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quarta-feira, 6 de maio de 2015

O Brasil e a agenda economica internacional, 4: o que fazer para maximizar as oportunidades? - Paulo Roberto de Almeida (Mundorama)



O Brasil e a agenda econômica internacional: o que o Brasil deveria fazer para maximizar a “sua” agenda? , por Paulo Roberto de Almeida

Mundorama, 6/05/2015


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Perguntas de uma investigação tentativa
Nos últimos 80 anos, ou seja, desde os anos 1930, o Brasil deixou de ser um país “essencialmente agrícola”, como então se dizia, para engajar um dos mais bem sucedidos processos de industrialização da América Latina, e do conjunto de países em desenvolvimento. Com a aceleração do crescimento, sobretudo a partir dos anos 1950 e nos anos 1970, diminuiu a distância econômica, tecnológica e de nível de renda, entre o Brasil e os EUA, embora em escala bem modesta: de apenas um décimo da renda per capita dos americanos, no início do século 20, os brasileiros alcançaram um patamar de quase 30% do PIB per capita dos EUA em torno de 1980. Infelizmente, muito desse esforço se perdeu, nos anos de crise econômica, de hiperinflação e de desequilíbrios externos. Atualmente, mesmo depois de ter conseguido estabilizar a economia – ainda que caindo novamente numa fase de crescimento medíocre, que não se sabe até quando irá – a distância que nos separa dos níveis de bem-estar na América do Norte continua muito alta: cerca de um quinto, apenas, da renda per capita daquela região, com uma distância similar, talvez maior, em termos de produtividade total de fatores, devido ao péssimo desempenho educacional, como revelado pelos indicadores setoriais.
O que falta ao Brasil fazer para que ele possa realizar todo o seu potencial? Existiriam barreiras ao seu progresso que estariam ligadas ao sistema internacional? O comércio mundial por acaso tem sido um fator negativo no desempenho econômico do país? O acesso a tecnologias de ponta tem sido cerceado por razões políticas, ligadas a algum “projeto secreto” de países avançados de limitar nossos avanços nessa área, como acreditam alguns, ou estariam eles “chutando a escada” que poderia nos levar a níveis mais elevados de desenvolvimento material? O Brasil se sente prejudicado por não integrar o chamado “inner core”, o círculo restrito de potências que possui poder de decisão sobre a agenda da maior parte das instituições econômicas mais relevantes do multilateralismo contemporâneo? Em resumo: quão relevante é a agenda econômica internacional para os objetivos prioritários de desenvolvimento do Brasil?
Uma recapitulação sumária da história econômica contemporânea
O ano de 1929 representa um marco na história econômica mundial, não tanto pela queda dos valores dos ativos negociados em bolsa e nos mercados de bens reais (um fenômeno já conhecido em ciclos anteriores), quanto pelo que representou de implementação de medidas equivocadas pelos governos nacionais, na tentativa de cada um se resguardar dos efeitos mais perniciosos da degringolada e de buscar “empurrar a crise para o seu vizinho” (beggar-thy-neighbour), como se dizia então. De fato, a começar pelo Congresso americano, que aprovou um aumento nas tarifas de importação, passando pelos demais governos, que desvincularam suas respectivas moedas do padrão ouro, como forma de desvalorizá-las, e assim ganhar alguma vantagem competitiva, a atitude mais comum foi a de tentar isolar cada um dos países dos efeitos eventualmente nefastos que estavam em curso em praticamente todos eles. O resultado de todas essas políticas erradas foi que, em lugar de uma simples crise de mercados, o que se teve foi uma depressão geral que se estendeu durante anos a fio, carregando para baixo todos os indicadores econômicos e sociais.
As lideranças mais esclarecidas dos Estados Unidos aprenderam a lição e, em plena guerra, começaram a traçar planos para uma reorganização da ordem econômica mundial, baseada no multilateralismo, na não-discriminação, no acesso igualitário aos mercados, na reciprocidade de tratamento e em diversas outras cláusulas que deveriam ser fundadas na cooperação e na coordenação de políticas. Daí nasceram Bretton Woods e os princípios do sistema multilateral de comércio, por meio século regido unicamente por um acordo provisório, o Gatt, que foi sendo mantido, até passar a ser administrado pela OMC, o terceiro pé do sistema concebido em 1944 para regular cooperativamente as relações econômicas internacionais. De certa forma, o tripé resultou bem sucedido, levando a economia mundial a patamares jamais conhecidos de crescimento e de prosperidade, até que os choques do petróleo dos anos 1970 e os abusos cometidos pelos governos nos terrenos fiscal e monetário levaram às crises de estagflação – algo não previsto nos modelos keynesianos – e a uma profunda revisão das políticas econômicas. Os vinte anos seguintes foram de profundos ajustes nessas políticas, tanto nas economias avançadas, quanto nos países em desenvolvimento, processo que ficou conhecido no jornalismo superficial como sendo dominado pelo “neoliberalismo”, e que de fato implicou, em todos esses países, a revisão dos mecanismos de intervenção dos Estados na vida econômica, geralmente num sentido redutor e privatizador.
Combinada à crise final e derrocada dos sistemas socialistas, o mundo entrou no que foi chamado de terceira onda de globalização – sendo as duas anteriores a dos descobrimentos do século 16, que unificaram o mundo pela primeira vez, e a da segunda revolução industrial, no final do século 19, quando intercâmbios de todos os tipos se expandiram enormemente – caracterizada pela integração progressiva de todos os mercados, em escala nunca vista até então. O Brasil também enfrentou as duas crises do petróleo, e depois uma ainda mais grave, derivada do seu endividamento excessivo, provocado justamente pela tentativa de continuar seguindo o mesmo modelo de expansão exagerada da economia, sem fazer os ajustes requeridos pela nova situação. O resultado foi a aceleração da inflação, a moratória sobre os pagamentos externos, e uma queda geral nos indicadores de crescimento e de emprego, a chamada “década perdida” dos anos 1980, que na verdade estendeu-se até meados da década seguinte.
Feita a estabilização, pelo Plano Real, o Brasil começou novamente a trilhar o caminho das políticas econômicas responsáveis, embora sem resolver adequadamente o problema das despesas públicas, sempre em excesso em relação ao nível de receitas. A solução veio pela manutenção de uma taxa de juros muito elevada, de forma a permitir o financiamento público. A desconfiança quanto à capacidade do governo em honrar seus compromissos, aliada a uma nova onda de crises financeiras – iniciada pelo México, em 1994, prolongada na Ásia, a partir de 1997, e culminando na moratória da Rússia, em agosto de 1998 – engolfou novamente o Brasil em sérios desequilíbrios de balanço de pagamentos, o que o obrigou a negociar acordos emergenciais de empréstimo junto às instituições de Bretton Woods e outros credores institucionais. A crise ainda voltou a se manifestar no momento da derrocada argentina, no final de 2001, e quando das eleições presidenciais de 2002, quando os valores dos títulos brasileiros negociados internacionalmente chegaram a seus níveis mais baixos, e o dólar ascendeu a alturas inéditas. Os desafios eram importantes, mas eles foram sendo vencidos.
