Surpresas em 2017?
O ano de 2016 terminou com a relativa surpresa da eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos – embora alguns analistas a tivessem previsto – e o ano de 2017 começou com ainda mais surpresas, ao se constatar que o presidente, uma vez no poder, pretendia cumprir algumas de suas piores promessas de uma campanha eleitoral literalmente heterodoxa para os padrões normalmente menos excitantes das eleições presidenciais americanas. Todas as suas ações – proibição do ingresso nos EUA de cidadãos de alguns países islâmicos, construção de um muro na fronteira com o México, retirada dos EUA da Parceria TransPacífica (TPP), ameaça de cancelamento, ou reforma, do acordo de livre comércio da América do Norte (Nafta), reorganização da OTAN, revisão do posicionamento estratégico dos EUA em diversos cenários que representam preocupações de segurança militar para os planejadores do Pentágono e até para os parceiros envolvidos nesses diferentes esquemas, enfim, uma gama variada de assuntos que interessam, virtualmente, o mundo inteiro – causaram grande impacto mediático, algum impacto nas relações bilaterais e nos foros multilaterais, e legítimos sentimentos de inquietação ao redor do mundo.
O único país que parece ter recebido bem, pelo menos até agora, a eleição e o posicionamento do novo presidente dos EUA, é a Rússia, e alguns outros próximos da linha “quanto pior para os EUA, melhor para o mundo”. Embora seja previsível algum recuo posterior – inclusive por pressão do establishment responsável das instituições de governança nos EUA – nas medidas extremas anunciadas pelo imprevisível presidente, não há nenhuma dúvida de que neste ano de 2017, e talvez nos próximos três também, o mundo ainda vai se defrontar com inúmeras, e desagradáveis, surpresas vindas dessa nova e excitante fonte de notícias ao estilo “acredite se quiser”. Jornalistas não podem reclamar da pletora de material adicional em suas caixas de entrada, muito embora a maior parte possa ser descartada como “besteirol” inconsequente, mas o fato é que a maior parte da comunidade internacional tem, sim, razão ao ficar preocupada com as inesperadas e imprevisíveis políticas que o bizarro presidente promete ainda brindar esta nossa pobre humanidade.
Um apostador inglês, um desses bookmakers muito presentes naquele país também bizarro que se chama Grã-Bretanha, diria que nunca alguém perdeu dinheiro apostando na estupidez alheia: ela sempre se materializa, da pior forma possível. Se juntarmos, digamos assim, os personagens mais “coloridos” da presente conjuntura internacional, o constitucional Trump, o czarista Putin, o ditador da Síria, o projeto de líder bonapartista Erdogan e aquele stalinista anacrônico da Coreia do Norte, teremos material para uma penca adicional de surpresas durante todo o decorrer de 2017. Este ano, portanto, promete muito na política internacional, quando não na mobilização de tropas, de tanques, de aviões e porta-aviões. Esperemos que não passe disso, ou seja, apenas mobilização para demonstrações machistas, e um bocado de retórica vazia.
E na economia, o que vem pela frente?
Na economia o quadro é mais complexo, pois embora a globalização, aquela que se processa ao nível microeconômico, promete continuar sua marcha irresistível e irrefreável, graças a seus promotores primários – empresários, grandes e pequenas companhias e o tino individual de inovadores geniais –, seu ritmo, sua extensão e sua profundidade muito dependem, de fato, de elementos macroeconômicos que dependem, por sua vez, em pequena ou grande medida, da ação de governos, que podem ser tão racionais quanto se deveria esperar de líderes responsáveis, ou tão irracionais quanto pode ocorrer com populistas altamente irresponsáveis como parecem ser os citados e vários outros. A demagogia política e o populismo econômico são características permanentes, atemporais, regulares, aborrecidamente recorrentes nos assuntos humanos e sociais, e por isso mesmo podemos contar com a ação deletéria de todos esses fugazes candidatos a uma glória qualquer nas mídias nacionais e internacional.
Mas, em minha modesta opinião, nosso mundo vive tempos não convencionais, talvez normais doravante, mas ainda assim altamente preocupantes para quem, como eu e o leitor destas linhas, nos angustiamos ao ver tanto besteirol correndo solto, tantas ações irrefletidas proclamadas por dirigentes incompetentes, tanta perda de riqueza e de oportunidades para a criação de paz e prosperidade, tudo isso ameaçado pela ação desses malucos que ascenderam ao poder em diversos países nos últimos tempos. Nunca tivemos tantos ineptos, vários corruptos, tantos demagogos e populistas exercendo cargos de alta responsabilidade em países que julgávamos ao abrigo dessas ameaças de retrocessos políticos, econômicos e até morais, ou éticos. O fato é claramente este aqui: nunca antes na história da era contemporânea tivemos tantos medíocres no comando de países que possuem alguma ascendência sobre a agenda mundial, ou seja, sobre a vida de um número considerável de pessoas, nos mais diversos continentes.
