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quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Formação da Diplomacia Economica no Brasil - Paulo Roberto de Almeida (1999)

Em 1999, depois que eu tinha terminado de compor o meu livro, mas dois anos antes de sua publicação comercial – Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (São Paulo: Editora Senac, 2001, 680 p., ISBN: 85-7359-210-9) – eu escrevi uma espécie de resumo-apresentação, para informar à comunidade acadêmica sobre esta obra, que deveria ser o primeiro volume de uma série de três, sobre a diplomacia econômica no Brasil.


O texto abaixo foi publicado na revista Lua Nova, de São Paulo: 
“A formação da diplomacia econômica do Brasil”, Lua Nova, revista de cultura e política (São Paulo: CEDEC, nº 46, 1999, pp. 169-195; ISSN: 0102-6445). Os quadros linkados no artigo abaixo, já não estão mais disponíveis nese arquivo, mas podem ser vistos na publicação indicada abaixo. Na primeira nota ao artigo, eu informava que a obra estaria sendo publicada pela Editora da UnB, o que era verdade até aquele momento, mas ocorreu que a direção daquela editora revelou-se profundamente desonesta nas tratativas pré-edição, e eu decidi retirar o livro de seu programa. Demorou mais de dois anos para que se obtivesse o acordo com a Senac-SP.
Aproveito para esclarecer que a mesma obra, com revisão, correção e atualização, foi publicada recentemente em 3a edição pela Funag: 

Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império. 3ra. edição, revista; apresentação embaixador Alberto da Costa e Silva, membro da Academia Brasileira de Letras; Brasília: Funag, 2017, 2 volumes; Coleção História Diplomática; ISBN: 978-85-7631-675-6 (obra completa; 964 p.); Volume I, 516 p.; ISBN: 978-85-7631-668-8 (link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=907) e Volume II, 464 p.; ISBN: 978-85-7631-669-5 (link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=908). Relação de Originais n. 1351. Divulgado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/09/formacao-da-diplomacia-economica-no_9.html).
Paulo Roberto de Almeida 

http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451999000100008 

ORDEM MUNDIAL

A formação da diplomacia econômica do Brasil*

The making of Brazilian economic diplomacy


Paulo Roberto de Almeida
Doutor em Ciências Sociais e editor-adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional



RESUMO
Ensaio de caráter histórico sobre as grandes linhas da diplomacia econômica no Brasil, com ênfase no período monárquico. Depois de uma identificação das questões metodológicas próprias ao estudo da diplomacia econômica no Brasil, em suas etapas formadoras, são apresentados os problemas que mobilizaram a atenção do establishment diplomático imperial, em sua vertente propriamente econômica, bem como ressaltados os elementos de ruptura e de continuidade em relação à diplomacia econômica do século XX.

ABSTRACT
Historical essay focussing the main trends of Brazil's economic diplomacy, in special at its earlier stages, during the monarchic period. Following a brief discussion of methodological issues linked to the study of economic diplomacy in Brazil, the analysis centers on the relevant questions that called the attention of the Brazilian diplomatic establishment. Appropriate consideration is given to elements of innovation or continuity between the economic diplomacy of the XIX century and that of the XX century.



A diplomacia brasileira é geralmente conhecida — e também admirada, no continente e alhures — pela excelência de seus quadros e pela notável constância de suas posições políticas. A ela são creditados ganhos políticos importantes, tanto num passado distante, em termos de conformação do território pátrio, por exemplo, como no presente, sob a forma da boa convivência regional, do continuado respeito que o país ostenta aos princípios do direito internacional, bem como, por vezes, do apoio (moderado) que o Brasil tem emprestado a missões de manutenção da paz conduzidas multilateralmente, o que certamente agrega credibilidade política, interna e externa, a essa diplomacia.
Mas, como avaliar o desempenho de longo prazo dessa diplomacia num setor que toca diretamente aos interesses maiores da nação: os resultados na frente econômica, em primeiro lugar no sentido de impulsionar o desenvolvimento nacional? Terá sido essa diplomacia funcional e instrumental do ponto de vista desse objetivo, isto é, adequada aos requisitos de progresso econômico e de bem estar social? Soube ela captar recursos externos e angariar apoio material para a aceleração das taxas de crescimento econômico e do processo de modernização tecnológica do país? Em uma palavra, qual foi a contribuição da diplomacia ao desenvolvimento da nação?
Uma avaliação ponderada desse tipo de questão passa, antes de mais nada, pelo exame das relações econômicas externas do Brasil, considerando tratar-se de um país periférico, dispondo de poucos excedentes de poder político e econômico e de reduzida capacidade de projeção externa. Considerando-se igualmente os escassos 180 anos de independência política, não se está obviamente falando da diplomacia de uma nação multissecular ou de um Estado dotado de uma burocracia tão longeva quanto à dos principais parceiros com quem foram negociados os primeiros acordos de caráter econômico. A natureza dessas relações foi também tributária da estrutura econômica e social do país, cuja história econômica se confunde, até há poucas décadas, com a sucessão de ciclos dominantes de algum produto de exportação. Na terminologia da economia política, as relações econômicas internacionais do Brasil passam, entre o início do século XIX e meados do XX, de uma diplomacia do primário, comprometida com a promoção de alguns poucos produtos de base integrando sua pauta de exportação, para a crescente afirmação de uma diplomacia do secundário, voltada essencialmente para a grande tarefa da industrialização substitutiva e da capacitação tecnológica nacionais, antes de adentrar, no período recente, na diversidade de temas e de interesses econômicos que poderão conformar, no presente e no futuro, uma diplomacia do terciário, isto é, da era dos serviços, a qual parece caracterizar o mundo atual e o sistema contemporâneo de relações econômicas internacionais.1

ASPECTOS METODOLÓGICOS
Uma avaliação desse desempenho no longo prazo da diplomacia brasileira, cuja metodologia poderia ser identificada a um ensaio de "interpretação econômica" de sua história diplomática, deve partir das etapas formadoras da diplomacia econômica no Brasil, retraçando o itinerário das relações econômicas internacionais da nação durante o século XIX, desde a transferência da Corte em 1808 e constituição do Estado nacional, até a era contemporânea, ou seja cobrindo tanto o período monárquico como a era republicana. Uma visão de largo prazo como a que aqui se propõe tem necessariamente de ser apresentada de forma sintética, mas a produção acadêmica já acumulada no campo da historiografia econômica, bem como a excelente documentação de base disponível — em primeiro lugar os primorosos e completos relatórios da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, sob o Império, e do Ministério das Relações Exteriores sob a velha República — permitem um tal empreendimento analítico.
Qual seria, em primeiro lugar, a "matéria-prima" dessa avaliação? Dentre as questões mais relevantes para o exame da "formação" da diplomacia econômica no Brasil no século XIX estão as seguintes: os tratados de comércio e a política tarifária, o constante recurso aos empréstimos externos, o ingresso de investimentos estrangeiros diretos, o contencioso com a Grã-Bretanha sobre o tráfico escravo2 e os problemas encontrados pelo Estado monárquico para garantir um fluxo regular de imigrantes livres (em face da política dos fazendeiros de manutenção do trabalho escravo ou da simples "importação de braços para a lavoura", ainda que colonos europeus), bem como a precoce presença do Brasil em incipientes foros "multilateral;" (União Geral dos Correios, União Telegráfica Universal e União de Paris sobre propriedade industrial no último terço do século XIX). Para a primeira metade do século XX, por sua vez, a análise certamente cobriria os problemas seguintes: tímidos esforços de "promoção comercial" do produto de maior competitividade na economia brasileira, o café (uma vez que a borracha, temporariamente importante no começo do século, mais era objeto de compra do que propriamente vendida), seletividade criteriosa dos compromissos comerciais externos (uso extremamente limitado da cláusula de nação-mais-favorecida nos acordos bilaterais de comércio), contratação de empréstimos para fins de valorização do café e de sustentação da paridade da moeda, política migratória orientada por critérios raciais e crescentemente restritiva, preocupação constante com o aggiornamento tecnológico para fins de desenvolvimento industrial, participação moderada nas principais conferências econômicas do período e restrições crescentes à interdependência econômica (prática instintiva de um protecionismo comercial que, de fiscal, se converte em instrumento de política industrial).
Não se deve ver nesse tipo de trabalho analítico uma versão "economicista" da já abundante historiografia sobre a política externa brasileira, nem uma tentativa de se reinterpretar a história diplomática do Brasil segundo uma "concepção materialista". Com efeito, o itinerário da política internacional do país não poderia ser descrito unicamente com base nas relações econômicas internacionais do País, nem as relações exteriores do Estado monárquico e as dos governos republicanos que lhe sucederam poderiam ser construídas como se constituíssem uma espécie de sobredeterminação da ordem econômica mundial na qual elas estariam inseridas. Mas, pode-se concordar com um eminente historiador não marxista no sentido em que "tudo parte da história econômica". Com efeito, como diz Pierre Chaunu, "é à História econômica que cabe o privilégio de mudar a História, de dar progressivamente origem a uma forma de História, a que chamamos serial, que sobrepõe suas próprias exigências, próximas das Ciências Sociais, às exigências sempre válidas da História tradicional".3
Assim, mesmo ostentando uma "opção preferencial" pela história econômica da diplomacia brasileira, uma avaliação como a do tipo proposto neste ensaio deve precaver-se contra qualquer determinismo econômico ou desvio historiográfico: se a economia é inegavelmente o mais importante fator na vida de uma nação, os eventos, a escolha das políticas adotadas em casos concretos, as motivações e orientações gerais das relações internacionais do Brasil, bem como os traços peculiares de sua política externa "efetiva" não foram, majoritariamente ou predominantemente, determinados ou moldados pela base material ou pelas relações econômicas internacionais do país. As grandes questões da política externa brasileira, inclusive e principalmente as de política econômica externa, sempre foram políticas e, como tal, receberam um tratamento essencialmente político.
Um ensaio histórico sobre a formação da diplomacia econômica no Brasil deve tratar, assim, de aspectos pouco abordados nos velhos manuais de história diplomática (Delgado de Carvalho, Hélio Vianna4) ou mesmo nos clássicos trabalhos de história econômica (Caio Prado, Celso Furtado5): a diplomacia comercial, a diplomacia financeira (inclusive a do Brasil enquanto credor dos países platinos), a diplomacia dos investimentos (aqui incluído o problema da tecnologia proprietária, isto é, das patentes industriais), aquilo que eufemisticamente se poderia chamar de "diplomacia da mão-de-obra" (continuidade, enquanto tanto se pôde fazer, do tráfico escravo, e atração de imigrantes europeus), bem como a emergente diplomacia "multilateral" (a exemplo daquelas primeiras "uniões" técnicas dedicadas aos correios, à telegrafia e à patentes). Não se poderia por outro lado esquecer da própria conformação institucional do "instrumento diplomático" brasileiro no século XIX, isto é, dos aspectos organizacionais envolvidos na formulação e execução da diplomacia econômica.
Todos esse campos oferecem interesse ao observador contemporâneo que deseje colocar em perspectiva histórica questões ainda relevantes do relacionamento econômico externo do país. Não é preciso, por exemplo, sublinhar a importância continuada, e mesmo crucial, da diplomacia comercial e financeira na história do desenvolvimento brasileiro, bem como para uma exitosa inserção econômica internacional do Brasil contemporâneo. Da mesma forma, ninguém disputaria o papel estratégico desempenhado pelos investimentos estrangeiros e por aportes de tecnologia avançada no aggiornamento da economia nacional. A diplomacia da força-de-trabalho constitui o que se chamaria atualmente de "política de recursos humanos": se hoje o Brasil deixou de ser o grande "importador" de imigrantes que foi até meados do século XX — tornando-se, ao contrário, um "exportador" moderado de mão-de-obra — ele ainda necessita do concurso do trabalho especializado vindo de centros mais avançados, assim como ele envia, regularmente, estudantes e técnicos para formação complementar no exterior.
No que se refere, por sua vez, à diplomacia multilateral, parece óbvio que, em sua vertente econômica, ela vem constituindo-se no campo de trabalho por excelência de uma política externa que deve operar cada vez mais nos limites, condicionalidades e desafios dos processos de globalização e de regionalização: se a política externa bilateral ainda não esgotou suas possibilidades de atuação, ela já não mais configura — salvo as exceções de praxe — o eixo preferencial ou exclusivo da atuação diplomática do Brasil no plano global e mesmo regional.
Um trabalho analítico desse tipo, centrado nas diferentes formas de atuação da diplomacia econômica e enfocando o conjunto das relações econômicas internacionais do Brasil no século XIX, pode, portanto, contribuir para um conhecimento mais acurado das linhas básicas do desenvolvimento brasileiro nos dois últimos séculos. A seção seguinte oferece, com a ajuda visual de um quadro analítico, um panorama geral dessas relações econômicas e da atuação da diplomacia nos campos selecionados para análise: comércio exterior e política comercial, finanças (empréstimos e créditos), investimentos diretos estrangeiros (e a questão das patentes), mão-de-obra (isto é, tráfico e imigração) e, por fim, organizações emergentes no campo técnico-econômico (multilateralismo incipiente).

