domingo, 2 de dezembro de 2018

Celso Lafer: dois volumes com seus textos principais, quase prontos

Acabo de colocar um ponto final no índice onomástico deste livro: 


Celso Lafer:
Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação
(Brasília: Funag, 2018, 2 vols., 1415 p.)



Aqui o sumário geral da obra: 
Volume 1
Apresentação: presidente da Funag
Prefácio – Gelson Fonseca Jr.
Índice do Volume 1
Introdução geral: Celso Lafer

Parte I – A reflexão da experiência
Parte II –Itamaraty
A instituição
Diálogos
Memórias
Parte III – Relações internacionais
A necessidade do campo
O campo teórico
Tópicos específicos 
Volume 2
Sumário 
Índice do Volume 2
Parte IV – A inserção internacional do Brasil: a política externa brasileira
O Brasil no mundo
Lições do passado
Parceiros vitais do Brasil 
Questões polêmicas
Parte V – Personalidades
Posfácio: Paulo Roberto de Almeida
Biobibliografia do autor 

Índice onomástico

Tenho um posfácio, ao final do 2o. volume, apresentando o conjunto da obra, que transcrevo mais abaixo, depois de postar as orelhas e uma parte da quarta capa. Depois do posfácio, transcrevo o sumário de cada um dos dois volumes.




“A educação de Celso Lafer: um reconhecimento ao mestre”, Brasília, 19 julho 2018, 9 p. Discussão geral da obra em publicação pela Funag de Celso Lafer, Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação, com base num paralelo intelectual com a obra de Henry James, The Education of Henry Adams: an autobiography (New York: The Modern Library, 1999), e alguma referência às Confissões de Santo Agostinho. 


A educação de Celso Lafer: um reconhecimento ao mestre

Paulo Roberto de Almeida
Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI-Funag/MRE.
 [Objetivo: apresentar a coletânea; finalidade: informar sobre o sentido da obra]

Se as Confissões de Santo Agostinho – que ocupam um lugar central na cultura cristã do Ocidente latino, ao dar início à tradição intelectual da autobiografia consciente e deliberada – apresentam essa característica de, pela sua própria natureza confessional, terem influenciado fortemente, segundo Stéphane Gioanni (L’Histoire, junho de 2018), o subjetivismo moderno, A Educação de Henry Adams inaugura, por sua vez – como construção consciente e deliberada de uma trajetória de vida tão confessional quanto as memórias do bispo da velha Hipona –, a moderna autobiografia intelectual, combinando objetivismo político com algum subjetivismo filosófico. Mais do que uma história de vida, ou uma simples memória, o livro de Henry Adams representa, mais exatamente, um grande panorama de história intelectual dos Estados Unidos entre a Guerra Civil e a Grande Guerra, um empreendimento talvez sem paralelo, até o início do século XX, na tradição ocidental das biografias “confessionais”.
Setembro de 2018 marca o centenário da primeira publicação completa da obra do bisneto de John Adams e neto de John Quincy Adams, dois antecessores presidentes. Sua educação primorosa, objeto da autobiografia (escrita na terceira pessoa), aproxima-se, em certa medida, da sólida formação intelectual de um dos maiores representantes da vida acadêmica e diplomática do Brasil: Celso Lafer. Cem anos depois da publicação daquela autobiografia pioneira, parece inteiramente pertinente seguir a “educação” de Celso Lafer, três vezes ministro, sendo duas como chanceler, chefe de missão em Genebra, professor emérito da USP, articulista consagrado, mestre de várias gerações de estudiosos de relações internacionais e de direito. 
A melhor forma de fazê-lo é por meio de uma compilação de seus muitos escritos sobre as relações internacionais, a política externa e a diplomacia brasileira, textos até aqui dispersos em um grande número de veículos impressos e digitais. A trajetória intelectual de seu autor se confunde com a própria evolução dos estudos e da prática das relações exteriores do Brasil no último meio século, mas estes dois volumes reproduzem apenas uma pequena parte de sua gigantesca produção acadêmica, profissional ou jornalística, deixando de integrar, por especialização temática nas áreas do título, uma outra parte essencial de suas atividades intelectuais, que cobrem os terrenos literário, cultural e mesmo de política doméstica.
A colaboração que pude prestar na montagem e revisão da presente coleção de textos – artigos, palestras, discursos, conferências, capítulos de livros – de Celso Lafer constituiu, ao longo do ano de 2018, uma das maiores gratificações intelectuais de minha relativamente curta trajetória como diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, (IPRI), um modesto think tank, subordinado, como o Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD) – seu contraparte do Rio de Janeiro –, à Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), esta por sua vez vinculada ao Ministério das Relações Exteriores (MRE). Digo uma das maiores gratificações porque, justamente, dois de meus critérios na organização de eventos e publicações no IPRI são justamente esses: tudo o que for intelectualmente gratificante e inovar sobre a agenda “normal”. 
Ainda antes de assumir formalmente a direção do IPRI, pude colaborar na montagem e realização de um seminário, de uma exposição e de um livro sobre o patrono da historiografia brasileira, o também diplomata, Francisco Adolfo Varnhagen: Varnhagen (1816-1878): diplomacia e pensamento estratégico (Brasília: Funag, 2016). Nesse primeiro empreendimento junto ao IPRI ofereci um estudo sobre o “pensamento estratégico de Varnhagen: contexto e atualidade”, no qual tive a oportunidade e o lazer de atualizar suas propostas de “reforma do Brasil”, apresentadas pela primeira vez em 1849, no Memorial Orgânico, documento magistralmente retirado das cinzas pelas mãos do presidente do IHGB, o historiador Arno Wehling, um especialista e também admirador da obra historiográfica de Varnhagen. 
Logo em seguida, dediquei-me a retirar das “cinzas” de um injusto ostracismo político um outro colega diplomata, o economista de formação Roberto Campos, por meio de uma obra coletiva feita inteiramente à base da admiração de amigos: O Homem que Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos (Curitiba: Appris, 2017). O livro, entretanto, por razões de oportunidade e de cálculo político, não foi publicado pela Funag, tanto quanto um outro, sobre o historiador e diplomata Oliveira Lima. Em seguida, aproveitando o desafio da publicação da magistral Fotobiografia de Oswaldo Aranha por seu neto, Pedro Corrêa do Lago (Rio de Janeiro: Capivara, 2017), e ajudado pela perícia documentalista de seu outro neto, Luiz Aranha, decidi montar, com a preciosa e estratégica ajuda do historiador Rogério de Souza Farias, uma compilação praticamente completa dos escritos de relações internacionais e de diplomacia brasileira produzidos ao longo de trinta anos pelo grande estadista gaúcho, o segundo maior chanceler brasileiro do século XX depois de Rio Branco, segundo Rubens Ricupero: “Oswaldo Aranha dominou a política exterior dos meados do século XX como Rio Branco o fizera na sua primeira década. Depois do Barão, ninguém mais alcançou, dentro e fora do país, o prestígio e a influência de Aranha, nenhum outro dirigiu a diplomacia com tanto acerto em tempos perigosos e de escolhas difíceis.” (Apresentação de Rubens Ricupero a: Oswaldo Aranha: um estadista brasileiroBrasília: Funag, 2017, 1o. vol.). 
A coletânea Aranha preenche, sem dúvida alguma, uma lacuna na historiografia brasileira da diplomacia contemporânea, ao recolher discursos, entrevistas, cartas e escritos diversos do político rio-grandense convertido em estadista de estatura mundial. Ela cobre momentos cruciais das relações internacionais e bilaterais do Brasil em pleno século XX, quando a diplomacia esclarecida de Aranha influenciou decisivamente a política do governo Vargas ao adotar a opção correta na voragem da Segunda Guerra Mundial, aliás a única concebível para um discípulo de Rui Barbosa, no formidável embate que se travou entre as democracias do Ocidente, capitaneadas por Churchill e Roosevelt, e os totalitarismos liderados pelos fascistas da Alemanha, Itália e Japão.
Esse trabalho de garimpo documental e de lapidação redacional dos escritos dispersos de Oswaldo Aranha, esteve, provavelmente, na origem da idealização, organização e montagem da obra que agora se apresenta: uma compilação seletiva dentre os muitos, incontáveis escritos até aqui dispersos de Celso Lafer, primeiro reunidos e organizados por ele mesmo, com a ajuda de Carlos Eduardo Lins da Silva, depois revistos e padronizados por mim, ao longo de muitas noites de indescritível prazer intelectual. Não sei se por pura emulação historiográfica, se por alguma secreta indução bibliográfica e documental, ou se por um evidente paralelismo diplomático, Celso Lafer e eu mesmo cogitamos, quase simultaneamente, que depois da “compilação Oswaldo Aranha” estava mais do que na hora de também pensarmos numa “compilação Celso Lafer”. Material, aliás abundante, não faltava para esse novo empreendimento.
A decisão foi então tomada em vista da existência, dispersa até aqui, dos seus muitos escritos de relações internacionais, de política externa e de diplomacia do Brasil, que constituem, ao mesmo tempo, um grande panorama do cenário mundial, político e econômico, nas últimas cinco décadas. Esses textos reproduzem meio século de ideias, reflexões, pesquisas, andanças e um exercício direto de responsabilidades à frente da diplomacia brasileira, em duas ocasiões, e, através dela, de algumas funções relevantes na diplomacia mundial, como a presidência do Conselho da OMC, assim como em outras instâncias da política global. Celso Lafer esteve à frente de decisões relevantes em alguns foros decisivos para as relações exteriores do Brasil, na integração regional, no comércio mundial, nos novos temas do multilateralismo contemporâneo.
Esta obra, construída ao longo de alguns meses de garimpo documental e de lapidação formal, a partir de um aluvião torrencial de pepitas preciosas que vinham sendo carregadas pelo fluxo heteróclito de publicações no decorrer de várias décadas, apresenta, finalmente, o que se espera seja uma obra de referência e uma contribuição essencial ao conhecimento da diplomacia brasileira e da vida intelectual em nosso país, a partir dos anos 1960 até aqui. Suas qualidades intrínsecas, combinando sólida visão global e um conhecimento direto dos eventos e processos que o autor descreve e analisa, representam um aporte fundamental a todos os estudiosos de diplomacia e de relações internacionais do Brasil, uma vez que reúne os relevantes escritos do mais importante intelectual desse campo, com a vantagem dele ter tido a experiência prática de conduzir a diplomacia brasileira em momentos significativos da história recente. As “questões polêmicas” da quarta parte reúnem alguns de seus artigos de jornal, nos quais exerceu um olhar crítico sobre a “diplomacia” implementada a partir de 2003, rompendo pela primeira vez a tradição secular da política externa brasileira, no sentido de representar o consenso nacional em torno dos interesses do país, para adotar o sectarismo míope de um partido que tentou monopolizar de forma canhestra (e corrupta) o sistema político. 

