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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sábado, 26 de março de 2016

O Mercosul faz 25 anos: uma biografia nao-autorizada - Paulo Roberto de Almeida

Cada um comemora como sabe ou com o que tem. Suponho que entre os cinco países oficialmente membros, e na sua sede administrativa grandes fogos de artifício estejam sendo lançados para comemorar devidamente o primeiro quarto de século do Mercosul.
Como eu, de certa forma, assisti ao seu nascimento, ajudei a trocar suas fraldas e até dei uma ou outra mamadeira integracionista -- negociando o Protocolo de Brasília sobre Solução de Controvérsias, por exemplo -- penso que tenho algo a dizer, e por isso perpetrei essa biografia não-autorizada sobre o Mercosul.
Não autorizada porque não sabia a quem me dirigir para falar com o Mercosul.. Se eu quisesse telefonar para a pessoa responsável, confesso que não saberia dizer quem responde pelo estado atual do bloco (ou seu não-estado atual). Por isso, segue esse texto com impressões puramente subjetivas sobre sua formação e desenvolvimento, sua situação atual, até suas (ou falta de?) perspectivas futuras.
Ainda não nasceu o político que vai acabar com o Mercosul, nem acho que deveria. Ele vai continuar se arrastando no futuro próximo e não sei por quantas décadas mais...
Meus parabéns, mesmo assim.
Não vou estar nas festividades para soprar velinhas, mas desejo felicidades e um brilhante futuro (se algum...).
Paulo Roberto de Almeida 


O Mercosul aos 25 anos: minibiografia não autorizada

Paulo Roberto de Almeida

O Mercosul, Mercado Comum do Sul foi criado em 26 de março de 1991, sob a forma de um tratado quadrilateral, assinado em Assunção (TA), como desdobramento do processo de integração iniciado alguns anos antes entre Brasil e Argentina, para constituir-se, com a adjunção do Paraguai e do Uruguai, como um bloco comercial coeso, com pretensões a adotar o formato de um mercado comum. Na visão dos “pais fundadores”, o processo deveria evoluir para formas mais avançadas de organização econômica, política e social, até alcançar, na parte meridional da América do Sul – e teoricamente também, a termo, no conjunto da região – um status talvez equivalente ao adquirido, paulatinamente, pela União Europeia, qual seja, um espaço econômico plenamente integrado, com total liberdade para o deslocamento de fatores produtivos e uma razoável coordenação econômica (o que, no caso europeu, assumiu a forma de uma união política e econômica, com uma moeda comum para muitos dos seus membros).
A consolidação da integração comercial no Cone Sul deveria ser seguida, de forma subsequente ou simultaneamente, pela unificação ou harmonização dos regimes sociais e das peculiaridades nacionais e regionais, para, finalmente, alcançar a desejada concertação política e diplomática (como vinha ocorrendo na Europa ocidental desde  alguns anos), o que implicaria, inclusive ou potencialmente, lograr uma expressão comum no plano externo: defesa e segurança, política externa, negociações multilaterais e, a termo, uma possível moeda comum. Passados 25 anos desde a formatação inicial desses objetivos ambiciosos, qual é a situação real do Mercosul?
Não se pode dizer que o Mercosul conseguiu realizar sequer a metade, ou pelo menos um terço, do que está estipulado no artigo primeiro do TA: um mercado comum, ou seja, o livre comércio entre os membros plenamente realizado, com todas as barreiras tarifárias e não-tarifárias eliminadas reciprocamente, com a definição e implementação de uma política comercial comum (isto é, uma Tarifa Externa Comum totalmente operacional), e a anunciada coordenação das políticas macroeconômicas e setoriais e a harmonização das demais medidas definidoras de um verdadeiro mercado comum. Qual balanço pode ser feito do itinerário do Mercosul no primeiro quarto de século de sua existência? Poderá ele alcançar, como a atual UE, seu primeiro meio século, em 2041?
Mesmo considerando apenas a fase inicial de integração econômica – qual seja, a constituição de uma zona de livre comércio, seguida da definição técnica de uma tarifa externa comum, o que redundaria numa união aduaneira – e seu desdobramento lógico na criação de um mercado comum (aliás, determinado “constitucionalmente”), pode-se dizer que tais objetivos – que já eram os do processo bilateral de cooperação e de integração, iniciado em 1986 por Brasil e Argentina – não foram logrados. Com efeito, deve-se reconhecer que, passados 25 anos de percalços integracionistas, o Mercosul não conseguiu cumprir as metas estabelecidas no TA, nem parece perto de realizá-las no futuro previsível. Ao longo dessas duas décadas e meia, mas bem mais enfaticamente no curso dos últimos treze anos, o Mercosul parece ter se afastado de seus objetivos comercialistas e econômicos iniciais, aliás consagrados no tratado constitutivo, para converter-se num agrupamento político dotado de interesses muito diversificados, mas todos eles com escassa relevância no plano regional ou no contexto internacional.
Teria falhado, então, o Mercosul? Em termos: as falhas e insuficiências do processo podem ser debitadas inteiramente aos países membros, que parecem ter abandonado – ao menos os seus dois membros economicamente relevantes, Brasil e Argentina – o objetivo fixado no TA, de um mercado comum regional, para contentar-se com a liberalização parcial do comércio recíproco e fixar-se no desenvolvimento da cooperação política e social, sem um conteúdo econômico mais afirmado. Tampouco se poderia dizer que o bloco foi afetado por um suposto “déficit democrático”, ou por deficiências institucionais em seu arcabouço jurídico, sendo, ao contrário, bem mais evidentes as inadimplências nacionais em implementar decisões e resoluções conjuntas, bem como a divergência de intenções políticas entre os países membros quanto aos objetivos mediatos e imediatos a serem perseguidos. A despeito da retórica presidencial sempre afirmada quanto à unidade de vistas entre os membros, não se pode dizer, de fato, que os objetivos nacionais quanto à utilidade ou funcionalidade do Mercosul para cada uma das economias e sociedades sejam realmente convergentes.
As dificuldades para a consolidação ou avanço do Mercosul podem ser creditadas a dois fatores de amplo escopo: de um lado, instabilidades conjunturais no plano econômico (em diferentes formatos segundo os países), com planos parciais ou insuficientes de ajustes; de outro, o recuo conceitual dos projetos de construção de um espaço econômico integrado na região, com abandono relativo da liberalização comercial recíproca e ênfase subsequente nos aspectos puramente políticos ou sociais da “integração”.  Quaisquer que sejam os pesos relativos desses dois conjuntos de fatores e seus efeitos concretos sobre as intenções proclamadas e as ações efetivas dos países membros do Mercosul – e os impactos variam muito em função dos países envolvidos – cabe registrar o abandono (não reconhecido pelos membros) do projeto original de se caminhar para instituições orgânicas mais consentâneas com o formato de um mercado comum, em favor de instâncias seletivas de cooperação política setorial que vêm moldando um novo perfil para o Mercosul, até seu envolvimento num conjunto de áreas não delineadas no mandato econômico-comercial do tratado fundacional.