O governo empreendeu, durante essa fase de desequilíbrios, diversas reformas importantes nas políticas econômicas, o que preparou o país para uma nova etapa de crescimento econômico. A começar pela adoção da flutuação cambial e do regime de metas de inflação, complementada, logo em seguida, pela Lei de Responsabilidade Fiscal – que deveria impedir os dirigentes políticos de assumirem despesas sem indicar precisamente as fontes de receitas – e pelo compromisso assumido no orçamento de se liberar todo ano um superávit fiscal (para o pagamento dos juros da dívida pública), essas medidas deveriam manter o Brasil no caminho da estabilidade e das políticas econômicas responsáveis, condição de qualquer processo sustentado de crescimento econômico. O chamado tripé macroeconômico – flutuação cambial, metas de inflação e responsabilidade fiscal – foi de certa forma preservado durante a primeira metade da década do novo milênio, mas importantes reformas estruturais em regimes regulatórios e na modernização da infraestrutura deixaram de ser empreendidas, em favor de uma nova política de redistribuição de rendas que ultrapassou em muito as possibilidades de sua sustentação, por não ter correspondência com o ritmo de crescimento da economia e os seus níveis, medíocres de produtividade. Em feliz coincidência, o Brasil beneficiou-se de um crescimento inédito na economia mundial, em especial em países emergentes.
No bojo de uma nova crise financeira internacional, iniciada em 2007 nos sistemas imobiliário e bancário dos Estados Unidos, e disseminada internacionalmente a partir de 2008 e 2009, o Brasil reagiu de forma adequada, tanto porque vinha de uma fase de crescimento satisfatório, puxado pela demanda voraz da China por seus produtos de exportação: foi uma época em que a tonelada de soja chegou a valer 600 dólares, e a de minério de ferro quase 200. Depois de uma mini-recessão em 2009, o crescimento em 2010 registrou uma taxa praticamente “chinesa”: mais de 7%, inclusive com uma diminuição notável do desemprego. Infelizmente, a nova administração que teve início em 2011 atuou de forma totalmente irresponsável, como se pretendesse destruir os fundamentos do tripé econômico, e de certa maneira conseguiu: manipulando câmbio e juros, expandindo o crédito e aumentando de forma exagerada as despesas – pois que partindo de um diagnóstico errado de que o crescimento econômico deveria ser puxado pela demanda e não pelo investimento e pela oferta – e intervindo do modo totalmente improvisado em diversos setores da indústria, conseguiram produzir mais inflação, menos crescimento, volta do desemprego, aumento da dívida pública, déficits duplos no orçamento e nas transações externas, enfim, um desastre econômico completo.
Este era o estado lastimável da economia ao início da mesma administração, reconduzida nas eleições de outubro de 2014, mas fortemente contestada por uma oposição cívica que não aceita mais as falsas explicações do governo para o atual quadro de dificuldades de toda sorte. No início do segundo trimestre de 2015, não se tem certeza quanto à trajetória do governo atual, e do seu partido de sustentação, envolvidos nos mais clamorosos casos de corrupção jamais vistos na história do país.
O que tudo isso tem a ver com a agenda econômica internacional, é o caso de se perguntar? Em princípio muito pouco, ou nada, a despeito dos esforços das lideranças políticas, de forma canhestra, em tentar explicar o péssimo desempenho econômico por causa de uma alegada “crise internacional”, quando a maior parte dos países já enveredou novamente pela retomada do crescimento. EUA e UE, as duas economias avançadas mais atingidas pela crise, apresentam níveis razoáveis de recuperação, e os emergentes dinâmicos continuam a exibir saudáveis taxas de crescimento econômico. Cabe examinar, então, o que o Brasil poderia fazer para maximizar a sua agenda, em face dos atuais desafios que o país enfrenta.
O que uma agenda econômica adequada poderia fazer pelo Brasil?
Não existe, obviamente, uma única agenda econômica internacional que atenda às necessidades do Brasil e aos seus requerimentos de desenvolvimento. Existe, em contrapartida, uma diversidade de agendas setoriais, de organismos multilaterais, ou de entidades regionais que podem, se combinadas, contribuir para que o Brasil tenha um mix de políticas públicas adequadas, cobrindo tanto as reformas internas quanto a sua política econômica externa. Vamos repassar, portanto, os principais requisitos de um processo sustentado de desenvolvimento econômico, com transformações estruturais e distribuição social dos benefícios do crescimento, e que cobrem cinco frentes principais: a estabilidade macroeconômica, a competitividade microeconômica, a boa governança institucional, a qualidade do capital humano e a inserção na interdependência global.
Estabilidade macroeconômica: esta é composta dos componentes usuais nessa área, mas encontráveis mais facilmente nos países de economia avançada e estabilizada: uma inflação baixa (e a média mundial das economias desenvolvidas tem se situado entre 1,5% e 2% ao ano); câmbio e juros o mais possível dentro dos níveis fixados pelos próprios mercados, e não por manipulações dos governos; equilíbrio nas contas públicas (ou um déficit orçamentário inferior a 3% do PIB) e uma dívida interna não superior a um montante que permita o seu serviço também numa faixa inferior a 3% do PIB como pagamento de juros. A fiscalidade deve incidir antes sobre o consumo do que sobre os investimentos, o trabalho ou o lucro das empresas, e mais sobre o fluxo de rendas do que sobre o patrimônio, para evitar elisão fiscal ou diversas formas de fuga de capitais. As alíquotas também precisam ser moderadas, sobretudo sobre os bens de consumo popular, inclusive para evitar fraudes fiscais e contrabando. Os diversos comitês de trabalho da OCDE possuem uma larga experiência em todas essas matérias, e uma aproximação mais estreita do Brasil a essa entidade com sede em Paris poderia contribuir enormemente para a melhoria de qualidade de suas políticas macroeconômicas. Mas tudo isso, obviamente, em circunstâncias normais, o que não parece ser o caso do Brasil atualmente, que necessita antes passar por um sério ajuste em todas as suas contas públicas, e por uma rigorosa correção de todos os equívocos cometidos por meio de políticas mal concebidas e improvisadas.
Competitividade microeconômica: está se falando aqui de políticas setoriais, e o princípio básico é melhorar o ambiente de negócios para as empresas, o que também passa pela correção de alguns atavismos governamentais, como o caráter extorsivo da política tributária. Não é preciso desfilar o imenso rol de medidas a serem tomadas, bastando, para isso, consultar um relatório anual do Banco Mundial: Doing Business. Esse estudo detalha, com rigor, todas as esquizofrenias cometidas no Brasil, que tornam a vida dos empresários um verdadeiro inferno em dose dupla, ou tripla: na constituição de empresas, sua gestão e até no seu fechamento. Basta dizer que a classificação do país no ranking geral se situa em torno de 125 entre 187 países, mas isto apenas porque o empresariado, acostumado a um ambiente de hostilidade governamental, faz milagres para garantir um mínimo de eficiência gerencial, o que reduz a componente “micro” do estudo para níveis inferiores a 90; se formos considerar, no entanto, os critérios que dependem de medidas governamentais (tributação, infraestrutura, regulação, legislação laboral, etc.), o ranking do Brasil despenca para algo acima de 150. O ideal para o Brasil seria adotar o Doing Business como benchmark absoluto em todas as áreas, e estudar o que fizeram todos os países que possuem rankings setoriais abaixo de 60, o que já seria um progresso notável para o país. Não é difícil identificar as medidas a serem implementadas; se o Brasil não tiver técnicos competentes em todas as áreas do Doing Business, o Banco Mundial pode organizar um programa em torno dele.
