista”, mas não tinham ainda alcançado um nível de definição mais acurada da posição a ser adotada e por isso assumiam a atitude submissa, talvez, que tinha sido a delas durante tanto tempo.
Pessoalmente, nunca tive uma posição muito elaborada sobre o movimento feminista, a não ser uma vaga atitude de apoio. Na época de minha “emergência” como cidadão consciente já estava engajado quase inteiramente no movimento socialista, e tendia a considerar o movimento feminista, ou outros movimentos ditos “sociais”, como uma espécie de “distração” do objetivo principal, que seria “fazer” a revolução (o que obviamente resolveria automaticamente todos os problemas sociais).
Não posso, portanto, agora, de forma ex-post, ter uma posição definida, algo que não tinha em qualquer época anterior. Apenas posso imaginar como teria reagido se “tivesse tido a obrigação” de adotar um posicionamento explícito: provavelmente, teria lamentado essa atitude das mulheres militantes, mas não teria dado muito importância a ela, posto que o tema era para mim secundário ou completamente desimportante. 
Mas, a questão aqui se coloca da mesma forma como para a história do “paranóico”: o fato de alguém ser paranóico, não significa que não possa haver algum “complô” ou “perseguição”. As mulheres podem até escolher uma atitude recusando a postura de “coitadinhas”, o que não impede de elas serem efetivamente colocadas em posição subalterna e discriminadas objetivamente no campo profissional, cultural ou social. Embora isso seja mais uma herança do passado do que um traço do presente. 

2) Se a questão de gêneros, sendo abordada de forma "preconceituosa" por algumas mulheres, pode transformar uma causa tão bonita e nobre (que é o respeito aos direitos das mulheres) em uma causa discriminatória em relação aos homens?
PRA: Poderia até haver, teoricamente, esse tipo de atitude em certos grupos ou como expressão individual de feministas radicais, mas não creio que as mulheres, em qualquer tempo e lugar, tenham tido condições objetivas de “impor” essa visão de certo modo preconceituosa ao conjunto das mulheres e, a partir daí, estabelecer uma política de discriminação contra os homens.

3) Se o senhor acredita que uma abordagem mal desenvolvida, no que concerne às perspectivas de gênero pode inverter os papéis na diplomacia brasileira, fazendo com que homens que sejam comandados por mulheres (ex: embaixadoras), se sintam desprestigiados por "perseguições" dentro do Itamaraty, justamente por serem homens? Ainda que talvez, não ocorra hoje, mas digo para um futuro próximo?
PRA: Não creio que isso jamais venha a ocorrer, como comportamento tido como “normal”. Poderão existir casos individuais, mas muito raros. O mais comum será o relacionamento profissional entre homens e mulheres. Já existe número razoável de mulheres em posições de chefia no Itamaraty, sem que isso tenha despertado problemas de relacionamento ligados ao gênero. Não se pode excluir, tampouco, que uma mulher venha a ser “ascendida” à posição de chanceler, seja dentro da própria carreira, seja como representante do meio político ou cultural. 

4) Será que não estaríamos desta forma, nós mulheres, invertendo os papéis e discriminando os homens? E se com isso, não estamos alimentando um movimento "machista" e retrocedendo já que existe um movimento "feminista" com perfil "machista"?
PRA: Existe isso, sim, mas no Brasil me parece ser extremamente marginal, sem atingir o grau de radicalismo que atingiu nos EUA e em certos países europeus. Mesmo com o crescimento profissional das mulheres no Brasil, não vejo nenhuma possibilidade de reação contrária da parte dos homens. Tendo a fazer uma leitura otimista do relacionamento entre gêneros no Brasil, por acreditar que nosso país seja essencialmente aberto aos méritos e à capacidade individual. O machismo persiste de forma residual, por exemplo, no tratamento “positivo” dado a certas “caçadoras de dotes”, a modelos badalados e a outras oportunistas notórias, que são guindadas a posições de prestígio nos meios de comunicação de massa não por talentos reconhecidos, mas provavelmente por dotes físicos e seu aproveitamento ocasional. Mas, esse tipo de “machismo” existe provavelmente em vários países.

5) E será que a defesa de nossos ideais e a tutela dos nossos direitos, já não faz o homem se sentir em uma situação de coação e culpa pela "sociedade feminista", que ao invés de trabalhar a questão da conscientização, trabalhar muitas vezes, ainda que inconscientemente a segregação?
PRA: Sinceramente, não veja nenhum tipo de segregação em nenhum meio profissional do Brasil. O que pode haver são comportamentos individuais, presos a hábitos arraigados de um passado não muito distante, quando o machismo ordinário provocava, talvez, esse tipo de reação em certos meios feministas. Mas se trata de um comportamento bem mais localizado espacialmente e culturalmente – específico do Rio de Janeiro, provavelmente – do que algo comum a outros meios sociais e culturais do Brasil. Não consigo identificar homens que mantenham atitudes simétricas como resultado dessa suposta segregação feminina, a não ser de forma caricata, no humorismo de baixa qualidade de canais abertos de TV aberta e certos meios da imprensa escrita de notória má qualidade. 

6) Será que não há uma confusão entre "guerra de sexo" ou "guerra de gêneros"?
PRA: Pode até haver, mas eu confesso que não consigo distinguir as duas situações conceitualmente e muito menos na prática. Não vejo nenhum tipo de guerra no Brasil, muito menos essa elaboração sofisticada que consistiria em estabelecer uma fronteira entre sexo e gênero. Não vejo nenhuma tendência consistente no Brasil que se constitua sobre essas distinções que são muito teóricas para seu uso corrente, ou seja, em situações corriqueiras de vida. As distinções que possam ocorrer nesse sentido devem ser manifestações extremamente reduzidas de um meio intelectual bastante exíguo e pouco representativo da sociedade como um todo.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 11 de outubro de 2008


quinta-feira, 28 de maio de 2020

Retrato do diplomata, quando maduramente reflexivo (2006) - Paulo Roberto de Almeida

Mais um desses trabalhos que se descobrem quando se está em busca de qualquer outra coisa. Gosto muito deste trecho, de alta consciência sobre a importância do estudo: 

"Quando chegou a hora de começar o primário, no ano em que completei sete anos, ensaiei um movimento de recusa, no que fui questionado pela minha mãe sobre a razão de não querer ir para a escola. O motivo, bastante plausível, já demonstrava minha responsabilidade em face do estudo e da minha condição de “analfabeto” até então: “Não posso ir para a escola”, respondi, “porque eu não sei ler”."

O resto é história, até 2006 pelo menos...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 29 de maio de 2020