Vejamos quais foram suas principais etapas, começando pela formação e o desenvolvimento histórico inicial do bloco, seguida do itinerário da liberalização comercial e da integração econômica, assim como das questões institucionais e de funcionamento interno do bloco, em especial seu processo decisório, terminando pelas perspectivas para o seu desenvolvimento futuro, o que pode até implicar, teoricamente, uma revisão dos conceitos fundamentais do Mercosul e a adequação de sua estrutura institucional a novos objetivos. O processo de constituição do bloco começou pela aproximação das duas maiores economias da região: Argentina e Brasil deram a partida, conduziram politicamente sua formatação jurídica e continuam determinando, em todas as circunstâncias, os traços fundamentais do processo de integração, seja no seu formato institucional, na sua estrutura operacional e no conteúdo econômico imprimido ao bloco ao longo de suas diversas fases. Os sucessos e os percalços do bloco derivam, para o bem ou para o mal, das atitudes e decisões tomadas pelos dois países, coordenadamente ou em total desarmonia entre si.
Depois de uma fase bilateral, durante a qual foram definidos os objetivos essenciais do processo – primeiro a cooperação e a complementação econômica, no Programa de Integração e Cooperação (1986), depois o projeto de um mercado comum bilateral, pelo Tratado de Integração (1988) – passou-se à etapa quadrilateral, quando se decidiu estender o mercado comum aos dois outros vizinhos, sendo então adotado o Tratado de Assunção para a criação de um mercado comum (1991). A historiografia corrente sobre o Mercosul não reconhece, porém, a mudança fundamental que representou a passagem do modelo de complementaridade gradualista encarnado nos dois primeiros instrumentos (e seus diversos protocolos setoriais) para um modelo econômico liberal e livre-cambista representado pelo TA. Entre as duas fases, pouca atenção se dá à Ata de Buenos Aires (julho de 1990) que modificou substancialmente a metodologia e a própria cronologia da constituição de um mercado comum bilateral Brasil-Argentina.
A Ata representou a passagem de um esquema dirigista e industrializante, como seguido até então, para outro de cunho mais comercialista e liberalizante, mediante a criação calendarizada de um mercado comum (mais exatamente em 01/01/1995), além de estabelecer mecanismos automáticos de desgravação comercial bilateral. A rebaixa tarifária foi feita a partir de uma redução inicial da metade das alíquotas normalmente aplicadas e à razão de 7% a cada semestre, até chegar a 100% de preferência – ou “tarifa zero” – ao final do período de transição, em 31 de dezembro de 1994, quando também deveriam estar definidas uma Tarifa Externa Comum (TEC) e as instituições permanentes do Mercosul. O TA, para ser mais preciso, é praticamente uma cópia ipsis litteris – com os ajustes quadrilaterais que se impunham – da Ata de Buenos Aires, como é possível de ser facilmente comprovado, mediante uma comparação visual de ambos os textos. O relevante a ser destacado é a mudança de filosofia entre o Mercosul bilateral pré-1990 e o Mercosul quadrilateral pós-1991, ainda que, para todos os efeitos práticos, o aprofundamento do processo de integração regional não tenha caminhado em direção dos objetivos fixados nesses dois instrumentos: um mercado comum com liberalização comercial plena e coordenação das políticas macroeconômicas e setoriais.
Quaisquer que tenham sido as imperfeições da fase de transição no acabamento das tarefas indispensáveis ao atendimento dos objetivos do artigo 1o. do TA, esta foi marcada pelo otimismo, tanto do lado comercial, quanto do lado político. Foi nesse clima de quase euforia que se chegou a Ouro Preto, em dezembro de 1994, não para a assinatura de um novo tratado, que poderia ter sido o da criação efetiva de um mercado comum – com todos os requisitos do gênero – ou pelo menos o de uma união aduaneira acabada, mas de um simples protocolo, que confirmou os mecanismos e instituições existentes, com alguns poucos acréscimos (como o de uma Comissão de Comércio) que não modificaram fundamentalmente a natureza do processo de integração no Mercosul.
A segunda metade dos anos 1990 ainda viu o crescimento do comércio do bloco. Mas este já estava imerso em graves desequilíbrios conjunturais, embora de natureza diversa segundo os países. A Argentina tinha encontrado a estabilização monetária por meio de um plano de conversibilidade – na verdade, a rigidez absoluta na paridade fixa com o dólar – mas não reencontrou o caminho da competitividade externa, acumulando déficits que foram sendo artificialmente reprimidos pelo recrudescimento do protecionismo ou cobertos pelo recurso excessivo a empréstimos externos, até o desenlace fatal, em 2001. Desde 1996, a Argentina introduzia medidas restritivas das importações, inclusive no comércio  bilateral com o Brasil, que era, aliás, o único país que lhe facultava superávits substantivos, geralmente feitos de comércio administrado (petróleo, trigo e automóveis). Mas o Brasil também acusava desequilíbrios crescentes nas transações correntes, contornados por tentativas de controle do financiamento externo às importações ou por igual apelo a capitais externos.