Cabe referir, incidentalmente, que o melhor remédio para a competitividade microeconômica é justamente a abertura à competição, o que recomenda liquidar com todos os monopólios indevidos – a começar do setor de energia e combustíveis – e com todos os carteis em determinados serviços coletivos (telefonia e telecomunicações, em geral, mas também em todos os tipos de transportes). Não é preciso dizer que compras governamentais limitadas a fornecedores nacionais, beneficiados ainda por um prêmio abusivo de sobre-preço aceitável (25%, ao que parece) são um convite aberto a práticas viciadas e sujeitas a corrupção. O nacionalismo pernicioso no setor da construção civil, mas também vigente em outras áreas (saúde e educação, por exemplo) é um dos casos mais nefastos de anti-competitividade, além de inerentemente promíscuo e corruptor.
Boa governança: este é o núcleo das reformas estruturais, e que não se limita, e nem deveria começar pela “metafísica” da reforma política, ainda que os critérios de representação eleitoral e de presença no parlamento estejam totalmente deformados no Brasil atual. Dar início a um processo de reforma política pode significar a paralisia de todas as demais reformas setoriais indispensáveis à estabilidade econômica e aos ganhos de competitividade de que o Brasil necessita: pode-se limitar o processo ao voto distrital misto e a cláusulas de barreira para a atividade parlamentar (atualmente, apenas cinco ou seis partidos ultrapassam o limite de 5% do eleitorado, e se deveria ficar por aí, sem exceções para os partidos de aluguel ou minúsculos); não é preciso dizer que nada justifica o financiamento público de partidos ou de campanhas eleitorais, uma vez que se trata de entidades de direito privado, cabendo aos militantes e apoiadores essa tarefa.
O núcleo da boa governança passa pela reforma do Estado – com uma redução radical do ogro famélico e suas centenas, ou milhares, de órgãos associados –, por uma reforma administrativa que reduza e limite severamente a estabilidade do funcionalismo (e o recurso a diferentes formas de contratação em setores abertos ao mérito individual, como na educação e na saúde, por exemplo), e por uma urgente reforma previdenciária que corrija as distorções ainda remanescentes nos tratamentos (inclusive os privilégios vinculados ao setor público). O Judiciário, extremamente moroso nos processos, precisa passar por uma reforma nos procedimentos, com vistas a agilizar o seu término, hoje se estendendo, na média, por até oito anos. A área trabalhista é a que necessita de amplas reformas, basicamente no sentido do contratualismo, da livre negociação direta e da solução de pendências por via arbitral; a justiça do trabalho é um órgão antes causador do que solucionador de conflitos e deveria simplesmente ser extinta.
A própria federação é um mito, tendo em vista a concentração de recursos na União, o que faz surgir “jabuticabas” absurdas como um “ministério das cidades” no âmbito federal. Esse estado republicano “unitário” cria distorções contínuas no plano da repartição de recursos e competências, o que obriga deputados a se converterem em vereadores federais, mendigando financiamento federal para programas paroquiais. A emenda constitucional que torna impositivo o orçamento unicamente reservado aos projetos dos parlamentares é um absurdo político de tal monta que por si só explica a “desgovernança” absoluta a que chegou o Brasil no terreno das práticas federativas: coexiste a chantagem recíproca do governo federal e dos parlamentares em torno da negociação orçamentária e da atribuição efetiva desses recursos para fins paroquiais.
Qualidade do capital humano: o Brasil é um país terrivelmente penalizado pela péssima qualidade do ensino, em todos os níveis, o que se reflete na produtividade medíocre da mão-de-obra, em geral, e nos níveis anormalmente baixos de inovação tecnológica em face do seu grau relativamente avançado de industrialização. Não é preciso dizer que em termos de cobertura da educação formal – ensino compulsório – já acumulamos um atraso quantitativo absurdo em termos de taxa de matrículas em face de países mais avançados (mais de um século de atraso, e ainda carentes nos níveis médio e superior), mas o mais grave se refere mesmo à qualidade do ensino, cujo estado deplorável se reflete de forma recorrente nos exames do PISA (programa de avaliação internacional da educação média, conduzido pela OCDE), onde invariavelmente ocupamos os últimos lugares, na companhia de países com renda per capita inferior à nossa diversas vezes. O Brasil, na verdade, não necessita de uma reforma educacional, e sim de uma revolução nesse setor, o que passa basicamente pela formação adequada de mestres nos vários níveis; atualmente, a pedagogia educacional está contaminada por uma ideologia nefasta identificada ao “patrono” da área, o deseducador Paulo Freire e seu imenso rol de bobagens pedagógicas. Enquanto o Brasil não se libertar de quimeras e adotar o critério do rendimento nos estudos básicos, com aferição rigorosa de metas e critérios de progressão no ensino, e com remuneração de professores também vinculada ao mérito e aos resultados, não haverá progresso possível. O isonomismo-igualitarismo radical pregado pelos sindicatos é especialmente nefasto na tarefa de soerguimento da qualidade dos mestres empregados no setor. A OCDE também possui excelentes estudos nessa área, e o Brasil tem aí uma excelente agenda para seguir.
Inserção na interdependência global: estamos falando aqui, basicamente, de abertura a investimentos estrangeiros e ao comércio internacional. Trata-se, como nos demais casos, de uma agenda essencialmente interna, pois que não é preciso esperar nenhuma rodada multilateral de negociações, no plano internacional ou regional, para conduzir, por decisão própria, um amplo programa de abertura econômica unilateral e uma liberalização comercial compatível com os requisitos de upgrade tecnológico, para melhorar os padrões de competitividade das empresas exportadoras brasileiras. Nem é preciso esperar por acordos de livre comércio bilaterais – se o Mercosul for reformulado – ou do bloco para tais objetivos; basta reduzir as barreiras para-tarifárias, e reduzir as alíquotas da Tarifa Externa Comum (como exceção para baixo ou decisão conjunta) para que o Brasil se aproxime, idealmente, dos coeficientes de abertura externa vigentes no resto do mundo (na média, o dobro dos praticados atualmente pelo país).
Tanto a OCDE, quanto os bancos multilaterais, assim como a própria OMC, possuem o know-how em todas essas matérias comerciais e de investimentos, e bastaria comparar, por exemplo, nosso exercício periódico de revisão da política comercial no âmbito da OMC e compará-lo, em todos os critérios, aos dos países melhor situados no grau de abertura externa. O fato é que o Brasil recuou nos últimos doze anos, tanto em matéria de protecionismo comercial – junto com a Argentina, no Mercosul, diga-se de passagem – quanto no terreno dos investimentos estrangeiros, uma vez que o partido no poder continua recusando até hoje ratificação a mais de uma dúzia de tratados bilaterais de proteção a investimentos que foram assinados pelo Brasil.