ESTRUTURA E CONTEXTO
primeiro quadro analítico, em anexo ao ensaio, apresenta de forma sistemática, ainda que resumidamente, as principais questões constitutivas das relações econômicas do Brasil no século XIX, sob a forma de "problemas" — ou seja, processos e eventos — de que se ocupou uma diplomacia econômica ainda incipiente e por vezes insegura. Não se deve descurar o impacto dessas experiências iniciais — algumas delas podendo ser consideradas pioneiras no plano internacional ou regional — para a diplomacia e a política econômica externa brasileira no decorrer do século XX, uma vez que várias delas - no âmbito da política comercial, por exemplo - moldaram, não só o comportamento da corporação diplomática, mas também atitudes e reações das próprias elites dirigentes no decorrer do período republicano.
Com efeito, em relação a características essenciais do relacionamento externo do Brasil, não se pode deixar de detectar linhas de continuidade ou de ruptura entre o "breve" século XIX monárquico e o longo século XX republicano, como identificado e sumariado no segundo quadro analítico. Um estudioso da clássica dicotomia historiográfica entre ruptura e continuidade no processo histórico retiraria, sem dúvida alguma, ensinamentos sobre a notável preservação das linhas de atuação política do Estado brasileiro, tal como evidenciado nas vertentes selecionadas da diplomacia econômica no século e meio de vida independente desde o final do Primeiro Império. Dentre as mais importantes lições a serem retidas nesse particular pelos historiadores estão, provavelmente, a aguda consciência, por parte dos diplomatas profissionais, do atraso absoluto e relativo do país no contexto da ordem econômica internacional e, de forma conseqüente, a incessante busca de instrumentos operacionais e de alavancas materiais, alguns deles de natureza diplomática, para impulsionar o progresso da nação com a plena preservação da soberania política.
O discurso diplomático oitocentista brasileiro talvez pudesse ser classificado como "desenvolvimentista" avant la lettre, se essa noção não fosse anacrônica no contexto do século XIX. Persiste, contudo, e como tal emerge das páginas dos Relatórios e dos ofícios de um passado imperial hoje distante, uma espécie de consciência "embrionária" sobre a defasagem de "civilização", em relação ao modelo europeu, a ser colmatada pela Nação brasileira. A clara noção de que o Estado é a força unificadora de um projeto nacional que nunca existiu de forma clara no seio da assim chamada sociedade civil é o outro elemento que marcou, desde o século passado, a atuação da diplomacia econômica brasileira. Foi a burocracia pública enquanto tal — aristocrática, oligárquica ou tecnocrática segundo as épocas — que marcou e impulsionou a presença do Brasil nos mais diversos foros internacionais, e não necessariamente uma comunidade de "homens de negócios", uma "classe política" dotada de qualquer tipo de vocação "weberiana" ou ainda a presença eventual de pretensos estadistas "excepcionais", num e noutro século, aliás inexistentes, à exceção do interregno "bismarckiano" protagonizado por um ditador positivista (Vargas). Foi a própria corporação de homens públicos extraídos de setores das elites que alimentou e deu substância à atuação do Estado no plano do desenvolvimento econômico e no da afirmação externa da nação.
A classe diplomática representou, ao longo do período, um dos setores mais bem preparados, um dos mais eficientes e constantes nessa burocracia pública, cujos traços e características essenciais, ao longo do século XIX e em boa medida no começo da República, eram, lembre-se, mais "patrimoniais" do que propriamente "racionais-legais". Ao assegurar, na longue durée, a representatividade internacional do Estado brasileiro, a classe diplomática brasileira contribuiu para a sua construção e fortalecimento. De fato, ao trabalhar, basicamente, no Estado, pelo Estado e para o Estado, ela ajudou a construir, com sua parcela de esforços, a própria nacionalidade brasileira, consolidando, em última instância, uma sociedade civil que deixou a relativa anomia do período monárquico para afirmar um projeto próprio no decurso deste longo século republicano. Utilizando-se do conhecido moto republicano, pode-se dizer que coube à classe diplomática do período imperial utilizar-se das possibilidades oferecidas pela "ordem" internacional para impulsionar o "progresso" da nação. Em grande medida, a corporação parecer ter-se desempenhado bastante bem nessa missão.
primeiro quadro analítico apresenta, portanto, elementos essenciais para o estudo da diplomacia econômica no Brasil em suas etapas formadoras, bem para a identificação de suas conexões institucionais externas no quadro mais vasto das relações econômicas internacionais do país. Não se trata de refazer o itinerário das relações internacionais do Brasil no século XIX, tema de obras hoje clássicas da historiografia especializada e explorado de maneira já satisfatória em suas várias facetas, sobretudo a de cunho propriamente histórico-diplomático. Esse mapeamento foi conduzido por alguns grandes mestres da disciplina, a começar por esse "Clausewitz" da história diplomática brasileira que foi Pandiá Calógeras.6 Mesmo um historiador "heterodoxo" como José Honório Rodrigues, por exemplo, identifica os três grandes princípios de atuação da política exterior do Brasil a partir de 1822 como sendo os seguintes: a) a preservação das fronteiras contra as pretensões de nossos vizinhos e uma política de status quo territorial; b) a defesa da estabilidade política contra o espírito revolucionário, tanto interna (revoltas e secessões) como externamente (caudilhos do Prata); e c) a defesa contra a formação de um possível grupo hostil hispano-americano e a promoção de uma política de aproximação com os Estados Unidos.7 Os autores mais conhecidos e citados na vertente da história diplomática, como Hélio Vianna e Delgado de Carvalho, provavelmente não discordariam dessa enumeração feita pelo colega "revisionista" e contestador da tradição conciliadora, para não dizer "reacionária", da historiografia política nacional.
Aparentemente, com poucas exceções, não pareceria haver espaço, na historiografia corrente, para a inclusão de um grande tema "econômico" nas prioridades da política externa imperial. Certamente que a preservação do território e da unidade da nação, a manutenção da segurança política e da livre circulação nas fronteiras meridionais e a construção de um relacionamento positivo com os principais vizinhos figuraram entre os grandes objetivos dos estadistas do Império na frente externa. Mas, um outro grande tema de "política nacional" também comparece com freqüência nos discursos e na prática governamentais do período: a promoção das "indústrias" nacionais e nessa categoria devem ser primordialmente incluídos os interesses da grande lavoura de exportação, com destaque para o açúcar e o algodão, na primeira fase, e, crescentemente, para o café, a partir de meados do século e, com verdadeira obsessão, a partir da República. De fato, como se verifica no quadro analítico, um conjunto de outras questões ocupou o Estado em formação no processo de definição de seus interesses econômicos externos, com destaque para os elementos de política comercial, de diplomacia financeira, de mão-de-obra e de investimentos diretos estrangeiros.
Aqui se destaca o papel do Estado e o estudo da maneira específica pela qual foi exercida a "ação econômica externa" desse Estado. Esse papel foi decisivo e mesmo crucial em diversas instâncias do relacionamento econômico internacional do Brasil, seja na negociação de tratados bilaterais de "amizade, comércio e navegação" ou na contratação de empréstimos externos, seja na promoção ou defesa de aportes de mão-de-obra (ainda que "involuntários", como no caso do tráfico escravo) e na atração de capitais e tecnologia forâneos, seja ainda na construção e fortalecimento de um "instrumento diplomático" condizente com as ambições da nação, isto é, de um aparelho institucional capaz de marcar a presença brasileira nos mais diversos foros de elaboração da agenda econômica internacional.
As modesta.; dimensões sintético-analíticas deste ensaio — histórico, mas fortemente enraizado na economia, ou melhor dito, situado na confluência disciplinar da história das relações econômicas internacionais e da sociologia do desenvolvimento econômico do Brasil — não permite que se discuta exaustivamente as bases estruturais do relacionamento contraditório do Brasil com o sistema econômico mundial, certamente atípico no conjunto dos países periféricos.8 O objetivo, mais modestamente, é o de retraçar os processos formadores da diplomacia econômica brasileira, tal como colocados em ação em certos momentos-chaves de nossas relações econômicas externas e da própria conjuntura econômica internacional. Essa problemática foi definida de maneira mais ou menos clara, tal como evidenciada nos dois quadros analíticos que figuram em anexo ao artigo: uma política comercial resolutamente evolutiva; uma "diplomacia dos empréstimos" bem mais uniforme ao longo do período; uma diplomacia da "mão-de-obra" ambivalente, em termos de exigências contraditórias entre a manutenção do tráfico escravo e a atração de colonos europeus; uma diplomacia dos "investimentos" aberta e pioneira no que se refere às bases institucionais do aggiornamento tecnológico do país; uma diplomacia econômica, enfim, de ativa presença nos mais diversos foros internacionais e de amplo relacionamento bilateral com as potências da época.
As premissas básicas e as hipóteses de trabalho da pesquisa histórica, que aparece como relativamente original na literatura especializada, são as de que — para retomar uma conceitualização cara a Celso Lafer — a "ordem" internacional apresenta tanto oportunidades quanto desafios ao "progresso" da Nação, cabendo em grande medida à sua diplomacia responder de forma adequada aos segundos e aproveitar-se o mais possível das primeiras, de maneira a habilitar o país a continuar seu processo de desenvolvimento econômico e social. Dois grandes problemas de diplomacia econômica estavam em evidência no período imediatamente posterior à independência do Brasil: a revisão dos tratados de comércio e a questão do tráfico escravo, sem esquecer a questão adicional da dívida externa — mais de política econômica do que propriamente diplomática — construída na própria independência.
Outras questões serão acrescentadas ao longo do período analisado: a atração de capitais e de trabalhadores capacitados, a introdução no país de inovações técnicas produzidas nas nações avançadas e a plena participação nos congressos e foros internacionais que estavam construindo uma nova ordem econômica, típica da segunda revolução industrial. Como enfrentar esses desafios e como aproveitar-se das possibilidades abertas pela economia mundial em expansão, nas condições de um país da periferia que não tinha, obviamente, cumprido sequer os requisitos mínimos da primeira revolução industrial, constituíram, precisamente, tarefas ingentes com que se defrontaram seus diplomatas e, de modo geral, suas elites dirigentes. Não se deveria, contudo, praticar nenhuma "teleologia diplomática", no sentido de se pretender ou acreditar que essa diplomacia reconhecidamente embrionária e incipiente em sua vertente econômica — ainda que herdeira das boas tradições políticas da velha diplomacia lusitana, para aqui transplantada em 1808 — estivesse conscientemente orientada por um projeto nacional, auto-assumido, de engrandecimento da pátria, que seria a "busca do desenvolvimento econômico" pela via de uma exitosa inserção internacional, como se se tratasse de um Santo Graal diplomático.