A crise final no regime econômico argentino, no entanto, só ocorreu mais de um ano depois que o Brasil enfrentou o seu próprio inferno cambial, acumulado desde a crise mexicana de 1994-95, as turbulências asiáticas de 1997, situação exacerbada pela moratória russa de julho de 1998, obrigando-o a concluir um rápido programa de socorro preventivo com o FMI, em outubro desse ano, por um valor superior a US$ 40 bilhões. O instável arranjo não suportou, entretanto, novas fugas de capitais e a ausência de ajustes internos, vindo a termo em janeiro de 1999, quando o sistema de banda cambial saltou pelos ares: a cotação do dólar disparou e o Brasil se viu obrigado a adotar um regime de flutuação cambial, complementado pouco depois por um sistema de metas de inflação. Na Argentina, o desenlace fatal ocorreu em dezembro de 2001, quando seu governo impõe unilateralmente ao Brasil as novas regras pelas quais o país platino pretendia conter o comércio bilateral. As exceções nacionais e as divergências em relação à TEC se multiplicaram de todos os lados, com efeitos imediatos, sobretudo sobre o pequeno Uruguai. O comércio regional despencou, representando, em 2002, praticamente a metade do que ele tinha sido até 1999. Mesmo se fluxos e valores foram sendo paulatinamente recompostos e elevados nos anos seguintes, diversas outras restrições operacionais e divergências normativas continuaram a vigorar, afastando ainda mais o Mercosul dos objetivos de convergência macroeconômica e de unificação dos mercados estipulados no artigo fundamental do TA.
O fato é que, para todos os efeitos práticos, a partir de 2003, o Mercosul jamais voltou a ser o que era nos primeiros oito ou nove anos de sua existência quadrilateral. Mesmo se a estagnação intermediária registrada no plano comercial foi sendo superada aos poucos, em função da retomada do crescimento na Argentina e nos demais países, a crise de 2001-2002 deixou marcas profundas no estilo de governança econômica em vigor no país platino, levando a retrocessos institucionais e ao enfraquecimento dos compromissos anteriormente assumidos com a liberalização comercial e a abertura econômica. Para tanto contribuíram a personalidade e as políticas adotadas pelo presidente argentino Nestor Kirchner (2003-2008), tanto quanto as novas orientações de política externa do governo brasileiro do presidente Lula (2003-2010), menos comprometidos com as metas econômicas e comerciais do Mercosul, e bem mais propenso a aceitar novos desvios para objetivos políticos e sociais supostamente mais relevantes do ponto de vista de sua política externa regional.
Os grandes responsáveis pelas novas orientações da política externa regional do Brasil, em especial no que se refere ao Mercosul e às tentativas de sua ampliação ou extensão ao espaço regional sul-americano, foram o assessor especial do presidente Lula para assuntos internacionais – um militante que durante muitos anos exerceu o cargo de secretário de relações internacionais do Partido dos Trabalhadores (PT) – e o secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores no período 2003-2009, diplomata de carreira. Sobretudo, este último, intimamente envolvido com a integração bilateral Brasil-Argentina nos anos 1980 e opositor declarado do Mercosul em sua versão liberal dos anos 1990, empenhou-se desde o início em reverter o bloco às características que este possuía na fase mercantilista e dirigista anterior à Ata de Buenos Aires e ao TA.
O que ficou evidente, desde o início dos governos Lula e Kirchner, foi, de um lado, a orientação protecionista e defensiva das políticas econômica e comercial deste último, inclusive em detrimento da integração regional; de outro, a leniência e a tolerância demonstrados por Lula, e por seus principais assessores, a pretexto de preservação do bloco e da concessão de “espaços de liberdade” para que a Argentina pudesse conduzir uma nunca completada “reindustrialização”. De fato, o que ocorreu é que, em lugar de reforçar o bloco em suas dimensões econômica e comercial, as posturas combinadas da Argentina e do Brasil terminaram por fragilizar o bloco, no que se refere a seus objetivos essenciais. No lugar de comércio ou abertura econômica, novas dimensões foram sendo impulsionadas, sobretudo nos aspectos políticos e sociais. Pelo resto da década, não ocorreu qualquer outro progresso institucional, a não ser a adoção, quinze anos depois do prazo normal, do Código Aduaneiro do Mercosul, que deveria estar em funcionamento desde o dia 1o de janeiro de 1995.