Conclusões não conclusivas: precisamos de uma agenda global para avançar?
Do rol de medidas elencadas nos parágrafos precedentes, se deduz que todos os problemas do país são de origem doméstica, e que nenhum é causado por um ambiente externo negativo ou pouco cooperativo para nossos requisitos de desenvolvimento. O Brasil enfrenta aquilo que os economistas institucionalistas chamam de altos custos de transação, e estes são causados essencialmente – para não dizer deliberadamente – por um Estado disfuncional e por regras e normas totalmente prejudiciais ao funcionamento de um ambiente de negócios minimamente satisfatório para as empresas nacionais (e as estrangeiras aqui instaladas, obviamente, o que diminui a atratividade do investimento).
Custos de transação são, em princípio, aferíveis, identificáveis e quantificáveis no plano técnico, ou seja, para o estabelecimento de um diagnóstico seguro, para em seguida merecer um conjunto de prescrições corretivas que deveriam colocar o país no caminho do crescimento sustentado e sustentável. Se o Brasil conseguir cumprir, por exemplo, pelo menos a metade do rol de recomendações constantes do Doing Business já terá feito enormes progressos nesse caminho. Mas muito mais é possível fazer num plano estritamente técnico de políticas setoriais recomendáveis, inclusive a decisão de não ter nenhuma política setorial, em certos casos: na área industrial, por exemplo, em lugar de estímulos generosos – via BNDES – ou de proteção tarifária absurda para as empresas instaladas no Brasil, se poderia começar por uma regulação liberalizadora e pela baixa geral da absurda carga fiscal a elas impostas, para que o ambiente se tornasse mais respirável e mais propenso à reconquista da competitividade externa. Não existem obstáculos culturais nessa área, apenas comportamentos atávicos e antiquados.
Existem, sim, idiossincrasias nacionais que serão mais difíceis de serem contornadas, e elas têm a ver com o atavismo estatal profundamente entranhado nos mais diversos estratos sociais do país: tanto trabalhadores quanto capitalistas pedem, esperam, imploram, todos os dias, por “políticas públicas” em uma área qualquer, em todas elas aliás, e tudo precisa ser constitucionalizado, ou tornado obrigatório, para que algo se faça, como se um fiat legislativo fosse capaz de resolver problemas estruturais. Essa cultura nefasta do estatismo, junto com seu irmão siamês, o nacionalismo rústico, constituem poderosos fatores de atrasos materiais, quando não são viseiras mentais a impedir soluções pelo lado dos mercados livres, da abertura econômica de modo geral.
Alguns simples exemplos devem bastar. Por que a Anvisa precisa proibir as farmácias de vender chiclete? Seria ele um perigo tão grande à saúde pública? Por que a Ancine tem de regular cotas mínimas para exibição de filmes nacionais? Seria para elevar a qualidade da filmografia à disposição do público? Por que pena de prisão para carona remunerada? A ANTT pretende proibir cidadãos de disporem de seus carros livremente, ou está defendendo carteis de transportadores mancomunados a políticos? Por que os motéis são obrigados a fornecer camisinhas aos seus clientes? Por que o cidadão comum é cotidianamente enganado pela mentira dos “dez vezes sem juros”, quando todas as lojas escondem o custo do financiamento no crediário? Enfim, haveria uma infinidade de exemplos absurdos que apenas comprovaria que o Brasil não é um país normal, definitivamente.
Um grande esforço de transformação, inclusive mental, precisaria ser feito, para aproximá-lo, um pouco que fosse, dos padrões de liberdades econômicas vigentes na maioria dos países. Aliás, uma consulta ao relatório anual das liberdades econômicas no mundo (http://www.freetheworld.com/) revelaria quão atrasados estamos nesses quesitos: chegamos a perder inclusive da China comunista em diversos requisitos setoriais – embora não o geral – de liberdades empresariais. O país não apenas se situa em posições humilhantes em diversos rankings econômicos internacionais, como vem recuando ano após ano nos de competitividade microeconômica e nos de liberdades econômicas de modo geral. Não apenas nossa desigualdade distributiva apresenta níveis africanos no coeficiente de Gini, mas os níveis de corrupção são também africanos, num país que tem uma renda per capita superior à média daquele continente. Existe algo de muito errado no Brasil, como comprovam todos os indicadores comparativos no plano mundial. Na maior parte deles, uma simples consulta aos relatórios produzidos por essas entidades oficiais e privadas nos indicaria o caminho para melhorar nossos índices.
Mais uma vez se constata que as reformas dos problemas internos passam por soluções absolutamente domésticas, ainda que elas possam ser guiadas por métodos e prescrições retirados das experiências nacionais de outros países, e que conformam um roteiro de boas práticas à disposição de qualquer administração engajada nos princípios e metas da boa governança. O que existe, finalmente, de internacional, na ampla gama de medidas que tornariam o Brasil um país melhor para si mesmo e para a comunidade internacional? Talvez começar por uma política externa promotora das democracias e dos direitos humanos, e não defensora de ditaduras e de regimes deploráveis nesses dois quesitos; já seria um progresso enorme em relação ao que assistimos nos últimos doze ou treze anos.
Em síntese, nossa agenda para avançar nas reformas pode até ser global, ou internacional, mas apenas nos princípios e nas orientações básicas, uma vez que o mundo abunda em exemplos positivos e negativos de governança, o que se reflete claramente em todos os indicadores de qualidade de vida. Sem ser um desastre completo em todos os quesitos, o Brasil deixa claramente a desejar – até recuando – em vários deles, e os diagnósticos não são difíceis eles também se encontram em todos esses relatórios, à disposição de qualquer administração esclarecida, aberta, e disposta a empreender reformas (partimos do princípio evidente que todos os países necessitam de reformas, o tempo todo). Poderá o Brasil empreendê-las?
Um simples julgamento de circunstância, com base no exame da situação em abril de 2015, indica claramente que não. O Brasil se arrasta penosamente no caminho de um sério ajuste em suas contas públicas, o que constitui uma condição preliminar, e indispensável, a qualquer processo de reformas estruturais e institucionais. Se e quando ele for bem sucedido na tarefa preliminar, e dependendo da qualidade de suas lideranças políticas, ele poderá começar a discutir o conjunto de reformas aqui elencadas. Antes disso, parece utópico ou simplesmente inútil. Oitenta anos atrás, o escritor, folclorista e musicólogo Mário de Andrade já tinha chegado a uma conclusão relativamente frustrante para os nossos brios: “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade” (poema “O Poeta Come Amendoim”, 1924). Se nada for feito, em tempo hábil, vamos continuar, no futuro previsível, progredindo um tiquinho, por saltos e recuos, como no espaço das duas últimas décadas.
Pode-se fazer melhor? Certamente, mas isso depende de estadistas…
Leia os demais artigos da série: 
Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor do Centro Universitário de Brasília – Uniceub (@pauloalmeida53).