Alguma nova ordem em vista?
Como sempre acontece nesses momentos de transição para alguma nova ordem que não se sabe exatamente qual será, do que será feita, como classificá-la, descrevê-la ou o que dela esperar, ficamos desarmados ante o aluvião de más notícias, em nosso país e no mundo, em meio a um pequeno volume de boas notícias, como a indicar que, no meio de tanta loucura, algum novo Erasmo pode emergir para nos indicar o modesto caminho da racionalidade e da melhoria constante nos assuntos humanos, mesmo com a intervenção frequente de demagogos políticos, brutamontes militares e outros malucos espalhados pelas mais diversas jurisdições soberanas da comunidade internacional. Na verdade, salvo nas grandes catástrofes envolvendo número significativo de atores poderosos – como os conflitos globais do século XX –, nenhuma nova ordem é construída pela vontade puramente política de líderes mundiais e seus conselheiros políticos, mesmo os mais kantianamente bem intencionados. A maior parte das transições entre modos de organização social e configurações políticas e institucionais de um novo tipo vai emergindo progressivamente como resultado da dinâmica econômica desses diferentes atores, a evolução política das grandes formações e o próprio nascimento de novas propostas de ordenamento global com base em ideias e propostas de personalidades influentes.
Os cientistas políticos podem se desentender sobre os vários conceitos nos quais podem ser resumidos os cenários existentes e cambiantes do sistema internacional – unipolaridade imperial, multipolaridade deformada, nova bipolaridade sino-americana, ascensão das novas potências emergentes, equilíbrio de potências, balança de poder, o que seja – mas o fato é que estamos um pouco perdidos sobre o que pode ocorrer neste ano e nos anos próximos, em termos de situação econômica, de comportamento político dos principais atores, de encaminhamento das principais questões inscritas na agenda internacional – comércio, meio ambiente, miséria e guerras civis nas áreas subdesenvolvidas do globo, evolução dos debates sobre bens comuns, entre eles epidemias globais, segurança e ameaças terroristas, crimes transfronteiriços, e até circulação de pessoas comuns, não apenas homens de negócios – e sobre como todas essas questões podem ser tratadas com base em alguma autoridade moral que se eleve sobre todas as outras autoridades.
Quem possui, hoje em dia, essa autoridade moral? O presidente dos EUA? Dificilmente. Os líderes das duas grandes autocracias que contestam o velho poder hegemônico da maior potência econômica do planeta? Duvidoso. O papa? Não sei. O secretário-geral da ONU? A sua Assembleia Geral? O comandante militar da OTAN? O comitê do Nobel da Paz? O foro do G20 financeiro? Quem poderá nos salvar de nós mesmos? Não existem super-heróis, nem um conclave de sábios que possa estar sempre a postos para salvar a humanidade de seus riscos latentes ou potenciais. Tampouco existem forças multinacionais – isto é, onusianas – prontas para combater as ameaças à paz e a segurança internacional, que elimine guerras remanescentes, sobretudo no Oriente Médio e na África, ou entidades suficientemente fortes de assistência pública que consigam promover (nem esse é o caminho) o bem-estar de povos miseráveis e de populações oprimidas, que assegure a vida de povos ameaçados por catástrofes naturais ou outros fenômenos causados pela própria mão de dirigentes ineptos, líderes corruptos, autocratas assassinos, gangues de meliantes armados, como os piratas marítimos e as grandes redes de traficantes, por exemplo. O próprio Brasil, sempre saudado como estando ao abrigo de grandes calamidades naturais, tem sido frequentemente assaltado pelos mais diferentes tipos de calamidades humanas, se não é por um simples mosquito.
E o Brasil, como andou nestes tempos borrascosos?