Estes são, basicamente, os mais importantes desenvolvimentos no itinerário histórico do Mercosul. Mas caberia também referir-se, ainda que brevemente, à inserção do bloco no contexto sul-americano e aos processos de negociações regionais, bilaterais, hemisféricas ou multilaterais. Durante a primeira fase, o Mercosul tentou acordos com os demais membros da Associação Latino-Americana de Integração, sem grande sucesso, porém: uma proposta de se constituir uma Área de Livre Comércio das Américas (Alcsa), feita pelo Brasil em 1994, em resposta ao projeto americano de uma Área de Livre Comércio das Américas, não encontrou respaldo nos demais países e, pelo resto da década, o Mercosul negociou relutantemente a criação da área hemisférica, exibindo uma atitude que era em geral de tergiversação, com táticas dilatórias. No contexto regional, apenas dois países se associaram ao Mercosul, o Chile e a Bolívia, ambos em 1996, embora num formato de liberalização comercial parcial.
A partir de 2003, acordos parciais, no âmbito da Aladi, dotados de muitas exceções, foram feitos com os demais vizinhos andinos, embora com efeitos marginais sobre os fluxos de comércio. No intervalo, Brasil e Argentina se empenhavam, com a ajuda entusiasta da Venezuela de Chávez, em sabotar as negociações da Alca, o que foi conseguido na Cúpula das Américas de 2005, quando o processo foi implodido, como aliás admitido orgulhosamente pelo presidente e pelo chanceler do Brasil. Divergências entre Brasil e Argentina dificultaram, porém, as posições que deveriam ser comuns nas negociações multilaterais da Rodada Doha da OMC e nas bi-regionais com a União Europeia. Até a atualidade, nenhum desses processos alcançou conclusões satisfatórias.
A única mudança institucional significativa ocorrida desde então foi a “plena incorporação” da Venezuela ao bloco – aliás ilegal, nos próprios termos do TA, e incompleta, pois que carente de qualquer adesão formal do país bolivariano aos principais instrumentos normativos do Mercosul, notadamente a Tarifa Externa Comum e outras regras básicas de política comercial –, depois de um longo e sinuoso processo de negociações, desde 2005, sempre carentes de qualquer resultado prático. Essa incorporação se deu no bojo da mais grave crise política já ocorrida no Mercosul, que foi a “suspensão” do Paraguai das reuniões do bloco, seguida imediatamente da “admissão plena” da Venezuela, ambas realizadas na cúpula de Mendoza, em junho de 2012, medidas tomadas na ausência e sem qualquer participação do próprio Paraguai. Outra questão relevante no campo político-jurídico tem a ver com o sistema de solução de controvérsias, ainda excessivamente politizado para servir efetivamente de anteparo jurídico aos muitos descumprimentos que ocorrem pelas práticas dos próprios Estados.
Os perigos para o Mercosul não estão exatamente na sua reversão ou na extinção de fato – já que de direito não existem chances disso ocorrer, pois os mesmos políticos que se recusam a fazer reformas, tampouco ousam reformar o funcionamento do bloco. A perspectiva que se oferece se situa na sua estagnação, ou seja, em lugar de perseguir os objetivos ainda não cumpridos – e hoje, talvez, considerados “utópicos” – e de se esforçar por elevar padrões de coordenação de políticas – senão macroeconômicas, pelo menos setoriais, ou aquelas áreas de política fiscal, tributária e creditícia, por exemplo, que mais afetam as políticas industriais –, os países acabam se conformando com a zona de livre comércio incompleta que existe e com a contrafação de união aduaneira em vigor. A reconstrução e a consolidação do Mercosul, para ser efetiva, exigiria medidas corajosas, apontando na direção dos objetivos originais, hoje totalmente negligenciados. Não é seguro que os dirigentes dos países membros estejam dispostos a avançar por essa via; um novo Mercosul talvez exija novas lideranças e um novo quadro mental.
O quadro apresenta um resumo do itinerário do Mercosul em suas diferentes fases, tanto no plano econômico quanto no político e no das relações externas.