terça-feira, 5 de maio de 2015

Retorno ao Futuro, Parte II - Paulo Roberto de Almeida (1990)


Retorno ao Futuro, Parte II

Paulo Roberto de Almeida
Revista Brasileira de Política Internacional
(Rio de Janeiro: Ano XXXIII, nºs 131-132, 1990/2, pp. 57-60).

Num ensaio de reflexão prospectiva que redigi em junho de 1988, e intitulado "Retorno ao Futuro" (Revista Brasileira de Política Internacional, XXXI, 1988/2, 63-75), eu tentava algumas modestas previsões sobre a evolução da ordem internacional em direção do horizonte 2000.  Embalado pelos recentes acordos sobre mísseis intermediários na Europa e pelos progressos alcançados na liberalização econômica das sociedades socialistas  - um dos capítulos era mesmo intitulado "A Transição do Socialismo ao Capitalismo" e outro "O Fim da Guerra Fria"-,  eu arriscava algumas previsões otimistas sobre o desenvolvimento do processo de détente na Europa e seu impacto no jogo geopolítico global.  Depois de retornar ao passado da "Europa do futuro",  meu ensaio se terminava com estes dois parágrafos:
"A dimensão Leste-Oeste continuará, é verdade, a desempenhar um papel relevante no jogo político-diplomático do continente europeu no futuro imediato.  Mas, a delimitação dos interesses em causa obedecerá cada vez menos a critérios de natureza ideológico-militar para se concentrar nos imperativos da cooperação econômica e do intercâmbio comercial.  A Europa oriental,  liberando-se da ideologia que prometia enterrar o capitalismo, abre campo a que a Europa ocidental possa  por sua vez libertar-se do fantasma de uma defesa superdimensionada.
"Os contornos da nova realidade são relativamente previsíveis: um grande espaço mittel- europeu no qual em lugar de manobras de divisões adversárias se observará a circulação de mercadorias e de serviços.  O cenário pode parecer róseo, mas o otimismo em direção ao futuro parece ser uma mania daqueles que costumam lidar com os desastres do passado."
Um ano e meio depois de ter apresentado esse ensaio num seminário do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais de Lisboa, observo, orgulhosamente, que a maior parte de meus exercícios de "futurologia" se mostrou razoavelmente correta e mesmo saudavelmente antecipatória.  Apenas para referir-me às principais questões abordadas, permito-me relembrar que as grandes tendências então detectadas (e muitas já em pleno desenvolvimento) referiam-se, entre outros, aos seguintes problemas: declínio imperial e esfarelamento do condomínio bipolar; preeminência estratégica e econômica do saber tecnológico, dissociado da simples afirmação do poderio militar;  o abandono das últimas ilusões econômicas do "socialismo realmente existente" e a introdução das forças de mercado nas economias de planificação centralizada; o esmaecimento do conflito ideológico global e a consequente superação histórica do conflito Leste-Oeste.
Nenhum desses elementos de minha análise prospectiva foi desde então desmentido pelos fatos, mas devo confessar que em relação a um único  ponto,  a marcha da democracia no Leste Europeu, minhas antecipações foram terrivelmente conservadoras.  Tendo começado, em meados de 1989, a transformar aquele pequeno ensaio em projeto de livro, logo constatei, para minha surpresa, que as contínuas manifestações dos povos da Europa oriental iriam impedir-me de  dar uma redação definitiva ao capítulo sobre a transformação "capitalista" daquela região.  Desde então, ainda não consegui retomar da pena (ou melhor, abrir novamente esse "file" em meu computador) para "encerrar" a história do socialismo na URSS e no Leste Europeu.
Ainda bem.  Naquele ensaio, eu comparava a abertura política da União Soviética a uma espécie de transição entre a monarquia absoluta e o despotismo esclarecido, no quadro de um "ancien régime" iluminado pelos ares da "glasnost".  Em outro "retorno ao futuro" do regime soviético, eu traçava um paralelo histórico entre a revolução da "perestroika" e a Inovação Meiji do Japão, no século passado, quando a elite dominante abriu-se a uma maior ocidentalização do país, no sentido da abolição de certos privilégios "feudais" (que são os da "nomenklatura"), na constituição de um "parlamentarismo de fachada" e na incorporação acelerada das conquistas estrangeiras em ciência e tecnologia.
Continuando meu passeio comparatista pelo "passado" da futura União Soviética, eu detectava uma transformação "bismarckiana" nas instituições políticas, sociais e econômicas daquela potência imperial, onde o objetivo da nova Revolution von oben ("revolução pelo alto") conduzida pelo Kaiser Gorbachev seria o de modernizar o País sem trazer prejuízo às instituições tradicionais (leia-se o Partido Comunista) e sem alijar do comando político aqueles que ocupam as alavancas de poder.  Obviamente, eu não deixava de chamar a atenção para essa contradição fundamental do novo revisionismo socialista:   "a solução para a maior parte dos problemas estruturais das sociedades socialistas passa por uma reforma radical do sistema de organização econômica, mas essa transformação teria de ser operada em detrimento do monopólio político partidário.  Mesmo os sistemas que avançaram mais longe  no caminho das reformas econômicas, nomeadamente Hungria e China (estávamos apenas em meados de 1988, cabe lembrar), não ousaram ainda demolir a exclusividade da representação política atribuida ao Partido Comunista".
Felizmente, num caso, e tragicamente, em outro, a grande carroça da História conduziu a transformação naqueles países aos desenlaces que se conhece.  Em todo caso eu operava uma distinção entre processos diferenciados de transição política, em função da sociedade envolvida:   
"Nos países dotados de maior rigidez estrutural nas instituições de representação, ou cuja estrutura social é marcadamente fragmentária e heterogênea, o processo de transição deverá assumir contornos conflitivos.  É o caso , por exemplo, da maior parte dos países balcânicos, da China e da própria União Soviética. As crises de legitimidade política reforçarão, em consequência, a natureza autoritária do processo de reforma política, de acordo aliás com o modelo de Revolution von oben". Não creio ter sido até agora desmentido nessas previsões ou naquelas formuladas acima sobre a União Soviética: em todo caso, a História ainda está em marcha.
Já para países dotados de uma estrutura social mais homogênea, eu previa um avanço mais rápido nas mudanças institucionais:  "Nos países caracterizados pela existência de uma sociedade civil historicamente independente do Estado (caso específico da Polônia e da Hungria), a marcha para a democracia política será provavelmente mais rápida".  Até aí, tudo bem: tampouco fui desmentido por Clio, essa tão complacente donzela. 
Mas, naquelas "cenas de futurologia explícita" sobre o mundo socialista, em seu conjunto, eu falhei miseravelmente em prever o ritmo mais "empolgado" que iria tomar o "fim da história" no Leste Europeu:  "A tendência deverá ser marcada pelo lento desenvolvimento do pluralismo partidário e sindical e pela introdução das regras mais elementares da competitividade eleitoral na esfera das instituições políticas de representação popular.  O monopólio do Partido Comunista será, assim, erodido gradualmente, num processo de transição tutelada e administrada".
Lamentavelmente, a tentativa de traçar linhas evolutivas relativamente homogêneas para o conjunto das sociedades socialistas, levou minha análise a deixar-se influenciar excessivamente pela rigidez burocrática da transformação em curso na URSS, esquecendo-me do peso - e da permanência estrutural -  da maior "invenção societal" da época moderna: o Estado-nação.  O regime político pode ser transitório, mas a comunidade de língua e de tradições, bem como a existência de uma rica história nacional, não deixam de manifestar-se de forma latente e continuada na vida dos povos, a despeito mesmo de um sistema político e de uma organização econômica e social brutalmente impostos de cima para baixo. Reconhecendo o erro e proclamando a meus leitores o mea culpa, só posso, assim, alegrar-me com esse fracasso da "teoria" e com essa tremenda aceleração da "prática": aliás, no Leste Europeu felizmente, a História já não corre simplesmente, ela galopa.
A meu favor, tenho o argumento de que os povos da Europa oriental não teriam embarcado no "assalto ao céu" do poder político se não tivessem certeza de que o caminho para a fortaleza do socialismo burocrático não estaria engarrafado por alguns tanques soviéticos.  Em meados de 1988, a promessa, explícita ou implícita, da "não-intervenção" ainda não tinha sido feita e a chamada "doutrina Brejnev" ainda não tinha sido formalmente enterrada. Mas, uma vez desimpedido o caminho, deve-se reconhecer que a rapidez das mudanças foi alucinante, mesmo para os "videntes" profissionais. Para um futurólogo aprendiz como eu, errar tão simplesmente a leitura do velocímetro do carro de Cronos, não deixa de ser um consolo.
Em todo caso, nem tudo são espinhos na atividade de um "prospector" do futuro.  Minha análise sobre o difícil processo de transição econômica das economias pós-socialistas, por exemplo, não corre o risco de uma esclerose precoce.  Abordando a séria questão do mecanismo de formação de preços, pedra angular de todo sistema econômico "racional", eu afirmava:
"A opção pelo mercado, que aparece como inevitável na transição do socialismo ao "capitalismo" empreendida sub-repticiamente [agora de forma aberta] pelas economias socialistas, implica igualmente aceitar todas as suas distorções e efeitos desestabilizadores sobre as unidades produtivas e sobre a distribuição de renda ao nível dos consumidores.  Quando o sistema de preços de mercado guiar toda a economia e tiver sido abolido o "pecado original" ligado à apropriação de lucros privados, o socialismo "realmente existente" se terá desfeito de seus últimos mitos econômicos e poderá enfim penetrar no purgatório do sistema capitalista".
Os países do "pós-socialismo" ainda não tiveram tempo de organizar, sobre bases mais racionais, um sistema de "exploração do homem pelo homem".  Em todo caso, eles são benvindos à realidade.