Henry James, ao escrever em 1907 a sua autobiografia intelectual, admitia, indiretamente – segundo o prefácio de Henry Cabot Lodge à obra finalmente publicada em setembro de 1918 pela Massachusetts Historical Society –, que a grande ambição do neto e bisneto de presidentes era a de “completar as Confissões de Santo Agostinho”. Mas, diferentemente do pai da Igreja Cristã, que, como grande intelectual, trabalhou a partir de uma multiplicidade para a unidade de ideias em torno da fé cristã, seu moderno êmulo americano reverteu a metodologia, passando a trabalhar a partir da unidade para a multiplicidade de ideias (The Education of Henry Adams: an autobiography, p. xxxiv, da edição de 1999 da Modern Library). Isso talvez porque, à diferença da angustiada defesa de uma rígida crença nos dogmas cristãos, exibida no quarto século da nossa era pelo pai intelectual da Igreja Católica, Henry Adams ostentava o agnosticismo científico típico dos primeiros darwinistas sociais do final do século XIX. 
Celso Lafer, herdeiro intelectual de grandes pensadores judeus do século XX, é, provavelmente também, um agnóstico pragmático, combinando destreza acadêmica e tino empresarial, como sempre foi a outra vertente de seus familiares e de um grande antecessor na diplomacia, seu tio Horácio Lafer, ministro da Fazenda e das Relações Exteriores na República de 1946. O modelo da autobiografia de Henry Adams, com suas três dezenas de capítulos seguindo a trajetória do ilustre herdeiro dos Adams nas grandes capitais do mundo ocidental – Washington, Londres (seu pai foi ministro na Corte vitoriana), Berlim, Paris (a Exposição Universal de 1900), Roma e muitas outras cidades dos Estados Unidos e da Europa–, poderia servir, eventualmente, para retraçar a carreira intelectual e diplomática de Celso Lafer, que também percorreu as grandes capitais da diplomacia mundial, como intelectual ou ministro das Relações Exteriores.
O jovem Adams, ao acompanhar como secretário o seu pai, designado em 1861 ministro plenipotenciário de Abraham Lincoln junto à corte da rainha Vitória, construiu uma educação “diplomática” no centro do que era então o maior império do planeta; ele pode encontrar-se com líderes britânicos da estatura de um Palmerston ou Gladstone, assim como, em suas andanças pela Europa, com “anarquistas” bizarros, ao estilo de um Garibaldi. Celso Lafer, por sua vez, construiu sua educação diplomática na observação direta do que foi feito por seu tio, Horácio Lafer, antes como ministro da Fazenda do Vargas dos anos 1950, depois à frente do Itamaraty, numa segunda fase do governo JK, dedicando a ambos trabalhos analíticos posteriores que figuram com realce em sua bibliografia. Da gestão do tio na política externa, destacou sobretudo sua ação no campo econômico: acordos comerciais, integração regional e aproximação à Argentina.
Essa educação continuou nos anos seguintes, de forma não surpreendente nos mesmos grandes temas focados anteriormente e, como Henry James, no contato direto com personalidades de realce na cena mundial; percorrendo as páginas dos dois volumes de Celso Lafer é possível registrar alguns dos grandes nomes do estadismo mundial, com quem Celso Lafer encontrou-se ou conviveu ao longo dessas décadas. Ele discorre, sempre de modo empático, mas penetrante, sem dispensar aqui e ali o bom humor, sobre líderes estrangeiros como Mandela, Shimon Peres, Koffi Annan, Antonio Guterres e, retrospectivamente, sobre o êmulo português do embaixador Souza Dantas, o cônsul Aristides de Souza Mendes, um justo entre os injustos do salazarismo. Dentre os diplomatas distinguidos do Brasil figuram os nomes deSaraiva Guerreiro e de Sérgio Vieira de Mello, para mencionar apenas dois nessa categoria.
Comparecem igualmente vários colegas e autores de renome, intelectuais da academia ou da diplomacia, como José Guilherme Merquior, Sergio Paulo Rouanet, Gelson Fonseca Jr., Synesio Sampaio Goes, Rubens Ricupero, Gilberto Dupas, Celso Furtado, Miguel Reale, Fernando Henrique Cardoso, entre os brasileiros. Estudiosos  estrangeiros, alguns conhecidos pessoalmente, aparecem sob os nomes de Karl Deutsch, Raymond Aron, Andrew Hurrell, Octavio Paz, Morgenthau, Kissinger e Prebisch. Suas resenhas e prefácios registram autores conhecidos na área, a exemplo de Sérgio Danese, Fernando Barreto, Gerson Moura e Eugenio Vargas Garcia, contemplados com extensas notas publicadas na revista Política Externa, da qual foi um dos responsáveis, junto com Gilberto Dupas e Carlos Eduardo Lins da Silva, durante vários anos.