Mercosul: as diferentes fases

1986-1989
1990-1994
1995-1999
1999-2002
2003-2016
Traços dominantes da fase
Etapa inicial; construção gradual
Ata de Buenos Aires; Tratado de Assunção
Protocolo de Ouro Preto: mesmas metas
Crise de confiança
Recuo geral
Fins políticos; sem ênfase comercial
Ênfase geral do período
Protocolos setoriais bilaterais (Br.-Arg.)
Zona de Livre Comércio Automática
Completar a União Aduaneira (alinhar TEC)
Superar impacto das crises econômicas
Instituições políticas e sociais; pura retórica
Relações comerciais
Administrado e protocolos setoriais flexíveis
Crescimento para dentro e expansão para fora
Crescimento lento; desequilíbrios e resistências
Diminuição geral dos fluxos de comércio
Aumento de restrições internas (ilegais)
Relações políticas
Equilíbrio absoluto entre Br.-Arg.; bom entendimento
Instituições provisórias interestatais; ativismo
Estabilidade das instâncias diretivas; burocracias
Crise de confiança Br.-Arg.: câmbio desalinhado
Dificuldades nas relações Brasil-Arg.: tolerância Br.
Moldura jurídica e
instituições
Só bilateral: Tratado de Integração
Provisórias; perfil interestatal
Apresentação à OMC: lacunas na TEC
Maquiagem via grupos de trabalho
Adesão a foros sociais; criação do Parlamento
Problemas e realizações
Construção de confiança mútua bilateral
Definição da Tarifa Externa Comum
Associações ao bloco: Chile e Bolívia
Evitou-se o desmanche; arranjos ad hoc
Acordos regionais; Venezuela
Crises e conflitos internos
Baixo grau de liberalização comercial; dirigismo
Dificuldades na convergência de políticas
Aumento dos conflitos comerciais; controvérsias
Necessidade de novo instrumento jurídico
Cumprimento falho das normas: crise do Paraguai
Perspectivas para cada etapa
Superar as resistências setoriais; demandas por proteção
Definir perfil institucional: supranacional ou interestatal (papel Brasil)
Consolidar a UA para poder avançar ao mercado comum
Preservar o bloco e a confiança econômica externa
Retomar os fundamentos do bloco: comércio, investimentos
Concepção e elaboração: Paulo Roberto de Almeida (2016)


Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 26 de março de 2016

sexta-feira, 25 de março de 2016

A destruicao das instituicoes pelo comandante em chefe do partido totalitario - Marcelo Trindade


Lula e as instituições do Brasil
Marcelo Trindade*
O Estado de S. Paulo, 23 Março 2016 | 03h 00

Para entender a gravidade da crise institucional em que o Brasil está metido, e reagir adequadamente, é fundamental a leitura do depoimento de Luiz Inácio Lula da Silva à Polícia Federal (PF) em 4 de março. Nele não aparece o Lula grampeado na intimidade, preconceituoso, mal-educado e flertando com a prevaricação a cada telefonema. Interrogado com toda a cordialidade por um delegado da PF, na presença de seus advogados e até de um deputado federal de seu partido, foi muito mais cuidadoso. O resultado, entretanto, é igualmente assustador.
O depoimento está coalhado das habituais bravatas do ex-presidente, algumas de antologia: foi o presidente que mais viajou, mais que todos os outros somados, desde a proclamação da República até a sua chegada à Presidência; “nunca antes da História deste país” alguém abriu tanto o Palácio do Planalto para debates, e não só com empresários: “Com favelado, debate com sem-teto, debate com prostituta, com LGBT, até cachorro, cão-guia, eu fiz reunião lá dentro, pra falar com os donos, não com os cachorros.”
Lula pode, é claro, ver-se como o mais importante presidente da História. E pouco importa se é por vaidade ou ignorância que o ex-presidente menospreza todos os seus antecessores, embora cite Fernando Henrique com frequência freudiana. O problema está em como suas palavras se combinam com suas ações. Lula não vê valor em nada que o tenha antecedido e por isso desvaloriza as instituições construídas ao longo de nossa História.
Para Lula, foi ele que fortaleceu o Ministério Público, não a autonomia garantida pela Constituição de 1988. Foi ele “o primeiro presidente a tomar atitude e indicar o primeiro da lista” – “ todos eles que eu indiquei, todos”. É daí que vem, para Lula, a força do Ministério Público. Na Polícia Federal, “a mesma coisa”. “Melhorou a vida da Polícia Federal pra cacete no meu governo”, disse ele ao delegado, cobrando a fatura.
Como a força das instituições decorre de sua liderança, elas não podem contrariá-los – eis a base do discurso atual de Lula e do Partido dos Trabalhadores. Ao dizerem-se traídos pelas instituições brasileiras – Poder Judiciário e Ministério Público à frente –, o ex-presidente e seu partido a um só tempo supervalorizam suas contribuições do passado e desmerecem as instituições do presente. Pouco importa que se trate de atitude planejada ou espontânea, que decorra de estratégia política, de arrogância ou de convicção profunda. O risco para as instituições é o mesmo.
Basta que as instituições desconfiem de suas amizades desinteressadas ou investiguem e condenem seus correligionários para que Lula considere que “estamos vivendo um período, desde o mensalão, que a pessoa não tem que ser culpada, ele não será condenado pelo julgamento apenas, ele será condenado pelas manchetes dos jornais. As manchetes dos jornais amedrontam a Polícia Federal, amedrontam o Ministério Público, amedrontam a Suprema Corte, amedrontam todo mundo, todo mundo”.
A negação da realidade prossegue em outras passagens do depoimento: “O Vaccari era um companheiro extraordinário, foi um grande dirigente sindical e foi um grande dirigente do PT. Eu não acredito que o Vaccari tenha acertado percentual com empresa pra receber, não acredito, não acredito”. O mensalão merece a mesma avaliação: “Não tinha prova (...) José Dirceu e outros companheiros estavam condenados mesmo que fossem liberados, estavam condenados”.
As perguntas da Polícia Federal são tratadas com desdém, dada a suposta irrelevância dos montantes envolvidos: “Eu fico até constrangido de você estar me fazendo essas perguntas, porque que interesse alguém tem em saber se uma empresa recebeu 18 mil reais, 17 mil reais? (...) Eu fico constrangido de você me perguntar de pedalinho e de me perguntar de um barco de 3 mil reais”. O ex-presidente lembra-se bem do impeachment de Collor, e do cheque da secretária de PC Farias para comprar o Fiat Elba de dona Rosane. Agora, considera que a bagatela não pode ser tomada como indício de ilícitos maiores. Afinal, ele é o maior de todos os presidentes que o Brasil já teve. Quem o investiga, mesmo integrando instituições basilares da República, é moleque: “Instituições fortes pressupõem pessoas sérias, não pode ter moleque, não pode ter moleque, tem que ter gente séria”.
Como podem esses “moleques” desconfiar dos amigos de fé do ex-presidente? Bumlai “era um cara que era meu amigo. Nunca, nunca o José? Carlos Bumlai conversou de serviço comigo. (...) Ele tinha noção de que quando ia em casa era como amigo”.
Léo Pinheiro? “Sou amigo e gosto do Léo Pinheiro (...) eu disse ao Léo que o prédio era inadequado porque, além de ser pequeno, um tríplex de 215 metros é um triplex Minha Casa, Minha Vida, era pequeno.”
O conteúdo do depoimento à Polícia Federal não é acidental. Está confirmado pelas declarações da presidente, advogando em causa própria ao prometer processar quem tenha autorizado a divulgação dos telefonemas. E também pelo novo ministro da Justiça, ameaçando policiais federais de substituição pelo “cheiro” em caso de vazamentos, questionando “quem é quem no Paraná” e concedendo indulto moral a José Genoíno, como se pudesse expressar percepções pessoais no cargo que ocupa.
Lula e o PT, ao recusarem a autocrítica, recusam-se a aprender com seus próprios erros. Isso seria problema apenas deles, que tempo e eleições curariam. Mas com Lula entronizado ministro, e com o discurso contra as instituições dando o tom das manifestações do governo, cruzou-se a barreira do desrespeito aos fundamentos da República e da democracia. O problema passa, então, a ser de todos nós, e cabe às próprias instituições brasileiras resolvê-lo com urgência, em favor de todos os brasileiros.