A DIPLOMACIA ECONÔMICA BRASILEIRA NO SÉCULO XIX
Apresentadas de forma sintética algumas das características metodológicas do objeto em exame, vejamos em largos traços os elementos definidores da diplomacia econômica brasileira num e noutro século.
A relação do Brasil com a economia internacional do século XIX poderia, de modo geral, ser considerada como de caráter particular, basicamente assimétrica, é verdade, como no caso dos demais países latino-americanos, mas ela comportava igualmente elementos dinâmicos, de forte inclusividade institucional — expressa numa rede de acordos bilaterais, numa forte presença internacional e na participação precoce em congressos econômicos de natureza multilateral, por exemplo —, o que torna o estudo de sua inserção econômica internacional um modelo sui-generis no conjunto dos chamados países periféricos. As principais características da estrutura do relacionamento econômico externo durante o Império, ou seja, as especificidades do modo de inserção econômica internacional do Brasil no século XIX, os processos negociadores e o relacionamento econômico externo do País poderiam ser assim sumariados:
a) uma política comercial "instintiva", mais empírica do que doutrinai, marcada por uma "diplomacia evolutiva", desde o livre-comércio obrigatório, encontrado em sua "pia batismal", a uma espécie de protecionismo oportunista ou ocasional, menos motivado por preocupações industrializantes do que de fato impulsionado pela precariedade da base fiscal do governo;
b) na área financeira externa, uma "diplomacia dos empréstimos" que se desenvolveu ao longo de todo o período, derivada em grande medida da irresponsabilidade do Estado na frente orçamentária, com a dependência conseqüente de capitais estrangeiros; a "diplomacia dos créditos externos" é, por sua vez, excessivamente restrita, em termos geográficos (apenas países platinos) e em volume de recursos mobilizados, para justificar sua inscrição como categoria específica da diplomacia econômica do Brasil;
c) uma dupla "diplomacia da mão-de-obra", resultante da atestada incapacidade das elites em reestruturar radicalmente a organização social da produção, e que combinou tergiversações na questão do tráfico escravo e uma tímida política de atração de colonos europeus;
d) a prática empírica de uma "diplomacia dos investimentos", refletida no atento acompanhamento dos progressos tecnológicos em curso na Europa e nos Estados Unidos e numa prática ativa de atração de capitais produtivos e de novos inventos para o país; ela é, no entanto, mais reativa do que pró-ativa;
e) uma estrutura funcional-burocrática bastante eficiente na defesa de seus interesses econômicos externos, com uma profissionalização precoce do pessoal diplomático e um processo decisório amplamente interativo com os interesses da elite dirigente, por força do regime parlamentarista em vigor e da presença constante, aliás exclusiva, de representantes da classe política na chefia da Secretaria de Estado;
f) a busca, finalmente, de uma forte presença diplomática em todos os países importantes e em foros internacionais relevantes, de molde a colocar o Brasil no mesmo plano das demais "potências" do concerto internacional, conformando um exemplo de precoce diplomacia do multilateralismo econômico, certamente singular na periferia.
Em relação a este último aspecto, como explicar, por exemplo, que o Brasil tenha se antecipado a muitos outros países "avançados" da Europa e da América do Norte, em todo caso bem mais industrializados do que ele, na assinatura de convênios constitutivos de alguns foros relevantes da modernidade capitalista: uniões telegráfica e postal, consórcios para a construção de cabos submarinos, organizações de defesa da propriedade intelectual? Sua estrutura econômica e social era efetivamente atrasada, mas o fato é que sua diplomacia econômica — ou sua diplomacia tout court — era extraordinariamente avançada para os padrões da época, tanto do ponto de vista conceituai, como em termos de participação e de representação.
Uma diplomacia "fora do lugar"?
Teria ocorrido, no terreno da diplomacia econômica, e no da política externa de modo geral, uma espécie de reprodução daquelas "idéias fora do lugar" que a crítica literária e a sociologia política já detectaram em relação à experiência brasileira no campo cultural e político? À primeira vista, a analogia poderia parecer impertinente, mas não se poderia desprezar a hipótese, na medida em que a sociedade brasileira conformava, no século XIX, um exemplo raro, pelo menos no contexto dos demais países saídos da colonização ibérica, de institucionalismo avançado — consagrado no liberalismo parlamentarista — que se encontrava imerso numa estrutura social extremamente desigual e intrinsecamente perversa do ponto de vista dos direitos humanos e dos princípios da cidadania, pois que baseada no renitente escravismo e no elitismo entranhado das classes dominantes.
Dever-se-ia, por outro lado, interpretar a precoce participação brasileira nos foros embrionários da ordem global capitalista em gestação no século XIX como uma manifestação de uma "diplomacia econômica fora do lugar", pois que correspondendo de maneira muito tênue ou quase nada à capacitação tecnológica efetiva ou ao real potencial do país no campo econômico? Em termos, pois que, no século XIX, as diferenças de níveis de desenvolvimento, as disparidades de renda e o diferencial de intensidade tecnológica ainda não eram muito nítidos no cenário capitalista em que se movia a diplomacia "ornamental e aristocrática" do Brasil monárquico.
As idéias políticas e econômicas da avançada e "progressista" ordem escravocrata brasileira do século XIX não estavam tão fora do lugar quanto, na verdade, sua implementação efetiva, ou seja, a capacidade da elite de traduzi-las na prática, de torná-las guias para a ação, no penoso e desejado processo de equiparação do Brasil com as "potências" da época, estas sim verdadeiramente avançadas do ponto de vista econômico e social. O que realmente aparece como surpreendente na experiência histórica da diplomacia econômica brasileira, tal como praticada ao longo do século XIX, é sua grande capacidade analítica, sua organização avançada, sua forte presença política e geográfica nos mais diferentes foros abertos ao engenho e arte de seus representantes profissionais, num país que, finalmente, estava longe de conformar um paradigma do capitalismo pioneiro ou um palco ideal para o exercício das vantagens comparativas de um êmulo do "burguês conquistador" em sua versão tropical.
Essa contradição entre teoria e prática persistiu ao longo da história da diplomacia econômica brasileira, a despeito das diferenças marcantes entre o século XIX e o XX, sobretudo no terreno das políticas econômicas. Em todo caso, a diplomacia econômica brasileira parece ter desempenhado um certo papel na possível otimização do processo de desenvolvimento econômico do país. A grande questão, como salientado ao início deste ensaio, era a de saber se o instrumento diplomático a serviço do Estado nacional, no decorrer desse período histórico, poderia ser considerado, em face da ordem internacional que se apresentava ao Brasil externamente, como relativamente eficiente, funcional ou satisfatório, em termos de desenvolvimento econômico, isto é, do "progresso" da nação. Mas, esta última questão, de caráter valorativo, apresenta, antes de mais nada, relevância metodológica ou consistência analítica para fins deste trabalho? Pode-se, sem qualquer risco para a validade heurística dos argumentos aqui desenvolvidos, avaliar os representantes externos do Estado oitocentista brasileiro como simples instrumentos de uma idéia hegeliana no ato de sua materialização histórica, como a expressão de um .conceito universal? Estariam os diplomatas brasileiros, ao lutarem no plano internacional pelo "desenvolvimento" enquanto tal do país, encarnando uma "missão histórica" que lhes teria sido designada pela nação, ou foram eles relativamente indiferentes a tais projetos difusos de afirmação nacional?
Essas questões têm a ver com o padrão de desempenho político da diplomacia econômica do Brasil monárquico no contexto internacional, tanto no plano das negociações bilaterais, como em termos de participação substantiva nos debates "plurilaterais" em curso no período. Na primeira vertente, esse desempenho esteve fortemente vinculado à realidade do que depois veio a ser chamado de "excedentes de poder", bastante assimétrico no caso do relacionamento com as potências européias, mais igualitário ou até "hegemônico" no plano regional. Observou-se, na outra vertente, um certo engajamento da. diplomacia do Brasil na elaboração "redacional" das convenções constitutivas de algumas das organizações intergovernamentais emergentes, ainda que isso fosse seguido, nas fases ulteriores, de uma baixa "inclusividade" institucional nestas últimas. Mas, a experiência histórica da diplomacia brasileira, sobretudo na vertente multilateral, pode ser considerada como bastante relevante no contexto dos países "periféricos" e certamente é muito diferente daquela observada nos países vizinhos e mesmo na América Latina como um todo.
A diplomacia econômica
Uma grande mudança em relação ao cenário do século XIX é representado pelo caráter essencialmente multilateral da maior parte dos arranjos econômicos concertados no mundo interdependente de nossos dias. Com efeito, no século XIX, os tratados bilaterais de amizade, comércio e navegação — contendo ou não a cláusula de nação-mais-favorecida — representavam o instrumento mais utilizado na vida econômica externa dos países. Uma primeira regulação "multilateralista" das relações internacionais foi tentada no contexto do chamado sistema de Versalhes, mas, além de sua orientação revanchista e tipicamente político-militarista, ele deixava a desejar na seleção dos instrumentos e mecanismos mobilizados para fazer "reviver" o universo do padrão-ouro e o mundo do livre-cambismo, de resto mais proclamados do que reais. Algumas conferências foram convocadas, algumas reuniões mantidas sob a égide da Sociedade das Nações, mas muito pouco pôde-se fazer no espaço histórico da "segunda Guerra de Trinta Anos" em que parece ter vivido a Europa, e com ela grande parte do mundo, entre 1914 e 1945.
Apenas a partir da segunda metade do século XX, e com maior vigor a partir dos anos 1960. os acordos multilaterais começaram a suplantar os instrumentos bilaterais enquanto mecanismos reguladores da vida econômica das nações. Inaugurados timidamente no último terço do século XIX, durante a fase do capitalismo triunfante, mas interrompidos logo depois pelos desastres políticos, econômicos e sociais das duas guerras mundiais e mais particularmente pelos fenômenos da depressão e do protecionismo dos anos 1930, os instrumentos multilaterais passam a estar no centro da reconstrução da ordem econômica internacional, que começou a ser elaborada, sob a égide da ONU, em bases essencialmente contratuais e institucionalistas. Os países, sob a discreta pressão da potência hegemônica nessa época, os Estados Unidos, "aceitam" transferir uma parte de suas soberanias respectivas — ou melhor, de suas competências reguladoras — em favor de uma administração concertada de alguns setores da vida econômica, sobretudo no campo do comércio, das finanças e dos meios de pagamentos (e adicionalmente no da regulação de alguns aspectos da vida produtiva, como o das relações de trabalho, por exemplo).
Bretton Woods (julho-agosto de 1944: criação do FMI e do Banco Mundial) é o marco inicial desse processo "fundador" multilateral, que se desdobra igualmente em múltiplas conferências econômicas: emergência do GATT, surgimento da UNCTAD, criação da ONUDI e de diversos outros foros para inserir os países menos avançados na economia mundial. As grandes mudanças nos cenários político e econômico mundiais, nos anos 1980, com a fragmentação política do chamado Terceiro Mundo, a emergência da Ásia e a derrocada econômica do mundo socialista, acarretaram situações inéditas do ponto de vista das relações internacionais, sobretudo em sua vertente econômica.
De modo geral, as instituições de Bretton Woods, a OCDE e a nova Organização Mundial do Comércio ganham relevância em relação à UNCTAD, que pretendeu ser, nos anos 1970, o principal foro negociador de urna "nova ordem econômica internacional". A OMC, por exemplo, passou a ser encarregada de administrar, desde 1995, os resultados da mais complexa rodada de negociações comerciais multilaterais — envolvendo agricultura, serviços, investimentos e propriedade intelectual, por exemplo — já conhecida na história econômica contemporânea. O FMI e o BIRD se vêm confrontados, cada um à sua maneira, a gigantescos fluxos de capitais voláteis ou a necessidades insaciáveis de capitais para investimentos, num contexto de instabilidade crescente dos mercados financeiros. A OCDE se lança em iniciativas — como a negociação de um Acordo Multilateral sobre Investimentos — que passam a evidenciar um novo papel negociador, ademais de suas tradicionais funções enquanto foro de coordenação de políticas macroeconômicas.
Vejamos como podem ser resumidas, novamente, as principais características da estrutura político-institucional do relacionamento econômico externo do Brasil na atualidade, segundo um modelo analítico que guarda uma certa conexão com os padrões vigentes no século XIX:
a) uma diplomacia comercial não mais "instintiva", mas bastante racional, muito pouco doutrinai e de fato "pragmática", ainda marcada por um caráter "evolutivo", mas plenamente inserida num projeto desenvolvimentista, recusando tanto a ideologia do livre-comércio como o protecionismo aberto e, à diferença do século XIX, em nada motivada por preocupações fiscalistas, mas sim por objetivos claramente industrializantes e de penetração de mercados;
b) na área financeira, uma "diplomacia dos empréstimos" bastante cautelosa na definição do grau de exposição externa, derivada de experiências de estrangulamento em certos períodos, o que acarretou um novo sentido de responsabilidade da parte do Estado e de seus gestores na área orçamentária, agora bastante conscientes do efeitos indesejados da incômoda dependência antes existentes em relação aos capitais estrangeiros; o mesmo poderia ser dito, com as ressalvas de praxe, da atuação do Brasil enquanto credor;
c) uma "diplomacia da mão-de-obra" que não mais se traduz na livre importação de "braços", mas que é ineficiente, quando não desadaptada, para a tarefa de importação de "cérebros", privilegiando as formas clássicas de cooperação internacional na formação e treinamento de recursos humanos e tendo agora de dispender recursos escassos para montar um aparato eficaz para o atendimento das muitas demandas resultantes da "exportação" de "braços";
d) a prática ainda largamente empírica de uma "diplomacia dos investimentos", ou seja, a captura de frações por vezes significativas dos capitais de risco internacionais, mais em virtude da atratividade do mercado interno do que propriamente em função de uma política deliberada de acolhimento, combinada a uma grande abertura em relação à modernidade tecnológica, embora relutante, neste caso, em relação à remuneração da tecnologia proprietária e dos direitos associados; nesse sentido, a permanência é notável, mas as lições não são muito instrutivas, pois o País continua pouco preparado para conceber, montar e desenvolver o que foi chamado de "modo inventivo de produção", mantendo sua atitude reativa nesse campo;
e) a preservação de uma estrutura funcional-burocrática basicamente profissionalizada e funcionando sob padrões quase que weberianos de eficiência administrativa; a ruptura histórica se dá no terreno da chefia da Secretaria de Estado, com um menor apelo, que torna-se de certa forma irregular, aos líderes civis e político-partidários, mas essa situação deriva da constante instabilidade do regime republicano e de uma mudança fundamental nos critérios de cooptação das elites e nos padrões de mobilidade ascensional do estamento diplomático;
f) a busca, finalmente, de ama forte presença diplomática em todos os foros internacionais relevantes e de um ativo relacionamento com os parceiros economicamente mais importantes — o atual G-7 — com vistas à maximização de ganhos no plano da inserção externa, de molde a colocar o Brasil o mais próximo possível dos centros de decisão internacional: aqui também, a continuidade espiritual e material com a diplomacia do século XIX é notável.
Um resumo das lições de "história econômica externa" desses dois séculos, cujo resumo é feito no quadro analítico sobre a evolução conceitual da diplomacia econômica no Brasil, poderia ser lido da seguinte maneira: cautela nos processos de liberalização comercial, fragilidade financeira, sucessos parciais nos investimentos e na captação de tecnologia, fraca absorção de mão-de-obra e impacto negativo do escravismo renitente praticado até pouco mais de um século atrás sobre a estrutura social contemporânea, boa inserção nos diversos foros do multilateralismo econômico e excelente instrumento diplomático, capaz de inserir o Brasil em todas as frentes de negociações internacionais.
O que ainda pode ser revelado num trabalho analítico desse tipo é, também, o sentido de permanência e de continuidade da diplomacia econômica, bem como o papel essencial desempenhado pelo Estado em escolhas dramáticas que tiveram de ser operadas nos 180 anos de vida independente: o eterno conflito entre liberalismo e protecionismo na política comercial, a não menos importante questão da abertura ou do fechamento aos interesses estrangeiros na exploração de certas atividades econômicas na frente interna, o apelo a recursos financeiros externos para a sustentação dos freqüentes desequilíbrios orçamentários e das cronicamente deficitárias transações correntes da balança de pagamentos, a decisão quanto às relações sociais que deveriam predominar na estrutura produtiva e o próprio grau de profissionalismo burocrático a ser imprimido à representação externa do Governo, em contraste com uma maior "osmose" do corpo diplomático em relação à sociedade civil.
Velhas questões, novos desafios: no limiar do século XXI
O itinerário passado das relações econômicas internacionais e das instituições intergovernamentais de cooperação que delas derivam, bem como suas tendências evolutivas neste século e meio de construção de uma "ordem econômica internacional", tal como vistos pelo ângulo da experiência histórica da diplomacia econômica do Brasil, ensinam talvez que o processo de desenvolvimento deve ser, cada vez mais, pensado em escala global e que nenhum país pode continuar a conceber suas políticas setoriais e macroeconômicas numa perspectiva puramente nacional. O mundo do futuro pertence tanto aos Estados nacionais — cujo pretendido "fim", anunciado por alguns profetas, não parece próximo de realizar-se — quanto às organizações internacionais: como evoluirão as relações entre esses dois tipos de entidades é uma questão ainda em aberto, inclusive para o Brasil, que participa de um processo de integração, o Mercosul, que poderá, em última instância, influenciar de maneira decisiva sua maneira de se relacionar com a comunidade internacional.9
No que se refere às diferenças entre o século XIX e o século XX, do ponto de vista da "macropolítica" institucional, caberia ter presente as enormes diferenças entre os respectivos cenários políticos e econômicos internacionais sob os quais teve de atuar a cautelosa "diplomacia imperial" e sob os quais deve atuar, atualmente, a "diplomacia republicana" agora centenária. Há, em primeiro lugar, uma grande mudança na quantidade e também na "qualidade" dos atores participando do chamado "jogo internacional". Com efeito, no Congresso de Viena, em 1815, estiveram representadas apenas oito nações "cristãs", Portugal em virtude de sua relação privilegiada com a Grã-Bretanha e basicamente no contexto de seu envolvimento, embora involuntário e marginal, com o grande "drama napoleônico" que agitou a Europa na seqüência da Revolução francesa. As relações de força e de poder desenhadas naquela primeira grande conferência diplomática da era contemporânea continuaram a dominar os desenvolvimentos diplomáticos (e militares) durante a maior parte do século XIX, relações de poder algo temperadas, é verdade, pela Doutrina Monroe — proclamada unilateralmente pelos Estados Unidos, secundados pela própria Grã-Bretanha — e seu modesto poder de coerção ou de "dissuasão" contra as potências recolonizadoras da Santa Aliança. Já na conferência de paz de Paris, de 1856, participaram tão somente algumas poucas nações "civilizadas" da Europa, proclamando princípios (como os da guerra marítima) que depois seriam "oferecidos" ao resto da comunidade "civilizada", inclusive ao Brasil.
Mais para o final do século, o leque de participantes do "sistema" internacional continua a ser ampliado, um pouco por consenso, outro tanto devido ao reconhecimento da emergência de novos atores, como seria o caso do Japão depois de suas vitoriosas guerras contra a China e a Rússia. Na primeira conferência de paz da Haia (1899), por exemplo, participaram tão somente 26 países, número elevado a 44 na segunda conferência (1907). A Liga das Nações começou a trabalhar com 42 países até alcançar 63 membros na sua fase de maior expansão nos anos 1930 (mas, diversos países dela se retiraram, como "pioneiramente" o Brasil (1926) e, mais tarde a Itália mussoliniana e a Alemanha hitlerista). As Nações Unidas, finalmente, encetaram sua missão universal de paz e desenvolvimento com pouco mais de 50 países membros, alcançando quase 200 neste meio século de existência. Esse movimento de "democratização" e de ampliação da "base censitária" do sistema internacional tem sua equivalência no plano dos processos de democratização social e política das principais sociedades ocidentais, com uma lenta mas segura incorporação das massas operárias aos benefícios da democracia política e do Estado de bem estar; nessa evolução secular, o Brasil originalmente monárquico também abandonou o sistema de voto censitário e as formas mais gritantes de exclusão social em favor de formas restritas de inclusividade social no período republicano, movimento acelerado no Estado varguista e completado na fase recente.
Em outros termos, a "comunidade internacional" — isto é, os participantes dos "negócios internacionais" — se ampliou e se democratizou bastante em relação aos padrões conhecidos no século XIX. As autorizações oficiais para "guerra de corso", finalmente, foram banidas desde 1856 e não se encontram mais em moda "presas" e "butins". Muito embora os bloqueios e a "diplomacia da canhoneira" possam estar ainda eventualmente em uso, deve-se reconhecer que a força do direito tende a ampliar sua margem de atuação em relação ao direito da força. Trata-se de um desenvolvimento significativo em relação ao realismo cru do século XIX, quando navios de guerra das nações "civilizadas" se achavam no direito de violar impunemente, em nome de um conceito auto-assumido de "justiça", as águas territoriais e, como ocorreu em algumas ocasiões, até mesmo os portos brasileiros.
Por outro lado, a despeito de uma configuração basicamente "liberal" apresentada pela "ordem econômica internacional" no século XIX e, inversamente, das tendências fortemente estatizantes, intervencionistas e protecionistas observadas no século XX, assim como das tentativas frustradas de construção de uma "nova ordem econômica internacional" no período recente, deve-se enfatizar a crescente interdependência do mundo econômico contemporâneo. A revolução industrial, agora em sua terceira geração, chegou à periferia, alterou radicalmente fluxos de intercâmbio de bens, serviços e capitais e continua produzindo grandes modificações nos padrões de distribuição da riqueza e da tecnologia proprietária em nível mundial. Certamente que, em termos de poder e dinheiro, a "oligarquia econômica mundial" não é muito diferente hoje do que ela era em meados ou finais do século XIX, mas novos atores entram em cena — as chamadas "economias emergentes" — e os termos do intercâmbio global não reproduzem mais necessariamente, pelo menos para alguns desses atores, o tradicional padrão Norte-Sul de trocas entre bens primários e produtos manufaturados.10
Mais importante ainda, uma fração crescente do "poder regulatório internacional" deixou a esfera puramente bilateral das relações entre Estados soberanos para concentrar-se cada vez mais no seio de organizações inter-governamentais dotadas de staff técnico capacitado para lidar com os complexos problemas da agenda econômica internacional. É evidente que o poder real de propor, negociar e implementar medidas efetivas de acesso a mercados ou normas disciplinadoras das relações econômicas internacionais permanece e permanecerá com os Estados individuais, mormente com os mais poderosos dentre eles. Mas, não resta dúvida que a emergência do multilateralismo econômico representa um enorme avanço sobre a era dos "tratados desiguais" do século XIX. Em suma, o cenário sob o qual atuaram os responsáveis pela diplomacia econômica do Brasil imperial é, em grande medida, irrelevante para os padrões de atuação e de comportamento dos atuais diplomatas "republicanos" envolvidos nessa área específica das relações internacionais do Brasil. Ainda assim, os problemas selecionados para análise neste ensaio histórico — atinentes à diplomacia comercial, financeira, de investimentos e tecnologia, de "recursos humanos" e da própria organização institucional dessa diplomacia — permanecem, se não os mesmos, pelo menos basicamente similares, ou apresentando desafios tão ou mais cruciais do que aqueles enfrentados por nossos antecessores.
A avaliação secular do "instrumento diplomático", tal como conduzida neste ensaio, deixa certamente a impressão, e talvez mesmo a certeza, de um notável senso de continuidade na política externa brasileira. Trata-se não apenas de uma espécie de gratificação intelectual para os atuais herdeiros dos diplomatas do Império, mas também de uma pragmática fonte de inspiração para aqueles que devem conduzir, no limiar do século XXI, os destinos do Brasil no plano internacional.