Aliás, quem salvou o Brasil da Grande Destruição econômica dos anos recentes, da enorme desmoralização das instituições políticas provocada pela administração incompetente e altamente corrupta dos companheiros? Ninguém, ou pelo menos não tivemos forças oposicionistas ou instituições de controle aptas a prevenir ou reprimir, no devido tempo, as malversações deliberadas, as políticas equivocadas, a roubalheira evidente a que estávamos e estivemos submetidos nos últimos treze anos e meio, quando uma organização criminosa tomou de assalto o país, sua política e seus órgãos de Estado. Apenas por um acaso – justamente a Grande Destruição econômica – esses grandes bandidos do sistema político foram expulsos do poder, mas isso apenas in extremis, pois se fosse apenas pela corrupção política e pela roubalheira generalizada, os líderes da organização criminosa não teriam sido apeados do poder, já que os crimes são partilhados com os políticos. Foi preciso a intensa mobilização da cidadania consciente para obrigar os parlamentares a votarem o impeachment, ainda assim pela metade apenas, sem cuidar de limpar o corpo necrosado do sistema político dessas frutas podres que contaminam todo o resto. As frutas podres continuam lá…
Como se pode constatar, não sou muito otimista quanto ao cenário atual ou seus desdobramentos futuros, e isto por uma razão muito simples. Pela primeira vez em nossa história estamos enfrentando uma crise econômica gigantesca, que não possui nenhum vínculo com algum problema identificado da economia mundial, pois se trata de uma crise produzida inteiramente no Brasil, por nossas próprias mãos, e pés, uma crise inteiramente fabricada por dirigentes ineptos e altamente corruptos. À diferença das crises anteriores – digamos, a crise da bolsa de Nova York, em 1929, que depois precipitou a Grande Depressão dos anos 1930, ou as crises inflacionarias alimentadas pelos dois choques do petróleo dos anos 1970, a crise de balanço de pagamentos que surgiu com o aumento dos juros internacionais e seus reflexos em termos da dívida externa brasileira nos anos 1980, as crises financeiras internacionais dos anos 1990 que nos obrigaram a recorrer ao FMI, a crise da Argentina em 2001, que nos obrigou a ir por uma segunda vez ao FMI, sem mencionar a própria crise das eleições de 2002, que nos levou ao mesmo FMI por uma terceira vez, e recentemente a crise imobiliária americana e a crise bancaria internacional de 2008, que provocou o que se chamou de Grande Depressão – esta nossa Grande Destruição dos anos 2015 e 2016 pode ser debitada inteiramente na conta da mais nefasta máfia de dirigentes políticos que se apossou do país, de seu governo, do Estado brasileiro.
Essa organização criminosa o fez quase tão completamente, tão absolutamente, que ela conseguiu comprar um número significativo de parlamentares, literalmente bancadas inteiras no Congresso, conseguiu aparelhar de modo amplo o Estado brasileiro, colocar seus militantes nos órgãos os mais diversos de governo, designar apparatchiks para agências públicas, fundos de pensão, empresas do Estado e até entidades privadas, que, todos juntos, se empenharam em saquear o Estado e roubar a sociedade, numa magnitude jamais vista em toda a história anterior, numa amplitude jamais imaginada pelos órgãos de controle e de prevenção, que finalmente despertaram para as escabrosas operações desses meliantes políticos. É virtualmente impossível contabilizar o gigantesco iceberg de roubos, falcatruas, desvios, operações de sub e superfaturamento envolvendo recursos públicos, subsídios, financiamentos irregulares, “doações legais”, contratos de serviços no Brasil e no exterior, enfim, toda a gigantesca máquina de malversações perpetradas pelos companheiros e seus aliados e associados de ocasião ou oportunistas de plantão, como existem muitos espalhados em todo o sistema político brasileiro. Ainda assim, espero que o ministério público, auxiliado por economistas, consiga fazer a contabilidade dos crimes econômicos do lulopetismo.
Esse quadro lamentável no cenário doméstico ocorre numa conjuntura externa de ausência de lideranças confiáveis, e competentes, para guiar a política e a economia mundiais para caminhos não confrontacionistas, para soluções racionais aos problemas de segurança e de cooperação econômica e política aos conflitos remanescentes ou às disputas sempre existentes em termos de regulação do comércio, do meio ambiente, da segurança nas zonas quentes do planeta, enfim, dos obstáculos à prosperidade dos povos do planeta. A globalização é até favorável à prosperidade dos países que sabem se abrir e se posicionar corretamente em face das oportunidades por ela criadas, em termos de comércio, investimentos, transferência de tecnologias, licenciamento de know-how estrangeiro, acolhimento de imigrantes produtivos, enfim, um sem número de coisas boas que sempre ocorrem para quem é receptivo à abertura econômica, à liberalização comercial, aos investimentos diretos, aos intercâmbios humanos, sem qualquer censura política, protecionismo comercial, paranoias nacionalisteiras e outros pecados do gênero. A globalização arrancou centenas de milhões de pessoas da miséria – que o digam os pobres da China e da Índia –, trouxe enormes benefícios aos povos integrados nos fluxos de bens, serviços, ideias que circulam pelo mundo, desde que libertos das amarras das restrições idiotas, que sempre são colocadas pelos governos, jamais pelos mercados livres.
