A ideologia da diplomacia
brasileira
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor no Centro Universitário de Brasília.
A diplomacia brasileira
raramente exibiu uma ideologia que lhe fosse própria ou exclusiva, ao longo de
sua história de quase dois séculos. Pode-se dizer que ela acompanhou, quando não
participou ativamente, da construção do Estado brasileiro, mais até do que da
nação, a despeito de ter sido uma das principais protagonistas desse processo
inacabado e ainda incompleto, como argumentado amplamente por Rubens Ricupero
em sua obra que leva por título justamente a afirmação de um projeto, tanto quanto
de um ideal: A diplomacia na construção do
Brasil, 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal, 2017).
Dois conceitos, porém, estão
permanentemente associados às suas manifestações práticas, no decorrer desse
período bissecular: autonomia e desenvolvimento. Eles são coetâneos ao processo
de consolidação institucional do Estado brasileiro e percorrem os programas em
diferentes fases da história brasileira, desde o Império até a atual República,
que já conheceu diversos regimes mais ou menos democráticos, autoritários ou
abertamente ditatoriais. Desde a sua introdução, o embaixador Ricupero deixa
claro qual foi o papel da diplomacia ao longo dessa longa trajetória:
Poucos países
devem à diplomacia tanto como o Brasil, e não só em relação ao território. Em
muitas das principais etapas da evolução histórica brasileira, as relações
exteriores desempenharam um papel decisivo. Com seus acertos e erros, a
diplomacia marcou profundamente a independência, o fim do tráfico de escravos,
a inserção no mundo por meio do regime de comércio, os fluxos migratórios,
voluntários ou não, que constituíram a população, a consolidação da unidade
ameaçada pela instabilidade na região platina, a industrialização e o
desenvolvimento econômico. (pp. 27-28).
Em contraste com sua
importância prática, e até o seu papel decisivo na construção da nação, como
pretende Ricupero, não se pode identificar uma ideologia que lhe tenha servido de
guia permanente para sua ação ou ideia unificadora que perpassasse as
diferentes etapas da história nacional, ademais desses dois princípios
subjacentes ao projeto nacional que parece atravessar uma história nem sempre
retilínea: desenvolvimento econômico com autonomia decisória. Em outros termos,
a diplomacia serviu à nação sem necessariamente construir um corpus doutrinal
ou justificativas teórico-práticas que pudessem constituir um conjunto
organizado de ideias ao qual se atribui normalmente o conceito de ideologia.
Paradoxalmente, é na fase
atual, curiosamente, que a diplomacia tenta se dotar de uma ideologia própria,
certamente não inspirada em seu próprio âmago, que é o dos diplomatas
profissionais, mas importada de fora, a partir de emanações confusas de pessoas
parcamente inspiradas na análise e no tratamento prático das relações internacionais
do Brasil. A expressão correta, na verdade, é a de que a diplomacia brasileira
vem sendo tomada de assalto por ideias e conceitos exóticos que não chegam
sequer a conformar uma ideologia, enquanto sistema de ideias mais ou menos
ordenado em torno de um projeto definido. O que se tem, de fato, é uma
assemblagem caótica de sofismas construídos por setores marginais do pensamento
político brasileiro, e que tentam se impor em face de padrões de trabalho,
valores e princípios de atuação longamente estabelecidos na história da
diplomacia brasileira. Se formos remontar a eras pregressas de afirmação de
ideologias desafiadoras dos padrões estabelecidos na escala civilizatória
ocidental – como ocorreu, por exemplo, na primeira metade do século XX – poderíamos
dizer que estamos assistindo a um “assalto à razão”.
A importância e a dimensão
desse assalto devem ser examinadas à luz do itinerário das ideias predominantes
na sociedade brasileira nas últimas duas gerações, que são aquelas que
participaram dos processos políticos e dos programas econômicos ainda em curso no
Brasil. Trata-se basicamente do processo de industrialização, que se acelera
nos anos 1950, atravessa todo o regime militar, para se consolidar no período
recente, ainda que com perda relativa de dinamismo no seu crescimento e na sua
intensidade tecnológica. Foram nos anos 1950 e 60 que ganharam força as ideias
de promoção do crescimento econômico e do desenvolvimento social via
industrialização autônoma, perpassando diversas manifestações acadêmicas em
torno de teorias sobre a dependência e sustentando projetos estatais de superação
de tal condição via inovação tecnológica em bases propriamente nacionais.
Pode-se dizer que a
diplomacia acompanhou, secundou, estimulou amplamente tais ideias e projetos,
formulando para si a mesma ideologia do desenvolvimento nacional que
caracterizou, com maior ou menor ênfase, o pensamento das elites civis,
militares, políticas e econômicas no último meio século. A ideologia nacional
brasileira durante todo esse período, até hoje, foi a do desenvolvimento autônomo,
e como tal a diplomacia incorporou-a plenamente, como sendo a sua própria
ideologia.