Retrato do diplomata, quando maduramente reflexivo

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 31 dezembro 2006

Eu nasci na exata metade do século XX, em São Paulo, capital. Sou descendente, tanto por parte dos avós paternos como maternos, de imigrantes pobres, respectivamente de Portugal e da Itália, todos chegados ao Brasil no início do século, para trabalhar nas fazendas de café da então aristocrática elite cafeeira de São Paulo e do sul de Minas. Meu pai nasceu em Rio Claro, interior de São Paulo, no ano da revolução russa, antes da revolução bolchevique e depois da revolução de fevereiro, que derrubou o tzar e a monarquia dos Romanov. A primeira revolução ocorreu em fevereiro, a segunda revolução em outubro (ou em novembro, dependendo se o calendário é o juliano ou o gregoriano), e meu pai nasceu entre as duas. Minha mãe nasceu em Poços de Caldas, MG, alguns anos mais tarde. Ambos vieram pequenos para São Paulo, com meus avós – mas eles ainda não eram meus avós, obviamente –, que se mudaram para a capital paulista por motivos que desconheço, mas que deve ter algo a ver com o abandono das terríveis condições de trabalho na lavoura cafeeira, onde os imigrantes europeus eram tratados um pouco melhor, mas só um pouco, do que os escravos que eles vieram substituir a partir de 1888. 
Não sei como meus pais se conheceram, mas sei, em todo caso, que eles não chegaram a terminar a escola primária, tendo ambos de começar a trabalhar desde muito cedo para ajudar nas despesas domésticas, nas casas dos meus avós, obviamente (que só mais tarde se tornaram meus avós). Eu também comecei a trabalhar muito cedo, para ajudar em casa, na casa dos meus pais, evidentemente, depois que eles se tornaram meus pais, na exata metade do século XX, como já disse. Até onde alcançam minhas lembranças de infância, eu sempre trabalhei, mas pelo menos terminei a escola primária, a secundária, a pós-graduação e tudo o mais que tive direito a fazer numa vida de estudos, que infelizmente começou muito tarde para meus padrões atuais. Sim, só aprendi a ler na tardia idade dos sete anos, que foi quando eu finalmente entrei para a escola, como acontecia com o sistema de ensino público nos anos 1950. Antes disso frequentei o parque infantil e, bem mais importante, a biblioteca pública infantil, pertos de minha casa, no bairro paulistano do Itaim-Bibi, naquela época chamado de “chácara Itaim” (um pequeno aglomerado de casas humildes, ruas de terra e muitos terrenos baldios, onde jogávamos “peladas” de futebol). 
Comecei a frequentar a biblioteca infantil “Anne Frank” ainda antes de aprender a ler, para jogos e sessões de cinema (Oscarito e Grande Otelo eram os meus heróis cinematográficos). Quando chegou a hora de começar o primário, no ano em que completei sete anos, ensaiei um movimento de recusa, no que fui questionado pela minha mãe sobre a razão de não querer ir para a escola. O motivo, bastante plausível, já demonstrava minha responsabilidade em face do estudo e da minha condição de “analfabeto” até então: “Não posso ir para a escola”, respondi, “porque eu não sei ler”. Motivo recusado, fui inscrito compulsoriamente no “Grupo Escolar Aristides de Castro”, onde passei os cinco anos do primeiro ciclo: quatro obrigatórios da escola primária e um quinto ano de “admissão” (ao ciclo médio, então chamado de ginasial, que fiz no Vocacional).
O mais importante, porém, foi que, assim que aprendi os rudimentos da leitura, passei a ler todos os livros da biblioteca infantil, não apenas durante tardes e tardes seguidas, mas também em casa, já que eu sempre retirava livros para continuar a ler pela noite. Não tínhamos televisão então, o que muito me ajudou em meus hábitos de leitura. Monteiro Lobato, Emilio Salgari, Jules Verne, Karl May, foram alguns dos autores que acompanharam minha infância e a primeira adolescência e a eles devo grande parte do meu enorme conhecimento do mundo, sua história e geografia, além das ciências e das artes. Acho que me tornei autodidata desde o primeiro livro, uma característica que conservei durante toda a vida. A partir de um certo momento deixei de prestar atenção ao que se dizia em aula, desde a metade do “colegial” pelo menos, e passei inclusive a não frequentar as salas de aula: tudo o que sei, aprendi nos livros, em todo tipo de leitura, da extrema esquerda às suas antípodas, sem nenhum preconceito “religioso”.
Trabalhei desde muito cedo, como disse, primeiro recolhendo sobras de metal de fábrica para vendas ao “ferro velho”, a versão artesanal do moderno sistema de reciclagem. Depois fui pegador de bolas de tênis no Esporte Clube Pinheiros e empacotador no supermercado Peg-Pag. Meu primeiro emprego com registro em carteira deve ter sido aos 14 anos, como office-boy no Moinho Santista, no centro da cidade. Nessa época passei a frequentar a biblioteca da Faculdade de Direito no Largo de São Francisco, muito mais interessante em termos de livros sérios do que a pequena “Anne Frank”. Comecei a ler Celso Furtado, Caio Prado Jr, os sociólogos paulistas e toda a literatura marxista, a começar por um resumo do Capital por J. Duret, numa tradução das Éditions Sociales. O golpe militar impulsionou minha politização precoce e, em pouco tempo, eu já estava nas ruas, protestando com outros jovens e adolescentes contra a ditadura militar, contra o capital estrangeiro e o imperialismo americano. O mundo era mais simples então: tínhamos duas alternativas político-econômicas, e quem não era revolucionário e socialista, como éramos nessa juventude de rebeldia contra os poderes constituídos, a dominação estrangeira e a situação de pobreza que caracterizava grande parte da população (minha família, inclusive), era apenas indiferente, pois poucos eram os que se proclamavam abertamente capitalistas ou liberais. Essa segunda opção nunca foi muito popular no Brasil, aliás até hoje.
Naturalmente impulsionados pelo romantismo guevarista, radicalizamos na oposição ao regime militar, recorrendo inclusive à luta armada, e nisso fomos fragorosamente derrotados, mais por nossos próprios equívocos políticos do que pela “repressão” do regime militar. Alguns desapareceram, outros foram “eliminados” – por diferentes vias – e muitos foram para o exílio, eu inclusive, ainda que por vias legais e conservando o passaporte. Primeiro, em 1971, passei pelo socialismo – na Tchecoslováquia pós-repressão ao “socialismo de face humana”, de 1968 – e constatei uma coisa da qual já suspeitava bem antes: o socialismo, em sua versão soviética, simplesmente não funcionava, era uma imensa mentira, uma sociedade condenada ao passado, na qual as misérias morais, humanas, eram ainda maiores do que as misérias materiais, a da escassez cotidiana, a da penúria institucionalizada em modo de produção. Enfim, uma verdadeira mentira, com perdão pelo paradoxo. Depois, me instalei no capitalismo – em Bruxelas, na Bélgica –, onde encontrei condições de estudar e de trabalhar. Continuei em meu autoditatismo radical, passando mais tempo na biblioteca do Instituto de Sociologia do que nas aulas do curso de graduação em Ciências Sociais (que eu tinha largado no segundo ano da USP, depois da cassação dos mestres).
Foram seis anos e meio de intensas leituras, entre a graduação, o mestrado – em economia internacional, na Universidade de Antuérpia – e o começo de um doutorado, ao início de 1977, interrompido pela minha volta ao Brasil. Daí ao ingresso na carreira diplomática foram poucos meses, de muita atividade e de muitos projetos. O regime ainda era autoritário, mas na sua fase declinante. Em todo caso, dei início a uma dupla carreira, a de servidor público federal e a de professor universitário, que conservo até hoje, com satisfações e decepções em ambas.
As lides diplomáticas e as universitárias me confirmaram – como ocorre em quase todas as atividades humanas – que coexistem excelências e mesquinharias em todas as trajetórias permeadas por burocracias relativamente autossuficientes. Trabalhei, e continuo trabalhando, intensamente em ambas, delas retirando gratificações pessoais, profissionais e intelectuais. Também constatei que pequenos ciúmes e atos de puro despeito ocorrem das formas inesperadas. Nunca escondi o que penso das coisas, na política e na economia, o que nem sempre é recomendado em burocracias de tipo feudal como podem ser as instituições nas quais trabalho. Continuei refletindo, escrevendo e publicando o que penso ser um reflexo honesto de minhas leituras e pesquisas em ambos ambientes de trabalho. Nem sempre o que escrevo é bem recebido em cada um desses meios. Atribuo isso mais à inveja, ou aos ciumes, do que à oposição ao que tenho a dizer. Afinal de contas, não creio escrever nada de muito extraordinário.
Se ouso agora fazer uma síntese do que sou e do que penso, neste limiar do ano de 2007, eis aqui o que eu poderia dizer. Sou intensamente racionalista, ou seja: não costumo refugiar-me em qualquer tipo de crença, mas procuro descobrir as raízes e as razões das coisas, pelas velhas regras do método científico, isto é, a busca de correlações causais que possam ultrapassar o impressionismo e o subjetivismo inerentes ao homem, a procura de explicações que se submetam ao teste da realidade, ao embasamento empírico, e a prática de um saudável ceticismo quanto a respostas tentativas em quaisquer campos do conhecimento humano. Duvidar é bom, buscar a verdade melhor ainda, mesmo que ela esteja distante, ou seja, impossível no momento. 
No plano dos valores, mantenho o otimismo de que a bondade não só é possível, mas de que ela é capaz de superar a maldade humana, e esta pode ser incrivelmente infinita. O mundo certamente não é o lugar ideal que gostaríamos que fosse, mas ele já melhorou muito em relação ao passado de mortandades e injustiças. A pobreza ainda é um fardo pesado para mais da metade da humanidade e todos os meus esforços intelectuais e práticos estão dirigidos a reduzir, um pouco que seja, essa fardo, a começar pelo meu país, pela nação brasileira. Minhas contribuições para que isso se faça se situam quase todas no plano da reflexão individual e das proposições em termos de políticas públicas, aqui num ambiente coletivo que ultrapassa o da diplomacia. Não sei se tenho sido eficiente nessa “missão” autoatribuída, mas entendo que meus esforços didáticos e o meu desempenho enquanto produtor de textos especializados não sejam de todo inúteis. 
Entendo que devemos procurar fazer o bem, em quaisquer circunstâncias. Nisso vai até algum grau de sacrifício pessoal, e talvez até familiar, para tentar distribuir o bem em torno de si. Espero poder fazê-lo ainda durante muito tempo, nas minhas formas habituais de atuação, onde estão minhas “vantagens comparativas”: na leitura, na reflexão crítica, na escrita, no ensino, na publicação de textos que possam contribuir para o aprendizado dos mais jovens. 
Neste final de ano de 2006, quando faço um breve balanço de minhas atividades e creio poder programar algo do que farei em 2007 e nos anos seguintes, gostaria de resumir o sentido de minha ação da seguinte forma: ser intelectualmente honesto é um dever das pessoas que como eu trabalham sobretudo no plano das ideias e da escrita. Prestar contas do que se faz com o dinheiro público também é um dever, individual e coletivo, e nisso sou de uma radical transparência. No mais, creio que devemos procurar a felicidade e contribuir para a felicidade do maior número de pessoas. Eu me esforço para contribuir para que esse objetivo se cumpra na medida das minhas possibilidades, mas não tenho certeza de ser o mais eficiente possível, ou eficaz, o tempo todo. Gostaria de acreditar que, olhando para trás, agora e mais adiante, se possa dizer de mim, um dia: ele fez alguma diferença para diminuir o grau de sofrimento dos seus semelhantes, tanto quanto para aumentar o quantum de felicidade humana possível nas condições que nos são dadas pela história e pelas circunstâncias nas quais vivemos. 