O que é que a globalização pode fazer por nós?
Mas é óbvio que a globalização não pode fazer muito por aqueles povos e nações que se enclausuram num protecionismo tão inútil quanto custoso, num nacionalismo míope, numa atitude defensiva em face das oportunidades e desafios por ela criados, como é obviamente o caso do Brasil, um país que não perde oportunidade de perder oportunidades, como dizia Roberto Campos, o maior estadista e intelectual da segunda metade do século XX no Brasil, e que estaria completando cem anos no dia 17 de abril (e por isso homenageado com um livro meu: O Homem que Pensou o Brasil, pela Editora Appris, de Curitiba). O Brasil, infelizmente, a despeito da brilhante equipe econômica que assessora o governo de transição, ainda não conseguiu traçar, já não digo uma estratégia política, mas um simples consenso nacional, entre dirigentes políticos e lideranças econômicas, para produzir o imenso rol de reformas estruturais de que ele necessita para enveredar novamente por um processo sustentado de crescimento econômico, base indispensável a qualquer ciclo de desenvolvimento social de que o seu povo poderia desfrutar, caso dispusesse de elites dirigentes menos ineptas e corruptas.
O mundo é o que ele é, e não poderemos fazer muito, ou praticamente nada, dada nossa insignificância internacional em termos de poder econômico ou militar, para mudá-lo decisivamente em nosso favor. Aliás, o que significa, exatamente, “mudar o mundo em nosso favor”? Seria torná-lo ainda menos receptivo à abertura econômica, à liberalização comercial como nos empenhamos em fazer nas últimas décadas? Seria continuar apelando para medidas absolutamente idiotas como essa mania de pretender proibir estrangeiros de adquirir terras, ou quaisquer outros ativos, como se esses estrangeiros viessem com a intenção de roubar o nosso patrimônio, dilapidar o nosso meio ambiente, saquear as nossas riquezas, explorar o nosso povo? Seria, ainda, continuar a proteger a produção nacional com normas e regulações absolutamente idiotas e nefastas, como as nossas tomadas jabuticabais, que discrepam de quaisquer outros padrões normalmente usados para o acoplamento de aparelhos e dispositivos ligados à corrente elétrica? Seria dotar as nossas escolas de normas curriculares absurdas, destinadas unicamente a oferecer uma reserva de mercado a professores ineptos, produzidos pela ideologia nefasta da Pedagogia do Oprimido, alimentados pelo besteirol ainda mais nefasto da Teologia da Libertação, por esse marxismo vulgar disseminado em praticamente todos os cursos de (des)humanidades das faculdades públicas e privadas?
O Brasil ainda não percebeu o quão atrasado ele está, em face de tantos exemplos de adequação, adaptação e acolhimento da modernidade, por tantos povos ao redor do mundo, aliás até mesmo aqui na região, quando alguns países da América Latina escolhem se juntar à grande interdependência global, em lugar de se refugiar numa suposta, e nefasta, identidade latino-americana de recalcados e de frustrados perdedores da globalização. Quando é que vamos nos libertar desses políticos rastaqueras, que prometem defender os “empregos nacionais”, e nos condenam ao atraso, desses empresários ineptos que proclamam a necessidade do protecionismo, quando eles querem apenas assegurar reserva de mercado, dessas construtoras que vivem do rentismo de obras públicas e de concessões exclusivas, bem como de generosos subsídios para justamente praticarem corrupção generalizada, no Brasil e no exterior? Quando é que vamos nos livrar do Fundo Partidário, um convite à anomia política e à corrupção, simplesmente, uma vez que partidos políticos são entes de direito privado? Quando é que o Brasil vai virar um país capitalista normal, sem os “dez vezes sem juros”, sem a opressão da Receita Federal sobre as empresas privadas, sem que as corporações de empregados públicos façam dos cidadãos os reféns de seus interesses corporativos justamente? Quando é que a educação pública vai qualificar de maneira decente os brasileiros mais humildes para o mercado de trabalho, permitindo que eles possam contribuir para o crescimento da produtividade, o que é hoje algo impossível?
