O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 28 de julho de 2019

Vera Magalhaes (OESP) se espanta com os seguidores de JB


O cordão dos puxa-saco
Acólitos aplaudem patrimonialismo, nepotismo e ataques à ciência e à liberdade de imprensa
Vera Magalhães, O Estado de S.Paulo
O Estado de S. Paulo, 28 de julho de 2019
Minha avó paterna era uma carioca do samba. Adorava entoar marchinhas, com seu vozeirão rouco, a cada vez que um fato lhe chamava a atenção. Nas últimas semanas, me vem à mente dona Alduína cantando uma das suas favoritas, braços erguidos como se estivesse no bloco: “Lá vem/ O cordão dos puxa-saco/ Dando viva aos seus maiorais/ Quem está na frente é passado para trás/ E o cordão dos puxa-saco / Cada vez aumenta mais”.
O puxa-saquismo do Brasil de 2019, que ela não viveu para ver, aceita condescender com patrimonialismo e nepotismo explícitos, ataques à ciência, manifestações de preconceitos variados, desrespeito diário à liberdade de imprensa e tentativas de suprimir atribuições de órgãos, agências e até outros Poderes. Em resumo: exercícios de um crescente autoritarismo para ver se cola. E com muita gente tem colado. Na base da passação de pano, se aperta uma casa no cinto do que passa a ser considerado “o novo normal”. 
Jair Bolsonaro só pode avançar de nariz empinado e com a arrogância dos que acham que não devem satisfações a ninguém porque se cercou de acólitos que só lhe dizem amém. Os seis primeiros meses de governo tiveram como uma de suas marcas o banimento de todo aquele que ousou questionar atos, comportamentos e decisões do presidente. 
Foram para a Sibéria bolsonarista nomes como Gustavo Bebianno e Carlos Alberto Santos Cruz, no primeiro escalão, e outros menos conhecidos em estamentos inferiores do governo, sempre despachados com direito a esculhambação e destruição de reputações.
A maioria de quem sobrou entendeu que, ou se enquadra, ou dança. A exceção em termos de licença para divergir e tocar seu barco com liberdade, até aqui, tem sido Paulo Guedes, o “PG” na forma carinhosa pela qual é tratado por Bolsonaro. Mesmo quando interveio na seara do titular da Economia, como no caso em que tentou a todo custo arrancar vantagens para os policiais na reforma da Previdência, o presidente o fez com cerimônia e cuidado para não desautorizá-lo.
Por quê? Porque o futuro político do bolsonarismo depende de a economia dar certo. E porque Guedes não precisa do cargo de ministro para ter um futuro. E isso lhe dá liberdade para dizer “não” a Bolsonaro quando acha que deve, hoje em dia um privilégio quase exclusivo no primeiro escalão.
Pegue-se o exemplo de nomes como o general Augusto Heleno e mesmo o ministro Sérgio Moro. O primeiro assumiu com a fama de que seria o conselheiro de Bolsonaro. Exerceu essa missão com desvelo no início, ao dissuadir o presidente de ideias como a transferência da embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém e de flertar com a ideia de uma aventura militar na Venezuela. Mas se acanhou diante dos ataques das milícias bolsonaristas aos militares, que ceifou seu amigo Santos Cruz e direcionou suas bazucas contra ele próprio e o porta-voz Rêgo Barros.
Já Moro, tragado para a crise da Vaza Jato, penhorou na loja bolsonarista boa parte do capital político e social que construiu como juiz. Se quando aceitou o ministério havia uma análise de que era indemissível e Bolsonaro dependia mais dele que o contrário, hoje a cada dia o ministro depende mais do presidente e ata seu futuro ao do chefe.
Se formos descer a nomes menos brilhantes, as manifestações de puxa-saquismo são bem mais explícitas e constrangedoras. Aqueles que emprestam suas biografias a justificar até as decisões mais estapafúrdias do chefe deveriam prestar atenção à segunda parte da marchinha da minha avó: “Vossa Excelência / Vossa Eminência/ Quanta referência nos cordões eleitorais / Mas se o ‘doutor’ cai do galho e vai pro chão/ A turma logo evolui de opinião/ E o cordão dos puxa-saco cada vez aumenta mais”.

sábado, 27 de julho de 2019

Preservar o Brasil, mesmo com um presidente despreparado e nefasto - Marco Aurelio Nogueira

Riscos desnecessários
ACIMA DE TUDO E DE TODOS, DEVE-SE EVITAR QUE O PAÍS DEGRINGOLE E FIQUE SEM OPÇÕES
Marco Aurélio Nogueira
O Estado de S.Paulo, 27 de julho de 2019

Falando sem parti pris, o problema político dos brasileiros não é termos um governo de direita ou extrema direita, nem ser Jair Bolsonaro um fundamentalista retrógrado. O problema é que o presidente não conhece o País, não respeita princípios democráticos básicos e não deseja governar. Estamos correndo riscos desnecessários.