A educação de Celso Lafer se fez, primordialmente, em intensas leituras e eventuais contatos, com grandes nomes do pensamento histórico, filosófico e político da tradição ocidental, desde mestres do passado remoto – Tucídides, Aristóteles, Grócio, Vico, Hume, Bodin, Hobbes Montesquieu, Kant, Tocqueville, Charles de Visscher e outros – até mestres do passado recente, inclusive alguns deles encontrados em carne e osso: Hans Kelsen, Carl Schmitt, Isaiah Berlin, Hanna Arendt, Norberto Bobbio, Raymond Aron, Hedley Bull, Martin Wight, Albert Hirschman, Stanley Hoffmann e muitos outros. Um desses “grandes mestres” aparece apenas marginalmente, ou episodicamente nos textos aqui coletados: Karl Marx, objeto de várias referências indiretas no exame da literatura especializada. Henry James, de seu lado, faz, em sua autobiografia, diversas referências ao pai do “socialismo científico” e afirmou ter seriamente considerado, junto com as teses ousadas de Darwin, os argumentos defendidos em O Capital, embora não demonstrasse entusiasmo com os anúncios precursores quando à derrocada do capitalismo. 
James, na verdade, demonstra certo esnobismo em relação à maior parte dos teóricos que digeriu, em Harvard ou em suas leituras posteriores. Ao referir-se, por exemplo, à necessidade de conhecer os ensinamentos de Marx, continua dizendo que o confronto também devia ser feito em relação à “satânica majestade do livre comércio de John Stuart Mill” (p. 72). Mais adiante, ao fazer o balanço de sua visita à Exposição Universal de Paris, em 1990, que representava o triunfo do capitalismo da belle Époque, ele revela que “tinha estudado Karl Marx e suas doutrinas da história com profunda atenção, mas que não podia aplicá-las a Paris” (p. 379). No caso de Lafer, não há menção a algum estudo sério da doutrina marxista, mas as referências não faltam, seja por meio de Raymond Aron, seja através de obras de Hélio Jaguaribe.
Ambos, porém, Henry James e Celso Lafer, exibem o mesmo compromisso incontornável com os princípios do liberalismo político e dos governos democráticos. James, ao conviver mais longamente com o sistema parlamentar inglês, considerava que “o governo de classe média da Inglaterra constituía o ideal do progresso humano” (p. 33). Por classe média, ele queria dizer, obviamente, burguesia, em oposição à velha aristocracia de títulos, que não existia no seu país natal; ela estava surgindo, em sua própria época, mas apenas a partir do exibicionismo ostensivo dos “barões ladrões”, enobrecidos financeiramente a partir da idade dourada do capitalismo americano. Celso Lafer, do seu lado, sempre foi um liberal doutrinal e filosófico, não obstante seu alinhamento pragmático com a socialdemocracia na política brasileira, no que, aliás, ele combina com um de seus mestres, o jurista e intelectual italiano Norberto Bobbio. 

Mais de uma centena de textos comparecem nos dois volumes, organizados em cinco partes bem identificadas, embora algumas repetições sejam detectáveis aqui e ali. O conjunto dos escritos constitui, sem dúvida alguma, um completo curso acadêmico e um amplo repositório empírico em torno dos conceitos exatamente expressos no título da obra: Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação. Os artigos, ensaios, conferências e entrevistas podem servir, em primeiro lugar, a todos os estudantes desses campos, não restritos, obviamente, aos próprios cursos de Relações Internacionais, mas indo ao Direito, Ciência Política, Filosofia, Sociologia, História, além de outras vertentes das Humanidades. Mas, os diplomatas profissionais e os demais operadores consolidados trabalhando direta ou indiretamente nessas áreas também encontrarão aqui um rico manancial de ideias, argumentos e, mais importante, “recapitulações” em torno de conferências, negociações, encontros bilaterais, regionais ou multilaterais que figuraram na agenda internacional do Brasil nas últimas décadas. 
A diversidade de assuntos, inclusive em relação aos próprios personagens que aqui comparecem, em “diálogos”, homenagens, obituários ou relatos de encontros pessoais, possuem um inegável vínculo entre si, pois todos eles têm a ver, de perto ou de longe, com a interface externa do Brasil e com os voos internacionais do autor. Os textos não esgotam, obviamente, o amplo leque de interesses e de estudos do autor, que se estende ainda aos campos da literatura e dos assuntos culturais em geral, trabalhos que figuram em diversos outros livros publicados de Celso Lafer, vários monotemáticos e alguns na categoria de coletâneas, como por exemplo os três volumes publicados pela Atlas, em 2015, enfeixados sob o título comum de Um percurso no Direito do século XXI, mas voltados para direitos humanos, direito internacional e filosofia e teoria geral do direito. A sua produção variada, acumulada intensa e extensivamente em tão larga variedade de assuntos, permite o mesmo tipo de “assemblagem” ocasional efetuada na presente obra em dois volumes. Apresentando, por exemplo, seus escritos focados em Norberto Bobbio: trajetória e obra (São Paulo: Perspectiva, 2013), Celso Lafer começa por lembrar justamente essa prática do mestre italiano: 
Bobbio, ao fazer, em 1994, um balanço de sua trajetória, observou que a sua obra caracterizava-se por livros, artigos, discursos sobre temas diversos, ainda que ligados entre si [nota: a referência aqui é à obra de Bobbio, O Futuro da Democracia]. Parte muito significativa e relevante da sua obra é constituída por volumes que são coletâneas de ensaios, reunidos e organizados em função dos seus nexos temáticos. Esses volumes de ensaios cobre os diversos campos do conhecimento a que se dedicou: a teoria jurídica, a teoria política, a das relações internacionais, a dos direitos humanos e o vinculo entre política e cultura, rubrica que abrange a discussão do papel do intelectual na vida pública. Esses volumes são representativos do contínuo work in progress da trajetória intelectual de Bobbio, esclarecendo como, no correr dos anos, por aproximações sucessivas, foi aprofundando a análise dos temas recorrentes do seu percurso de estudioso. (p. 23)

A partir da transcrição desse introito se poderia perfeitamente dizer: Ecce homo (talvez menos na linhagem nietzscheiana, e mais na do original bíblico). A afirmação se aplica inteiramente à própria trajetória acadêmica e profissional de Celso, ao seu percurso intelectual, à sua visão do mundo, com uma vantagem adicional sobre o jurista italiano, devido ao fato de Lafer ter sido bem mais do que um “simples professor”, ao ter exercido por duas vezes (até aqui) o cargo de ministro das relações exteriores (e uma vez o de ministro do desenvolvimento e de comércio exterior), funções certamente mais relevantes, para o Brasil, do que o cargo largamente honorífico concedido a Norberto Bobbio, já quase ao final da sua vida, de senador da República italiana. 