O debate e a consolidação
de ideias em torno do projeto nacional de desenvolvimento se inicia ao final da
ditadura do Estado Novo – já presente, por exemplo, na famosa confrontação de
ideias entre Roberto Simonsen e Eugênio Gudin, em 1944-45 –, se amplia na República
de 1946 – com instituições do tipo da Fundação Getúlio Vargas (1946-47) e o seu
Instituto Brasileiro de Economia (IBRE), da Escola Superior de Guerra (1949),
do BNDE (1952), do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (1955-1964) – e
ganha extraordinário reforço durante o período do regime militar, notadamente
através de órgãos como o IPEA e o próprio Ministério do Planejamento, núcleos
principais de importantes reformas que estão na origem do Brasil atual, com as
mudanças institucionais trazidas pela Constituição de 1988.
Pode-se dizer que essas
instituições e princípios de atuação continuam presentes no atual debate brasileiro
sobre os rumos do desenvolvimento nacional com autonomia, e foi a partir delas
que o Itamaraty concebeu – junto com outros aportes extraídos de sua interface
com o exterior, como a Cepal ou a Unctad – seu corpo doutrinal de formulação de
ideias e de objetivos de atuação externa que se coadunam e se integram
perfeitamente à ideologia nacional brasileira, a do desenvolvimento com
autonomia. Em períodos extremamente raros de sua longa história – mas nesses
casos também dependentes da orientação geral de sua política nacional –, o
Itamaraty se dissociou dessa ideologia para adotar princípios de atuação mais
ou menos alinhados com uma potência externa. Nem no Império, surgido em condições
de precária afirmação do poder nacional – quando dependíamos de financiamento
externo até para o funcionamento do Estado –, ocorreu uma subordinação política
ou ideológica à potência hegemônica da época, a Grã-Bretanha, havendo inclusive
ruptura de relações diplomáticas, justamente por reação contra a sua arrogância
imperial, no caso da complicada abolição do tráfico e da escravatura.
Apenas no contexto da
Guerra Fria, em períodos especificamente limitados – no imediato pós-Guerra e
ao início do regime militar – é que se manifestaram posturas de relativo
alinhamento com a potência então hegemônica, embora por questões tópicas e
durante episódios limitados no tempo. A busca por votos coincidentes com os dos
Estados Unidos nas primeiras votações da ONU, por exemplo, ou o acompanhamento
da intervenção militar na República Dominicana, em 1965, podem simbolizar
momentos fugazes de uma postura não de todo autônoma da diplomacia brasileira,
junto com a vergonhosa sustentação do colonialismo português na África até 1974,
mas por motivos bem diferentes daqueles. Desde a segunda metade dos anos 1960
que a política externa brasileira vem se pautando invariavelmente pela mesma
postura de autonomia e independência na formulação e na execução de uma política
externa estritamente alinhada com o grande objetivo nacional do desenvolvimento
nacional, sua única ideologia conhecida, que emana, na verdade, de um consenso
praticamente unânime entre as elites civis, militares, econômicas e políticas.
Pois é esse consenso que
está sendo agora rompido, em troca de uma incompreensível e inaceitável adesão
política à potência ainda hegemônica, não exatamente aos Estados Unidos
enquanto país, economia ou nação avançada, mas ao seu governo atual, por força
de uma estranha ideologia antiglobalista que jamais esteve presente entre os
princípios e valores que animaram a sua diplomacia e que nunca percorreu os
estudos, as orientações políticas e as bases de atuação externa de sua
diplomacia profissional. Essa adesão sabuja a uma potência estrangeira,
inexplicável em termos de simples racionalidade instrumental, junto com outros
eflúvios teológico-moralistas que tentam enquadrar posturas e votações nos
foros multilaterais, inaceitáveis no contexto dos padrões que sempre caracterizaram
a diplomacia brasileira, não encontram sustentáculo em qualquer projeto de
desenvolvimento autônomo do país, e menos ainda no plano da dignidade nacional.
Tais posições constituem,
tão somente, manifestação extemporânea de ideias exóticas que dificilmente poderiam
enquadrar-se no conceito de ideologia, sendo apenas uma assemblagem confusa de
espasmos e sofismas completamente destituídos de fundamentação teórica ou empírica
e que, justamente, tomaram de assalto a chancelaria brasileira e o próprio
Executivo. Se tais ideias conformam uma nova “ideologia” para a diplomacia brasileira
elas só podem pertencer à família das ideologias anacrônicas e reacionárias que
fizeram a Europa, e outras partes do mundo, retroceder de maneira espantosa na
primeira metade do século XX. A maior ironia é que o governo atual pretende exibir
uma política externa e um comércio exterior “sem ideologia”. A afirmação
representa, provavelmente, uma demonstração explícita de notável inconsistência
política e o máximo de vacuidade mental. Os componentes principais dessa nova “ideologia”
ainda devem ser objeto de exame detalhado e pertinente. O certo, desde já, é
que se está em face de situação inédita na diplomacia brasileira.
Brasília, 27/07/2019.
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