Por fim: por que intitulei este texto desta forma? Não sei. Talvez porque o ser diplomata é minha condição atual, minha situação presente, minhas circunstâncias de vida. O ser reflexivo já é uma característica pessoal, um dado de minha personalidade, naturalmente reservada e bastante introspectiva. Quanto ao “retrato”, trata-se de uma radiografia do momento, uma pequena foto do presente, que talvez não seja o melhor possível, daí o relativo pessimismo que possa transpirar destas linhas. Acredito que o Brasil, seu povo e sociedade (a começar pelos núcleos dirigentes), estejam atravessando uma fase não propriamente exitosa, caracterizada por baixo crescimento, por inúmeros problemas acumulados – alguns se agravando –, com perspectivas de “mais do mesmo” nos anos à frente. Talvez seja passageiro, ou talvez se prolongue mais do que o desejado, pois afinal de contas outras sociedades antes da nossa também decaíram relativamente, algumas até entraram em “colapso”. O Brasil não será o primeiro exemplo conhecido de estagnação ou de declínio, relativo ou mesmo absoluto. Mas, tenho certeza de que reencontraremos o caminho do crescimento, da prosperidade, da afirmação dos bons valores humanos e sociais. Gostaria de poder contribuir para isso, tanto quanto minhas forças intelectuais e a minha disposição física o permitirem. Continuo otimista quanto à capacidade das sociedades se regenerarem, a partir dos esforços individuais de pessoas que têm algo a contribuir para o bem da humanidade. As pessoas valem pelo que elas são e pelo que elas possam fazer de bem para a felicidade do maior número.
Vale!

Brasília, 1706: 31 dezembro 2006.

O Serviço Exterior Francês: História, Estrutura e Recrutamento (1995) - Paulo Roberto de Almeida

De vez em quando, percorrendo a minha lista de trabalhos em busca de alguma coisa que eu tenho certeza de ter, mas não sei quando, nem onde foi escrita, nem se foi publicada ou não, eu me deparo com trabalhos inteiramente inéditos, que tinha ficado para trás, seja porque não tinha aonde publicar, seja porque fui absorvido por novos e importantes trabalhos.
É o caso deste aqui, que fiz quando estava servindo na embaixada do Brasil em Paris, e tinha curiosidade em conhecer como trabalhavam meus colegas do Quai d'Orsay, qual era a trajetória da carreira ao longo do tempo, e como estavam organizados naquele momento (inclusive quanto ganhavam). Não tinha muito glamour, ao contrário do que se possa pensar.
Em todo caso, aprendi algumas coisas, mas suponho que desde aquela época, muita coisa tenha mudado, sobretudo num sentido de maior feminização da carreira, e melhoria nos salários.
Deixo a critério de meus leitores franceses, ou colegas que conhecem a situação atual, eventuais correções sobre os argumentos e sobretudos sobre os valores recebidos, agora em euros.
Paulo Roberto de Almeida 

475. “O Serviço Exterior Francês: História, Estrutura e Recrutamento”, Paris, 15 fevereiro 1995, 15 p. Elaboração da história e situação atual do serviço exterior francês, com vias de acesso à carreira, estrutura interna e fluxos ascensionais. Destinado ao Boletim ADB, revisto e resumido devido à extensão. Inédito. Disponibilizado na plataforma Academia.edu (28/05/2020; link: https://www.academia.edu/43192012/O_Servico_Exterior_Frances_Historia_Estrutura_e_Recrutamento_1995_).

O SERVIÇO EXTERIOR FRANCÊS
História, Estrutura e Recrutamento

Paulo Roberto de Almeida
Conselheiro (Paris, 15 fevereiro 1995

I. Formação histórica da diplomacia francesa
O “Ancien Régime”
Embora a prática da negociação existisse, evidentemente, desde a Idade Média – quando o próprio Rei se desempenhava como o principal negociador do Reino –, os primeiros agentes diplomáticos franceses, reconhecidos como tais, apareceram apenas no curso do Renascimento. Até então, a prática era a de que representantes especiais do Rei fossem designados temporariamente como “plenipotenciários” junto aos reinos e repúblicas vizinhas ou, em alguns casos, até bem mais longe: é sabido, por exemplo, que Carlos Magno estabeleceu relações com o Oriente muçulmano, recebendo uma embaixada e as chaves do Santo Sepulcro de Harun-Al-Rachid em 807. 
Mas, é apenas a partir da Renascença que um corpo administrativo dedicado aos assuntos estrangeiros, dotado de sua secretaria específica, se estabelece de maneira permanente no aparelho de Estado francês. O rei Henrique III, rompendo a antiga prática de uma repartição geográfica entre seus quatro “secrétaires des commandements et des finances”, reservou a um deles, em 1589, a correspondência com os países estrangeiros. Um texto de 1626 organizava os serviços do “Secrétaire d’État aux Affaires Etrangères”, que passa a ser assistido por “commis” (juristas, arquivistas, geógrafos...). Durante a época do absolutismo monárquico e sob o Iluminismo, o corpo diplomático francês, mesmo tendo “importado” alguns estrangeiros (em geral italianos) para defender os interesses de um Estado precocemente centralizado, tornou-se um modelo do gênero e o próprio francês converteu-se em língua franca das chancelarias europeias.
Uma primeira academia diplomática, dedicada à formação de jeunes gens de bonne famille, criada em 1712, foi fechada em 1720, sob escusa de que tinham se apresentado representantes de uma jeunesse vaine e mal disciplinée, à qui manquait le goût du travail. A preparação dos diplomatas foi então colocada sob a responsabilidade do “Cabinet du Louvre pour les Affaires Etrangères”, mas os filhos de tradicionais famílias nobiliárias buscavam habitualmente uma formação especializada na “École de Droit e de Diplomatie” da Universidade de Estrasburgo.

Revolução, Restauração e Império
Durante a Revolução, algumas mudanças funcionais e administrativas são operadas, como, por exemplo, a vinculação dos consulados – anteriormente colocados por Colbert na área do Ministério da Marinha – ao secretariado das relações exteriores. O Comitê de Salvação Pública chegou a reconhecer que “o departamento dos Assuntos Estrangeiros, sob a monarquia, era o único bem administrado”. Reflexo da renovação então operada nos quadros de pessoal, a diplomacia do Diretório foi conduzida por um pessoal bem mais diversificado: jovens oficiais militares e representantes da burguesia juntaram-se assim aos diplomatas de carreira. Mas, encerrada a fase revolucionária, Talleyrand se encarregaria de reorganizar, num sentido conservador e mesmo regressista, a máquina que serviria à diplomacia napoleônica.  
(...)

Ler a íntegra neste link na plataforma Academia.edu; link: 

segunda-feira, 25 de maio de 2020

O mundo pós-pandemia: resumo para o programa do Livres - Paulo Roberto de Almeida

O mundo pós-pandemia: resumo para o programa do Livres 

Paulo Roberto de Almeida
Rascunho para debate público online para o Livres, no dia 25/05/2020
na companhia do embaixador Rubens Ricupero e da economista Sandra Rios. 

A presente nota se dedica, numa primeira parte, a resumir o trabalho já elaborado para este debate e ao qual se pode recorrer para maiores detalhes: “O mundo pós-pandemia: contextos políticos e tendências internacionais” – disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/43123473/O_mundo_pos-pandemia_contextos_politicos_e_tendencias_internacionais_2020_) –, a que se seguem mais alguns comentários sobre a questão selecionada para debate, bem como sobre a situação recente da diplomacia do Brasil, o atual “homem doente da América do Sul”. 

Adivinhos, oráculos e previsões
Debates online: fadiga pós-pandêmica, ou então substituirão os encontros físicos;
Minhas previsões imprevidentes...; companheiros ajudavam (ética na política...); os atuais fazem besteiras previsíveis;

Mudanças e continuidades, com pandemias que vão e que voltam
A verdade é que não sabemos como será o mundo pós-pandêmico;
Emb. Ricupero alerta que não será muito diferente; pandemias não mudam estruturas longas, à la Braudel;
Depois do terremoto de 14-18, o mundo continuou mais ou menos como antes;
Pacto Briand-Kellog, 1928; Japão invade a Manchúria em 1931; rearmamento alemão em 1933; Itália inicia guerra contra a Abissínia em 1937; 

Contextos nacionais e forças transnacionais
Mudanças já estavam em curso desde antes, entre elas o nacionalismo e os retrocessos protecionistas, que aliás antecedem Trump;
Ou seja, já estávamos em mundo novo antes da pandemia; só o Brasil desapareceu do mundo, e isso também antes da pandemia; agora, então, simplesmente não existimos, ou apenas existimos como mau exemplo;

Globalização micro e macro: qual avança, qual recua?
A verdadeira globalização, a micro;
A antigloblização, a macro;

Da Guerra Fria geopolítica a Guerra Fria econômica: quem perde, quem ganha?
Uma das coisas mais impactantes que constatei nos tempos recentes – e isso não está em meu paper – foi a rendição dos acadêmicos americanos à paranoia do Pentágono
Isso já estava um pouco visível nos debates sobre a Grande Estratégia nos EUA, até em Yale, com o biógrafo de Kennan, John Lewis Gaddis, e em Harvard, Graham Ellison, autor do famoso livro sobre a Essência da Decisão (Cuba, 1962)
John Lewis Gaddis tem aliás um livrinho sobre o fim da Guerra Fria: o Ocidente venceu
Bem, agora saímos da Guerra Fria Geopolítica e estamos na Guerra Fria Econômica.\

Como será, então, o mundo pós-pandemia: muito diferente do atual?
Para ser sincero, não tenho a menor ideia de como será o mundo pós-pandemia
A Grande Depressão pode ser agora uma Super Depressão; Chimerica de Ferguson
Infelizmente, para o Brasil, dada a má qualidade de nossas elites dirigentes, assim como devido à péssima qualidade daqueles que ocupam o poder político no presente momento, esse futuro é o mais incerto possível, oscilando entre o precário e o desastroso. Não consigo detectar governo tão medíocre, tão miserável, tão prejudicial à nação, ao Estado, ao país, quanto o atual desgoverno que teve início em 1º de janeiro de 2019: não sabemos ainda quando terminará...