O percurso de Celso Lafer, no Brasil e no mundo, sua postura filosófica, de defensor constante dos direitos humanos e da democracia política, suas aulas na tradicional Faculdade de Direito (e em muitas outras conferências em universidades e várias instituições em incontáveis oportunidades), sua luta pela afirmação internacional do Brasil nos mais diversos foros abertos ao engenho e arte da diplomacia nacional, todos esses aspectos estão aqui refletidos em mais de uma centena de trabalhos carinhosamente reunidos sob a direção do próprio mestre e oferecidos agora ao público interessado. Não apenas o reflexo de uma vida dedicada a construir sua própria trajetória intelectual, esses textos são, antes de qualquer outra coisa, aulas magistrais, consolidadas numa obra unitária, enfeixada aqui sob a tripla dimensão do título do livro. 
Mais do que uma garrafa lançada ao mar, como podem ser outras coletâneas de escritos dispersos oferecidos a um público indiferenciado, a centena de “mensagens laferianas” aqui reunidas constituem um útil instrumento de trabalho oferecido aos profissionais da diplomacia, ademais de ser uma obra de referência aberta à leitura dos pesquisadores, dos professores e dos estudantes dessas grandes áreas de estudos e de trabalho acadêmico. Ao disponibilizar essa massa de escritos da mais alta qualidade intelectual ao grande público, esta obra faz mais do que reunir estudos dispersos numa nova coletânea de ensaios conectados entre si: ela representa, também e principalmente, um tributo de merecido reconhecimento ao grande mestre educador que sempre foi, e continuará sendo, Celso Lafer.
Vale!

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19 de julho de 2018

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Celso Lafer

Relações internacionais,política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação
 (Brasília: Funag, 2018, 2 vols., 1415 p.)

Sumário Volume 1


Apresentação: presidente da Funag
Prefácio: Gelson Fonseca Jr. 
Introdução geral: Celso Lafer
PARTE I
A reflexão da experiência
1.     Uma vida na diplomacia: entrevista ao CPDOC (1993)
2.     Reflexões sobre uma gestão: 2000-2002 (2003)
3.     Uma trajetória diplomática: entrevista à revista Sapientia(2012)

PARTE II
Itamaraty
A instituição
4.     A autoridade do Itamaraty (1992)
5.     O Palácio do Itamaraty: Rio-Brasília (2001)
6.     Uma diplomacia de fundação: O Itamaraty na cultura brasileira (2001)
7.     Rio Branco e o Itamaraty: 100 anos em 10 (2002)
8.     Rio Branco e a memória nacional (2012)
9.     Desatar nós: posse do secretário-geral Osmar Chohfi (2001)
10.  O retorno ao Itamaraty (2001)

Diálogos
11.  José Guilherme Merquior: A legitimidade na política internacional (1993)
12.  Gelson Fonseca Jr.: A legitimidade na vida mundial(1998)
13.  Sergio Danese: Diplomacia presidencial(1998)
14.  Synesio Sampaio Goes: Navegantes, bandeirantes e diplomatas (2000)
15.  Fernando Barreto: Os sucessores do Barão, 1912-1964(2001)
16.  Rubens Ricupero: A viagem presidencial de Tancredo (2010)
17.  Gelson Fonseca: A diplomacia multilateral do Brasil (2015)
17bis. Paulo Roberto de Almeida: Formação da diplomacia econômica no Brasil(2001)

Memórias
18.  Horácio Lafer (1900-1965): sua atualidade (2015)
19.  Diplomatas contra o Holocausto (2001)
20.  Saraiva Guerreiro: um empregado do Itamaraty (1992)
21.  As lições das memórias de Lampreia (2010)

PARTE III
Relações internacionais
A necessidade do campo
22. O estudo das relações internacionais: necessidade e perspectivas (1982)
23. Discurso de agradecimento pelo prêmio Moinho Santista (2001)
24. Discurso de agradecimento como professor emérito do IRI-USP (2012)

O campo teórico
25. A política externa, a paz e o legado da Grécia clássica (1982)           
26. Os dilemas da soberania (1982)
27. Karl Deutsch e as relações internacionais (1982)
28. Aron e as relações internacionais (2005)
29. A Escola Inglesa: suas contribuições (2013)
30. Andrew Hurrell: sobre a ordem global (2008) 
31. Zelotismo-Herodianismo na reflexão de Helio Jaguaribe (2013)

Tópicos específicos 
33. Guerra e Paz: o painel de Portinari na sede da ONU (2004)
34. O desarmamento e o problema da paz (1984)
35. Direito e legitimidade no sistema internacional (1989)
36. Obstáculos a uma leitura kantiana do mundo no século XXI (2005)
37. Direitos humanos e democracia no plano interno e internacional (1994)
38. O GATT, a cláusula de nação mais favorecida e a América Latina (1971)
39. Comércio internacional, multilateralismo e regionalismo (1991)
40. Reflexões sobre a OMC aos 50 anos do comércio multilateral (1998)
41. Perspectivas da Argentina: Felix Peña (2004)
42. Empresas transnacionais: Luiz Olavo Baptista (1987)
43. O significado da Rio-92 e os desafios da Rio+20 (2002)
44. Mundo, ciência, diplomacia (2015)
45. Cúpulas ibero-americanas (1992)      
46. O Diálogo Transatlântico: Carlos Fuentes (2013)
47. Armas nucleares (2017)
48. O mundo e os refugiados (2016)
49. União Europeia, 50 anos: lições do passado, desafios futuros(2007)
50. 60 anos do GATT e da Declaração Universal dos Direitos Humanos (2008)
51. Proteção de nacionais no exterior: decisão da corte da Haia (2004)
52. A independência do Kosovo e a Corte de Haia (2010)
53. Sobre o Holocausto (2011)
55. Variações sobre o tempo (2011)

Sumário Volume 2


PARTE IV
A inserção internacional do Brasil: a política externa brasileira
O Brasil no mundo
56. Segurança e desenvolvimento: uma perspectiva brasileira (1972)
57. Panorama geral da situação internacional (1981)
58. Representação, controle e gestão em política externa (1984)
59. Dilemas da América Latina num mundo em transformação (1988)
60. A inserção internacional do Brasil (1992)
61. Diplomacia e parlamento (1992)
62. Relações internacionais do Brasil: palestra na ESG (1992)
63. O mundo mudou (2001)
64. Repúdio ao terrorismo (2001)
65. O Brasil, sua gente e o Oriente Médio (2012)
66. O Brasil num mundo conturbado (2016)