Paulo Roberto de Almeida, PhD pela Universidade de Bruxelas,  é cientista político e estudioso das relações internacionais.

180. “Retorno ao Futuro, Parte II”, Genebra, 10 janeiro 1990, 4 p. Artigo sobre tendências recentes no cenário internacional, atualizando o ensaio publicado anteriormente sobre o mesmo tema (Originais n. 164). Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (Rio de Janeiro: Ano XXXIII, n. 131-132, 1990/2, p. 57-60). Relação de Trabalhos Publicados n. 061.

Across the Empire: cruzando os Estados Unidos, 2014 - Paulo Roberto de Almeida e Carmen Licia Palazzo


Across the Empire: cruzando os Estados Unidos, 2014

Viagem de Paulo Roberto de Almeida e
Carmen Lícia Palazzo, em setembro de 2014

            No curso do mês de setembro de 2014, Carmen Lícia e eu atravessamos pela segunda vez os EUA de carro, de uma costa a outra. Em 2013, tínhamos feito o percurso pelo centro dos EUA – com um pequeno desvio no Colorado, que estava então submergido por inundações catastróficas, e tivemos de seguir pelo norte, pelos estados de Wyoming e Montana, antes de descer a Utah – e voltamos pelo sul. Em 2014, fomos e voltamos pelo norte, mas fizemos, justamente, uma descida até o Colorado, para visitar o que tinha sido impossível no ano anterior. Entramos duas vezes no Canadá, tanto no Pacífico, quanto por Detroit, até Toronto.
            Toda a viagem foi objeto de postagens constantes, quase diárias, e estão refletidas abaixo, linearmente, ou cronologicamente.

Lista de postagens no blog Diplomatizzando Across the Empire 2014:

0) Crossing the Empire (0): segunda viagem através dos EUA: 12,6 mil km em 30 dias: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/08/crossing-empire-segunda-viagem-atraves.html
1) Across the Empire (1) First day: boring roads, sempre mais do que o planejado...: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/08/across-empire-1-first-day-boring-roads.html
2) Across the Empire (2) Second day: only the road, no more than the road...: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/08/across-empire-2-second-day-only-road-no.html
3) Across the Empire (3): Des Moines, Omaha e o caminho dos pioneiros...: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-3-des-moines-omaha-e-o.html
4) Across the Empire (4): de North Platte, Nebraska, a Denver, Colorado: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-4-de-north-platte.html
5) Across the Empire (5): em Denver, num jardim botânico de vidro (Chihuly): http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-5-em-denver-num-jardim.html).
7) Across the Empire (7): de Denver a Cody, leituras no velho Oeste: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-7-leituras-no-velho-oeste.html
8) Across the Empire (8): tinha um Yellowstone no caminho: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-8-tinha-um-yellowstone-no.html
9) Across the Empire (9): de Twin Falls a Portland, pelo Oregon Trail: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-9-de-twin-falls-portland.html
10) Across the Empire (10): em Portland, buscando cultura: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-10-em-portland-buscando.html
11) Across the Empire (11): de Portland, OR, a Tacoma, WA: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-11-de-portland-or-tacoma.html
12) Across the Empire (12): de novo com Chihuly, desta vez em Seattle: http://diplomatizzando.blogspot.ca/2014/09/across-empire-12-de-novo-com-chihuly.html
13) Across the Empire (13): em Vancouver, fazendo o balance da metade do caminho: http://diplomatizzando.blogspot.ca/2014/09/across-empire-2014-13-em-vancouver.html
14) Across the Empire, 2014 (14): Flanando em Vancouver: http://diplomatizzando.blogspot.ca/2014/09/across-empire-2014-14-flanando-em.html 
15) Across the Empire, 2014 (15): Adieu, Vancouver (mas prometemos voltar): http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-15-adieu-vancouver-mas.html
16) Across the Empire, 2014 (16): De Vancouver a Missoula, Montana: dois países, três estados, quase 1000km: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-16-de-vancouver-missoula.html
17) Across the Empire, 2014 (17): De Missoula, Montana, ao Mount Rushmore, South Dakota, via Little Big Horn: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-2014-17-de-missoula-mt-ao.html 
18) Across the Empire, 2014 (18): De South Dakota a Minnesota, terras de cowboys, gado e milharais: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-18-de-south-dakota.html
19) Across the Empire, 2014 (19): Wisconsin e Michigan, dos vidros ao lago: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-2014-19-wisconsin-e.html
20) Across the Empire, 2014 (20): balanço quantitativo de 20 dias de viagem: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-2014-20-balanco.html
21) Across the Empire, 2014 (21): Detroit, a Paris (falida) do MidWest?:  http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-2014-21-detroit-paris.html
22) Across the Empire, 2014 (22): Detroit, entre a tecnologia e a arte: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-2014-22-detroit-entre.html
23) Across the Empire, 2014 (23): de Detroit a Toronto, só turismo e gastronomia...: http://diplomatizzando.blogspot.ca/2014/09/across-empire-2014-23-de-detroit.html 
24) Across the Empire, 2014 (24): Toronto, cultura e pequenos prazeres: http://diplomatizzando.blogspot.ca/2014/09/across-empire-2014-24-toronto-cultura-e.html
25) Across the Empire, 2014 (25): Back home, where there is work waiting...: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-2014-25-back-home-where.html
26) Across the Empire, 2014 (26): balanço final e avaliação: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-2014-26-balanco-final-e.html 

27) Across the Empire, 2014 (27): listagem consolidada das postagens da viagem nos EUA, coast to coast: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/09/across-empire-2014-27-listagem.html

            No ano de 2013, tínhamos cruzado os EUA, e eu também postei muita coisa no meu blog, a despeito de não ter feito uma relação tão minuciosa quanto a que efetuei em 2014. Em todo caso, aqui está a informação consolidada sobre esta viagem:
2515. “Across the whale in (less than) a month: United States coast to coast”, Hartford, 9-10 Outubro 2013, 27 p. Consolidação da informação postada no blog durante os 26 dias de viagem pelos Estados Unidos, de uma costa a outra, entre os dias 13 de setembro e 9 de outubro, sem as fotos colocadas no blog Diplomatizzando. Roteiro de viagem postado (http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/10/across-whale-in-less-than-month-20.html).

     Como escrevi nessa postagem:
     Quem desejar ler tudo o que escrevi, durante a viagem, vai precisar acessar o instrumento de busca deste blog, usando as palavras-chaves: "Across the whale", e aí deve aparecer todas as postagens sob essa rubrica (1 a 20), como feito aqui: http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/10/across-whale-in-less-than-month-20.html#uds-search-results

O Brasil e o 'perigo amarelo': a crise da imigração japonesa em 1934 - Paulo R. Almeida (1990)


(Review-Article)
O  BRASIL  E  O  "PERIGO  AMARELO"

Paulo Roberto de Almeida 
PhD em Ciências Sociais. Ex-Professor de Sociologia Política na Universidade de Brasília.
Revista Brasileira de Política Internacional
(Rio de Janeiro: ano XXXIII, n. 129-130, 1990/1, pp. 137-141)