* O presente trabalho está baseado em pesquisa histórica de amplo escopo temporal centrada sobre as relações econômicas internacionais do Brasil. Os primeiros resultados dessa pesquisa, enfocando o período imperial, foram apresentados em 1997, em versão resumida e sob a forma de tese, no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores, estando prevista sua divulgação pública, já no formato ampliado, sob o título: Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (Brasília: Editora da UnB, 1999; em curso de edição). Uma segunda parte da pesquisa, cobrindo o período 1889-1945 e provisoriamente intitulada A ordem internacional e d progresso da Nação: as relações econômicas internacionais na era republicana, encontra-se atualmente em preparação.
1 Ver meu artigo "A economia da política externa: a ordem internacional e o progresso da nação", Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília: vol. 39, nº 1, jan.-jun. 1996, p.110-119, integrado ao livro Relações Internacionais e Política Externa do Brasil: dos Descobrimentos à Globalização. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998.
2 Apresentei um resumo da pesquisa nesta área no artigo "O Brasil e a diplomacia do tráfico (1810-1850)", Locus, Revista de Historia. Juiz de Fora: Núcleo de História Regional/Editora UFJF, 1998, v.4, n. 2, p. 7-33.
3 Cf. Pierre Chaunu, A História como Ciência Social: A Duração, o Espaço e o Homem na Época Moderna. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, p. 69.
4 Cf. Delgado de Carvalho, [Carlos]. História Diplomática do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959;  Hélio Vianna, "História Diplomática do Brasil" in História da República-História Diplomática do Brasil. 2ª ed.; São Paulo: Melhoramentos, s.d. [1962?], pp. 89-285 (1ª ed.; São Paulo: Melhoramentos, 1958).
5 Caio Prado Jr., Formação do Brasil Contemporâneo, Colônia. 14ª ed.; São Paulo: Brasiliense, 1976; História Econômica do Brasil. 2ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1949; Celso Furtado, Formação Econômica do Brasil. 14ª ed., São Paulo: Nacional, 1976.
6 Ver J. Pandiá Calógeras, A Política Exterior do Império, Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, Câmara dos Deputados, Companhia Editora Nacional, 1989, 3 vols.; a caracterização de "Clausewitz" foi atribuída por Alceu de Amoroso Lima em 1934 e é citada na introdução de João Hermes Pereira de Araújo à edição fac-similar dessa obra clássica; ver também minha apreciação do autor e da obra em "Estudos de relações internacionais do Brasil: etapas da produção historiográfica brasileira, 1927-1992", Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília: ano 36, nº 1, jan.-jun. 1993, pp. 11-36.
7 Essa enumeração sintética comparece em sua obra póstuma, editada e completada por historiador diplomático do século XX; ver José Honório Rodrigues e Ricardo A. S. Seitenfus, Uma História Diplomática do Brasil, 1531-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, p. 60.
8 Não cabe aqui uma discussão de caráter sociológico sobre a natureza do desenvolvimento brasileiro e seu relacionamento externo no contexto do capitalismo "conquistador" do século XIX, objeto de toda uma literatura especializada, desde os autores clássicos, como Celso Furtado, até as interpretações mais radicais do tipo Gunder Frank, situando o Brasil no quadro do neo-colonialismo do século XIX, passando pelas concepções mais em voga durante uma certa época sobre a inevitável "dependência" da formação social brasileira, segundo as melhores receitas da teoria "periférica" de inspiração cepaliana.
9 Remeto, a esse propósito, a meu livro Mercosul: Fundamentos e Perspectivas. São Paulo: LTr, 1998, assim como ao artigo "Brazil and the future of Mercosur: Dilemmas and options", Integration and Trade, Buenos Aires: BID-INTAL, vol. II, nº 6, set.-dez. 1998, pp. 59-74.      
10 Essas questões foram abordadas com maior grau de detalhe em meu livro O Brasil e o Multilateralismo Econômico. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1999.   