Lições do passado
67. 1ª e 2ª conferências da paz de Haia, 1899 e 1907 (2010)
68. O Brasil e a Liga das Nações (2000)
69. Conferência do Rio de 1992 (1998)
70. Gerson Moura: a política externa de Vargas e Dutra (1992)
71. Diplomacia de JK: dualidade a serviço do Brasil (2001)
72. Política exterior brasileira: um balanço da década de 1970 (1981)
73. Brasil-EUA: história e perspectivas das relações diplomáticas (1982)
74. Possibilidades diplomáticas do governo Tancredo Neves (1985)
75. A viagem presidencial de Tancredo Neves: seu significado (1985)
76. A política externa do governo Collor (2017)
77. Reflexões sobre o 11 de setembro (2003)
78. Um olhar sobre o mundo atual (2015)
79. A herança diplomática de FHC (2004)
80. Ação, experiência e narração em FHC (2006)

Parceiros vitais do Brasil
81. Brasil-Argentina – uma relação estratégica (2001)
82. Relações Brasil-Portugal: passado, presente, futuro (2000)
83. A política externa do Brasil para a América Latina (2014)
84. O Brasil na América Latina (2013)
85. Reflexões sobre a CPLP: lusofonia, sonhos e realidade (2013)
86. Reflexões sobre o tratado de 1895 com o Japão (2015)

Questões polêmicas
87. A ONU, Israel e o sionismo (1975)
88. Entusiasmo no Itamaraty? (2003)
89. Partidarização da política externa (2009)
90. A política externa: necessidades internas, possibilidades externas (2006)
91. A política externa e a crise política (2005)
92. Variações sobre a política externa (2006)
93. Novas variações sobre a política externa (2007)
94. Diplomacia brasileira: novas variações críticas (2010)
95. Ahmadinejad no Brasil: um equívoco (2009)
96. O Brasil e a nuclearização do Irã (2010)
97. O Mercosul, a Venezuela e a cláusula democrática (2009)
98. Asilo diplomático: o caso do senador Roger Pinto (2013)


PARTE V
Personalidades
Personagens
99. Gerson Moura (1939-1992): In Memoriam (1992)
100. José Guilherme Merquior: diplomacia da inteligência (2001)
101. Sérgio Vieira de Mello: uma vida na construção da paz (2003)
102. Em louvor de Aristides de Souza Mendes (1885-1954) (2004)
103. Homenagem a Celso Furtado (1920-2004) (2005)
104. Gilberto Dupas: uma homenagem (2009)
105. Com coragem, Mandela fez o impossível (2013)
106. De Klerk: um herói da retirada (2014)
107. Octavio Paz: a democracia no mundo ibero-americano (2014)
108. Sergio Paulo Rouanet e a questão da democracia (2014)
109. Shimon Peres (1923-2016): um estadista diplomata (2016)
110. Rubens Ricupero: saudação ao professor emérito (2016)
111. Koffi Annan e as Nações Unidas (2001)
112. Antonio Guterres na ONU (2017)

Posfácio: Paulo Roberto de Almeida
Biobibliografia do autor 
Índice onomástico
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“Há quase quarenta anos tenho o privilégio de conviver e conversar com Celso Lafer sobre alguns dos temas sobre os quais escreve. Conhecia praticamente todos os textos aqui publicados. Sobre alguns, trocamos ideias antes de sua versão final. Ainda assim, a leitura dos artigos me surpreendeu. Em primeiro lugar, pelo volume. Mais de uma centena de textos, de formatos diversos, que foram apresentados em periódicos, conferências, depoimentos no Congresso e em jornais. Há ensaios acadêmicos mais longos, com vocação analítica e, de outro lado, textos curtos, jornalísticos, em cima de questões candentes e polêmicas. Estavam dispersos, publicados em veículos diversos, alguns de difícil acesso. Daí ser tão oportuna e bem-vinda a sua republicação.”

Do prefácio do embaixador Gelson Fonseca Jr., diretor do Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD-Funag).


“A trajetória intelectual de Celso Lafer se confunde com a própria evolução dos estudos e da prática das relações exteriores do Brasil no último meio século, mas estes dois volumes reproduzem apenas uma pequena parte de sua gigantesca produção acadêmica, profissional ou jornalística... (...) Estes textos reproduzem meio século de ideias, reflexões, pesquisas, andanças e um exercício direto de responsabilidades à frente da diplomacia brasileira, em duas ocasiões, e, através dela, de algumas funções relevantes na diplomacia mundial, como a presidência do Conselho da OMC, assim como em outras instâncias da política global. Celso Lafer esteve à frente de decisões relevantes em alguns foros decisivos para as relações exteriores do Brasil, na integração regional, no comércio mundial, nos novos temas do multilateralismo contemporâneo.Esta obra, construída ao longo de alguns meses de garimpo documental e de lapidação formal, a partir de um aluvião torrencial de pepitas preciosas que vinham sendo carregadas pelo fluxo heteróclito de publicações no decorrer de várias décadas, apresenta, finalmente, o que se espera seja uma obra de referência e uma contribuição essencial ao conhecimento da diplomacia brasileira e da vida intelectual em nosso país, a partir dos anos 1960 até aqui.”

Do posfácio do embaixador Paulo Roberto de Almeida, diretor do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais (IPRI-Funag).

America Latina: por que alguns países vão demorar para se desenvolver?

Pouco tempo atrás, tendo recebido um convite do Clube Farroupilha de Santa Maria (RS), para participar do Simpósio Interdisciplinar Farroupilha 2018, nos dias 9 e 10 de novembro deste ano, perguntado sobre qual seria o meu tema, e sabedor que estaria no mesmo evento a famosa economista historiadora Deirdre McCloskey, eu escolhi um título para o meu ensaio de caráter histórico que aparentemente se encaixa nas preocupações dela com o desenvolvimento, ou o não desenvolvimento, de alguns países, aqui explícito: 

Por que o Brasil ainda não é um país desenvolvido?

Aos interessados, informo que esse trabalho foi anunciado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/11/por-que-o-brasil-ainda-nao-e-um-pais.html) e se encontra disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/s/28ed0af501/por-que-o-brasil-ainda-nao-e-um-pais-desenvolvido). 

Agora, percorrendo, como sempre faço, as redes de intercâmbio acadêmico, deparei-me com um título que combina com um antigo trabalho que eu já fiz sobre os regimes econômicos do Brasil, em perspectiva histórica, mas desta vez sobre o conjunto da América Latina. O trabalho tinha este título pomposo: 

Regímenes de crecimiento económico en América Latina 1950-2012
(Regímenes de crecimiento económico en América Latina 1950-2012)

Trata-se de um capítulo de um livro editado no Equador chamado: Estudios de economía heterodoxa para América Latina
Marcelo Varela (ed.). Quito: Editorial IAEN, 2017.