*Marcelo Trindade é advogado, professor da PUC-Rio
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O Zika virus entreou no Brasil na Copa das Confederacoes, de 2013 - The Washington Post

A 2013 soccer match could have brought Zika virus to Brazil, researchers say
The Washington Post, Friday March 25, 2016

The Zika virus could have entered Brazil in 2013, two years before it was confirmed here and a year before previously believed, a new study claims. The study examined genetic profiles of seven Brazilian Zika cases.
Scientists said the study presents valuable findings as Brazil's overstretched health service grapples with twin outbreaks of Zika and the birth defect microcephaly. The government has confirmed a link between the two.
"It's very early and limited but valuable information," said Daniel Lucy, an infectious-disease specialist at Georgetown University.
Zika could even have been introduced to Brazil during the 2013 Confederations Cup, a soccer tournament that featured a team from Tahiti - which suffered a Zika epidemic that year.
"We managed to trace the date of introduction between May and September 2013," said Nuno Faria, a researcher at Oxford University and one of the authors of the paper, published Thursday in the journal Science.
The research by scientists from Britain's Oxford University and Brazil's Evandro Chagas Institute is the first to have analyzed the Zika genome found in Brazil. Since reaching here, it has spread to another 33 countries across the Americas.
"This is the first study combing genetic and epidemiological data on the Zika virus in Brazil, so it is a good baseline for future research," Faria said.
Researchers found that Brazil's Zika virus is closely related to the Asian strain of Zika that was behind an outbreak in French Polynesia in 2013. The strain also circulates across Southeast Asia. Zika was first found in Uguanda in 1947, and there is also an African strain.
As many as 1.5 million Brazilians may have caught Zika, the government estimates. It has confirmed nearly a thousand cases of the birth defect microcephaly - which causes babies to be born with abnormally small heads and can lead to motor and cognitive difficulties and problems with hearing and sight. It is investigating thousands more.
But little is known about how Zika got to Brazil. And though Zika is increasingly blamed for the microcephaly outbreak, it unclear how the virus could cause brain damage in fetuses.
Faria said theories that co-infection with a related virus like dengue, or previous exposure to dengue, might be factors, are "very plausible."
"We are providing some first data to help us answer these questions," he said.
The report analyzed seven genomes, including that of one adult with Zika who died and a newborn with microcephaly.
"They did a genetic profile of the Brazilian virus," said Marcos Lago, an infectious disease specialist at the Federal University of Rio de Janeiro. "This is important."
The authors said Zika circulated in Brazil for a year or more before being identified.
In June 2013, Tahiti's national soccer team took part in the Confederations Cup - a trial run for the World Cup a year later - and played in Recife, capital of Brazil's northeastern state of Pernambuco where around a third of microcephaly cases have been concentrated.
But the study also noted a 50 percent rise from 2012 to 2014 in passengers flying to Brazil from countries where Zika circulated - New Caledonia, Indonesia, Malaysia, French Polynesia, Thailand and Cambodia - and said this was a more likely cause.
The 2014 World Cup and a canoeing tournament that year that featured a team from Tahiti have both previously been cited as events that could have led to Zika entering Brazil.
The study did not test the link between Zika and microcephaly, but did find that most suspected microcephaly cases happened at 17 weeks of pregnancy and more severe cases at 14 weeks.
As of March 19, Brazil had confirmed 907 cases of microcephaly and other alterations caused by a congenital disease since last October. Another 4,293 are still being investigated, and 1,471 have been discarded. The latest figures showed that Brazil confirmed 44 new cases in a week. In addition, 12 countries have reported an increase in Guillain-Barré Syndrome, a neurological condition that has been linked to Zika.
In May the research team plans to visit Brazil and profile a thousand genomes using a portable new technology. "It's going to be targeting genetic surveillance," Faria said.