Da Guerra Fria geopolítica à guerra fria econômica
Mas vamos voltar para a economia política internacional. Muitos analistas contemporâneos, partindo da constatação, aliás evidente, da nova agressividade da Rússia de Putin em relação ao Ocidente em geral – isto é, a UE e os EUA – e da velha desconfiança do Império do Meio, ou seja a China, em relação a esse mesmo Ocidente, já estão falando de uma nova Guerra Fria, agravada sobretudo pela invasão russa da Ucrânia oriental e pela incorporação forçada da Criméia à Rússia, bem como outros gestos em direção dos bálticos e da Geórgia que, no conjunto, revelam uma tomada de postura contra a expansão irrefletida da OTAN nos confins imediatos da Rússia. A China de Xi Jin-ping também tem demonstrado uma política de maior assertividade na defesa dos seus interesses nacionais, inclusive no controle da sua própria população, como se pretendesse demonstrar que sua maior, enorme, inserção econômica mundial não significa que ela esteja caminhando na direção dos valores e princípios típicos das economias democráticas de mercado, e que essa atitude positiva na defesa do livre comércio e da livre concorrência internacional não se traduz em maior liberalidade no plano político interno.
Do outro lado do mundo, confirmando a atitude típica dos militares, em todo e qualquer lugar do planeta – que é a da paranoia securitária –, o pessoal do Pentágono e do próprio governo americano elegeu a China como a substituta da Rússia nos possíveis embates decorrentes de algum choque futuro de interesses, seja nos mares da China, os do sul e os do leste, seja na velha questão de Taiwan, ou seja, reforçando a hipótese de uma nova Guerra Fria, podendo desdobrar-se em algum futuro conflito bélico, ou seja, uma guerra quente. Alguns analistas, até famosos, acreditam, ou fingem acreditar, numa Terceira Guerra Mundial, isto é, envolvendo as grandes potências militares, dotadas de um poder propriamente devastador em todas as áreas das ferramentas militares, das mais convencionais às nucleares. Não partilho absolutamente desse tipo de temor.
Não apenas não acho que haverá uma terceira grande conflagração global, como tampouco considero que estejamos assistindo a uma nova Guerra Fria no sentido usual, geopolítico, da expressão. A Guerra Fria foi um episódio circunscrito das relações internacionais do imediato pós-Segunda Guerra, e se pode dizer até um aspecto peculiar das relações bilaterais de competição política estratégica entre os dois grandes atores do sistema mundial, EUA e URSS, naquela conjuntura histórica específica da história mundial, que não tem mais chance de se reproduzir atualmente entre os dois novos grandes atores das relações internacionais contemporâneas, os EUA e a China. Não creio que estejamos caminhando para uma grande confrontação estratégica suscetível de configurar uma nova Guerra Fria entre esses dois gigantes, com atuação em conflitos entre atores secundários, que seriam o equivalentes dos cenários regionais de enfrentamento estratégico, do tipo proxy wars, como vimos naquele período histórico (digamos a guerra civil na Grécia e a guerra da Coreia, na era Truman-Eisenhower, o episódio dos mísseis soviéticos em Cuba, nos anos Kennedy, a guerra do Vietnã, que atravessa diversas administrações americanas, ou diferentes guerras civis na África, servindo também a essa competição estratégica, notadamente em Angola).
Essa Guerra Fria tipicamente geopolítica dos anos 1940 aos 80 passou e não voltará mais. E nem foi a Guerra Fria que determinou o desaparecimento de um dos dois grandes atores daquele período, nomeadamente a União Soviética, dotada de um arsenal militar impressionante, incluindo um número formidável de ogivas nucleares e seus respectivos meios de delivery. A União Soviética não desapareceu por causa dessa competição, ou mesmo, isso ocorreu apenas indiretamente, se considerarmos o efeito da Strategic Defense Initiative, a “guerra nas estrelas” de Reagan, no enfraquecimento decisivo de sua capacidade econômica ao tentar competir com a enorme fortaleza do império americano no plano econômico. A URSS desapareceu por uma espécie de implosão auto-induzida, pela pressão de suas próprias contradições internas, porque simplesmente ela não conseguia satisfazer economicamente o seu próprio povo, e também porque a inevitável fome de liberdade dos povos submetidos ao seu império despótico ajudou na sublevação geral de todo o sistema coletivista criado na Europa central e oriental durante a era do moderno socialismo escravocrata.