Mas, por que eu digo que alguns países latino-americanos vão demorar para se desenvolver?
Bem, basicamente pelo tipo de pensamento, aparentemente difundido em muitas faculdades 
de economia da região. Leiam esta introdução: 



Quando não se tem uma noção precisa do que seja o capitalismo e se acredita nesse tipo de bobagem, então os "economistas" que saem com esse tipo de formação estão condenados a repetir as mesmas magias econômicas do passado, e que justamente condenaram a América Latina, e o Brasil, ao atraso e ao subdesenvolvimento.
O que eu posso recomendar a esses estudantes de economia?
Permito-me fazer referência a três obras da economista Deirdre McCloskey que muito me ajudaram a revisar profundamente minha própria concepção sobre a natureza da grande revolução capitalista na trajetória histórica de algumas sociedades (primeiro ocidentais, agora se espalhando pela Ásia, e na AL, talvez só no Chile, por enquanto): 

1) Bourgeois Equality: how ideas, not capital or institutions, enriched the world (2016)
2) Bourgeois Dignity: Why Economics Can't Explain the Modern World (2010) 
3)  The Bourgeois Virtues: ethics for an age of commerce (2006)

Seu mais recente livro, ainda está sob impressão, devendo ser publicado no início de 2019: How to be a Humane Libertarian: Essays for a New Liberalism (New Haven: Yale University Press, 2019).

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2 de dezembro de 2018

sábado, 1 de dezembro de 2018

Ricardo Velez-Rodriguez: o novo ministro da Educacao (OESP)

Na assemblagem de diferentes vertentes do pensamento liberal, conservador, teológico que parece caracterizar o ministério do governo que se inicia em janeiro próximo, cabe aguardar os planos para a educação do futuro ministro para uma avaliação sobre sua adequação aos problemas concretos – não os inventados, ou seja, ideológicos – do ensino no Brasil, e basicamente nos primeiros ciclos e no técnico profissional. Quanto ao terceiro ciclo, não tenho nenhuma dúvida: ele será majoritariamente contrário ao novo ministro, irá infernizar-lhe a vida, a ponto de eu não saber se devo cumprimentar, ou enviar pêsames, ao ministro, por ele ter de encarregar-se de educar – sim, educar – além de crianças e jovens, também os grandalhões do ciclo superior.
Paulo Roberto de Almeida

Indicado por Olavo, futuro ministro da Educação quer valores tradicionais

Indicado por Olavo, futuro ministro da Educação quer valores tradicionais
O futuro ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, tem uma vida acadêmica movimentada, mas pouco conhecida. Desde que chegou ao Brasil, no fim dos anos 1970, integrou um grupo minoritário de filósofos conservadores, orientou dezenas de teses, deu aulas em universidades públicas, privadas e na escola do Exército. E foi alçado ao cargo máximo da educação brasileira quando atuava em uma pequena faculdade de Londrina, cujo curso em que leciona tem nota mediana em avaliações nacionais.
Assim como boa parte da academia e de especialistas do setor, Jair Bolsonaro também não conhecia o colombiano Rodríguez. Seu nome foi indicado por um ex-aluno do futuro ministro, o escritor Olavo de Carvalho, que se tornou uma espécie de guru do presidente eleito.
“Ele foi escolhido por critérios técnicos”, diz o sogro Oscar Ivan Prux, advogado e ex-tenente do Exército.
Segundo ele, o genro foi “sabatinado” pela equipe de transição e teve de apresentar seu diagnóstico da educação e planos para área. “Somos muito patriotas e acreditamos no Brasil. O desafio dele será muito grande, Deus o abençoe.”
Rodríguez tem 75 anos e um filho de 6 com Paula Prux, de 33, a filha de Oscar Ivan, que conheceu numa palestra do jurista Miguel Reale.
Embora não seja um membro assíduo das redes sociais, tem perfil e fan page. A página foi criada em 5 de novembro e já tem 10 mil seguidores. É neste canal que o futuro ministro compartilha textos de seu blog, o Pensador de La Mancha.
Em 7 de novembro, 15 dias antes de ser anunciado para o cargo, ele publicou um texto avisando que havia sido indicado ao presidente eleito. O post deixava claro sua afinidade ideológica, tão cobrada pela bancada evangélica quando Bolsonaro escolhera o educador Mozart Neves para a pasta.
“Escola sem partido. Esta é uma providência fundamental”, diz o futuro ministro, que conquistou a vaga um dia depois da reação negativa dos deputados ao diretor do Instituto Ayrton Senna. “Se o problema para a militância esquerdista é a superpopulação do planeta, a melhor forma de equacionar a questão é a ‘ideologia de gênero’. Com ela paramos de nos reproduzir. A família e os valores tradicionais da nossa Civilização Ocidental irão, claro, para a lata de lixo da história”, afirma, em outro trecho.
“O problema da educação não é só um problema ideológico. Suponho que o ministro vá entender isso”, diz o sociólogo e especialista em educação Simon Schwartzman.
Ele e Rodríguez se conheceram há cerca de 40 anos, mas não mantêm contato. “Ele é de uma linha diferente da minha, muito conservadora, orientada por Miguel Reale.”
“Minha preocupação é que suas declarações ficam fora do consenso da educação, que foi tão difícil de construir, com valorização da alfabetização, formação de professores, e incluiu PSDB, PT, DEM”, diz o ex-ministro da Educação no governo do PT, Renato Janine Ribeiro.
Em sua primeira carta depois do anúncio, Rodríguez afirmou que fará uma gestão focada em valores tradicionais e preservação da família.

Críticas a petistas
Em comentários no Facebook, Rodríguez faz elogios ao papa João Paulo II, que “revalorizou a fé cristã e colocou em maus lençóis o comunismo soviético” e críticas aos petistas Jacques Wagner e Dilma Rousseff (“poste e demiurgo são inseparáveis”).
O novo ministro chamou Lula de “sapo barbudo” e classificou o Marco Civil da Internet de “um entrave do populismo dito bolivariano contra a liberdade de expressão”.
“Ele pode ser acusado de qualquer coisa, menos de falta de erudição e falta de produção intelectual”, diz José Pio Martins, reitor da Universidade Positivo, que comprou a desconhecida Faculdade Arthur Thomas, onde Rodríguez dá aulas de Relações Internacionais.
Ele revela que na juventude o futuro ministro era “esquerdista”. “Agora ele acredita numa educação clássica muito forte, conservadora, que ensina línguas, matemática.”
Segundo pessoas que conviveram com ele em Juiz de Fora, onde lecionou na universidade federal, o futuro ministro sempre foi um homem cordato no trato pessoal e posições políticas bem definidas.
Quando chegou à cidade, em 1985, a UFJF tinha poucos doutores em seu corpo docente. Com um diploma de doutorado em Filosofia pela Universidade Gama Filho, ele se destacou.
De acordo com ex-colegas, a carreira de professor por lá foi discreta. Seu maior esforço de ação na área institucional, a criação de um curso de mestrado em Filosofia, fracassou.
Recentemente, na Faculdade Arthur Thomas, ajudou a organizar um novo curso de Relações Internacionais, do qual seria o coordenador. Por ironia, a documentação espera aprovação do novo ministro da Educação.