Balanco da Politica Externa dos Governos Petistas - Rubens Barbosa (Revista Interesse Nacional)

Artigo do embaixador Rubens Barbosa, que faz uma avaliação completa dos "anos loucos" da diplomacia lulopetismo, um parênteses bizarro em nossa política externa. Tratei dos mesmos temas e fiz críticas similares – até mais fortes – em meu livro: Nunca Antes na Diplomacia...: A política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014, p. 289; ISBN: 978-85-8192-429-8; informação disponível em meu blog: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/07/nunca-antes-na-diplomacia-todos-os.html).
Paulo Roberto de Almeida


Balanço da Política Externa dos Governos Petistas

Rubens Barbosa
Revista Interesse Nacional,  Ano 10, Número 40, Fevereiro - Abril de 2018

Os 14 anos da política externa desenvolvida pelos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) merecem um estudo mais sistemático. Embora não haja  a pretensão de esgotar o assunto, parece apropriado fazer um balanço dos resultados das opções estratégicas assumidas desde 2003 e algumas acentuadas a partir de 2011.
A eleição do presidente Lula trouxe uma visão diferente de mundo: dualidade entre os países ricos e pobres; combate à opressão capitalista e imperialista; e mudança da dependência externa brasileira.
O declínio do poderio dos EUA e a crítica ao processo de globalização econômica e financeira estavam no centro da visão de mundo do lulopetismo, que requentou temas da esquerda da década de 1960 contra a opressão capitalista e o imperialismo.
A retórica oficial ressaltou o interesse do governo em mudar a geografia política, econômica e comercial global pelo fortalecimento do multilateralismo e pelo fim da hegemonia dos EUA, por meio da reforma dos organismos internacionais e, em especial, do Conselho de Segurança da ONU. Como corolário, políticas começaram a ser desenhadas para mudar o eixo da dependência comercial do Brasil pela redução da influência dos países desenvolvidos e pelo aumento da cooperação com os países em desenvolvimento.
A relações Sul-Sul passaram a ser uma das prioridades da política externa com maior aproximação e ativismo na América do Sul, na África e no Oriente Médio e a participação nos blocos integrados por países dessas regiões e outros emergentes (Brics, Ibas, Unasul, Celac).
Ampliar a integração regional e fortalecer o Mercosul e sua expansão para formar uma área de livre comércio na América do Sul, como forma de oposição aos EUA, foram outras vertentes da política externa que afetaram as reais prioridades do Brasil no seu entorno geográfico.
A ação da política externa e de comércio exterior dessas administrações partiu de premissas e percepções que se provaram equivocadas. As prioridades do Itamaraty (África, Oriente Médio, Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), América do Sul, China, Mercosul) foram, em grandes linhas, as mesmas dos governos anteriores. O que mudou foram a ênfase e a forma da implementação das políticas por influência da plataforma de um partido político.
As consequências dos erros na condução da política externa acarretaram a redução da voz do Brasil no concerto das nações e o isolamento do país nas negociações comerciais externas. A avaliação das opções estratégicas dos governos do PT na área externa mostra resultados em geral contrários aos interesses nacionais.
A partidarização da política externa ficou nítida desde o início do primeiro mandato de Lula pela perceptível influência do PT no processo decisório do Itamaraty. O primeiro sinal disso foi a nomeação de um quadro importante do PT para a função de assessor internacional da Presidência. Já em 2003, o ministro das Relações Exteriores indicava essa partidarização ao afirmar em discurso que “em todo o processo de mudança de governo, de mudança de orientação política, em muitos aspectos, temos de levar em conta duas situações: primeiro, uma natural afinidade das pessoas com a orientação política do governo, do presidente da República, do ministro de Estado e também, naturalmente, a competência profissional. Somos um corpo profissional por excelência, mas que deve estar entusiasticamente engajado com certas linhas políticas, com certas orientações”. O ministro acabou se filiando ao PT em 2009, gesto inédito entre os diplomatas que foram ministros do Exterior encarregados de executar uma política de Estado, e não apenas de um partido.
A aplicação da plataforma do PT com a partidarização da política externa e a criação na América Latina de canal paralelo ao do Itamaraty, ocupado pelo assessor internacional, como disse Lula em discurso no Itamaraty, em 2004, culminou com a política de afinidades ideológicas, generosidade e paciência estratégica nas relações econômicas e comerciais com os países sul-americanos, como Venezuela, Argentina, Bolívia, Cuba, e com países africanos.
No governo Lula, em especial no primeiro mandato, o ativismo da política externa, respaldada pelo crescimento e estabilidade da economia, buscava um espaço de influência para bem além do contexto sul-americano. A busca de protagonismo para projetar o Brasil como um agente político global, segundo o presidente Lula, tentando ajudar a resolver conflitos por meio da negociação, pressupunha uma capacidade de avaliação e de coleta de informações, que, como se viu, o serviço externo brasileiro não estava plenamente habilitado a desenvolver.
Embora a economia tenha sofrido grande abalo em função de políticas equivocadas, a partir de 2008, quando eclodiu a crise global (marolinha na visão simplista de Lula), a política externa é um dos pontos mais vulneráveis do governo Lula/Dilma, pelos erros que se repetiram e pelos minguados resultados que apresentaram. Pouco restou das bravatas repetidas por Lula de querer liderar a América do Sul, de mudar o eixo da dependência externa econômica e comercial do Brasil e de contribuir para modificar a geografia econômica, política e comercial no mundo.

Prevaleceram afinidades ideológicas

Tornando-se ideológica e partidária, a política externa do PT quebrou o consenso interno porque faltou equilíbrio entre a defesa de princípios permanentes e do interesse nacional. Na região, assumiu uma agenda que não era a nossa e, por isso, a ação do Itamaraty tornou-se passiva e reativa, deixando o Brasil a reboque dos acontecimentos: prevaleceram as afinidades ideológicas e a paciência estratégica, que prejudicaram o processo de integração regional e paralisaram o Mercosul. No concerto das nações, nos últimos quatro anos, o Brasil se retraiu e baixou sua voz, reduzindo sua contribuição nas grandes discussões do cenário internacional.
Demos as costas para importantes nações democráticas e abraçamos regimes de inclinação totalitária, em flagrante contraste com as melhores tradições da nossa diplomacia. A partidarização da política externa teve consequências severas na política de comércio exterior: acentuou o isolamento do Brasil e do Mercosul nas negociações comerciais; produziu atritos, em lugar de cooperação produtiva; e empobreceu nossa pauta de comércio, em vez de dinamizar trocas e oportunidades. Foi mantida uma estratégia de negociações comerciais bilaterais, regionais e globais, que isolou o Brasil, não permitindo sua inserção nas cadeias produtivas globais, que representam hoje 56% do comércio global e 72% dos serviços.
Deixaram de ser cumpridos os princípios constitucionais de não ingerência e defesa da soberania, seguidamente desrespeitados nos governos do PT no altar da ideologia. A credibilidade, a independência, o equilíbrio e os valores (democracia e direitos humanos) que apoiamos internamente não foram respeitados na política externa.
A presidente Dilma Rousseff manteve intacta a política externa dos oito anos do presidente Lula. Essa política continuava a não responder ao interesse nacional em um momento de grandes transformações políticas e econômicas em que vivíamos com desafios não atendidos e oportunidades não aproveitadas pelo Brasil.
As principais linhas de atuação do Brasil no governo Dilma seguiam sendo as mesmas do governo Lula:
  • dimensão sul-americana (integração regional, América do Sul, relação estratégica com a Argentina, Mercosul e novas instituições (Unasul, Celac, Conselho de Defesa);
  • negociações comerciais: multilaterais (Rodada Doha), regionais (Mercosul) e bilaterais;
  • fortalecimento das alianças com o Sul (África do Sul, Índia, China e Rússia (Brics), países africanos e do Oriente Médio;
  • multilateralismo (fortalecimento da ONU e busca de assento permanente no Conselho de Segurança, atitude crítica ao funcionamento das instituições financeiras internacionais (Banco Mundial e FMI) e fortalecimento da Organização Mundial de Comércio (OMC).

Principais prioridades não apresentaram resultados

No discurso oficial, houve uma grande distância entre a retórica e a realidade. As principais prioridades da política externa não apresentaram resultados, a negociação multilateral fracassou e o Brasil não buscou alternativas como aconteceu com todos os outros principais países (EUA, China, União Europeia, Japão, Índia), não houve a reforma do CSNU e a política na região permaneceu sem rumo. Assim, os resultados da política externa não corresponderam à importância que o Brasil tinha na região e no mundo.
Deve-se reconhecer que houve avanços e êxitos, que ocorreram quando o Itamaraty pôde atuar como principal formulador da política externa. A iniciativa de institucionalizar o Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), em 2006, o Ibas (Índia, Brasil e África do Sul), a institucionalização das reuniões de chefes de Estado da África e do Oriente Médio com os presidentes da região, o convite para participação da reunião de Annapolis para discutir a crise entre Israel e Palestina, a criação da Unasul e da Celac e o acordo com a OCDE, em 2014, foram importantes decisões nos governos petistas. A intervenção do Brasil na crise entre os EUA e o Irã, relacionada com a suspeita de que o regime teocrático de Teerã estaria desenvolvendo um programa nuclear para fins militares, e não apenas para uso civil, foi positiva na medida em que propunha a negociação diplomática para superar as dificuldades e desconfianças existentes. A forma como a operação foi executada, entretanto, serviu para provar que tínhamos ainda um longo caminho de aprendizado a percorrer antes de poder empunhar, de forma madura e com credibilidade, a bandeira de salvadores da paz mundial.
Poderíamos ter ensaiado nossos bons ofícios nos conflitos entre nossos vizinhos, tentando ajudar, por exemplo, a Argentina e o Uruguai a resolver suas diferenças no caso da instalação da fábrica de celulose na fronteira e as disputas entre a Colômbia e Venezuela, que quase levaram os dois países a um conflito armado. Em ambas as questões, o Brasil optou por se omitir, preferindo iniciar sua ação pacificadora no conflito entre palestinos e israelenses no Oriente Médio e na disputa entre EUA e Irã.
Essas decisões colocaram em causa o julgamento dos formuladores da política externa lulista quanto à identificação do que deveria ser, de fato, nosso interesse, e à capacidade de avaliação objetiva das informações coligidas pela eficiente rede do Itamaraty. Sem entrar no mérito da discussão da crise em si mesma, ficou evidente a série de erros de avaliação por parte do governo brasileiro quando tomou a decisão de negociar o acordo com o Irã, que Teerã ameaçava romper, caso as sanções tivessem sido aprovadas. A avaliação do governo Lula foi equivocada quanto ao peso dos interesses estratégicos e comerciais da China e da Rússia no Irã e nos EUA, na disposição dos dois países de apoiar os esforços do Brasil. As percepções quanto ao estímulo indireto de Obama a Lula para negociar com o Irã e a determinação dos EUA de levar adiante o projeto de resolução com sanções no Conselho de Segurança da ONU também foram erradas. Nossa diplomacia ignorou as pressões internas e externas sobre o governo Obama que forçaram o abandono das negociações com o Irã e a previsível reação de Washington contra a intromissão de novos atores em assuntos que, de forma monopolística, consideram de sua exclusiva responsabilidade. O presidente Lula perguntou corretamente onde isso estava escrito, mas as duras palavras de Hillary Clinton, poucas horas depois do acordo de Teerã, indicaram onde estava o poder real. Por outro lado, não houve uma adequada avaliação dos prejuízos que o apoio ao Irã poderia trazer para o Brasil.