Desde sua posse o País depende muito mais do empenho da Câmara dos Deputados que do Poder Executivo. Falam mal dos parlamentares, mas sem eles teríamos tido um semestre trágico, estaríamos mergulhados numa sequência de bravatas, provocações e ofensas promovidas por Bolsonaro e seu entorno, que parecem dispostos a tratar todos como inimigos.

Combater a esquerda e o PT é legítimo e aceitável, mas é uma patifaria quando feito na base de mentiras e agressões. A direita e a esquerda fazem parte da vida, o revezamento delas no governo dos países é normal, saudável e produtivo. Liberais, conservadores e socialistas são famílias políticas essenciais, filhos legítimos da modernidade e de suas transformações no correr do tempo. Querer eliminar um deles com argumentos de autoridade é ir contra a lógica das coisas e os parâmetros democráticos de civilidade.

Debochar de brasileiros do Nordeste, agredir ativistas, professores, artistas, intelectuais e jornalistas, ameaçar a cultura e a educação com a imposição de “filtros” que não passam de censura, tratar a ciência com desprezo, beneficiar o próprio filho – tudo isso, verbalizado com escárnio, faz a Presidência da República evaporar como instância de organização do País e se transforme numa trincheira de combate.

Agindo assim, o presidente prejudica o País e a população, além de criar dificuldades para si próprio. Sua guerra ideológica contra partidos, “velhos políticos” e sociedade civil exaspera os parlamentares, aumentando os custos da transação política na aprovação de medidas e propostas governamentais. Enfraquece as instituições e os órgãos públicos, varrendo-os para a margem. Suas ações não são “folclóricas”, inocentes, mas ferem princípios básicos e fazem o País andar para trás, na educação, na cultura, na política internacional, nos direitos, na saúde, no meio ambiente, na economia. Impactam negativamente a sociedade, fomentando divisões que não ajudam o País a enveredar por uma trilha de progresso, justiça e bem-estar.

Um presidente que se comporta como se fosse chefe de uma facção, não mede as palavras, confunde o público com o particular, move-se pela emoção imediata e por cálculos improvisados é uma tragédia anunciada. Poderá sobreviver ao mandato, e até prolongá-lo, mas de seu período governamental não sairá um País melhor, uma sociedade mais coesa ou um Estado administrativo mais eficiente.

Em vez de nos ajudar a superar a polarização fratricida que reinou nos últimos anos, ele a agrava, a esvazia de dignidade e a empurra para a violência explícita.

Jair Bolsonaro venceu as eleições de 2018 de forma inquestionável, cristalina. Mostrou senso de oportunidade ao endossar um figurino específico na hora mesma em que o eleitorado demonstrava estar cansado das ofertas políticas usuais. Suas proposições autoritárias, seu estilo informal, o uso abusivo que fez de valores religiosos e moralistas, sua habilidade em utilizar as redes sociais encontraram eco nos eleitores, que viram nele uma opção ou para derrotar o PT e virar a página, ou para depositar esperanças num líder de novo tipo.

Sua vitória, porém, também foi conseguida porque a esquerda petista se mediocrizou e a esquerda democrática não conseguiu abraçar o campo liberal-democrático e, junto com ele, virou farinha, que engrossou o pirão da extrema direita. Foi uma vitória do senso de oportunidade combinado com incompetência política. Sem isso o resultado teria sido diferente.

A vitória eleitoral, no entanto, não deu a Bolsonaro o direito de se comportar como o tirano platônico que se deixa dominar pelos desejos mais baixos e por seus demônios internos, postos em movimento pela paixão que aguça a imoderação. Numa República democrática o presidente deve ser um agente da moderação, um construtor de consensos, um promotor do diálogo coletivo. Tem suas preferências, seu credo e seu mapa de navegação, mas não está autorizado a agir por impulso, conforme uma rotina passional que só produz caos e confusão.