Segundo o novo autocrata de Moscou, referindo-se à essa auto-implosão, “o desaparecimento da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século XX”, uma opinião com a qual se pode facilmente concordar, desde que se façam os ajustes necessários para medir o real impacto dessa “catástrofe geopolítica”. Ela teve, de fato, um enorme impacto, não apenas nas relações internacionais, mas também, e sobretudo, para o próprio povo russo, até então escravizado sob o jugo soviético do Partido Comunista. O desaparecimento da União Soviética deu um golpe fatal na legitimidade do comunismo enquanto forma de governo, retirou as bases econômicas de um sistema totalmente ineficiente de organização social da produção e libertou milhões de pessoas da entropia totalitária, trazendo, talvez, um pequeno acréscimo ao PIB global das economias de mercado, mas um enorme aporte de trabalhadores podendo, enfim, serem integrados à divisão internacional do trabalho e aos fluxos mundiais de consumo. Foi, portanto, uma “catástrofe” eminentemente positiva para os povos antes submetidos a um regime de exclusão interna e externa, e para a própria interdependência global.
O que temos hoje é algo completamente diferente da Guerra Fria geopolítica daqueles tempos, da velha confrontação entre dois impérios absolutamente opostos nos planos ideológico e de organização econômica e política, uma confrontação geopolítica por poder e prestígio entre aqueles dois gigantes, o que não é o caso, de nenhuma forma, da suposta confrontação estratégica entre EUA e China. O que temos atualmente, em minha opinião, é uma Guerra Fria econômica, entre esses dois atores, mas uma que não significa uma competição entre polos opostos do sistema internacional de poder: tanto os EUA quanto a China representam dois representantes da moderna interdependência global, duas jurisdições políticas distintas e separadas, mas unidas no mesmo universo das economias de mercado, ainda que, de um lado, tenhamos uma velha democracia política e do outro, uma ainda mais velha tirania política administrando uma nova economia de mercado. Trata-se, obviamente uma nova situação política, inédita nas relações internacionais, que é difícil de ser mentalmente aceita, e considerada como válida, por aqueles que tendem a visualizar o mundo sob o prisma das mesmas velhas concepções que vigoraram em períodos anteriores.
Em outros termos, não é possível analisar a nova Guerra Fria Econômica ficando prisioneiro dos mesmos esquemas mentais da velha Guerra Fria geopolítica, o que é o que parece estar acontecendo com os estrategistas do Pentágono e com um número considerável de analistas políticos contemporâneos (mas ainda raciocinando com base em antigos cenários, que não mais vão se reproduzir na atual fase das relações internacionais contemporâneas). Esses estrategistas anacrônicos, mais especializados em desperdiçar os recursos da coletividade do que em analisar as reais ameaças ao seu país, elegeram a China como o grande contendor da atual fase da política mundial, o que representa um erro monumental em termos de alocações orçamentárias e de disposições táticas sobre o terreno, ademais de investimentos exagerados em novos meios de combate que provavelmente nunca serão usados nas dimensões imaginadas.
A China é um império emergente, mas com imensas deficiências internas, o que os novos mandarins do regime comunista buscam remediar mediante uma estratégia de desenvolvimento econômico extensivo e intensivo, a única maneira de conferir alguma aparência de legitimidade a um sistema de dominação política de caráter despótico, mas profundamente nacionalista e basicamente defensivo, não ofensivo externamente. A projeção militar em curso no novo Império do Meio se destina, essencialmente, a garantir o aprovisionamento da população chinesa em alimentos e em energia, e a sua base industrial em matérias primas e outros insumos necessários ao funcionamento contínuo de um imenso aparato produtivo aparentemente imbatível no plano da concorrência internacional (mas apenas temporariamente).
As bases que a China constrói nos mares que ela considera como seus (a Leste e mais ao Sul de suas águas), assim como margeando o Índico e o Atlântico Sul, numa miríade de países da Ásia do Sul e do continente africano, se destinam precisamente a garantir a livre circulação de sua frota comercial nacional e de todos os demais navios participando desse abastecimento e dessas rotas comerciais que estão na base de sua ascensão irresistível para a prosperidade e a modernidade tecnológica. Essas bases são uma espécie de bem público que deveriam supostamente servir, igualmente, aos interesses brasileiros nessas mesmas regiões, uma vez que a segurança e os postos avançados que são construídos pelos chineses – bem como os portos, ferrovias e outras infraestruturas materiais e de comunicações – em todos esses países devem aumentar os fluxos comerciais de todos os participantes da economia global, uma inserção à qual o Brasil relutantemente busca se adaptar da forma mais lenta possível.