Questões estratégicas e de defesa: avaliação equivocada

Ao se inserir numa questão tão sensível e que envolvia a própria segurança nacional dos Estados Unidos, atrás de ganhos de prestígio, o Brasil pareceu ter minimizado o risco de que as relações com os EUA pudessem ficar afetadas pela iniciativa brasileira, prevalecendo a percepção do PT de que os EUA estavam em decadência e que outros centros de poder estavam emergindo e transformando o mundo em multipolar. Embora isso seja verdade para as decisões na área econômica e política, onde não há mais possibilidade de imposições dos países desenvolvidos sobre os países emergentes, a avaliação foi equivocada ao se julgar que o mesmo valeria também para as questões estratégicas e de defesa, nas quais os EUA continuavam como a única superpotência, sem declínio ou perda de poder.
Mais grave foi o reconhecimento feito pelo presidente Lula de que sabia que esse passo significaria uma aposta grande e que não tinha nada a ganhar. Segundo se noticiou, um alto funcionário teria também declarado que os entendimentos com o Irã poderiam comprometer as intenções do Brasil em conquistar um lugar permanente no Conselho de segurança da ONU e que poderiam ser explorados pela oposição como uma aventura ou um fracasso. Mas, mesmo assim, valeria a pena.
Os retrocessos na ação diplomática ocorreram nas áreas em que as políticas tradicionais foram influenciadas por tendências ideológicas e partidárias, como ocorreu com Mercosul, integração regional, relações comerciais com a África e com o Oriente Médio, estratégia de negociações comerciais, sumiço do Brasil no cenário internacional e a perda de credibilidade do Itamaraty, tanto interna quanto externamente.
Talvez o incidente diplomático mais grave no período de Dilma Rousseff tenha sido a questão da espionagem da National Security Agency (NSA) no governo e em empresas brasileiras. A decisão final do governo brasileiro de adiar a visita de Estado a Washington evitou o radicalismo proposto pelo PT que, além do cancelamento da visita, queria a retirada do embaixador em Washington e a expulsão de elementos da NSA e da CIA lotados na Embaixada dos EUA em Brasília. A decisão de adiamento foi menos uma bravata confrontacionista e mais uma reação natural a práticas ilegais de interceptação de comunicações e dados de cidadãos, empresas e membros do governo. O pedido de desculpas feito pela presidente Dilma ao presidente Obama não foi atendido. O adiamento da visita a Washington fez com que acordos não tenham avançado, prejudicando nossos interesses.
O processo decisório na política externa, a exemplo de outros países, termina na presidência da República. O presidente constitucionalmente é o responsável pela condução de todas as políticas, inclusive a externa, assessorado por seu ministro do Exterior.
Nunca antes na história deste país a presidência influiu tanto nas questões e nos cursos de ação para a tomada de decisão, que ao Itamaraty cabe analisar e recomendar.  Não é segredo o desapreço com que o Itamaraty foi tratado por parte da presidente Dilma Rousseff nos últimos anos e a pouca importância que foi dada às posições tradicionais recomendadas pela Chancelaria nos problemas que afetavam diretamente o interesse nacional.

Esvaziamento do Itamaraty

O Itamaraty deixou de ser o primeiro formulador e coordenador em matéria de projeção internacional do país, em virtude de interferências indevidas em seu trabalho analítico e em seus processos decisórios. No início do segundo mandato, o governo Dilma até ensaiou alguma evolução na política externa e na negociação comercial externa. Porém, em tempos de ajuste da economia, o governo se viu diante de uma escassez de meios que limitavam a ação externa. Os resultados das conversações mais profundas com os EUA e com a Alemanha foram limitados. Houve mais boas intenções do que ações concretas. Prosseguia, no entanto, a influência partidária, como evidenciado pela não retomada do acordo de salvaguardas tecnológicas com Washington.
O esvaziamento da Instituição e a fragmentação externamente induzida nas suas posturas e no seu modo de operar, acelerados no governo Dilma, decepcionam a sociedade brasileira. Foram retiradas da Chancelaria áreas de sua competência e foram crescentes as dificuldades para a alocação de recursos compatíveis com as novas demandas externas e proporcionais à presença ampliada do Brasil no mundo com a decisão apressada de criar 16 novas embaixadas.
Cabe mencionar alguns episódios de domínio público – muitos outros não são conhecidos – em que ficou evidenciada a decisão dos presidentes Lula e Dilma de afastar a Chancelaria e de levar o Brasil a omitir-se por razões de preconceito ideológico ou considerações partidárias de afinidades ideológicas, em muitos casos, com a opinião contrária do Itamaraty.
  • Nacionalização manu military de refinarias da Petrobras por Evo Morales em 2006, sem a adequada defesa do interesse nacional pelo governo Lula.
  • Decisão de construir a refinaria Abreu e Lima em Pernambuco por pressão de Hugo Chávez, com grande prejuízo e corrupção contra os interesses brasileiros.
  • Decisão de não enviar o Ministro do Exterior à reunião sobre a Síria em Genebra, em 2014. O Brasil foi incluído em encontro restrito a um grupo limitado de países a pedido da Rússia, que, com os EUA tentava discutir uma solução negociada para o conflito.
  • Ausência do Brasil na Conferência anual de Segurança realizada em Munique, em 2014, fórum conhecido pela oportunidade que oferece para conversas informais sobre as crises internacionais e as negociações em curso entre diplomatas e ministros da Defesa de todo o mundo. Entre os participantes estavam o mediador da ONU na Síria, os ministros do Exterior da Rússia e do Japão e os secretários de Estado e de Defesa dos EUA.
  • Omissão do governo brasileiro no tocante ao asilo de senador boliviano. Depois de concedido o asilo pela Embaixada em La Paz nada foi feito para que o salvo conduto fosse concedido por Evo Morales, conforme previsto nos Tratados regionais. A forma pouco ortodoxa como ocorreu a saída do senador da Bolívia, apesar de ter resolvido o problema para os dois países, desencadeou uma crise com o Itamaraty que resultou na demissão do então ministro, a punição do diplomata que resolveu a crise e a subserviente comunicação ao presidente da Bolívia das razões da demissão.
  • Silêncio do governo na crise da Venezuela, escondido de trás da posição do Mercosul e da Unasul favoráveis ao governo de Maduro, apesar do agravamento da situação política interna, com clara violação da cláusula democrática e dos direitos humanos.
  • Ausência do Brasil na negociação e na participação do Acordo de Serviços da OMC, apesar de hoje, na composição do PIB brasileiro, o setor de serviços representar 56%.
  • Ausência do Brasil nas discussões sobre o impacto das negociações de acordos regionais e bilaterais de última geração negociados fora da OMC. A presidência da República manifestou-se publicamente minimizando o acordo EUA-UE, afirmando que esse tipo de acordo não interessava ao Brasil por levar a uma especialização entre os países.
  • Ausência de uma posição firme do Brasil no tocante à convocação de reunião da presidência do Conselho do Mercosul. Pela primeira vez em 20 anos, o Conselho não se reuniu no segundo semestre de 2014, deixando de discutir, entre outros temas, as negociações comerciais entre o Mercosul e a União Europeia.
  • Ausência de liderança do Brasil no processo de integração sul-americana e de revitalização do Mercosul.
  • Os episódios envolvendo encontros para discutir as restrições comerciais na Argentina e a situação política na Venezuela em que a presidência da República assumiu a condução do processo, deixando a Chancelaria à margem.
  • Cancelamento do Acordo de Salvaguarda Tecnológica com os EUA e a assinatura de acordo especial com a Ucrânia, que acarretaram o atraso no programa espacial brasileiro por 17 anos, com grande prejuízo financeiro e tecnológico para o Brasil.
Além disso tudo, poderiam ser lembrados no governo Lula alguns episódios que contrariaram as tradições diplomáticas do Itamaraty, como a devolução a Cuba de pugilistas desse país que pediram asilo ao Brasil, ao final dos Jogos Pan-Americanos, e a aceitação passiva de vistoria feita pelo governo boliviano em avião em que viajava o ministro do Exterior para verificar se ele estava transportando o senador boliviano asilado na embaixada do Brasil. Cabe também mencionar o alijamento do Itamaraty na decisão da interferência ostensiva por motivações ideológicas no episódio da suspensão do Paraguai do Mercosul quando o Congresso paraguaio, aplicando a Constituição, afastou o presidente Lugo, e a forma como foi decidido o ingresso da Venezuela no grupo regional.
Esses exemplos, como não poderia deixar de acontecer, tornaram inevitável a perda de credibilidade da Chancelaria e tiveram repercussão sobre a percepção em relação à atuação do país no exterior. Certamente afetaram também a pretensão de um assento no CSNU.
O Brasil se recolheu e baixou sua voz, quando poderia ter trazido uma contribuição importante em cada um dos temas tratados defendendo o respeito à democracia e aos direitos humanos.
Em vez de uma política ativa e altiva, o que de fato ocorreu foi um deficit diplomático nos governos lulopetistas. Isso criou no Itamaraty crescentes problemas operacionais de gestão pela falta de recursos e resultou na redução do perfil brasileiro nos temas globais discutidos nos organismos internacionais especializados. Quanto ao processo de integração regional, em especial o Mercosul, o Brasil abriu mão da liderança para repensar tal  processo  e o próprio bloco. A ação do Itamaraty – a reboque de uma agenda que não era prioritária para o Brasil – deixou de defender efetivamente os interesses econômicos e comerciais brasileiros, seguindo as políticas de afinidades ideológicas e paciências estratégicas. O Mercosul esteve paralisado e sem nenhuma estratégia.

Mercosul: situação de quase total isolamento

Os objetivos de liberalização do comércio e de abertura de mercados foram abandonados, e o grupo subregional transformou-se em um fórum político e social. Politizado pela ação do Brasil, da Argentina e da Venezuela, o bloco permaneceu em situação de quase total isolamento. O único entendimento em curso, então, foi a retomada da negociação do grupo com a União Europeia por iniciativa argentina. Se as negociações com a Comissão Europeia não avançassem por dificuldades criadas por nossos parceiros, não restaria alternativa ao Brasil, no âmbito do Mercosul, senão fazer um acordo com a União Europeia com os outros parceiros que quisessem, a fim de resguardar nossos interesses.
O Brasil deveria ter influído para que algumas regras do bloco fossem flexibilizadas para facilitar as negociações comerciais com países que pudessem ampliar o mercado para as exportações do grupo e permitissem acesso a tecnologias e inovações para as empresas dos países membros.
A desintegração regional se acentuou pela ausência de liderança brasileira e pelo apoio à Alba (Aliança Bolivariana). Pela dificuldade de fazer avançar o Mercosul, deu-se ênfase às relações bilaterais com os países sul-americanos. O antiamericanismo e o congelamento das relações com os EUA se refletiram na criação de novas instituições sul-americanas (Celac, Unasul). Sem visão estratégica, abandonaram-se as prioridades de projetos de infraestrutura na América do Sul para abrir corredores para nossas exportações para o mercado asiático.
A baixa prioridade dada às nações democráticas desenvolvidas e a aproximação e o apoio a regimes de clara inspiração antidemocrática são reflexo da confusão entre valores e interesses na definição de políticas nos temas globais (democracia e direito humanos).
A ausência de uma visão objetiva do interesse brasileiro se manifestou não só em relação aos países desenvolvidos (União Europeia, EUA e Japão), bem assim no tocante à China e ao Brics. O mesmo ocorreu quanto aos países em desenvolvimento com o apoio financeiro a Cuba, o respaldo à crescente deterioração da situação política na Venezuela e o alheamento na crise na Ucrânia, exemplos de ações ou reações político-partidárias acima dos reais interesses estratégicos brasileiros.
No tocante ao comércio exterior, a estratégia de negociação externa continuou equivocada, gerando o isolamento do Brasil nas negociações de acordos de livre comércio. O isolamento do Brasil, que, em 14 anos, negociou apenas três acordos de livre comércio, com Israel, Egito e Autoridade Palestina, prejudicou os interesses públicos e privados nacionais, já que o mundo negociou nesse período mais de 400 acordos. O Mercosul comercial ficou paralisado e os temas sociais e políticos tiveram precedente sobre os objetivos iniciais do Tratado de Assunção. O intercâmbio com a África e o Oriente Médio pouco cresceu em termos percentuais no total do comércio exterior brasileiro em todo o período lulopetista. O empobrecimento da pauta comercial brasileira e a perda de espaço no comércio internacional estão associados à manutenção de uma economia fechada. E, por causa da reduzida inserção nas cadeias produtivas globais e à aplicação de políticas restritivas no comércio exterior, o Brasil acabou tendo limitado acesso à inovação e à tecnologia. Os acordos de comércio com os países sul-americanos, em especial com Peru, Colômbia e México, não foram aprofundados; o governo ignorou o crescente número de acordos regionais e bilaterais, e as novas regras que passaram a integrar os acordos comerciais; não se avançou em nenhuma negociação comercial com países desenvolvidos que pudessem aportar inovações tecnológicas e integrar as empresas nacionais nas cadeias produtivas globais; não foi completada a negociação com a União Europeia, que se arrastava há mais de uma década.
As ações de política externa nas negociações comerciais continuaram a privilegiar os interesses político-partidários, e não o interesse nacional. Cada vez mais isolado das novas tendências do comércio internacional e com dificuldades para criar um mercado regional para seus produtos, ao contrário do que ocorria na Ásia e na Europa, o Brasil manteve sua estratégia de negociação comercial, de preconceitos ideológicos, perdendo oportunidades de buscar a abertura de novos mercados, não só entre os países em desenvolvimento, mas também nos países desenvolvidos. O governo Dilma não procurou inserir os setores industriais e de serviços nos grandes centros difusores de tecnologia. Segundo a OMC, a participação do Brasil nas redes internacionais de produção era de apenas 40%. Deixando de participar das negociações de acordos preferenciais de comércio e das cadeias produtivas de alto valor agregado, o Brasil perdeu espaço no comércio global. A prioridade apenas para as negociações multilaterais no âmbito da OMC, do Mercosul e na América do Sul mantida no governo Dilma, não serviu aos interesses do Brasil.
Alguns resultados mostram como o interesse nacional foi deixado em segundo plano nos governos Lula e Dilma:
  • O financiamento ao porto de Mariel em Cuba pelo BNDES subiu a cerca de US$950 milhões, de acordo com informações publicadas em Havana. Segundo essas mesmas fontes, o governo brasileiro estava também negociando novos empréstimos do BNDES no valor de US$170 milhões para melhoria dos aeroportos comerciais naquele país. Os financiamentos de projetos no exterior – prática usual nos governos Lula e Dilma a governos autoritários da América Latina e da África – foram pouco transparentes, como reconheceu a Justiça Federal, e desviaram recursos do BNDES de projetos de infraestrutura no Brasil.
  • Durante visita da Presidente Dilma à União Africana de Nações, o governo brasileiro anunciou o perdão de US$900 milhões de dívidas de 12 países africanos. Somente o governo autoritário da República do Congo livrou-se de US$352 milhões. Essa decisão abria a possibilidade de novos empréstimos para apoiar grandes projetos de infraestrutura nesses países, acarretando os mesmos resultados negativos para o Brasil.
  • A decisão do governo Dilma de pagar US$434 milhões adicionais ao governo boliviano pela compra do gás natural, como parte de acordo entre Lula e Morales, de 2007. Para ajudar generosamente a Bolívia, o gás importado pelo Brasil passou a pagar um adicional por seu conteúdo, contra a opinião da Petrobras. Técnicos da Petrobras afirmaram, ainda, que a Bolívia estava pressionando a companhia a pagar a dívida do gás rico, ameaçando cortar o fornecimento da energia para a termoelétrica de Cuiabá. Longe dos interesses brasileiros, o governo cedeu às pressões e chantagem bolivianas.