A conduta errática e acrimoniosa de Bolsonaro ainda não levou a sociedade à convulsão. Em parte porque só se passaram seis meses, em parte porque a população tem conseguido manter alguma coesão, em parte porque o Congresso tem governado o País, construindo consensos e tomando decisões estratégicas.

Faltam entrar em cena os partidos, os movimentos cívicos e os cidadãos ativos perfilados no campo democrático progressista. Até agora, eles parecem trabalhar nos bastidores, em silêncio, dando até mesmo a impressão de estarem a hibernar A oposição que orbita o PT não consegue produzir propostas e entendimentos, limita-se a mimetizar com sinal trocado a conduta presidencial, valendo-se de uma retórica igualmente passional, que divide e inflama a população. Em vez de se lançar com coragem no mar aberto da renovação procedimental e discursiva, aferra-se a mitos e atitudes defensivas, refratárias ao moderno que se renova em direções inesperadas, surpreendentes e desafiadoras.

Temos de girar a chave e abrir novas portas. Buscar maior interlocução, abandonar projetos parciais de poder e cálculos eleitorais de curto prazo. Pode ser que se tenha de ajudar o governo a governar, a cometer menos erros e a causar menores prejuízos. Não há por que ter preconceito contra isso. Acima de tudo e de todos deve estar a preocupação de evitar que o País degringole e fique sem opções. Resistir é preciso, mas sem medo de olhar para a frente e ousar, correndo riscos que valham a pena.

*PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA E COORDENADOR DONÚCLEO DE ESTUDOS E ANÁLISES INTERNACIONAIS DA UNESP

Quando a submissão sobe à cabeça - revista Veja sobre a postura do chanceler

Até a revista Veja estranhou que o chanceler se tenha posicionado do lado dos EUA, sem sequer se preocupar em defender os interesses brasileiros neste caso de aplicação extra-territorial, portanto ilegal, de medidas unilaterais contra o Irã, importante parceiro comercial do Brasil. 
Vocês conhecem o "Estado da Lei"? Pois é, ele devia estar um pouco confuso na hora de responder, temeroso de não ofender seus mestres americanos e seus patronos brasileiros, quando o mínimo que deveria fazer seria demonstrar pelo menos a intenção de questionar os EUA nessa atitude que visa impedir o Brasil de comerciar legitimamente com qualquer país do mundo.
Os EUA, a despeito das sanções impostas pelos sucessivos governos e reforçadas por Trump, são o maior fornecedor de alimentos e de medicamentos a Cuba.
Ou seja, os EUA podem comerciar com quem desejarem, e o chanceler se mostra submisso às medidas americanas em prejuízo de interesses econômicos do Brasil.
Que vergonha...
Paulo Roberto de Almeida

Chanceler diz que Petrobras pode sofrer sanções dos EUA
revista Veja, 26/07/2019

O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, afirmou nesta quinta-feira, 25, que a Petrobras corre o risco de ser punida pelos Estados Unidos caso abasteça os dois navios do Irã que estão estacionados no Paraná. No entanto, acrescentou que a decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, em favor do abastecimento das embarcações deve ser cumprida.

“É um tema que está na Justiça, nosso entendimento é de que as partes envolvidas têm que seguir a decisão da Justiça. Nós temos chamado a atenção ao fato de que a Petrobras poderia estar sujeita a ter prejuízos em suas atividades nos Estados Unidos. De acordo com as medidas que estão em vigor nos Estados Unidos, determinado comportamento da empresa por ter esse tipo de repercussão”, disse.  “Achamos que a situação permanece, mas existe o Estado da Lei”, completou.

A declaração do chanceler causou surpresa por não vir acompanhada de nenhum questionamento a esse mecanismo de retaliação americano, que atinge companhias de qualquer país com negócios com firmas desse setor iraniano, nem ao mérito dessas medidas dos Estados Unidos contra Teerã. Araújo acatou a ameaça americana como dado da realidade e esquivou-se também de defender o direito do Brasil de garantir a viabilidade de seu comércio com o Irã e qualquer outro parceiro comercial.

Na noite de quarta-feira 24, Tofolli  determinou que a Petrobras abastecesse os dois cargueiros. O STF informou que o ministro indeferiu o pedido da estatal brasileira e manteve a decisão do Tribunal de Justiça (TJ) do Paraná, que tinha determinado o fornecimento do combustível. Ao recusar-se a fornecer o combustível, a Petrobras alegava que poderia ser punida pois as embarcações são alvo de sanções americanas.