Se ouso arriscar uma projeção geopolítica – o que não deveria ser permitido a diplomatas, mesmo astrólogos –, eu diria que a China vai emergir como nitidamente vitoriosa dessa Guerra Fria econômica, que não se destina, obviamente, a confrontar qualquer “adversário estratégico” com a finalidade de ocupar “espaços vitais” de maneira excludente, ou para desmantelar a capacidade de resistência desses supostos adversários. Creio que os analistas sérios saberão reconhecer na Guerra Fria econômica uma estratégia sofisticada de capacitação própria em “armas produtivas” e outras ferramentas de projeção estratégica em termos de serviços, investimentos, finanças, soft power e outros elementos que integram a interdependência global. A China não pode se dar ao luxo de criar conflitos até a beira do precipício com seus principais parceiros, pois é neles que ela se abastece, legal e ilegalmente, dos bens e da inteligência que são absolutamente necessários para elevar continuamente o seu povo na escala do bem-estar e da prosperidade. A potência militar é uma decorrência disso, não o contrário, como aliás ocorre com qualquer império que se preze (mas militares e diplomatas tendem a esquecer a verdadeira ordem dos fatores). Que o Pentágono e seus equivalentes ao redor do mundo, inclusive na China, mantenham orçamentos superdimensionados e sejam responsáveis por desperdícios absurdos de recursos, sempre apostando numa infinita corrida armamentista, mesmo quando não proclamada e conveniente escondida, tudo isso faz parte da paranoia obrigatória a que todos os planejadores militares são supostos alimentar, para impulsionar suas próprias carreiras e a irracionalidade das burocracias. A China, provavelmente, é tão perdulária quanto o Pentágono em seus gastos militares, e tudo isso se auto-alimenta numa progressão contínua. Mas ela vai, presumivelmente, ganhar essa guerra fria econômica, pois mantém a estratégica correta, visando apenas e tão somente o seu interesse nacional, sem algumas das obrigações “universais”, ou regionais, do outro grande império (e destinado a sê-lo no futuro previsível).
O que o Brasil faz, o que ele não faz, e o que ele deveria fazer?
O Brasil, obviamente, está longe de todos esses cenários estratégicos e, pelo andar da carruagem, está destinado a permanecer num soberbo isolacionismo pelos tempos que correm e outros mais à frente. Os partidários da diplomacia “ativa e altiva” até podem se vangloriar de terem “colocado o Brasil no mapa do mundo”, mas tudo isso é uma grande ilusão, fruto da megalomania do grande chefe da organização criminosa e de alguns assessores diplomáticos. Eles pretendem justificar essa “grandeza” nacional – mais um resquício da era militar, junto com o intervencionismo exacerbado, o estatismo irracional, o protecionismo vergonhoso – agitando a bandeira das chamadas “parcerias estratégicas”, como Ibas, Brics, com a UE, etc., e alguns outros ativos, como por exemplo o fato de a China ter se convertido no primeiro parceiro comercial. Tudo isso, ouso repetir, é uma grande ilusão, a começar por essa pretensa parceria comercial com a China: a China se abastece no Brasil como poderia se abastecer em qualquer outro país do mundo nas mesmas commodities, que, à exceção da jabuticaba (que aliás ainda não entrou nessa categoria), não são exclusivas de nosso patrimônio natural ou construído.
A maior parte dessas alianças, se elas não servem unicamente a fins de prestígio político dos dirigentes do momento (como é o caso do UE), representa uma herança mal concebida e mal implementada do lulopetismo diplomático, com todos os vícios de forma e de substância que isso possa acarretar, inclusive em termos de passividade diplomática. Os esquemas regionais constituem, igualmente, um grande empenho de esforços, e portanto de gastos (sem qualquer análise de custo-benefício), para ganhos muito circunscritos e que poderiam, nas mais diversas hipóteses, serem conquistados com uma ação puramente unilateral (abertura voluntária a todos os parceiros da região, por exemplo, o que conformaria automaticamente um espaço econômico integrado no continente) ou em bases bilaterais negociadas com certa generosidade de intenções.
O Brasil precisa aprender a ficar sozinho, o que não significa ficar isolado do mundo, muito pelo contrário. O Brasil precisa se integrar ao mundo, e da maneira a mais ampla possível, mas a maior parte desses grupos age como um clubinho fechado – desde o Mercosul ao Brics – se congratulando mutuamente e atuando pela via do mínimo denominador comum, o que é propriamente péssimo para nosso processo de inserção mundial e de interdependência global, segundo aqueles melhores valores e princípios que exibimos frequentemente, pelo menos no plano constitucional. Atuar em conjunção com ditaduras e autocracias não deveria fazer parte de nossos exercícios habituais de diplomacia. Ou seja, uma profunda revisão das escolhas e opções feitas nos últimos quinze anos se impõe de qualquer maneira aos nossos dirigentes políticos.