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Valdemar Carneiro Leão:
A Crise da Imigração Japonesa no Brasil
(1930 - 1934)  Contornos Diplomáticos
Brasília,   Fundação Alexandre de Gusmão,
Instituto de Pesquisa de Relações Interna-
cionais - IPRI - 1990, 360 pp.
Coleção Relações Internacionais nº 10.
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Não há nada que incomode mais a "boa consciência" dos povos do que o desafio da alteridade(diferença) e, nesta, o contato forçado com etnias e culturas diversas.  O racismo, junto com a estupidez, é provavelmente um dos fenômenos mais bem disseminados na história da humanidade, mais entranhado, talvez, no inconsciente coletivo do que a própria religião e muitos hábitos ancestrais.
A primeira metade deste século ficou conhecida pela particular perversidade com que a questão racial foi "encaminhada" em diversos países e sociedades.  Os ideólogos da "pureza" racial e do apartheid nada mais faziam, no entanto, do que colocar em prática diversas premissas "culturais" que se foram elaborando a partir dos descobrimentos, tomando impulso no racionalismo "antropológico" do século XVIII para finalmente desembocar nas teorias "científicas" sobre a supremacia ariana no século XX.  Enquanto o debate permaneceu no terreno propriamente acadêmico, ele não chegou a causar grandes tragédias humanas, embora suas consequências, a nível social, possam ter representado pequenas "tragédias" individuais, como nos demonstrou brilhante estudo do naturalista Stephen Jay Gould a este respeito.  
Mais complexa se tornou a questão quando os preconceitos legitimados "cientificamente" foram transpostos para o terreno da ação pública e derivaram em discriminação pura e simples, quando não em massacres e genocídios organizados.  A esse respeito, nenhuma outra sociedade (felizmente) conseguiu até aqui  igualar a barbárie nazista, em que pese o terrível custo humano e social de outras "experiências" de eliminação de "adversários", como o caso dos armênios sob o jugo turco ou de diversas populações asiáticas sob ocupação japonêsa.  Mas, nenhum outro empreendimento humano conseguiu ser tão cruelmente eficaz quanto a máquina burocrática da "solução final" posta em prática contra judeus, ciganos, homossexuais e outras minorias, para não falar da escravização forçada de populações eslavas inteiras.
A ideologia racista hitlerista, porém, à diferença do holocausto hélas conhecido tardiamente,  não era particularmente chocante no contexto dos anos 20 e 30, quando a tese da "inferioridade inata" de algumas "raças" parecia estar empiricamente justificada, pelo menos se se considera o contexto colonialista e eurocêntrico em que o debate era conduzido.  Ser racista não era, por assim dizer, a suprema imoralidade, sobretudo numa época de "darwinismo" social triunfante.
A percepção de uma "ameaça iminente", representada por "povos dominantes", era tanto mais realista quanto o "outro" discrepava da aparente uniformidade e homogeneidade da dominação cultural e religiosa "européia": o anti-semitismo, especialmente, tinha ampla aceitação nos mais diversos meios sociais.  Abstraindo-se o itinerário da afirmação da idéia sionista desde finais do século passado, o anti-semitismo constitui um capítulo à parte na história das tragédias humanas, ademais de ser uma ferida ainda aberta no imenso altar da imbecilidade social.
Ao lado dele, e quase que num movimento paralelo à expansão japonesa no Extremo Oriente, teve grande voga naquela época a noção de "perigo amarelo", refletindo a consciência da fragilidade européia em face das "hordas ululantes" de milhões de asiáticos querendo se projetar sobre um cenário internacional até então dominado por um punhado de nações industrializadas.  A ascenção do Japão imperial, com seu expansionismo guerreiro, também muito contribuiu para a difusão da noção de peril jaune.
A angst existêncial sobre o "perigo amarelo" também se refletiu entre nós, no decorrer da década de 30, quando a sociedade brasileira, mobilizada social e ideologicamente pelo grande debate político levado a cabo pela Assembléia Nacional Constituinte de 1933-34, tratou da questão da imigração estrangeira para o Brasil.  Com efeito, o processo de reelaboração constitucional conduzido no quadro da jovem República "liberal" deu um inusitado destaque ao "problema japonês" no Brasil, ao colocar em debate a questão dos limites ou impedimentos à imigração de determinadas etnias ou "raças".
Desde o início dos trabalhos, foram apresentadas emendas tendentes a restringir ou proibir a imigração africana e asiática, e um Deputado chegou mesmo a propor que apenas fosse permitida a imigração de "elementos da raça branca".  O objetivo aqui, mais do que proibir a entrada de africanos - que de toda forma já não viriam mais em bases voluntárias e muito menos como escravos -, era claramente o de impedir a entrada de povos asiáticos, ou seja o elemento japonês, considerado "de mentalidade estranha, de língua diversa, religião diferente e positivamente inassimilável". 
O debate na Constituinte não deixa de ser "instrutivo", quando julgado pelos argumentos avançados.  O principal proponente da proibição, recusando a pecha de racista, afirmava candidamente: "... se já prestamos um tão grande serviço à humanidade na mestiçagem do preto, é o bastante. Não nos peçam outras coisas... (...) A do amarelo, a outrem deve competir". O problema era também colocado em termos de "defesa nacional", de "segurança da pátria", ou mesmo de vida ou morte do Brasil: "Se não se acautelar... o Brasil dentro em pouco será uma possessão japonesa. (…) Aqui será o Império do Sol Poente... (…) O expansionismo japonês, aquilo que Mussolini chamou o “imperialismo dinâmico do Japão”, segue uma ordem invariável: infiltração, esfera de influência, absorção, ou se quiserem, imigração, corealização (sic), japonização (…).  Nós estamos no segundo período - esfera de influência".  Não faltavam também os que viam no "número enorme de psicopatas estrangeiros" nos manicômios nacionais - alguns deles asiáticos, descritos como "esquisóides" -  mais uma prova "irrefutável" da indesejabilidade da imigração indiscriminada para o Brasil.
Mas, antes mesmo da Constituinte, a questão racial já se tinha manifestado nas tribunas da Câmara e na própria sociedade, desde princípios dos anos 20.  Ao apresentar, em 1923, projeto de lei restritivo   sobre a questão,  e que tinha recolhido expressivo apoio na imprensa e na opinião pública  - inclusíve do respeitado sociólogo e cientista político Oliveira Vianna -, um Deputado expunha assim o lado "estético" do problema: "Além das razões de ordem étnica, moral, política e social, e talvez mesmo econômica que nos levam a repelir in limine a entrada do amarelo e do preto, (…) outra porventura existe, a ser considerada, que é o ponto de vista estético: a nossa concepção helênica de beleza jamais se harmonizaria com os tipos provindos de uma semelhante fusão racial".
Esses e muitos outros argumentos "edificantes", se se pode dizer, estão obviamente compilados na magnífica monografia histórica de Valdemar Carneiro Leão, que resenhamos aqui, cujo objetivo principal, contudo, não é  o estudo do "perigo amarelo" - strictu senso - no Brasil do primeiro Governo Vargas. O "perigo amarelo" está, bem entendido, subjacente a esse trabalho de pesquisa, que reconstitui com mão de mestre uma importante questão hoje relativamente descurada em nossa historiografia política: a do contexto internacional da política imigratória nacional. Trata-se, mais propriamente, de uma brilhante análise do comportamento do Itamaraty em face desse debate "interno", na Constituinte, sobre a "questão imigratória japonêsa", que logo ganhou inevitáveis contornos políticos ao precipitar uma crise diplomática nas relações do Brasil com o Império do Japão.