O pensamento estrategico de Varnhagen: contexto e atualidade - Paulo Roberto de Almeida

Meu texto para o seminário do próximo dia 1o. de abril, no Instituto Rio Branco, a ser disponibilizado por inteiro assim que terminar a revisão.
Paulo Roberto de Almeida

O pensamento estratégico de Varnhagen: contexto e atualidade

Paulo Roberto de Almeida

Sumário:
Questões introdutórias e de organização do ensaio1
1. Varnhagen possuía um pensamento estratégico? , 4
2. Quais tipos de pensamento estratégico existiam na época de Varnhagen?, 8
3. Quais os componentes centrais do pensamento estratégico de Varnhagen?, 10
4. Como o pensamento de Varnhagen se refletiu no Estado imperial?, 20
5. Qual o legado desse pensamento na construção do Estado brasileiro moderno?, 25
6. Existe uma modernidade em Varnhagen?, 33
Bibliografia, 43

Questões introdutórias e de organização do ensaio
Este é um ensaio de aproximação intelectual ao pensamento estratégico de Francisco Adolfo de Varnhagen, que pode ser enquadrado na categoria da história das ideias políticas no Brasil. A temática principal, desdobrável em duas perguntas vinculadas entre si, poderia ser apresentada da seguinte maneira:
(1) Varnhagen, seja enquanto historiador, seja como diplomata, ou mesmo como “estadista improvisado”, possuía, ou era dotado de, “um” pensamento estratégico? Em outros termos, em que medida aderia ele a conceitos basilares das doutrinas estratégicas do seu tempo, e como tais conceitos, se presentes efetivamente em seu pensamento, se refletiram em sua vasta obra, tanto a de cunho historiográfico – como a História Geral do Brasil (1854-57) – quanto a de natureza mais política – como, por exemplo, o Memorial Orgânico (1849-1850) –, tal como se tentará aqui discutir?
Uma questão adicional ao tema principal acima enunciado poderia ser a da especulação sobre a existência, reconhecida ou não, de discípulos, explícitos ou implícitos, em sua própria época, ou nas décadas e no século que se seguiram ao ativismo intelectual e diplomático do patrono da historiografia brasileira. Não existem evidências nesse sentido, embora a obra principal de Varnhagen tenha dominado o pensamento histórico no Brasil durante quase um século, até praticamente o pós-guerra.
Várias outras perguntas secundárias – que servirão de guias para o itinerário argumentativo deste ensaio – podem ser formuladas no contexto do quadro conceitual delimitado pela suposição inerente ao título deste ensaio, suposição que parte, portanto, de uma resposta positiva à primeira pergunta formulada, a de que Varnhagen possuía, de fato, um pensamento estratégico. Tais questões adicionais são as seguintes:
(2) Existiam doutrinas estratégicas, ou de natureza geopolítica, propriamente formalizadas, no período formativo do pensamento de Varnhagen, e de que tipo seriam essas estratégias, ou “geopolíticas”, em construção na primeira metade do século XIX, que se desenvolveram mais para o final do século e que passaram a conhecer notável florescimento na primeira metade do século XX?
(3) Quais os componentes principais do pensamento estratégico de Varnhagen – se admitirmos que ele possuiu um – e como este se apresentou em sua obra?
(4) Que consequências ou efeitos teve esse tipo de pensamento no ideário, ou na ideologia, das elites dirigentes brasileiras, em especial as militares e as diplomáticas, nas décadas que se seguiram?
(5) Que legado produziu no pensamento estratégico brasileiro do século XX, quais foram os seus porta-vozes e qual o impacto desse tipo de pensamento na definição de políticas públicas nas áreas da segurança nacional, do desenvolvimento econômico e do papel do Estado na organização nacional? Como a vertente do pensamento propriamente “estratégico” de Varnhagen se incorporou à, ou recebeu continuidade na, obra de “geopolíticos” do século XX?
(6) Existe uma modernidade em Varnhagen? Dito de outra forma, suas reflexões e propostas para os problemas brasileiros de meados do século XIX poderiam ser transpostas, com as adaptações de praxe, aos desafios brasileiros do início do século XXI? Qual seria o pensamento estratégico, de inspiração varnhageana, que poderia impulsionar um esforço similar, ou funcionalmente equivalente, para “civilizar” o Brasil, quase 170 anos depois das propostas originais?