Brasil descumpriu regras internacionais de asilo

O tratamento dado ao governo brasileiro pela Bolívia, no caso do asilo do senador Roger Molina, talvez seja um dos exemplos mais simbólicos da fraqueza de nossa política externa imolada no altar das afinidades ideológicas. Depois de concedido o asilo, o governo brasileiro se arrependeu, por pressão do presidente Evo Morales, e aceitou o descumprimento das regras internacionais de asilo que obrigam o país a conceder salvo conduto para a saída do asilado. Depois da fuga de Molina, o governo cedeu a pressões e demitiu o ministro do Exterior para dar satisfação a Evo Morales. Logo depois da exoneração, Morales recebeu telefonema informando a demissão do chanceler.
No âmbito multilateral, o Brasil se encolheu e deixou de ampliar sua ação diplomática em todas as áreas. O Brasil se esquivou de assumir novas responsabilidades perante a comunidade internacional nos temas globais e nas áreas de conflito onde manifestamos interesse em ter um papel mais preeminente, como na África e no Oriente Médio.
No governo Dilma, o Brasil perdeu a liderança no tocante aos temas globais, como mudança de clima, energia, democracia, direitos humanos, comércio exterior, assim como aos novos temas (terrorismo, guerra cibernética, controle da internet), em cujas discussões o Brasil sempre desempenhou um papel relevante nos diferentes organismos internacionais. Quanto aos direitos humanos e à democracia, por afinidades ideológicas, o governo Dilma não reproduziu no exterior a defesa dos valores e interesses que defendemos internamente. No tocante às questões da sustentabilidade relacionadas com as preocupações sobre as negociações de mudanças de clima, o Brasil – ao contrário das posições anteriores – adotou uma posição de baixa visibilidade, como ocorreu na reunião de Lima, em 2014, preparatória para o encontro de Paris, em que se discutiu a renovação do Protocolo de Kyoto.
Os seguidos casos de corrupção, em especial o escândalo da Petrobras, que o governo Dilma Rousseff fingiu desconhecer, afetaram a credibilidade e a imagem do Brasil no exterior. Os desmandos na maior empresa brasileira continuam sendo investigados na Europa e nos EUA com graves prejuízos econômicos e financeiros e com possiveis efeitos criminais no final do trabalho levado a efeito pelo Ministério Público no Brasil, pela Securities and Exchange Commission de Nova York e pelo Departamento de Justiça de Washington.
As opções equivocadas na política externa e no comércio exterior nos governos petistas geraram custos enormes ao país. Em virtude da partidarização e da falta de visão estratégica, faltou, conforme recomendação do Barão do Rio Branco, “tomar a dianteira e construir uma liderança serena, coerente com nossa dignidade de nação”.

Rubens Barbosa foi embaixador do Brasil em Washington (1999-2004). É consultor de negócios, presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente do Conselho Deliberativo da Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica (SOBEET). É membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint – USP), presidente emérito do Conselho Empresarial Brasil – Estados Unidos (CEBEU) e editor responsável da revista “Interesse Nacional”. É autor de "Interesse nacional e visão de futuro" (Sesi SP, 2012), "O Dissenso de Washington" (Agir, 2011) e "Mercosul e a integração regional" (Imprensa oficial - SP, 2009). É presidente do conselho de comércio exterior da Fiesp e também é diretor presidente em IRICE (http://irice.com.br/).

Contas publicas: "regra de ouro" contornada (FSP)

  • ”Governo usa dinheiro do BNDES para cobrir dívida e despesas” - O governo está tomando dinheiro emprestado para honrar despesas do dia a dia, como folha de pagamento de servidores civis e militares, além de benefícios da Previdência Social. A prática é vedada pela chamada regra de ouro, norma que proíbe o governo de se endividar para pagar despesas de custeio. Pela norma, os recursos tomados no mercado devem ser usados em investimentos e amortizações da própria dívida. A regra de ouro só não está sendo formalmente descumprida porque, desde 2016, o governo federal tem coberto a diferença entre a tomada de empréstimos e as despesas correntes com recursos recebidos do BNDES --foram R$ 100 bilhões em 2016, R$ 50 bilhões em 2017 e mais R$ 130 bilhões previstos para este ano. Levantamento feito pela Folha nas despesas federais mostra que, em 2016, o Executivo pagou benefícios da Previdência Social com dinheiro cuja fonte são emissões de dívida no mercado. Foi a primeira vez, pelo menos desde 2000 (quando começa a série de dados), que o governo fez pagamentos de aposentadorias do INSS com recursos de empréstimos. O quadro se agravou no ano passado. Além de benefícios com a Previdência, o Tesouro Nacional usou dinheiro dos empréstimos para custear despesas com seguro-desemprego, salários e aposentadorias de militares. A prática prosseguiu neste início de ano, indicando que o governo não vê travas para a utilização do dinheiro tomado no mercado.
  • O Ministério do Planejamento afirma que obedece as regras vigentes e ressalta que a norma atual não veda o uso de dinheiro emprestado para gastar com despesas correntes. Apenas proíbe que esses empréstimos superem as despesas de capital (investimentos e amortizações). No entanto, a pasta admite que isso só não está ocorrendo graças ao dinheiro do BNDES. Para o especialista em contas públicas e consultor do Senado Leonardo Ribeiro, a versão oficial para o cumprimento da meta é "estritamente contábil". "Isso enfraquece o instituto em seu prisma econômico, o de impedir uso de dívida para gastos correntes." 
  • ”TCU exige cumprimento de lei em previsão orçamentária para 2019” - O Tribunal de Contas da União já indicou que não aceitará que a gestão do presidente Michel Temer envie a previsão orçamentária de 2019 que será cumprida pelo presidente que vencer as eleições deste ano desrespeitando a regra de ouro. Isso antecipou o cronograma de discussões sobre o assunto. O projeto de lei orçamentário precisa ser enviado ao Congresso até agosto.
  • Leonardo Ribeiro, especialista em contas públicas e consultor do Senado, defende que o Congresso aprove normas proibindo o uso de recursos atípicos para tapar o buraco nas contas públicas, como os do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social). No passado, lembra o consultor, o governo também usou dinheiro de flutuações cambiais do Banco Central para fazer isso. Para ele, o governo deve explicitar o problema, e não tentar contorná-lo. Ribeiro ressalta ainda que a atual norma já prevê um escape. O governo pode se endividar para bancar gastos correntes acima dos limites da regra de ouro, desde que maioria qualificada do Congresso autorize, afirma. O governo não pediu autorização ao Legislativo para usar esse mecanismo.

OCDE: Brasil acelera adesão

Brasil reforça negociações em Paris para entrar na OCDE

Entrada da sede da OCDE em Paris
O Brasil vai intensificar as negociações para o acesso do país à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Enquanto tenta cumprir os prerrequisitos para se candidatar a membro pleno, a representação diplomática ganhará reforço em Paris a partir de março, onde a OCDE e outros órgãos comerciais ficam sediados.
O embaixador Carlos Márcio Cozendey, atual subsecretário-geral de Assuntos Econômicos e Financeiros do Itamaraty, foi designado pelo presidente Michel Temer como delegado junto aos organismos internacionais de Paris, com uma equipe dedicada ao assunto. A decisão demonstra o interesse do Brasil no acesso ao órgão.
Antes de partir ao país europeu, Cozendey receberá o secretário-geral da OCDE, Angel Gurría, no Brasil em 28 de fevereiro, quando será lançada uma nova edição da pesquisa econômica que a organização faz sobre o Brasil.
Composta por 35 países-membros, a OCDE é um fórum cuja missão envolve a cooperação e o intercâmbio de boas práticas sobre políticas públicas. Somados, os integrantes são responsáveis por 62% do PIB global e por dois terços dos negócios internacionais. Embora o Brasil tenha participação ativa em diferentes fóruns da organização, apenas Estados Unidos, Canadá, México e Chile são países-membros.
Segundo o Cozendey, discussões iniciadas na OCDE costumam influenciar decisões de outros órgãos internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização das Nações Unidas (ONU), o que torna mais relevante ainda a importância da participação.
“A OCDE faz recomendações que registram as melhores práticas em determinada área. Participar da formulação disso, indica que o país vai ter influência na formulação desses padrões. Embora não seja uma organização global, como são países grandes e importantes economicamente, o padrão acaba se tornando internacional”, explicou o diplomata.
Apesar de já ser um parceiro-chave participar de 23 diferentes órgãos da OCDE, o acesso como membro sinalizaria um compromisso do Brasil com uma economia aberta, previsível, responsável e transparente, segundo avaliações do governo brasileiro.
A formalização da candidatura depende da adequação do país com 237 recomendações. O ­Brasil já aderiu a 36 dessas normas e pediu a adesão de outros 74 instrumentos.
O representante do Itamaraty considerou positiva a adequação das políticas brasileiras às recomendações da OCDE. Segundo ele, os ministérios encontraram dificuldades em apenas 10% delas. Em outros 15% foram encontrados conflitos com a legislação, mas os órgãos concordaram com o conteúdo.
Atualmente, há três países em processo de integração à OCDE: Colômbia, Costa Rica e Lituânia. Outros cinco, além do Brasil, entraram com pedidos de candidatura: Argentina, Bulgária, Croácia, Peru e Romênia.
Ciberia // Agência Brasil

A ignorância triunfou (por enquanto) - José de Souza Martins

O artigo de um dos melhores sociólogos do Brasil — ou seja, da minha tribo — é relativamente pessimista, pois dá a entender que a ignorância triunfou.
Concordo com ele, em grande medida, mas isso não é novo.
Já no começo do século XIX, observando as massas incultas que desembarcavam nos EUA, James Fenimore Cooper (sim, o romancista do Último dos Moicanos), constatava também de forma pessimista que a democratização andava de par com a mediocrização, o que é inevitável quando se abandona uma cultura de elite pela das massas populares.
O Brasil passou por uma grande processo de democratização social desde o início dos anos 40, com a urbanização e a industrialização, e depois, a partir dos anos 1960 com a ampliação do acesso às instituições de ensino. Era inevitável certa mediocrização da cultura popular e dos estratos participantes do jogo político, pois já não se podia manter apenas líderes cosmopolitas, com educação superior, nos mecanismos de decisão.
A República Sindical — corrupta, ignorante, sectária — que não tivemos em 1964, por força do golpe militar, veio com toda força a partir de 2003, com o lulopetismo no poder.
O problema aí não foi tanto a mediocrização de todas as instituições e instâncias de poder — como transparece nesse triunfo da ignorância de que fala José de Souza Martins— mas o fato de que, por um lado, o lulopetismo não foi apenas ignorante, mas também corrupto e criminoso, e que, por outro lado, as elites — industriais, banqueiros, membros das chamadas profissões liberais, a academia — se revelaram singularmente ineptas, quando não coniventes com o poder corruptor da nova República Sindical,  corrupta, medíocre, ignorante, e dominada por um líder carismático que mais se aproxima de um chefe mafioso, e que continua a desafiar as instituições, com parte do Judiciário também medíocre e rastaquera — quando não conivente — incapaz de prendê-lo como reles bandido que é.
Esse é o triunfo da ignorância, da mediocridade e da completa inépcia das elites econômicas incapazes de encontrar em seu meio um estadista capaz de conduzir o Brasil para fora disso tudo.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 14/02/2018

A nova ignorância
José de Souza Martins
Valor Econômico / Eu &Fim de Semana, 9-1-11/02/2018

Historicamente, no Brasil, ignorância é um juízo de valor e manifestação de poder de quem, em posição de mando, não se considera ignorante. Era a definição que os poucos escolarizados davam aos muitos não escolarizados nas primeiras décadas do século passado. Estes, considerados socialmente inferiores, porque trabalhadores, mestiços ou descendentes de escravos, gente ao longo das gerações condenada ao trabalho braçal, supostamente vazio de trabalho intelectual.