Mundo pós-pandemia: não muito diferente do atual
O mundo não mudará muito, em suas estruturas fundamentais, mas mudanças tópicas podem ser relevantes;
A pandemia traz desemprego, sofrimento e pobreza, mas não provocará nem uma revolução social, nem grandes rupturas políticas;
Se houver mudanças de governos será mais como resultado do desgaste do existentes, por ineficácia em lidar com as consequências da pandemia;
As mudanças econômicas serão adaptativas aos impactos trazidos pela doença com algumas inovações importantes, em produtos e métodos (todas as guerras fazem isso);
Lideranças medíocres, como a nossa, atrasarão essas mudanças adaptativas no campo econômico e retardarão ainda mais suas sociedades do que o mero impacto da doença.

O “Homem Doente da América do Sul”? 
Esse conceito de “homem doente” foi empregado pela primeira vez para o caso da China, na última década do século XIX, e esse “homem doente” era o Império Qing, decadente, tanto que veio a termo apenas três anos depois que a Imperatriz Cixi morreu, em 1908. Contemporaneamente, o outro “homem doente” da Ásia, ou da Europa, pele menos parcialmente, era o Império Otomano, que se desfez nos muitos desastres da Grande Guerra, que também desmantelaram três outros grandes impérios europeus: o dos Habsburgos, na Áustria-Hungria, o dos Romanov, na Rússia czarista, e o dos Hoenzollerns, do Reich alemão, prussiano de origem. 
Mas não se pense que o termo possa ser exclusivo dessas situações-limite, decaindo como resultado de grandes conflitos bélicos, de guerras civis, de revoluções ou de ataques de potências estrangeiras, como também no caso da China imperial, e da própria República presidida por Sun Yat-Sen. Lembro-me que no começo deste século a Economist dedicou um editorial, artigos e uma ilustração de capa, para no novo “homem doente da Europa”, a Alemanha, antes que ela começasse as reformas que reforçariam a sua taxa de crescimento, o seu desemprego, o crescimento indesejado do já alto custo do trabalho, impactando sua competitividade internacional. Ou seja, ninguém escapa de cair no qualificativo desonroso, por razões geralmente vinculados a uma fase de declínio.
Pois agora chegou a vez do Brasil. Creio que já se pode chamar o Brasil de o “homem doente da América do Sul”, e não apenas por causa da nossa evolução trágica nos números cumulativos de infectados pelo Covid-19 e pelo volume de mortos. Nossos vizinhos já tinham percebido isso, e por isso mesmo declarado o fechamento de suas fronteiras e outras comunicações com o Brasil. Nosso país se tornou o “homem doente da América do Sul” a mais de um título, sobretudo no plano diplomático, na esfera dos direitos humanos, no respeito às liberdades fundamentais e no respeito à imprensa, assim como no terreno do meio ambiente e do cumprimento de compromissos assumidos no âmbito de acordos internacionais nessa área. Já dizia o embaixador Ricupero, ainda no governo de transição presidido pelo vice-presidente Michel Temer, que ninguém quer tirar foto ao lado do Brasil. Se isso era verdade em 2017, é bem mais atualmente. Como ele também disse, o Brasil virou um “pária internacional”, um verdadeiro proscrito da diplomacia mundial, um personagem anômalo nos foros internacionais e regionais. 
Essa não é, evidentemente, a opinião do chanceler, expressa na famosa reunião ministerial do dia 22 de abril, no Palácio do Planalto. Em meio aos muitos palavrões do presidente, o chanceler declarou que o Brasil poderia fazer parte de uma espécie de novo Conselho de Segurança que seria formado em um mundo pós-pandemia. Ele disse o seguinte, de acordo com a transcrição autorizada pelo ministro Celso de Mello:
Eu  [sic] cada vez mais convencido de que o Brasil tem hoje as condições, tem a oportunidade de se sentar na mesa de quatro, cinco, seis países que vão definir a nova ordem mundial. (...)
Eu acho que é verdade e assim como houve um Conselho de Segurança que definiu a ordem mundial, cinco países depois da... da segunda guerra, vai haver uma espécie de novo é ... [sic] Conselho de Segurança e nós temos, dessa vez, a oportunidade de  [sic] nele e acreditar na possibilidade de o Brasil influenciar e forma... ajudar a formatar um novo é ... cenário. (...)
E esse cenário é, ... eu acho que ele tem que levar em conta o seguinte é ... tamos [sic] aí revendo os últimos trinta anos de globalização. Vai haver uma nova globalização.
Que que aconteceu nesses trinta anos? Foi uma globalização cega para o tema dos valores, para o tema da democracia, da liberdade. Foi uma globalização que, a gente  [sic] vendo agora, criou é ... um modelo onde no centro da economia internacional está um país que não é democrático, que não respeita direitos humanos etc., ? [sic]

Tanto quanto o ainda presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, o filho 02 do presidente, o chanceler também acredita que o momento do Brasil inspira grande confiança e pode se refletir em prestígio internacional. Não se pode, evidentemente, evitar que determinadas pessoas entretenham ilusões sobre a imagem do Brasil no mundo, ou sobre sua capacidade de influenciar temas e políticas da agenda internacional. O que se pode fazer é manter uma visão realista, sóbria, sobre a inserção atual do Brasil no sistema internacional, e constatar, ou melhor, indagar com quais países, ou em quais áreas, o Brasil poderia manter relações estreitas, assinar novos acordos bilaterais ou plurilaterais, ter confirmadas as suas duas principais ambições do momento – a entrada em vigor do acordo Mercosul-UE e o ingresso na OCDE – ou receber convites e aceitar visitas, de trabalho ou de Estado, com quais chefes de governo ou de Estado dispostos a cultivar relações com o Brasil atual. Numa recente reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas, para marcar os 75 anos do final da Segunda Guerra Mundial e a vitória das Nações Aliadas contra o nazifascismo, o chanceler aproveitou para lançar um novo ataque a propósito dos riscos do comunismo, tendo ainda recomendado que se evitasse a palavra multilateralismo, uma vez que todos os conceitos terminados em “ismo” poderiam denotar fenômenos essencialmente negativos. 
Registre-se que nas áreas de meio ambiente, de direitos humanos, de luta contra a corrupção, de relações bilaterais com boa parte de importantes países da Europa ocidental, ou até no âmbito do Brics, mas sobretudo no campo das relações regionais, o leque de possibilidades abertas ao engenho e arte da diplomacia profissional tem se reduzido de maneira substantiva desde o início do governo Bolsonaro. Já tendo, de partida, anunciado sua oposição ao multilateralismo – em nome de um difuso e nunca explicado antiglobalismo –, as relações do governo com o sistema da ONU – em especial com a OMS, em plena pandemia – são as piores possíveis, a ponto de obstar a convites para determinados encontros, em vista das críticas do presidente e do chanceler às posturas adotadas nesses organismos, e não apenas em relação à luta contra o Covid-19. 
Sintetizando, como diplomata profissional, posso testemunhar que nunca, em minhas quatro décadas a serviço do Itamaraty – com alguns intervalos, como durante toda a duração dos governos petistas, e atualmente, quando também me encontrei afastado do trabalho executivo –, mas também com base na leitura da história, deparei-me com tal desprestígio do Brasil no plano internacional, com um tal rebaixamento dos padrões profissionais do Itamaraty e com um abandono inédito de teses, posturas e dos métodos de trabalho da diplomacia brasileira e da política externa brasileira: trata-se, seguramente, de uma era deprimente da política externa e das relações internacionais do Brasil, uma fase a que eu não hesito em chamar de EA, a Era dos Absurdos. 
Se olharmos para trás, na longa evolução do Serviço Exterior do Brasil, desde a sua independência, e a dois anos de comemorarmos, em 2022, os primeiros dois séculos da existência da nação independente, podemos certamente constatar, como afirmou o embaixador Rubens Ricupero, em seu livro A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016(2017), que nossa política externa e o pessoal profissional e os estadistas nela envolvidos participaram efetivamente da consolidação de um Estado atuante, um dos mais sofisticados dentre as nações que surgiram do colonialismo ibérico, caracterizado por uma atuação de alta qualidade, de excelência mesmo, como reconhecido inclusive por parceiros de nações avançadas e com diplomacias bem mais longevas. Infelizmente, essa tradição admirável vem sendo deliberadamente constrangida, sabotada, deformada e diminuída desde o início do governo atual. Haverá um trabalho de reconstrução a ser feito como já registrado no chamado “manifesto dos chanceleres”, publicado nos grandes jornais brasileiros no dia 8 de maio de 2020 (ler a versão em português neste link: https://www.academia.edu/43153794/A_reconstrucao_da_politica_externa_brasileira_2020_; a versão em inglês, encontra-se disponível aqui: https://www.academia.edu/43042244/The_Reconstruction_of_Brazilian_Foreign_Policy_-_Former_Ministers).
Uma transcrição de seus principais parágrafos traz algumas evidências quanto à lamentável situação atual da política externa e da diplomacia brasileira: 
É suficiente cotejar os ditames da Constituição com as ações da política externa para verificar que a diplomacia atual contraria esses princípios na letra e no espírito. Não se pode conciliar independência nacional com a subordinação a um governo estrangeiro cujo confessado programa político é a promoção do seu interesse acima de qualquer outra consideração. Aliena a independência governo que se declara aliado desse país, assumindo como própria uma agenda que ameaça arrastar o Brasil a conflitos com nações com as quais mantemos relações de amizade e mútuo interesse. Afasta-se, ademais, da vocação universalista da política externa brasileira e de sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, desenvolvidos e em desenvolvimento, em benefício de nossos interesses.
Outros exemplos de contradição com os dispositivos da Constituição consistem no apoio a medidas coercitivas em países vizinhos, violando os princípios de autodeterminação e não intervenção; o voto na ONU pela aplicação de embargo unilateral em desrespeito às normas do direito internacional, à igualdade dos Estados e à solução pacífica dos conflitos; o endosso ao uso da força contra Estados soberanos sem autorização do Conselho de Segurança da ONU; a aprovação oficial de assassinato político e o voto contra resoluções no Conselho de Direitos Humanos em Genebra de condenação de violação desses direitos; a defesa da política de negação aos povos autóctones dos direitos que lhes são garantidos na Constituição, o desapreço por questões como a discriminação por motivo de raça e de gênero. 
Além de transgredir a Constituição Federal, a atual orientação impõe ao País custos de difícil reparação como desmoronamento da credibilidade externa, perdas de mercados e fuga de investimentos. (...)
Na América Latina, de indutores do processo de integração, passamos a apoiar aventuras intervencionistas, cedendo terreno a potências extrarregionais. Abrimos mão da capacidade de defender nossos interesses, ao colaborarmos para a deportação dos Estados Unidos em condições desumanas de trabalhadores brasileiros ou ao decidir por razões ideológicas a retirada da Venezuela, país limítrofe, de todo o pessoal diplomático e consular brasileiro, deixando ao desamparo nossos nacionais que lá residem. (..)
A reconstrução da política exterior brasileira é urgente e indispensável. Deixando para trás essa página vergonhosa de subserviência e irracionalidade, voltemos a colocar no centro da ação diplomática a defesa da independência, soberania, da dignidade e dos interesses nacionais, de todos aqueles valores, como a solidariedade e a busca do diálogo, que a diplomacia ajudou a construir como patrimônio e motivo de orgulho do povo brasileiro.