O volume agora publicado pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, da Fundação Alexandre de Gusmão, foi originalmente apresentado como "tese" de conclusão ao Curso de Altos Estudos, do Itamaraty, em que se distinguiu o Autor, diplomata de carreira (atualmente Ministro de nossa Embaixada em Londres) e graduado em Relações Internacionais pelo "Institut d'Etudes Politiques" da Universidade de Paris.  Formalmente, o trabalho se compõe de 180 páginas de denso texto analítico e interpretativo, seguidas de igual volume de anexos informativos, contendo alguns documentos diplomáticos e diversos discursos e intervenções realizadas na Assembléia Nacional Constituinte entre janeiro e maio de 1934.
O texto, em si, é dividido em cinco capítulos, tratando, respectivamente, das origens e desenvolvimento da imigração japonesa no Brasil, do cenário político no início dos anos 30, do quadro geral das relações Brasil-Japão, inclusive no que concerne os trabalhos da Constituinte, os contornos diplomáticos da crise e, finalmente, a análise da ação do Itamaraty, seguidos das conclusões.  A extensa bibliografia utilizada confirma que o Autor apoiou seu relato nas melhores fontes primárias disponíveis, com destaque para os expedientes diplomáticos do Arquivo Histórico do Itamaraty e para os Anais da Assembléia Nacional Constituinte, ademais de fazer apelo a escritos contemporâneos e jornais da época e a número considerável de estudos secundários (inclusive dos principais protagonistas envolvidos no debate imigratório do processo constituinte).
Estruturalmente, os temas mais importantes do estudo estão tratados no subitem sobre os trabalhos da Constituinte do terceiro capítulo, no capítulo sobre os contornos diplomáticos da crise (com destaque para a atuação do Itamaraty) e na parte final, que analisa a ação da Chancelaria brasileira nas diversas etapas do processo de elaboração constitucional, inclusive no que respeita as motivações e forma de atuação do Ministério das Relações Exteriores. O Autor fez extenso uso das comunicações diplomáticas trocadas entre Rio de Janeiro e Tóquio durante a fase aguda da "crise", tanto a nível interno da Chancelaria brasileira, como entre os dois serviços diplomáticos nacionais.
O estardalhaço provocado pelas primeiras emendas apresentadas ("É proibida a imigração africana e só consentida a asiática na proporção de 5% anualmente sobre a totalidade dos imigrantes dessa procedência...";  "Só será permitida a imigração de elementos da raça branca...") foi contornado no plano diplomático, apesar da repercussão e da polêmica na imprensa e de uma atuação nem sempre comedida por parte do Gaimusho, o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Japão.  O veto (discreto, mas eficaz) do Itamaraty a qualquer distinção entre "raças" ou nacionalidades nas emendas restritivas da imigração apresentadas na Assembléia produziu, é bem verdade, efeitos não vislumbrados de início: descobriu-se que, ainda assim, a cota de 2% do contingente já entrado no País atingia mais os candidatos japoneses do que os europeus, com o que ficaram satisfeitos os inimigos do "perigo amarelo".  Para o Itamaraty, a questão de princípio tinha sido resolvida:  preservava-se o ingresso de imigrantes, sem qualquer discriminação, mas restringia-se o número anual em função de uma norma geral de caráter nacionalista.  Restava, é verdade, aplacar os maus humores das autoridades nipônicas, interessadas em preservar um acesso irrestrito em favor de seus nacionais.  O que foi feito nas duas capitais, não sem dificuldades.
Para o Autor, "a forma de atuação do Itamaraty ostentava perfeita coerência entre a vertente interna [iniciativas discretas junto a políticos próximos do Governo] (…) e sua complementação externa [contato permanente com a Chancelaria japonesa], sem a qual poderiam ficar a descoberto suas delicadas manobras de bastidores" (p. 162). 
Releve-se apenas, como a confirmar uma velha mania do Itamaraty, a opção preferencial pelas gestões silenciosas, com a imprensa mantida à distância, e uma aversão declarada pela "diplomacia de praça pública". Como diz o autor: a ação do Itamaraty "foi de tal modo cautelosa e de tal maneira privilegiou os canais informais que aparentemente passou indocumentada.  O corolário dessa discrição observada no plano oficial traduziu-se num comportamento igualmente silencioso perante a imprensa brasileira, à qual o Itamaraty se absteve, ao longo da crise, de fornecer informações sobre o trabalho que realizava" (p. 175).  Tal parece ser o espírito "eterno" da Casa de Rio Branco: uma intensa movimentação diplomática, dispensando as luzes dos meios de comunicação e passando pelos canais os mais discretos possíveis.
Constate-se, em todo caso, que nem sempre a opinião pública mostra-se disposta a acompanhar tal linha de atuação: no caso do debate sobre a imigração japonesa, os agitadores do "perigo amarelo" aparentemente conseguiram colocar a Nação contra o Itamaraty.  Este é provavelmente o preço a pagar por um método de trabalho (contatos internos e démarches externas) absolutamente escrupuloso e respeitador das normas geralmente aceitas entre "cavalheiros".  O certo é que, durante o que ficou caracterizado como a "crise da imigração japonesa", provavelmente mais do que em qualquer outra época de sua já longa história institucional,  o Itamaraty se viu compelido a atuar de forma tão intensa no plano político interno. 
Se a ação do Itamaraty não logrou sucesso total foi devido a duas razões principais: por um lado, o momento nacional era de clara afirmação nacionalista e de discriminação racial (um conceito atual para explicar os "ares da época") ;  por outro, o comportamento internacional do Japão, com sua agressiva política expansionista na região asiática, dificultou sobremaneira o rechaço da norma constitucional restritiva que finalmente se adotou.  Até onde pode, pelo menos, o Itamaraty conseguiu trazer a retórica parlamentar de volta ao terreno das realidades internacionais, setor onde a suscetibilidade das nações conta tanto quanto o poder econômico e político medido em termos objetivos.
O mérito principal do trabalho de Valdemar Carneiro Leão não é, contudo, o de ter mostrado que, quando preciso, o Itamaraty também é capaz de "atirar para dentro",  se ele me permite tal expressão.  Devemos lhe ser gratos, antes de mais nada, pela apreciável corvéia de ter retirado do pó dos arquivos itamaratianos uma história exemplar de "dupla ação" diplomática, no bom sentido: sincronização perfeita entre negociação externa e atuação interna. Seu texto é ainda precioso do ponto de vista metodológico: a monografia aqui resenhada condensa um trabalho original de pesquisa, constituindo-se propriamente num paradigma do gênero "história diplomática", vertente historiográfica pouco cultivada entre nós.  Como tal, ela mereceria uma divulgação mais ampla do que a habitualmente permitida pelos canais (sempre discretos, lembre-se) do Ministério das Relações Exteriores.
Louve-se, em todo caso, a iniciativa do IPRI de divulgar regularmente as melhores teses apresentadas no quadro do Curso de Altos Estudos do Itamaraty.  A Coleção Relações Internacionais já tem dez títulos publicados, mas apenas a metade desse número compõe-se de trabalhos defendidos no CAE, sendo os demais antologias de textos resultantes de seminários de estudos e outros temas de atualidade.
Curiosamente, o trabalho de Valdemar Carneiro Leão é, de todos os textos publicados (e provavelmente das teses apresentadas no CAE), o que mais longe recua no tempo, buscando no passado os fundamentos de nossa atuação diplomática contemporânea. Terminada sua viagem histórica e de "volta para o futuro", Carneiro Leão nos demonstra, de forma oportuna, a permanência das instituições e a constância dos homens: a do Itamaraty, que pouco mudou em seu estilo de atuação, e a dos constituintes, que continuam a ver no estrangeiro uma fonte potencial de ameaça à soberania nacional.
Na verdade, descontada a tão temida, mas inexistente, ameaça de dominação econômica nipônica, o único "perigo amarelo" em que incorremos nos dias de hoje é o de ver os papéis dos arquivos oficiais amarelecerem nas estantes sem que o grande público possa ter acesso a partes substanciais da memória política da Nação.  O resto é conversa de "botequim" (leia-se gabinete) diplomático.

[Montevidéu,  05.09.90]
[Relação de Trabalhos nº 196]
[Trabalhos Publicados nº  060]