O Brasil não se abre ao comércio internacional, por exemplo, e muitos – não só no setor privado, mas no âmbito governamental – acham que ele só pode se abrir a novos patamares de inserção econômica global quando forem satisfeitas todas estas condições, sucessiva ou simultaneamente: (a) que se consiga reduzir o “custo Brasil”, que na verdade é o “custo do Estado brasileiro”, pois até mesmo uma “externalidade” como a (péssima) educação, em todos os níveis, resulta de falta de ação do Estado, o que incide sobre nossa baixíssima produtividade; (b) que se possa encontrar parceiros dispostos a negociar acordos comerciais nos nossos termos (ou seja, os menos ambiciosos possíveis, descartando todos os penduricalhos dos acordos de “última geração”); (c) que se observe a mais estrita reciprocidade em cada um deles.
Não vou comentar cada um desses aspectos em detalhe, pois isso demandaria uma outra longa exposição, mas vou dizer simplesmente que a maior parte dos argumentos em defesa desses requerimentos são francamente ridículos, pois o esforço próprio, e o interesse também, tem de ser nosso, unilateralmente, para o nosso próprio bem, não condicionado a quaisquer pré-condições que se possam estabelecer para nossa integração ao mundo. Mas o Brasil não falha apenas na área econômica, ele também tropeça, e se arrasta, penosamente, no domínio político também.
Para começar, nossa governança é péssima, a despeito de termos construído um dos Estados mais modernos dentre os países da antiga periferia europeia, dotado de instituições sofisticadas, mas que funcionam muito mal, em total descoordenação entre si, a despeito de algumas ilhas de excelência aqui e ali. Mas, entre nós ainda vigora o velho patrimonialismo de origem portuguesa, já estudado no clássico de Raymundo Faoro, e transformado, modernamente, num outro tipo de patrimonialismo, como estudado, por exemplo, por observadores escrupulosos como Antonio Paim e Ricardo Vélez-Rodríguez; pode-se até dizer, com base nesses novos estudos, que já deixamos o velho patrimonialismo tradicional, e reforçamos tremendamente o “estamento” (à falta de melhor conceito) burocrático, que chegou até a ser, com os companheiros, um patrimonialismo de tipo gangster. O Estado brasileiro é hoje um corpo quase inerme, servindo apenas para a extração de recursos da sociedade em benefício próprio, com algumas migalhas indo para investimento ou para fins socialmente úteis, ademais das mais corriqueiras e comezinhas atividades clássicas. O problema é que ele se colocou demasiadamente à serviço desses estamentos que o assaltam oficialmente e de uma ampla gama de capitalistas promíscuos, que o prostram sob os golpes contínuos de concorrências viciadas, superfaturamentos e propinodutos regulares.
Na área econômica – mas ela está intimamente vinculada à área política – os desafios de reformas estruturais são enormes, e o Brasil não decaiu o suficiente, ainda, ou não teve um choque realmente falimentar, para obrigar os ineptos e corruptos eleitos e dirigentes a alcançar um consenso mínimo em vista de reformas significativas. Até quando isso vai persistir? Difícil dizer: se o Brasil não ficar insolvente, internamente, nos próximos dois ou três anos, ele vai continuar a se arrastar penosamente em direção a um futuro incerto, feito de crescimento medíocre, divisão política exacerbada, ausência de lideranças suficientemente fortes para catalisar os esforços de uma nova coalizão política verdadeiramente moderna, e não mentalmente atrasada como hoje. Ou seja, o Brasil se encontra a meio do caminho entre a decadência argentina, já longa por sinal, e a inadimplência grega, sem ter uma coalizão de credores dispostos a salvá-lo do desastre no qual já se encontra.
Não tenho muitas razões para ser otimista, inclusive porque vejo outros países avançando na escala do progresso, enquanto o nosso permanece paralisado por disputas absolutamente ridículas, algumas até vergonhosas (como a tentativa da classe política de se safar dos dispositivos legais que vedam a corrupção nos assuntos públicos). Vamos avançar para algum lugar? Duvido, pois isso depende de bons diagnósticos e de prescrições adequadas. Ainda não vi nem uns, nem outros.
Vale!
Sobre o autor
Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira e diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais – IPRI-MRE (paulomre@gmail.com).
Como citar este artigo
Mundorama. "O que esperar de 2017: economia e política internacional, por Paulo Roberto de Almeida".
Mundorama - Revista de Divulgação Científica em Relações Internacionais,. [Acessado em 20/03/2017]. Disponível em: <
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