O trabalho de reconstrução será efetivamente duro e demorado. Assim faremos.

Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 25/05/2020

domingo, 24 de maio de 2020

O projeto de ditadura de Bolsonaro- Paulo Roberto de Almeida

Um projeto de ditadura que precisa ser cortado pela base

O projeto de ditadura de Bolsonaro é tão inaceitável quanto o de qualquer outra ditadura, de qualquer outro candidato a ditador.
A dele tem algumas características adicionais: é a de uma perfeita cavalgadura, a de um estúpido absoluto, a de um ignorante total, a de um beócio fundamental, a de um burro asqueroso, a de uma mente doentia, a de um perverso tosco, enfim, a de um psicopata vulgar.
Tudo isso se revela por inteiro no vídeo.
Mas serve como exemplo e amálgama para os idiotas proto-fascistas (sem qualquer consciência de sê-lo) espalhados pelo Brasil. Fanáticos carismáticos sempre tiveram capacidade de reunir os frustrados e desequilibrados dispersos na sociedade numa tribo de seguidores fundamentalistas que se declaram dispostos a morrer pelo chefe da facção. São os lemingues da destruição, prontos para marchar para o despenhadeiro, só que antes estavam sozinhos, sem direção: agora encontraram o diretor da sub-ópera bufa que os vai levar para o abismo.
E querem levar junto a Nação.
Em casos extremos como esse, uma junta de psiquiatras apenas determinaria que assistentes parrudos pusessem uma camisa de força no maluco em questão e o levassem ao hospício.
No caso do Estado brasileiro, essa junta teria de ser formada pelos dois  chefes dos demais poderes — se conseguem ser minimamente clarividentes — auxiliados pelos chefes das FFAA, se idem. Invoque-se o artigo constitucional sobre a garantia da lei e da ordem.
No Brasil de hoje a principal ameaça à lei e à ordem atende pelas iniciais de JMB e calha de ser o presidente eleito.
Aplique-se igual, para salvar o Brasil.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 24/05/2020

terça-feira, 12 de maio de 2020

O Brasil e o abolicionismo tardio, nunca completado - Paulo Roberto de Almeida

O Brasil e o abolicionismo tardio, nunca completado


Paulo Roberto de Almeida
Contribuição ao periódico O Veterano da FGV-EPGE
(https://medium.com/o-veterano).
Nota dos editoresEsta contribuição do diplomata e professor Paulo Roberto de Almeida a O Veterano é feita em razão do dia 13 de Maio, no qual ocorreu a abolição da escravidão.
O Veterano (Rio de Janeiro: periódico semanal estudantil da FGV EPGE; 13/05/2020; link: https://medium.com/o-veterano/coluna-o-brasil-e-o-abolicionismo-tardio-nunca-completado-paulo-roberto-de-almeida-b0807425fd32).


O presente ensaio tem o objetivo principal de argumentar que a eterna relutância do Brasil em abolir o tráfico e, depois, a escravidão, constitui um dos mais poderosos fatores que podem explicar, ainda hoje, a persistente dificuldade do país em elevar os padrões e o próprio ritmo de um processo sustentado de crescimento econômico, com destaque para a área da produtividade do capital humano. Essa delonga na adoção de reformas sociais também está na raiz do grau anormalmente elevado das desigualdades sociais e da distribuição de renda, que estão vinculadas, por sua vez, à ausência de reforma agrária, ainda no século XIX, e em especial a completa ausência de uma política de educação de massa, uma deficiência permanente, praticamente desde antes da independência, que atravessa toda a fase monárquica e que se prolonga por boa parte do regime republicano. O tráfico negreiro e a escravidão foram formalmente abolidos em 1850 e em 1888, respectivamente, mas seus efeitos delongados na estrutura econômica e no tecido social nunca foram efetivamente superados em toda a trajetória da nação independente. A ausência de políticas consistentes nos terrenos da propriedade fundiária e da educação de massas é responsável, por sua vez, pelos baixos níveis de renda per capita, pela persistência da pobreza, assim como da enorme concentração de renda. 

A escravidão na História Humana e o Comércio de Escravos.
A escravidão é uma das mais antigas instituições humanas, que ocupou, quase certamente,
nove décimos da história das sociedades estruturadas, ou seja, comunidades agrícolas primitivas, nações já fundadas numa divisão mais sofisticada do trabalho ou até Estados organizados. Ela coexistiu, marginalmente ou até estruturalmente, com as mais diversas formações sociais ao redor do mundo, desde a mais remota antiguidade, até já iniciada a era contemporânea, quando ela, finalmente, teve de ceder terreno às novas doutrinas de direitos humanos que derivam do pensamento iluminista dos séculos XVII e XVIII. O trabalho escravo, como uma das formas primárias de energia, nada mais é do que a substituição do esforço próprio pelo trabalho de outrem, submetido pelo uso de uma força superior, geralmente baseado na supremacia das armas. 
As sociedades da antiguidade, inclusive grandes impérios, tinham o instituto da escravidão como algo natural, necessário, em si mesmo, ou como simples mercadoria, ou seja, o comércio de seres humanos. Não se tratava, então, de um problema moral, ainda que pensadores e filósofos da antiguidade tenham esboçado um discurso em defesa da dignidade do ser humano, seja nas sociedades asiáticas, seja na vertente, mais próxima de nossas próprias sociedades, do cristianismo, baseado na fraternidade humana e na igualdade moral do ser humano. Independente da filosofia abramânica, que sustenta as três principais religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo), e do humanismo implícito à ética judaica, o escravismo foi mais ou menos tolerado por todas essas religiões ao longo da história, o que explica que o escravismo tenha subsistido e convivido com os mais diversos tipos de sociedades, organizações políticas e formações econômicas, mesmo nas formas atenuadas da servidão de gleba, – como sob o feudalismo europeu ou servidão russa, por exemplo – ou da escravidão por dívidas, geralmente temporária, e que existiu desde a Grécia antiga até a moderna América do Norte. 
A escravidão começa a ser contestada, negada, combatida, na prática, quando os avanços
civilizatórios pós-renascentistas passam a admitir a igualdade básica do ser humano, mesmo se o novo contexto filosófico que emergiu a partir dos Descobrimentos, na primeira globalização (séculos XIV a XVI), também deu espaço, ao lado das doutrinas humanistas, ao racismo científico, com Gobineau e outros, até renascer, em pleno século XX, na horrível ideologia nazista, que admitia abertamente pretender reduzir os eslavos – aliás, a origem filológica da palavra escravo – à escravidão pura e simples. Numa outra vertente, supostamente igualitária e humanista, a do socialismo de extração marxista, ou mais exatamente leninista, a imposição do comunismo, como forma de organização da nova sociedade soviética, se fez praticamente às custas de uma versão disfarçada, mas também horrenda, de escravismo, ao submeter populações inteiras ao poder absoluto do novo Estado totalitário. 
O tráfico de seres humanos já era uma atividade rendosa no Império romano, e depois se converteu num comércio altamente lucrativo de mercadores árabes, já islâmicos, ao longo de séculos, praticamente desde o início até meados do século XX. Não se pode olvidar, por exemplo, que a escravidão subsistiu legalmente na Arábia Saudita até o início dos anos 1960, e que só foi abolida (mas apenas formalmente) na Mauritânia em meados da década seguinte (persistindo ainda, sob diversas formas, no interior do país, quiçá em Estados circunvizinhos). O grande empreendimento comercial da escravidão moderna atravessa todo o período do mercantilismo, quando empresas e empresários individuais organizam um tráfico regular, sistemático, intenso, entre a África – que foi a grande provedora de mão-de-obra servil desde a antiguidade – e as economias do Novo Mundo, que se organizavam em culturas comerciais de exportação e de extração de outros recursos naturais e minerais. Durante cinco séculos a África abasteceu, em mais de dez milhões de unidades, a gigantesca demanda de trabalho humano criada pela implantação dos europeus no hemisfério americano. E aqui entra o Brasil.