Bavand e Temeh, as embarcações ancoradas no Porto de Paranaguá desde o início de junho por falta de combustível, têm a missão de desembarcar ureia ao Brasil e carregar milho ao Irã. Maior importador de produtos brasileiros no Oriente Médio, o Irã disparou a ameaça de vetar as importações de produtos do Brasil se os seus navios não forem abastecidos. Ao Irã podem se seguir outros destinos de bens agropecuários no Oriente Médio.

“Eu disse aos brasileiros que são eles que devem resolver o problema, não os iranianos”, afirmou embaixador do Irã em Brasília, Seyed Ali Saghaeyan na quarta-feira, 24. “Mas se não for resolvido, talvez as autoridades em Teerã tenham que tomar algumas decisões, porque isso é o livre-comércio e outros países estão disponíveis”, agregou, ao destacar que não haverá problemas em encontrar outros fornecedores de milho.

Os cem anos da disciplina Relações Internacionais - Virgilio Caixeta Arraes (Mundorama)

Cem anos já? Pois é, as negociações de paz de Paris, ao final daquela que foi chamada de Grande Guerra – mas apenas até 1939 – marcaram o início do estudo sistemático das relações internacionais.
Virgílio Caixeta Arraes, um dos melhores analistas desse campo, professor na UnB, retraça aqui o nascimento e desenvolvimento inicial da disciplina.