Biografia de Rio Branco por Villafane - Resenha de Marcos Guterman (OESP)

Biografia avalia influência do Barão de Rio Branco na diplomacia atual

O Barão inventou uma tradição diplomática brasileira que, de tão sólida, parece resistir a qualquer grupo que esteja no poder

Marcos Guterman, O Estado de S.Paulo 
01 Dezembro 2018 | 16h00

Houve considerável burburinho em torno da nomeação de Ernesto Araújo para o cargo de ministro das Relações Exteriores do futuro governo de Jair Bolsonaro. As controvertidas opiniões externadas no passado recente por esse jovem diplomata a propósito de grandes questões globais — e do lugar do Brasil no mundo — ganharam enorme destaque, não somente porque serviram para revelar algo do pensamento do futuro chefe da diplomacia nacional, mas principalmente porque, na avaliação de vários especialistas, tal pensamento, se convertido em ação, ameaçaria romper a preciosa tradição diplomática brasileira.  
Para começar, Ernesto Araújo manifestou admiração incondicional pelo atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que, para o chanceler de Bolsonaro, é nada menos que o salvador do Ocidente – espécie de instrumento de Deus para impedir a completa corrupção dos valores nacionais e cristãos pelo que ele chama de “globalismo”. Diferentemente da globalização, o “globalismo” seria a expressão de um império burocrático supranacional, de inspiração marxista, capaz de ditar normas em outros países, muitas vezes à revelia dos seus povos. Esse império se manifestaria na forma de organizações multilaterais, como a Organização das Nações Unidas ou a Organização Mundial do Comércio, e de entidades políticas, como a União Europeia, mas também na forma de imposição de valores globais supostamente contrários aos costumes mais caros de cada nação. Portanto, não seriam apenas os Estados-nação que estariam sob ameaça; é a própria ideia de família, na acepção cristã e ocidental, que correria risco mortal. 

Ilustração do Barão do Rio Branco na capa da revista 'O Malho' de agosto de 1908 Foto: O Malho

Não é preciso detalhar mais essa visão de mundo para supor que, se transformada em guia da política externa brasileira, faria do Itamaraty algo radicalmente diferente do que é hoje e do que foi quase sempre desde a instauração da República. Por esse motivo, mais do que nunca, é preciso saber que tradição diplomática brasileira é essa para se ter uma noção do que o País está prestes a perder, caso a ideologia antiglobalista seja convertida em orientação oficial para os embaixadores do Brasil ao redor do mundo.
Um excelente começo é a leitura do livro Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco, biografia daquele que é considerado o fundador da diplomacia nacional tal como a conhecemos. O autor do trabalho é o diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe G. Santos, que já produziu outras obras importantes baseadas na vida e na trajetória desse imenso personagem da história do Brasil. Seu novo livro, contudo, é bem mais ambicioso, pois está claro que o biografado não é apenas o Barão do Rio Branco, mas a própria doutrina que rege as relações do Brasil com o resto do mundo. 
Assim, Villafañe não deixa de contar em detalhes as agruras financeiras do perdulário Juca Paranhos, suas aventuras boêmias no cabaré Alcazar, no Rio de Janeiro, e seu rumoroso relacionamento com uma dançarina belga, com quem teve cinco filhos e cujo matrimônio só oficializou depois de 17 anos de relacionamento. Essas saborosas informações conferem humanidade à imagem do calvo e bigodudo senhor que estampou a cédula de mil cruzeiros, que circulou de 1978 a 1989 e, apropriadamente, era conhecida como “barão”. Mas a biografia de Rio Branco vai muito além das questões pessoais ou de sua fama; lá está a gênese da essência do pensamento diplomático brasileiro. 
Essa essência, conforme demonstra Villafañe, está na suposta indisposição atávica do Brasil para o confronto. A genialidade de Rio Branco, a julgar pelo que vai nas páginas dessa biografia, foi a de transformar em virtude a evidente fragilidade brasileira – sempre às voltas com magros orçamentos para o setor de Defesa e com o crônico despreparo de suas Forças Armadas para a eventualidade de uma guerra. Sem ter condições de se impor pela força, a despeito de seu gigantismo, o Brasil de Rio Branco, entre o final do século 19 e o início do século 20, apresentou-se ao mundo como uma nação inclinada à “bonomia”, isto é, com espírito naturalmente voltado para o diálogo. 
Ao protagonizar algumas das mais importantes negociações de fronteiras com vizinhos e com as potências imperialistas da época, Rio Branco não somente ajudou a desenhar o Brasil – o que por si só já lhe garantiria um lugar de destaque no panteão nacional –, mas principalmente forjou no imaginário brasileiro a ideia de que o País repudia o uso da força, resolve litígios na base dos acordos, não tem alinhamento automático com nenhum outro país e advoga firmemente pela não intervenção. Foi assim que os países derrotados pela habilidade de Rio Branco nos contenciosos em que ele se envolveu não se tornaram inimigos; ao contrário, são até hoje firmes parceiros diplomáticos e comerciais, sendo a Argentina o caso mais notável. 
Tudo isso foi possível porque Rio Branco de fato acreditava que o Brasil podia fazer valer seus direitos territoriais pela via da negociação, bastando para isso construir argumentos sólidos – algo que demandava trabalho árduo, ampla investigação em documentos históricos e profundos conhecimentos geográficos. Rio Branco, ainda antes de se tornar chanceler, havia se revelado infatigável estudioso das questões fronteiriças nas quais se envolveu. Era, no dizer do autor, o “exército de um homem só” da diplomacia brasileira nesses contenciosos. E o resultado de tamanho esforço foi recompensado pelo reconhecimento de seus contemporâneos por seu trabalho como “reintegrador do Brasil”, nas palavras de Rui Barbosa. 
Rio Branco, contudo, hesitou em aceitar o cargo de chanceler quando lhe foi oferecido em 1902 pelo então presidente Rodrigues Alves. Ele temia envolver-se na chamada política dos governadores, que deu poder às oligarquias estaduais – algo que Rio Branco, como bom monarquista, abominava. Tornou-se então ministro das Relações Exteriores com o compromisso de servir não aos partidos políticos resultantes daquele arranjo de poder, e sim ao Brasil – ou, ao menos, às suas convicções pessoais sobre o chamado “interesse nacional”, algo que demandaria uma formulação acima das paixões partidárias. Villafañe demonstra que é justamente esse discurso, a que se pode dar o nome genérico de “evangelho do Barão”, que baliza a ideia consagrada hoje no Itamaraty segundo a qual a política externa não pode se dobrar à política partidária e que a diplomacia é atividade para diplomatas profissionais, e não para políticos. 
A importância de Rio Branco na definição das fronteiras nacionais e principalmente no estabelecimento de uma doutrina para a diplomacia brasileira, ajudando o País a encontrar seu “lugar no mundo”, fez do Barão uma figura muito popular em sua época, e além dela.  
Mas Rio Branco foi um herói improvável. Monarquista empedernido, saudoso dos tempos da ordem emanada da figura do imperador, aceitou trabalhar pelo fortalecimento da nascente República, e o fez no campo em que se revelaria um gigante, isto é, na busca pela paz duradoura com os vizinhos, o que facilitou o desenvolvimento econômico do regime que ele, a princípio, combatia. Também abdicou de seu europeísmo aristocrático em favor de uma aproximação com os Estados Unidos, que ele via como contraponto ao perigoso imperialismo europeu e como natural e necessária “polícia” para enquadrar os países instáveis da América Latina.  
No fundo, Rio Branco nunca abandonou uma visão oligárquica do mundo, segundo a qual certos países, por serem civilizados, tinham a prerrogativa de “civilizar” os que teimavam em não compartilhar os valores ocidentais. Portanto, bastava ao Brasil andar na linha – isto é, respeitar e disseminar esses valores – para nada ter a temer em relação aos Estados Unidos. Mas esse pensamento de Rio Branco é fruto tão somente de seu tempo – em que o imperialismo era a norma. Seu legado extrapola em muito essas circunstâncias. Conforme demonstra Villafañe com brilhantismo, o Barão inventou uma tradição diplomática brasileira que, de tão sólida, parece existir desde sempre e resistir a qualquer grupo que esteja no poder – mesmo aos governos do PT, que com tenacidade pretenderam reduzir a política externa aos fundamentos terceiro-mundistas do lulopetismo. 
Com Jair Bolsonaro no poder, essa notável tradição será mais uma vez duramente testada.