O Brasil: Relutante em Extinguir o Tráfico.
Quatro quintos da história brasileira, desde a colonização até quase o final do Império, se
desenvolveram sob o trabalho servil, primeiramente na tentativa de utilização do elemento humano de origem indígena, depois, sobretudo e basicamente, de aportes a partir das populações africanas de diversas partes do continente, mesmo se os paulistas, mais pobres, em períodos anteriores ao da cafeicultura, ainda recorriam à captura e submissão de indígenas: não por acaso, o tupi-guarani era extensamente usado como língua franca nos territórios abertos pelos bandeirantes saídos dessa região. Não é preciso recorrer aos trabalhos de Gilberto Freyre, de Sérgio Buarque de Holanda, e de outros historiadores e cronistas da sociedade colonial brasileira para constatar como o trabalho escravo foi mais do que a argamassa e os tijolos que construíram a nação; o escravismo foi a pedra fundamental da existência da sociedade colonial e da própria emergência do Brasil independente, cuja economia continuou, em grande medida, a funcionar nas mesmas bases do antigo sistema colonial: a grande propriedade, as culturas comerciais de exportação, os empreendimentos mineiros, o trabalho doméstico, o transporte e até a satisfação sexual dos senhores da terra, do comércio e das atividades urbanas. Mesmo escravos em princípio “libertos” pelas incursões da Royal Navy contra navios negreiros nas costas do Atlântico Sul continuaram a servir ao próprio Estado, nas repartições do governo, alegadamente numa condição “temporária”. 
A despeito de alguns poucos “humanistas precoces” na sociedade colonial, – entre eles Antônio Vieira e poucos outros –, apesar do esforço de estadistas esclarecidos como Hipólito da Costa e José Bonifácio, para extinguir, pelo menos, o tráfico no momento da independência, como forma de substituir gradualmente a escravidão, por meio da importação de trabalhadores agrícolas da Europa, o instituto da escravidão foi não só mantido como constitucionalizado na emergência do novo Estado. Isto confirmou o enorme poder econômico e político dos grandes traficantes e dos proprietários de terras e de negócios sobre as alavancas materiais e institucionais de uma nação que se formava no contexto do crescente movimento abolicionista disseminado a partir das novas ideias em ascensão na Europa. O século XVIII assistiu à formação de um pensamento abolicionista consequente e afirmativo, e, independentemente de suas origens religiosas ou filosóficas, ele deu origem, pouco mais tarde, à criação da Anti-Slavery Society, em 1823. Antes mesmo que essa sociedade – aliás na sua versão exclusivamente dedicada à abolição no Império Britânico, o que ocorreu por ato legal de 1833, tendo sido sucedida, em 1839, pela British and Foreign Anti-Slavery Society – fosse conhecida pelo seu ativismo abolicionista, as potências reunidas no Congresso de Viena, em 1815, começaram a pressionar os principais países escravagistas para que fosse abolido o tráfico ao norte do Equador, o que terminou por comprometer Portugal nessa demanda britânica. Tendo abolido o comércio de escravos por ato do Parlamento em 1807, a Grã-Bretanha começou logo após uma campanha militante em favor da extinção geral do tráfico, pressionando os países que detinham participação significativa nesse tipo de comércio internacional.
Desde os acordos desiguais de 1810, Portugal se encontrava sob forte pressão inglesa para

abolir o tráfico: em Viena, a delegação portuguesa teve de comprometer-se com uma prometida abolição do tráfico ao norte do Equador, apenas para contar com certa tolerância, ou vista grossa britânica, em relação ao tráfico no Atlântico sul. O negócio era simplesmente muito lucrativo para que os comerciantes privados, ou a própria Coroa consentissem em sua extinção, uma vez que a taxação das “peças da África” era uma das grandes receitas das Alfândegas. Ele também era a base de grandes fortunas no próprio Brasil, como demonstrado pelo historiador Manolo Florentino: “... para cada carregamento de escravos que chega ao Brasil, vários outros, com produtos tradicionais e mesmo manufaturados europeus, tinham de ser mandados em direção à África como pagamento” (Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 218).
É um fato que os argumentos abolicionistas que então começam a ser esgrimidos em conferências internacionais fundavam-se em razões alegadamente “humanitárias”, mas as pressões constantes exercidas pela diplomacia britânica – e de modo direto pela Royal Navy – respondiam mais exatamente a razões comerciais de produtores coloniais e de mercadores metropolitanos da Grã-Bretanha. É também um fato que o aporte mínimo de imigrantes europeus, no início do século XIX, não seria capaz de fornecer os braços necessários à grande plantação de exportação, seja em açúcar, algodão ou, crescentemente no café. Como afirmou um grande especialista na questão, o historiador Robert Conrad, o número exato de escravos introduzidos no Brasil durante o período de mais de três séculos de tráfico jamais será conhecido, mas ele certamente foi muito grande, provavelmente superior a à cifra de 3,6 milhões de africanos no total (Tumbeiros, o tráfico escravista para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 34). Nesse período, o Brasil importou cerca de dois quintos dos escravos remetidos para as Américas entre 1451 e 1870. Só na primeira metade do século XIX, o volume importado entre 1800 e 1852, poderia ser estimado em em cerca de 1,6 milhão, sendo responsável, sozinho, por mais de 60% do total de escravos africanos expedidos para as Américas nesse período. 
Os acordos contraídos a respeito do tráfico entre Portugal e Inglaterra, em 1810 e no quadro do Congresso de Viena, já prometiam a interrupção do tráfico negreiro ao norte do Equador, o que implicava o comércio com a Costa da Mina, na África, tradicional rota para o escambo com os portos da Bahia. Em 1826, o Brasil independente firmou um tratado com a Inglaterra pelo qual se comprometia a cessar o tráfico num prazo de três anos: efetivamente, lei de 1830 proibiu a introdução de escravos no Brasil, mas grandes quantidades de escravos continuaram a ser desembarcados ilegalmente nas costas do Brasil. Estimativas britânicas colocam em cerca de 486 mil o número de escravos importados ilegalmente entre 1831 e 1855, cifra que o historiador da escravidão Leslie Bethell considera subestimada (The abolition of the Brazilian slave trade: Britain, Brazil and the slave trade question, 1807-1869Cambridge: Cambridge University Press, 1970, Appendix, “Estimates on slaves imported into Brazil, 1831-1855”, pp. 388-395). Trabalhando sobre as estatísticas disponíveis, Bethell especula com 500 mil escravos importados, e possivelmente mais, depois de 1830, e um número igualmente importante — talvez mesmo 750 mil — entre 1800 e 1830 (metade dos quais “ilegalmente”, isto é, da África ao norte do Equador a partir de 1815), após aproximadamente 3 milhões nos 300 anos precedentes.
A despeito de todos os compromissos solenemente firmados por Portugal, e depois pelo Brasil, nas primeiras décadas do século XIX, a importação de escravos intensificou-se bastante nesse período e nas décadas seguintes. Nas primeiras três décadas do século, a média de importações anuais cresceu constantemente, passando de 24 mil entre 1801 a 1810, para 33 mil escravos entre 1811 e 1820, alcançando um máximo de 43 mil na década seguinte. Entre 1831 e 1840, provavelmente já refletindo a política de repressão britânica, a média cai para 33 mil escravos por ano, mas volta a crescer na última década antes da abolição do tráfico, para 38 mil importados anuais, com uma nítida intensificação do movimento em sua segunda metade (Cf. Herbert Klein, “Tráfico de escravos” in IBGE, Estatísticas Históricas do Brasil, séries econômicas, demográficas e sociais de 1550 a 1985. Rio de Janeiro: IBGE, 1987; Séries estatísticas retrospectivas, vol. 3, pp. 51-60, tabela 2.2, p. 58). De fato, na segunda metade dos anos 1840, o volume do tráfico aumenta ainda mais, em razão da expansão das culturas de exportação, sobretudo o café, mas também o açúcar e o algodão.
Segundo o historiador da diplomacia brasileira Carlos Delgado de Carvalho, a supressão do tráfico foi “um problema interno que se tornou internacional” (História Diplomática do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959, p. 105), ao passo que historiadores conservadores, como Hélio Vianna, por exemplo, estimavam que o conflito com a Inglaterra sobre essa questão só se deu porque ela, por processos arbitrários, pretendia obstar a continuidade da importação da mão-de-obra necessária ao desenvolvimento agrícola do Império. Os estadistas da época reconheciam a influência inglesa na supressão do tráfico, como afirmado pelo ministro dos Estrangeiros, Paulino Soares de Souza, quando da adoção da lei Eusébio de Queirós; discursando na Câmara dos Deputados, ele assentia que tinha sido “a pressão britânica que finalmente compelira o Brasil a terminar com o tráfico negreiro” (Alaôr Eduardo Scisínio, Dicionário da Escravidão. Rio de Janeiro: Leo Christiano Editorial, 1997, p. 176). A relutância do Brasil em abolir o tráfico de escravos induziu o Governo britânico a reforçar as medidas punitivas. O ministro do Exterior, Lord Aberdeen, fez o Parlamento aprovar, em agosto de 1845, uma lei equiparando os negreiros brasileiros a piratas, sendo, portanto, passíveis de julgamento no Alto Tribunal do Almirantado ou em qualquer tribunal dentro dos domínios de Sua Majestade Britânica. 
O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Limpo de Abreu, passou Nota, em 22 de outubro, protestando vigorosamente contra o ato do Parlamento, “evidentemente abusivo, injusto e atentatório dos direitos de soberania e independência da nação brasileira”. Nessa Nota, o Visconde de Abaeté deixava claro os motivos da recusa brasileira em negociar a abolição total do tráfico: “...a razão foi porque o Governo Imperial viu-se colocado na alternativa, ou de recusar-se, malgrado seu, a tais negociações ou de subscrever a completa ruína do comércio lícito de seus súditos, que aliás deve zelar e proteger”. A Nota representava, ironicamente, uma aula de direito internacional, e nela também se procurava fazer uma distinção entre tráfico de escravos e pirataria: “O tráfico não ameaça o comércio marítimo de todos os povos como a pirataria” (Relatório do Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1846, p. 12). O protesto foi entregue ao enviado extraordinário e ministro plenipotenciário inglês no Rio de Janeiro e chegou às mãos do governo britânico em dezembro de 1845, mas nunca teve resposta. 
A despeito da repressão ainda mais severa que passou a se abater sobre os navios brasileiros demandando a África, aumentou significativamente a importação de escravos: a razão estava evidentemente nos altos lucros que o tráfico permitia. Os custos financeiros, políticos e diplomáticos do tráfico estavam, contudo, se tornando muito altos para o Brasil, mormente numa conjuntura de conflitos no Prata, em função dos quais o Governo imperial esperava obter suporte financeiro junto à praça londrina. Em setembro de 1850, efetivamente, o Parlamento aprovava a lei Eusébio de Queiroz, proibindo o comércio de escravos e introduzindo ao mesmo tempo dispositivos eficazes para sua repressão. A lei Aberdeen, contudo, foi revogada pelo Parlamento britânico apenas em 1869, numa conjuntura de conciliação de interesses entre os dois países, depois que a crise montante nas relações bilaterais, agravada pelo caráter arrogante do Ministro Christie, tinha conduzido, em princípios da década, à própria ruptura de relações diplomáticas. A escravidão, no entanto, persistiu, por três longas décadas. 