Os 100 anos da disciplina “Relações Internacionais”, por Virgílio Arraes

O encerramento da I Guerra Mundial em novembro de 1918 ocasionou um anseio maior por estabilidade global, mesmo provisória. A extensão inédita do conflito quanto à destruição dos países envolvidos e ao morticínio proporcionado nos campos de batalha desencadeou a necessidade de se ter a paz como meta fixa da sociedade internacional, não como mera referência intelectual por vezes diletante ou obrigação religiosa constante.
Nas cansativas lides diplomáticas em solo francês em 1919, encabeçadas pelos Estados Unidos, o objetivo foi o de conjugar duas vontades conflitantes entre si, resultantes dos desejos imediatos dos vencedores: a concórdia mundial, sem sombra de dúvida, mas, ao mesmo tempo, a punição severa da Alemanha.
O espírito do tempo daquele momento não era similar ao do século dezenove, quando os governos sobrepujantes haviam debatido a nova ordem global em Viena sem enquadrar a responsável maior pelo caos durante vinte e cinco anos, a França: ora republicana, ora monarquista. Ao contrário, ela seria agregada ao pequeno círculo dos dirigentes do planeta.
Em certa medida, a aspiração das principais potências europeias, malgrado a turbulência causada pelo sonho imperial francês, era o de recuperar o equilíbrio entre eles, ao implementar mecanismo de diálogo mais constante: as conferências ad hoc.
Embora negociada a contento, a restauração política da Europa seria na prática quimera, apesar dos esforços militares da Áustria dos Habsburgos-Lorenas e da França dos Bourbons nos primeiros anos pós Viena. De toda maneira, o continente não assistiria a grandes confrontações até o processo de unificação da região germânica, enfeixado pela belicista Prússia.
Sem a participação norte-americana em solo europeu a partir de 1917, a peleja ter-se-ia prolongado por período prolongado. Responsáveis pela queda de Berlim, caberia a Washington, de matiz democrata, a liderança das negociações voltadas à trégua.
Destarte, o presidente Woodrow Wilson, oriundo profissionalmente da prestigiosa Universidade de Princeton, iria retomar o ideário da paz sem vitória, espraiado em janeiro de 1917. Na prática, isso significaria a concórdia por meio da justiça, não pela prevalência da vontade de uma aliança, ainda que temporária.
A materialização do estabelecimento de uma paz duradoura havia sido indicada pela formulação em janeiro de 1918 de catorze pontos, de abrangência bem ampla tanto nas suas aspirações políticas bem como no raio de atuação. De modo simbólico, o primeiro tópico se referiu ao encerramento da diplomacia secreta.
Outro ponto de destaque foi o da liberdade de navegação, premissa importante para o país mais industrializado do globo – a estabilidade através do comércio havia sido propagada por Kant em seu ensaio A Paz Perpétua.
Ao par de questões vinculadas à definição de fronteiras na Europa, com a extinção dos antigos impérios, houve o lançamento do direito de autodeterminação – comunidades deveriam pertencer a nações com os quais se identificavam do ponto de vista cultural, por meio do idioma e da religião, por exemplo. Contudo, isso valeria basicamente para grupos pertencentes durante o conflito à Áustria, Rússia ou Otomano. Tal aspiração não seria, no entanto, estendida a populações agregadas à força às potências tradicionais.
Ao cabo do documento norte-americano, o elemento de maior visibilidade foi o da constituição de uma liga permanente das nações, substituta das conferências singulares derivadas do século predecessor, em face da complexidade dos interesses dos diversos governos e dos países nascidos com a implementação da paz.
O objetivo da inédita organização planetária seria o de manter a todo custo a estabilidade, via fórum permanente de debates, inclusive com um conselho de segurança, ou da formação de coligações militares específicas.
Com a desistência da Alemanha de continuar a lutar em novembro de 1918, os denominados Quatro Grandes – Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Itália – reunir-se-iam em Versalhes, outrora majestoso solar bourbônico, com o propósito de delinear o novo mundo: mais republicano, menos monarquista. Outrossim, mais liberal na economia e democrático, porém bem insensível quanto ao destino dos perdedores e dos povos colonizados na África e na Ásia.
No dia a dia das sessões de trabalho, cada delegação composta valia-se, além dos diplomatas, da expertise de militares, políticos, economistas, juristas etc, com a finalidade de resguardar seus interesses nacionais, não de moldar um acerto geral.
Como consequência, atribuir-se-ia à Alemanha a responsabilidade plena do início da guerra, ponto de que discordavam os Estados Unidos, porém minoritários no encaminhamento do tratamento. A Rússia, em processo de transição para tornar-se União Soviética, não havia sido convidada. Portanto, a incomum sociedade das nações patinharia no seu almejo de paz contínua.
No entanto, a incerteza das confabulações diplomáticas não impediu no segmento acadêmico o estabelecimento da primeira cátedra específica de relações internacionais, fruto de distintas contribuições do saber universitário: história, politologia, economia, direito, geografia etc. Ela seria uma tentativa de disciplina de síntese, não de conhecimento fragmentado como havia sido comum no século anterior.
Seria em Gales – Universidade de Aberystwyth – em 1919 o local da fixação da notável iniciativa. Woodrow Wilson, ele mesmo historiador, seria homenageado nela. Um de seus professores seria Edward Hallett Carr, afamado anos depois por uma obra – hoje clássica – do renovado campo de estudos: Vinte anos de crise.
Um século depois, a instabilidade na política mundial continua, ainda que sob moldura distinta: Alemanha e Rússia, após tentativas de primazia global ao longo do século vinte, juntaram-se às demais potências, apesar de queixas cá e acolá vez por outra.
As insatisfações maiores estrilam em áreas distantes da faixa norte-atlântica e já não respondem a aspirações de incorporações territoriais, porém a desejos de imposição de doutrinas com tintas religiosas por pequenos grupos, entusiasmados, por seu turno, com interpretações radicais de religião, nas quais figuram o belicismo, não o diálogo, como seu motor de propagação.

Sobre o autor

Virgílio Arraes é professor do Departamento de História da Universidade de Brasília – UnB.

Como citar este artigo

Mundorama. "Os 100 anos da disciplina “Relações Internacionais”, por Virgílio Arraes". Mundorama - Revista de Divulgação Científica em Relações Internacionais,. [Acessado em 27/07/2019]. Disponível em: <http://www.mundorama.net/?p=25519>.

Existe uma ideologia da política externa brasileira? - Paulo Roberto de Almeida


A ideologia da diplomacia brasileira

Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor no Centro Universitário de Brasília.
  