Monica de Bolle sobre a ideologia de genero - Revista Epoca

O Brasil, que encontra-se numa fase de transição para um novo regime – esperemos que para melhor no terreno econômico, pelo menos –, enfrenta hoje um confronto de narrativas sobre diversos elementos daquilo que poderíamos grosseiramente chamar de "panorama cultural".
Também acho que vivemos sob uma espécie de "pensamento único" sob o regime companheiro, entre 2003 e 2016 (e muitas de suas manifestações não cessaram ainda nos meios formadores de opinião).
Mas, isso não quer dizer que temos de cair do outro lado, na rejeição de tudo o que havia e na adoção de uma visão conservadora do mundo.
O que mais preocupa não é nem a consolidação de alguma "ideologia" que sustentaria o novo regime, pois ideologia significa, basicamente, sistematização de algumas ideias em torno de alguma proposta mais ou menos coerente.
Ora, o que temos até aqui é uma grande confusão mental, e na maior parte das vezes a expressão da pura ignorância, se a ignorância consegue se expressar. 
Tenho um problema básico em relação a essa confusão: tenho alergia à burrice. Consigo debater ideias, mas não me sinto confortável em face da confusão mental atualmente reinante.
Monica de Bolle reflete sobre uma dessas confusões mentais, a tal de "ideologia de gênero". 
Eu só gostaria de ver a inteligência prevalecer. Seria pedir muito?
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1/12/2018

Não fossem o gogó e os pés...

O rechaço à chamada ideologia de gênero vem se espalhando na América Latina com o fervor ultraconservador que se alastra como epidemia de fé e de rejeição à ciência

Monica de Bolle, economista e diretora do Instituto de Estudos de Política Econômica, conhecido como Casa das Garças. Rio de Janeiro (Cid.) - Brasil. 12/12/2012. Foto: Stefano Martini / Editora Globo. Foto: Stefano Martini / Editora Globo
Sai a figura oculta que é um cachorro atrás, entra o marxismo cultural. Sai a saudação à mandioca, entra a ideologia de gênero. Ricardo Veléz Rodríguez, filósofo, teólogo e futuro ministro da Educação do governo Bolsonaro, condena a tal da ideologia de gênero, que, segundo ele e todos os ultraconservadores de sua estirpe que hoje pipocam mundo afora, é uma afronta aos valores tradicionais cristãos. Trata-se, segundo ele, de ideologia “destinada a desmontar os valores tradicionais de nossa sociedade, no que tange à preservação da vida, da família, da cidadania, em soma, do patriotismo”. Assim como o novo chanceler de Bolsonaro, o futuro ministro da Educação mantém, desde 2009, um blog em que expõe suas ideias. Apropriadamente, o blog chama-se “Rocinante”, cavalo virtual em que monta Vélez Rodríguez para lutar batalhas quixotescas contra moinhos de vento como a “doutrinação de esquerda nas escolas”. Vélez Rodríguez, quem poderia imaginar, quer estocar o vento da ideologia de gênero, trancando-o num armário bem fechadinho.
Mas o que é ideologia de gênero? De acordo com alguns estudos e análises — sérios — da área de gender studies, a ideologia de gênero condenada por setores ultraconservadores mundo afora seria a visão de que gênero não tem relação com diferenças biológicas e de que pode ser simplesmente fruto de uma escolha individual. Segundo os detratores da ideologia de gênero — expressão cunhada por eles —, ela seria linha de pensamento perigosa que poderia contaminar as crianças e destruir a democracia. O movimento antigênero e anti-ideologia de gênero marcou presença nos ataques à visita da filósofa Judith Butler ao Brasil há pouco mais de um ano, no repúdio ao referendo sobre o acordo de paz do ex-presidente colombiano Juan Manuel Santos com as Farc em 2016, nas campanhas pela reforma da constituição distrital no México em 2017 e durante a votação final sobre a lei que acabaria com a proibição da interrupção da gravidez promulgada por Augusto Pinochet no Chile, também em 2017. Esses são apenas alguns exemplos de como o rechaço à chamada ideologia de gênero vem se espalhando na América Latina com o fervor ultraconservador que se alastra como epidemia de fé e de rejeição à ciência.
Sobre a ciência, não resisti e fui reler trechos do fabuloso livro da antropóloga Margaret Mead publicado em 1935, Sexo e temperamento. Para escrever sua obra, Mead viajou para a Papua-Nova Guiné, espécie de paraíso dos antropólogos devido à imensa diversidade étnica e cultural do arquipélago ao norte da Austrália. Meu interesse pelo país é antigo — o visitei em quatro ocasiões diferentes no ano de 2001 e lá permaneci durante um mês a cada visita. Portanto, passei quatro meses na Papua-Nova Guiné, país que muitos brasileiros provavelmente não saberão localizar no mapa. Fui parar lá pois na época trabalhava no Fundo Monetário Internacional e precisávamos monitorar o empréstimo que havíamos dado ao governo da Nova Guiné. Foi o país mais fascinante que visitei, mas divago. 
Margaret Mead foi para lá no início dos anos 30 e ficou por dois anos para conduzir uma pesquisa pioneira sobre a consciência de gênero. Seu objetivo era descobrir em que medida diferenças de temperamento entre os sexos eram culturalmente, não biologicamente, determinadas.
A Papua-Nova Guiné é o país ideal para estudar culturas isoladas, pois o terreno montanhoso da ilha principal, a densa floresta e a falta de infraestrutura — até hoje, só há estradas num raio de cerca de 20 quilômetros da capital, Port Moresby — tornavam muito difícil o contato entre diferentes povos primitivos. Ao estudar três culturas diferentes, Mead encontrou divergências significativas nos padrões de temperamento observados em homens e mulheres. Em um dos povos, homens e mulheres mostravam-se dóceis, gentis e cooperativos. Em outro, a mulher era agressiva, dominadora, enquanto o homem era submisso e emocionalmente dependente. No terceiro, tanto homens quanto mulheres mostravam-se violentos e agressivos, em luta constante por poder e posição hierárquica. O trabalho pioneiro de Mead revelou as profundas diferenças entre o sexo biológico e a construção cultural do que entendemos por gênero. Desde então, a literatura científica corroborou sua pesquisa e a ampliou enormemente.
Concluo esse artigo com duas reflexões. A primeira: como seria bom se o novo ministro da Educação passasse dois anos na selva da Nova Guiné. A segunda: “Super vitamina dos reflexos, tão complexos de ambos os sexos”. Dá um Close nela.
Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics

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Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...