O lento e delongado processo abolicionista.
Nessa época, as pressões internas e internacionais para a abolição do regime de escravidão se fazem mais presentes, seja em virtude do triste cenário de destruições e de secessão que o problema tinha ocasionado nos Estados Unidos, seja porque a preservação dessa instituição afastava o Brasil do convívio com as nações civilizadas. De fato, a partir da segunda metade do século XIX, em especial depois que a França decretou a abolição total, em 1848, sem indenização, para suas colônias, restaram poucos países, nas Américas, nos quais tal instituto permanecesse legal; mesmo esses, à exceção da Espanha na sua colônia de Cuba, foram desfazendo-se rapidamente desse verdadeiro “cancro social”, como caracterizado em 1823 por José Bonifácio. 
Em 1864, quando Dom Pedro manifestou pela primeira vez sua vontade de encaminhar uma solução para a questão servil, além do Brasil apenas a Espanha mantinha a escravidão em algumas de suas colônias e, mesmo assim, já sofria uma onda de pressões internas no sentido de extingui-la. Este fato, sem dúvida, num momento em que o Império vivia seu ápice e se abria para o exterior como um parceiro da Europa, dava um certo travo de isolamento e de afastamento dos parâmetros reconhecidos pelo mundo civilizado. Sob o impacto das estradas de ferro, da navegação a vapor, do telégrafo e de outras inovações tecnológicas, havia cada vez mais um sentimento de modernidade e civilização, em contraposição ao atraso e barbárie, cuja extensão a todo planeta a ideologia de um novo colonialismo transformaria, em breve, na missão e no fardo do homem branco. (Ricardo Salles, Nostalgia Imperial: a formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, pp. 161-162)

No período final do regime da escravidão no Brasil, a demanda sempre crescente da agricultura cafeeira em expansão no Centro-Sul por cada vez mais braços seria atendida parcialmente pelo tráfico interno de escravos, a partir das províncias do Norte, e, crescentemente, pelo apelo à imigração estrangeira de colonos livres, numa combinação nem sempre bem-sucedida. Enquanto persistiu o instituto da escravidão, com efeito, todas as tentativas de introdução de trabalhadores da Europa ou da China não foram bem conduzidas, ou redundaram claramente em fracassos empresariais. A questão da servidão em si, no Brasil, continuava a interessar os grupos abolicionistas e humanitários europeus. 
Em 1866, por exemplo, a Junta Francesa de Emancipação, encaminha ao Imperador D. Pedro II correspondência assinada por membros ilustres da Academia Francesa na qual se mencionava a liberdade que vinha de ser concedida, após longa e mortífera guerra, a quatro milhões de escravos norte-americanos, para apelar em favor da supressão da escravidão no Brasil. Na resposta que o ministro da Justiça preparou em nome do Imperador, se afirmou que a emancipação dos escravos, “consequência necessária da abolição do tráfico, é somente uma questão de forma e oportunidade. Quando as penosas circunstâncias em que se acha o país [referência à guerra contra o Paraguai] o consentirem, o Governo brasileiro considerará como objeto de primeira importância a realização do que o espírito do cristianismo desde há muito reclama do mundo civilizado” (Cf. Heitor Lyra, História de Dom Pedro II, fastígio, 1870-1880. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Edusp, 1977, pp. 340-341). 
De fato, um projeto de lei sobre a liberdade dos nascituros e a emancipação completa chegou a ser enviado para apreciação do Conselho de Estado, mas a opinião dominante foi a de que não havia urgência, naquele momento, para uma solução ao problema, encaminhando-se a questão para depois de concluída a guerra. Um dos mais notáveis paradoxos da história da abolição no Brasil foi o fato de que os Liberais eram, teoricamente, abolicionistas, mas as leis que destruíram a escravidão foram todas obras dos Conservadores. Na verdade, como salienta o historiador João Camillo de Oliveira Torres, havia abolicionismo e escravagismo nos dois partidos, “em função de suas ligações pessoais, convicções íntimas e interesses eleitorais.” O fato é que desde a abolição do tráfico, em 1850, obra de um gabinete Conservador puro, todas as demais leis foram de iniciativa de Conservadores: Lei do Ventre Livre, em 1871, por José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco; Lei dos Sexagenários, em 1885, por Cotegipe (João Maurício Wanderley), a despeito deste ser um escravagista intransigente; finalmente abolição total, em 1888, por João Alfredo Correia de Oliveira, (Cf. Os Construtores do Império: ideais e lutas do Partido Conservador brasileiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968, pp. 178-180).
A extrema relutância da classe proprietária, que dominava a Assembleia, em avançar no quesito abolição estimulou a formação dos primeiros movimentos abolicionistas, no contexto dos quais se situa a ação de Joaquim Nabuco. A “lei do ventre livre”, promovida por Rio Branco em 1871, lhe pareceu uma indevida postergação da questão, motivando uma intensificação de seus esforços emancipacionistas. Em 1880, no Rio de Janeiro, ele inaugura com André Rebouças e vários outros abolicionistas, a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, a qual lançou manifesto dizendo ser o Brasil “uma grande senzala”. No Brasil, o debate se colocava essencialmente no plano ético e moral, mas os escravocratas não se cansavam de alertar para as consequências econômicas “catastróficas” que redundariam da libertação do que eles pudicamente chamavam de “elemento servil”. 
Em 1884, a Anti-Slavery Society quis marcar o cinquentenário da abolição da escravidão nas colônias inglesas, promovendo comemoração a que compareceu o próprio Príncipe de Gales, o futuro Eduardo VII. Este, lendo discurso preparado pelo secretário da associação, referiu-se em termos nada elogiosos ao Brasil: “enquanto as pequenas Repúblicas haviam posto termo à escravidão quando cessaram de pertencer à Espanha, só o Brasil conservava a maldição que herdou dos seus governadores portugueses. No momento atual possui o Brasil quase um milhão e meio de escravos nas suas vastas plantações, muitos dos quais levam uma vida pior do que as bestas de carga” (Cf. Renato Mendonça, Um diplomata na corte de Inglaterra: o Barão de Penedo e sua época. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, pp. 392-393).
Apesar de que, em manifesto de agosto de 1883 da Confederação Abolicionista, José do Patrocínio, Aristides Lobo e André Rebouças procurassem mostrar que o regime de trabalho escravo era prejudicial à economia do País, o próprio Joaquim Nabuco considerava que o abolicionismo no Brasil era, “antes de tudo um movimento político, para o qual sem dúvida, poderosamente concorre o interesse pelos escravos e a compaixão pela sua sorte, mas que nasce de um pensamento diverso: o de reconstruir o Brasil sobre o trabalho livre e a união das raças na liberdade” (O Abolicionismo, Londres, 1883; São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1949, p. 18). Para os abolicionistas, abolir a escravidão no Brasil significava primordialmente livrá-lo dessa “mancha de Caim”, na expressão de Nabuco, desse ultraje e dessa humilhação em face da consciência internacional, em uma palavra, resgatar a dignidade da Nação perante a América e o mundo. Nabuco argumentava juridicamente, sobretudo em termos da ilegalidade da escravidão em face do moderno droit des gens, citando Bluntschli, para quem, no seu Droit International Codifié, o direito internacional “não reconhece a nenhum Estado e a nenhum particular o direito de ter escravos”. Ainda segundo o publicista suíço, “o comércio de escravos e os mercados de escravos não são tolerados em parte alguma” e os “estados civilizados têm o direito e o dever de apressar a destruição desses abusos onde quer que os encontrem”. Mas ele também procurava avançar argumentos que tocassem no interesse direto dos proprietários e que chamassem a atenção dos estadistas. Assim, após abordar os fundamentos legais do abolicionismo, ele concluía:
Queremos acabar com a escravidão por esse motivos seguramente, e mais pelos seguintes:
1. Porque a escravidão, assim como arruína economicamente o país, impossibilita o seu progresso material, corrompe-lhe o caráter, desmoraliza-lhe os elementos constitutivos, tira-lhe a energia e a resolução, rebaixa a política; habitua-o ao servilismo, impede a imigração, desonra o trabalho manual, retarda a aparição das indústrias, promove a bancarrota, desvia os capitais do seu curso natural, afasta as máquinas, excita o ódio entre classes...
2. Porque a escravidão é um peso enorme que atrasa o Brasil no seu crescimento em comparação com os outros Estados sul-americanos que a não conhecem... (O abolicionismo, op. cit., p. 100)