A diplomacia brasileira raramente exibiu uma ideologia que lhe fosse própria ou exclusiva, ao longo de sua história de quase dois séculos. Pode-se dizer que ela acompanhou, quando não participou ativamente, da construção do Estado brasileiro, mais até do que da nação, a despeito de ter sido uma das principais protagonistas desse processo inacabado e ainda incompleto, como argumentado amplamente por Rubens Ricupero em sua obra que leva por título justamente a afirmação de um projeto, tanto quanto de um ideal: A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal, 2017).
Dois conceitos, porém, estão permanentemente associados às suas manifestações práticas, no decorrer desse período bissecular: autonomia e desenvolvimento. Eles são coetâneos ao processo de consolidação institucional do Estado brasileiro e percorrem os programas em diferentes fases da história brasileira, desde o Império até a atual República, que já conheceu diversos regimes mais ou menos democráticos, autoritários ou abertamente ditatoriais. Desde a sua introdução, o embaixador Ricupero deixa claro qual foi o papel da diplomacia ao longo dessa longa trajetória:
Poucos países devem à diplomacia tanto como o Brasil, e não só em relação ao território. Em muitas das principais etapas da evolução histórica brasileira, as relações exteriores desempenharam um papel decisivo. Com seus acertos e erros, a diplomacia marcou profundamente a independência, o fim do tráfico de escravos, a inserção no mundo por meio do regime de comércio, os fluxos migratórios, voluntários ou não, que constituíram a população, a consolidação da unidade ameaçada pela instabilidade na região platina, a industrialização e o desenvolvimento econômico. (pp. 27-28).