No entanto, seja na lavoura, no artesanato, no trabalho doméstico, havia e há sistemas complexos de conhecimento, modos de fazer e de pensar que a maioria dos críticos da ignorância ignora. Aliás, analfabeto não quer dizer ignorante. Os estudos antropológicos nas áreas das etnociências mostram que o conhecimento popular tem elaborações e peculiaridades lógicas que indicam um labor cognitivo que não é antagônico ao da ciência e ao da arte.

Ao ignorar essa cultura, em vez de uma ponte de diálogo criativo e de aprendizado, a escola preferiu o abismo que a separa daqueles que pretende educar. Raramente nos lembramos de que a escola é um poder e instrumento de poder. Foi esse poder que decretou que aqueles aos quais o trabalho impediu a escolarização fossem definidos como ignorantes.

Ignorância é um rótulo, um dos conceitos de nossa cultura de preconceitos. A ignorância muda com o tempo, a circunstância e a mentalidade dominante. Ignorantes de hoje, na classe média e mesmo na elite, passaram pela escola e até mesmo pela universidade. Apesar de terem opinião sobre todos os assuntos, quando muito dominam apenas uma área do saber. Fora de sua área, são ignorantes pela especialização, pelo raciocínio estereotipado e desvinculado do pensamento crítico.

No plano das condutas e da visibilidade da ignorância, há meio século, os ignorantes já sabiam o motivo pelo qual eram assim definidos. Desenvolveram formas de dissimulação de sua ignorância para enfrentar as adversidades numa sociedade em que ser ignorante tornara-se motivo de discriminação e vergonha. A ignorância expressava-se não só na fala e nos simplismos, mas na apresentação pessoal, no uso impróprio de coisas e modos do que Erving Goffman define como equipamento de identificação.

Uma técnica tem sido a de copiar formas de expressão e de apresentação pessoal em público, prestar muita atenção no que os outros fazem e dizem e tentar imitá-los. Imita-se na fala, no traje, nos gestos. Mas a dissimulação da ignorância tinha e tem limites. Não raramente, gestos, palavras e trajes impróprios denunciam que a pessoa desconhece o que é apropriado para assegurar a eficácia da imitação. É ignorante.

Mas a concepção de que é socialmente mais decisivo parecer do que ser se difundiu, criou uma cultura, definiu valores e regras de penosos esforços de apresentação e de conduta. A forma aparente incluiu socialmente os excluídos. A superficialidade tornou-se democrática e, mesmo, decisiva, para incluir enganosamente o ignorante. Há uma função terapêutica no uso desses recursos numa sociedade que enfrenta, cada vez mais, limites no acesso à cultura erudita e que, cada vez mais, oferece recursos de dissimulação da ignorância. A sabedoria popular foi confrontada com a frágil sabedoria de ocasião.

Nos anos 1960, a difusão da leitura dinâmica, de ler apenas uma de cada duas palavras, ou de cada três, permitia "ler" um livro na metade do tempo da leitura normal. Não era ler para saber, era para que o "leitor" fizesse de conta que o havia lido, para simular conhecimento. O importante não era e não é deixar de ser ignorante. Importante é fingir não ser ignorante. Uma nova forma social de ignorância estava nascendo.

Nos anos 1970, as chamadas classes populares emergiram no cenário político brasileiro. Em alguns anos elegeriam um presidente da República. A intelectualidade dos movimentos populares produziu racionalizações que na essência asseguravam que o ignorante é sábio, na contramão dos valores da própria classe trabalhadora que, desde sua constituição entre nós, sempre valorizou a escola. Ignorância e poder se encontraram. Difundiu-se aqui a raiva como fundamento dos confrontos sociais, uma concepção antipolítica da luta de classes. O novo saber superficial e manipulável amalgamou-se com a raiva política, a incultura tornou-se prepotente. Durante quase um século a consciência da ignorância levou à busca da escola, à valorização da escola. Agora, a nova ignorância elegeu a escola como inimiga.

Da universidade ao palanque e do palanque ao botequim, o ignorante perdeu a consciência da ignorância, ao ponto de questionar o conhecimento erudito e minimizar e afrontar os profissionais do saber.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “O Coração da Pauliceia Ainda Bate” (Ed. Unesp/Imprensa Oficial) 

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Oswaldo Aranha planejou o futuro do Brasil - Rubens Barbosa

Pena que o ditador Getúlio Vargas colocou pedras, trancas, barreiras em seu caminho. Esta foi uma das várias oportunidades perdidas pelo Brasil, pela mesquinhez política do ditador, como revela aqui o embaixador Rubens Barbosa, com base numa carta que Oswaldo Aranha escreveu em janeiro de 1943, para orientar as conversas entre Vargas e Roosevelt, em Natal, e que está disponível na integralidade no link que forneço ao final.
Paulo Roberto de Almeida 


Atualidade de Oswaldo Aranha na política externa
Ele nos inspira a ter voz forte para definir lados e a optar por posições claras no cenário global
RUBENS BARBOSA*
O Estado de S.Paulo, 13 Fevereiro 2018 | 03h00

Em janeiro de 1943, em seu retorno da Conferência de Casablanca, o presidente Franklin Roosevelt fez escala em Natal (RN) para reafirmar a Getúlio Vargas a importância das bases americanas no Nordeste para o esforço de guerra no norte da África. O chanceler Oswaldo Aranha, por decisão mesquinha de Vargas, excluído do encontro, escreveu uma carta-memorando (Oswaldo Aranha: um estadista brasileiro, funag.gov.br), em 25 de janeiro de 1943, apresentando ao presidente uma série de ações para a conversa com Roosevelt. Aranha tinha sido embaixador em Washington e o artífice dessa aproximação. Visto em perspectiva histórica e levando em conta as prioridades da época, esse texto pode ser considerados um dos mais importantes documentos da história diplomática do Brasil. 
A carta contém os principais elementos do pensamento estratégico de Oswaldo Aranha num momento de grande instabilidade política no contexto de uma guerra que se tornava verdadeiramente global e às vésperas de o Brasil tomar a decisão de entrar na guerra contra Hitler. Dentre os muito aspectos relevantes do texto, destaco os que continuam atuais, pela falta de uma definição clara sobre os rumos da política externa brasileira: o que queremos nas relações exteriores do Brasil, de modo global; o grau adequado de capacitação econômica para participar da política internacional; uma visão clara das relações estratégicas que se deve ter em função dessas realidades; uma clara estratégia de inserção internacional. Aranha define o que queremos de nossas relações com os EUA, com a Europa, com a África e com nossos vizinhos (hoje teria incluído a China); indica as principais prioridades naquele momento, a sua visão do futuro do país e onde reside o interesse nacional na área externa. 
Temperadas pelo realismo (“é real que somos, ainda, um país fraco econômica e militarmente, sem autoridade bastante para decidir no seio das grandes nações”), as recomendações de Aranha tinham uma visão de longo prazo sobre o País (“com população e capital, que virão pelo crescimento natural do Brasil ou afluirão ao fim da guerra, mais dia ou menos dia, nosso país será inevitavelmente uma das grandes potências econômicas e políticas do mundo”). 
As posições pró-americanas de Oswaldo Aranha devem ser entendidas no contexto da 2.ª Guerra Mundial, quando Washington finalmente liderou o combate às potências nazi-fascistas, que até pouco antes tinham o apoio de vários ministros do governo Vargas. Aranha foi um dos responsáveis por mudar o rumo da História ao propugnar, como ministro de Relações Exteriores, pela declaração de guerra contra as potências agressoras e negociar com os EUA compensações ao Brasil. 
“Nada explicaria agora o nosso retraimento uma vez que, unidos aos EUA e com eles solidários, já teríamos, no resguardo de nossos interesses e na preparação de uma função futura, uma missão bem definida nos fatos atuais, criados pelos problemas da guerra e da paz”, diz Aranha. Essa posição poderia justificar uma atitude favorável dos EUA ao Brasil no tocante a ser membro permanente do Conselho de Segurança e à entrada na OCDE, nos dias de hoje. 
O que esperar das relações com os EUA? Aranha aconselha Vargas a “combinar tudo o que for necessário aqui ou na Europa a tornar mais eficiente essa colaboração nossa e que ainda mais realce a parte decisiva e capital de nossa ação diplomática e ajuda política aos EUA. A parte econômica deve ser estudada, sobremodo a parte que temos a dar e a que precisamos receber. Devemos ceder na guerra para ganhar na paz. O problema econômico da paz cifra-se à adoção dos ideais liberais de comércio para as transações mundiais, da intensificação da cooperação norte-americana para o programa Vargas de industrialização do país e do livre trânsito e fácil acesso de imigrantes e capitais para e no Brasil”. 
“Quanto à cooperação militar”, continua Aranha, “seria útil que os governos mantivessem sempre íntimo contato e contínua troca de ideias a fim de adotarem qualquer medida ou decisão ditada pelos acontecimentos ou pelos interesses recíprocos. Esse assunto é propriamente militar e dele só me cabe cogitar como tenho feito, para o fim de definir melhor a posição do Brasil.” 
“Tudo quanto se disse até aqui de pouco ou quase nada poderá ser útil se não formos bem informados sobre Rússia, Argentina, Portugal, Américas. Precisamos conhecer os objetivos dos americanos” para defender nossos interesses, teria hoje anotado Aranha. “Devemos reclamar que contaremos com o apoio americano em favor dos pontos de vista que viermos a adotar”, sugere, sinalizando que não existem apoios gratuitos. 
Nada mais realista e pragmático do que o conselho de que “o Brasil desta guerra deve procurar tirar as seguintes consequências: uma melhor posição na política mundial; uma melhor posição na política com os países vizinhos pela consolidação de sua preeminência na America do Sul; uma mais confiante e íntima solidariedade com os EUA; criação de um poder marítimo; criação de um poder aéreo; criação de um parque industrial para as indústrias pesadas; criação de uma indústria bélica; criação das indústrias agrícolas, extrativas e de minérios leves complementares dos norte-americanos e necessários à reconstrução mundial; exploração dos combustíveis essenciais”. 
Passados 75 anos dessas recomendações a Vargas para extrair benefícios em razão do nosso apoio no esforço bélico na África e na Europa, o respaldo dos EUA a muitas das áreas mencionadas acima continua sendo importante. Reler a carta de Oswaldo Aranha hoje nos inspira a ter uma voz forte para definir lados e a optar por posições claras no cenário internacional, onde os países não tem amigos, mas interesses. 

* RUBENS BARBOSA É PRESIDENTE DO CONSELHO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE)

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Para ler a íntegra da carta (no volume 1) e outros textos de Oswaldo Aranha, siga estes links: 

Oswaldo Aranha: um estadista brasileiro, Sérgio Eduardo Moreira Lima; Paulo Roberto de Almeida; Rogério de Souza Farias (organizadores); Brasília: Funag, 2017; disponível na Biblioteca Digital da Funag: volume 1, 568 p.; ISBN: 978-85-7631-696-1; link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=913; volume 2, 356 p.; ISBN: 978-85-7631-697-8; link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=914.