Nabuco estava provavelmente pensando na Argentina, que nessa época começava seu surto de progresso econômico e social, muito embora a comparação relevante devesse ser feita mais apropriadamente com a grande nação norte-americana, que passava a receber levas enormes de imigrantes europeus, em proporções jamais vistas em qualquer outra experiência histórica de transmigrações humanas voluntárias. Em face da concorrência, a política da força-de-trabalho promovida pelos estadistas brasileiros deveria operar rapidamente uma passagem da escravidão para a imigração. Essa mudança, no entanto, foi, mais uma vez, muito tímida e delongada, com o que o instituto da escravidão, essa “mancha de Caim” de que falava Nabuco, parecia ser inseparável da própria existência da monarquia no Brasil. Aliás, a Lei de Terras aprovada anos antes, em 1850, era feita expressamente para impedir o acesso a terras livres por agricultores estrangeiros, em oposição total ao Homestead Act, que seria aprovado por Lincoln, em plena guerra civil, para facilitar a posse de terras trabalhadas por cinco anos.
Nabuco certamente distinguiu-se entre os liberais radicais que desejavam a libertação dos escravos e o progresso social, pela distribuição de terras e pela extensão da educação a todos os filhos da nação, mas sua relevância foi bem mais intelectual do que prática. Ele tinha intenção de apresentar à Câmara um projeto de lei que previa a abolição total da escravidão no Brasil em 1º. de janeiro de 1890, mas não esperava que fosse aprovado, em vista da força da opinião escravista, tanto no partido Liberal quanto no Conservador. O projeto apresentado por ele ao Parlamento, em agosto de 1880, era moderado, na medida em que previa não apenas um período de dez anos antes da emancipação total dos escravos, como também oferecia indenização aos donos, como a Grã-Bretanha havia feito meio século antes em suas colônias, fato lembrado por Nabuco. Mesmo assim, o projeto não avançou no Parlamento. 
Na verdade, os argumentos abolicionistas encontravam pouco eco na Assembleia porque os proprietários relutavam em se desfazer de uma mão-de-obra essencial, na ausência de uma clara política pública no sentido de lhes fornecer os substitutos eventuais, trabalhadores europeus, mas desprovidos de qualquer projeto ou possibilidade de se instalarem por conta própria em terras devolutas. Por outro lado, os abolicionistas eram, em grande medida românticos sonhadores, sem real contato com o objeto de sua atenção política, como revelou um dos maiores africanistas brasileiros, o embaixador Alberto da Costa e Silva: 
A impressão é que nossos grandes abolicionistas, excetuado José Bonifácio, nunca conversaram com os escravos para saber como era a África. Na obra de Castro Alves, sua África é literária, herdeira do orientalismo francês, com desertos, tendas, areais sem árvores, o inverso da África de onde vieram aqueles trazidos para o Brasil. Esta era verde, igual à natureza do Brasil. Castro Alves foi talvez o mais generoso dos poetas brasileiros, sensualmente visual, um autor que marcou o abolicionismo e a nossa imagem do poeta romântico. Mas, para os abolicionistas, era como se os africanos tivessem sido concebidos no navio que os trouxe para o Brasil, sem raízes mais profundas. (“África, e tudo mais”, entrevista de Alberto da Costa e Silva a Rachel Bertol, Valor Econômico; caderno Eu&Fim de Semana, 16/09/2011) 

Finalmente, a Princesa Imperial, D. Isabel, na sua condição de Regente, em sua “fala do trono” em 3 de maio de 1888, reconhecia que o Brasil precisava desfazer-se da “infeliz herança [da escravidão], que as necessidades da lavoura haviam mantido” e convidava os parlamentares a “apagar do direito pátrio a única exceção que nele figura em antagonismo com o espírito cristão e liberal de nossas instituições” (Cf. Brasil, Imperador. Falas do trono: desde o ano de 1823 até o ano de 1889, acompanhados dos respectivos votos de graça. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1977, p. 504). Dez dias depois, ela promulgava a lei de abolição da escravidão. Um ano e meio mais tarde, por meio de um golpe militar sustentado ativamente por republicanos e abolicionistas, era abolida a própria monarquia. Mesmo depois da abolição, pelo decreto imperial de 13 de maio de 1888, as propostas feitas por Nabuco desde 1883, no seu famoso livro, para que a emancipação dos escravos fosse acompanhada de um grande programa de reforma agrária e da universalização da educação pública, compulsória e gratuita, com vistas à elevação do padrão educacional de milhões de brasileiros pobres, e não apenas dos negros libertos, jamais foram seriamente consideradas pela República oligárquica que se seguiu logo depois. 

Um País Notável Pela Ausência de Qualquer Sentido de Política de Capital Humano.
O Brasil republicano, desde o início, e provavelmente até hoje, continua a pagar muito caro pela ausência de medidas desse tipo, para elevar a capacidade produtiva do seu povo. A reforma agrária, na verdade, se tornou inócua pela modernização capitalista da economia rural, mas no campo da educação continuamos a exibir atrasos, se não quantitativamente (a taxa de escolarização, no início do primário, alcançou, por fim, a dos países avançados, mas 150 anos depois), certamente em qualidade do ensino. O Brasil, na frase imortal de Roberto Campos, é um país que não perde oportunidade de perder oportunidades: o caso da não modernização do capital humano, pela delonga registrada nos processos de abolição do tráfico e da escravidão, e pela ausência de uma estrutura consistente de educação de massas, constitui, provavelmente, a mais relevante lacuna de toda a sua trajetória em dois séculos de construção, deficiente, da nação. 
Não há dúvida de que a responsabilidade por essas falhas pavorosas no itinerário da sociedade nacional incumbe às elites do país, não apenas às elites proprietárias, economicamente dominantes, mas um pouco a todas as elites que comandaram politicamente aos destinos da nação nesses quase duzentos anos de Estado independente. Uma dessas falhas mais impactantes para o desenvolvimento passado e atual da nação, nos 132 anos decorridos desde a Abolição, foi a incapacidade das elites e da sociedade como um todo de lidar com as consequência de mais de três séculos e meio de escravidão negra – antes indígena, depois predominantemente africana, ademais da persistência daquelas práticas laborais que a Anti-Slavery Society chama de formas análogas à escravidão, ainda hoje – e seus reflexos sociais bem visíveis em nossos dias. Esse legado persiste atualmente, como revelado na trilogia do historiador Laurentino Gomes sobre o nefando regime.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 de maio de 2020