Em contraste com sua importância prática, e até o seu papel decisivo na construção da nação, como pretende Ricupero, não se pode identificar uma ideologia que lhe tenha servido de guia permanente para sua ação ou ideia unificadora que perpassasse as diferentes etapas da história nacional, ademais desses dois princípios subjacentes ao projeto nacional que parece atravessar uma história nem sempre retilínea: desenvolvimento econômico com autonomia decisória. Em outros termos, a diplomacia serviu à nação sem necessariamente construir um corpus doutrinal ou justificativas teórico-práticas que pudessem constituir um conjunto organizado de ideias ao qual se atribui normalmente o conceito de ideologia.
Paradoxalmente, é na fase atual, curiosamente, que a diplomacia tenta se dotar de uma ideologia própria, certamente não inspirada em seu próprio âmago, que é o dos diplomatas profissionais, mas importada de fora, a partir de emanações confusas de pessoas parcamente inspiradas na análise e no tratamento prático das relações internacionais do Brasil. A expressão correta, na verdade, é a de que a diplomacia brasileira vem sendo tomada de assalto por ideias e conceitos exóticos que não chegam sequer a conformar uma ideologia, enquanto sistema de ideias mais ou menos ordenado em torno de um projeto definido. O que se tem, de fato, é uma assemblagem caótica de sofismas construídos por setores marginais do pensamento político brasileiro, e que tentam se impor em face de padrões de trabalho, valores e princípios de atuação longamente estabelecidos na história da diplomacia brasileira. Se formos remontar a eras pregressas de afirmação de ideologias desafiadoras dos padrões estabelecidos na escala civilizatória ocidental – como ocorreu, por exemplo, na primeira metade do século XX – poderíamos dizer que estamos assistindo a um “assalto à razão”.
A importância e a dimensão desse assalto devem ser examinadas à luz do itinerário das ideias predominantes na sociedade brasileira nas últimas duas gerações, que são aquelas que participaram dos processos políticos e dos programas econômicos ainda em curso no Brasil. Trata-se basicamente do processo de industrialização, que se acelera nos anos 1950, atravessa todo o regime militar, para se consolidar no período recente, ainda que com perda relativa de dinamismo no seu crescimento e na sua intensidade tecnológica. Foram nos anos 1950 e 60 que ganharam força as ideias de promoção do crescimento econômico e do desenvolvimento social via industrialização autônoma, perpassando diversas manifestações acadêmicas em torno de teorias sobre a dependência e sustentando projetos estatais de superação de tal condição via inovação tecnológica em bases propriamente nacionais.
Pode-se dizer que a diplomacia acompanhou, secundou, estimulou amplamente tais ideias e projetos, formulando para si a mesma ideologia do desenvolvimento nacional que caracterizou, com maior ou menor ênfase, o pensamento das elites civis, militares, políticas e econômicas no último meio século. A ideologia nacional brasileira durante todo esse período, até hoje, foi a do desenvolvimento autônomo, e como tal a diplomacia incorporou-a plenamente, como sendo a sua própria ideologia.
O debate e a consolidação de ideias em torno do projeto nacional de desenvolvimento se inicia ao final da ditadura do Estado Novo – já presente, por exemplo, na famosa confrontação de ideias entre Roberto Simonsen e Eugênio Gudin, em 1944-45 –, se amplia na República de 1946 – com instituições do tipo da Fundação Getúlio Vargas (1946-47) e o seu Instituto Brasileiro de Economia (IBRE), da Escola Superior de Guerra (1949), do BNDE (1952), do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (1955-1964) – e ganha extraordinário reforço durante o período do regime militar, notadamente através de órgãos como o IPEA e o próprio Ministério do Planejamento, núcleos principais de importantes reformas que estão na origem do Brasil atual, com as mudanças institucionais trazidas pela Constituição de 1988.
Pode-se dizer que essas instituições e princípios de atuação continuam presentes no atual debate brasileiro sobre os rumos do desenvolvimento nacional com autonomia, e foi a partir delas que o Itamaraty concebeu – junto com outros aportes extraídos de sua interface com o exterior, como a Cepal ou a Unctad – seu corpo doutrinal de formulação de ideias e de objetivos de atuação externa que se coadunam e se integram perfeitamente à ideologia nacional brasileira, a do desenvolvimento com autonomia. Em períodos extremamente raros de sua longa história – mas nesses casos também dependentes da orientação geral de sua política nacional –, o Itamaraty se dissociou dessa ideologia para adotar princípios de atuação mais ou menos alinhados com uma potência externa. Nem no Império, surgido em condições de precária afirmação do poder nacional – quando dependíamos de financiamento externo até para o funcionamento do Estado –, ocorreu uma subordinação política ou ideológica à potência hegemônica da época, a Grã-Bretanha, havendo inclusive ruptura de relações diplomáticas, justamente por reação contra a sua arrogância imperial, no caso da complicada abolição do tráfico e da escravatura.
Apenas no contexto da Guerra Fria, em períodos especificamente limitados – no imediato pós-Guerra e ao início do regime militar – é que se manifestaram posturas de relativo alinhamento com a potência então hegemônica, embora por questões tópicas e durante episódios limitados no tempo. A busca por votos coincidentes com os dos Estados Unidos nas primeiras votações da ONU, por exemplo, ou o acompanhamento da intervenção militar na República Dominicana, em 1965, podem simbolizar momentos fugazes de uma postura não de todo autônoma da diplomacia brasileira, junto com a vergonhosa sustentação do colonialismo português na África até 1974, mas por motivos bem diferentes daqueles. Desde a segunda metade dos anos 1960 que a política externa brasileira vem se pautando invariavelmente pela mesma postura de autonomia e independência na formulação e na execução de uma política externa estritamente alinhada com o grande objetivo nacional do desenvolvimento nacional, sua única ideologia conhecida, que emana, na verdade, de um consenso praticamente unânime entre as elites civis, militares, econômicas e políticas.
Pois é esse consenso que está sendo agora rompido, em troca de uma incompreensível e inaceitável adesão política à potência ainda hegemônica, não exatamente aos Estados Unidos enquanto país, economia ou nação avançada, mas ao seu governo atual, por força de uma estranha ideologia antiglobalista que jamais esteve presente entre os princípios e valores que animaram a sua diplomacia e que nunca percorreu os estudos, as orientações políticas e as bases de atuação externa de sua diplomacia profissional. Essa adesão sabuja a uma potência estrangeira, inexplicável em termos de simples racionalidade instrumental, junto com outros eflúvios teológico-moralistas que tentam enquadrar posturas e votações nos foros multilaterais, inaceitáveis no contexto dos padrões que sempre caracterizaram a diplomacia brasileira, não encontram sustentáculo em qualquer projeto de desenvolvimento autônomo do país, e menos ainda no plano da dignidade nacional.
Tais posições constituem, tão somente, manifestação extemporânea de ideias exóticas que dificilmente poderiam enquadrar-se no conceito de ideologia, sendo apenas uma assemblagem confusa de espasmos e sofismas completamente destituídos de fundamentação teórica ou empírica e que, justamente, tomaram de assalto a chancelaria brasileira e o próprio Executivo. Se tais ideias conformam uma nova “ideologia” para a diplomacia brasileira elas só podem pertencer à família das ideologias anacrônicas e reacionárias que fizeram a Europa, e outras partes do mundo, retroceder de maneira espantosa na primeira metade do século XX. A maior ironia é que o governo atual pretende exibir uma política externa e um comércio exterior “sem ideologia”. A afirmação representa, provavelmente, uma demonstração explícita de notável inconsistência política e o máximo de vacuidade mental. Os componentes principais dessa nova “ideologia” ainda devem ser objeto de exame detalhado e pertinente. O certo, desde já, é que se está em face de situação inédita na diplomacia brasileira.

Brasília, 27/07/2019.