Não se espera, ao início deste ensaio, que todas essas questões possam ser respondidas completamente, ou sequer tratadas a contento – ou seja, de forma sistemática ou mais ou menos minuciosa –, mas existe pelo menos a intenção do autor de abordar cada uma delas de maneira abrangente – um conceito que se traduz pela palavra comprehensive, em inglês –, um empreendimento que traduz um esforço de interpretação do pensamento de Varnhagen, à luz dos teóricos de sua época e da  possível influência ou impacto que ele deixou não apenas nos intelectuais que absorveram os principais conceitos de sua obra, mas também no ideário nacional incorporado ao ensino da história e de outras disciplinas das humanidades nas instituições públicas de educação, do médio ao superior.
Caberia ressalvar, neste ponto inicial, que o autor deste ensaio não é historiador, não possuindo, portanto, o instrumental metodológico da disciplina, e sequer pretende ser especialista no pensamento de Varnhagen, sendo apenas um praticante da sociologia histórica, e que aprecia trabalhar com os fundamentos históricos e econômicos da diplomacia brasileira. Muito do que vai aqui sintetizado já foi objeto de tratamento pormenorizado nos trabalhos de eminentes especialistas, em especial do professor Arno Wehling, presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, autor de diversas obras a respeito do pensamento político e diplomático de Varnhagen (1999, 2002, 2013a), com destaque para os seus ensaios de estrategista, e de estadista, em torno do Memorial Orgânico (2013b, 2013c), o texto mais diretamente relacionado à temática deste ensaio, o pensamento estratégico do historiador. Cabe aliás destacar que, ademais de seus outros trabalhos sobre Varnhagen, a “retomada” do Memorial, sua atualização vocabular e sua disponibilização mais ampla são diretamente imputáveis ao tino histórico exemplar e à dedicação desse estudioso da obra do historiador sorocabano.
Cabe mencionar igualmente o já falecido professor Nilo Odália, autor de uma análise interpretativa da obra historiador-diplomático, situando-a no plano da formação da historiografia brasileira, inclusive em perspectiva comparada com Oliveira Vianna (1979; 1997). Nilo Odália procura estabelecer uma “relação de continuidade” entre ambos, que seria “característica de uma parte significativa da historiografia brasileira do século XIX e do início deste [XX] século, até o final da década de 1920, em que a preocupação fundamental do historiador era a de, ao partir de uma análise fundante de nossa história, buscar soluções para a realização do sonho de uma Nação unitária e integrada” (1997: 119-120). Essa Nação, como ainda destaca Odália, deveria ser socialmente “solidária”, na expressão usada por Oliveira Vianna, ao passo que o próprio Varnhagen falava de uma “Nação compacta”, como destacado na tese de Janke (2009).
Entre outros autores “varnhageanos”, entre eles Américo Jacobina Lacombe, autor de um estudo sobre o pensamento político do historiador (1967), Nilo Odália destacou a importância crucial do Estado, em Varnhagen, como “força tuteladora e instrumento de formação da Nação” (1997: 63-87), assim como chamou a atenção e sintetizou com clareza, usando as próprias palavras do historiador (no início da História Geral), os objetivos autofixados para sua missão enquanto funcionário do Estado, mas especializado na “arqueologia” da nação:
[E]m primeiro lugar, colaborar na Administração do Estado, por meio do levantamento histórico de dados que lhe possam ser úteis; em segundo, favorecer a unidade nacional; e, em terceiro, complementando o segundo, fomentar e “exaltar” o patriotismo, enobrecendo o espírito público. (1997: 38).

Ao estudar o passado do Brasil, mais exatamente, ao “construir” ele mesmo esse passado, que nunca tinha sido escrito tão completamente quanto ele quis fazer, mediante pesquisas em arquivos primários, Varnhagen pretendia, na verdade, “moldar o futuro da nação”, como destaca Odália. Tal tarefa, assumida como missão pessoal por Varnhagen, constitui, justamente, a própria essência do planejamento estratégico, que é a de examinar tendências fortes existentes no passado e no presente, para poder projetar, e provavelmente influenciar, uma rota preferencial dentre os itinerários futuros.

1. Varnhagen possuía um pensamento estratégico?
(...)
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Vou disponibilizar este texto, assim que terminar a revisão...
Um resumo do que foi o Memorial Orgânico de Varnhagen: 

Ele pensou que iria "civilizar" o Brasil: não conseguiu, mas deixou o roteiro (em 1849) do que precisaria ser feito, em seis grandes tarefas: 
1) Negociar tratados bilaterais de limites (já feito pelo Barão do Rio Branco, meio século depois); 
2) Transferir a capital para o interior (feito por JK, cem anos depois); 
3) resolver problemas de infraestrutura: transportes e comunicações (feito parcialmente pelos militares, mas ainda muita coisa inconclusa, que não vai ser feita pelo Estado, inepto e sem recursos; tem de passar para a iniciativa privada, como aliás fazia o Império); 
4) resolver os problemas da federação, de organização administrativa, de desequilíbrios regionais, etc (a União só se reforçou desde a monarquia unitária, e a despeito de uma República supostamente federativa); 
5) Fragilidade da defesa nacional, por falta de uma doutrina de segurança e de meios adequados (continua a mesma coisa); 
6) heterogeneidade da população, com escravismo extensivo, índios não aculturados (mudaram os problemas, mas a heterogeneidade continua, sobretudo por causa de uma educação deplorável). 
Ou seja, mais da metade da tarefa "civilizatória" de Varnhagen continua sem ter sido concluída...