Ao
assinar tratado, negociadores foram obrigados a aceitar cláusulas sobre
direitos humanos, meio ambiente e leis trabalhistas que já haviam sido
incluídas no tratado durante governo Temer.
Eliane Oliveira
O Globo, 11/07/2019
BRASÍLIA
- O acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia,
anunciado há quase duas semanas, em Bruxelas, na Bélgica, trouxe a
seguinte lição para a ala mais conservadora do governo: os tratados
comerciais do século XXI incluem questões que vão além do comércio, como
meio ambiente, direitos humanos e leis trabalhistas. Na avaliação de
fontes da área diplomática, ao aceitar essas precondições para que o
documento fosse finalmente assinado após duas décadas de negociações, o
Brasil se rendeu ao globalismo tão combatido pela equipe do presidente
Jair Bolsonaro . Esses temas já haviam sido negociados na gestão do
ex-presidente Michel Temer e tiveram de ser mantidos.
A
expressão globalismo é usada pelos movimentos de direita para se
referir a instituições internacionais, como a própria ONU, que acusam de
interferir na soberania dos países e tentar apagar as tradições
nacionais. O governo atual mantém uma faceta " antiglobalista " ao
rejeitar conceitos já consolidados em fóruns multilaterais em temas como
aborto, mudança climática e gênero. Não há, contudo, resistência à
globalização , que eles próprios enxergam apenas em seus aspectos
econômico-comerciais.
Na
avaliação de uma importante fonte do governo, a ala antiglobalista
sofreu uma derrota, "por ter de concordar com tudo o que diz que é
contra". Essa contradição, destacou essa fonte, vai ocorrer também na
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o
chamado "clube dos países ricos", no qual o Brasil é candidato a uma
vaga. Tanto União Europeia quanto a OCDE e outros organismos adotam
padrões e valores universais que não são "genuinamente nacionais".
Para
o cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV)
Guilherme Casarões, há uma tentativa sistemática da "ala olavista" do
governo — os adeptos do ideólogo de direita Olavo de Carvalho — em
distinguir globalização de globalismo. Globalização teria a ver com os
fluxos econômicos, geralmente pouco ou não regulados, enquanto o
globalismo diria respeito à tentativa, eminentemente política, de se
criar uma burocracia global que opere nos países como uma espécie de
governo mundial, impondo padrões culturais e regulatórios que
supostamente atentam contra a soberania nacional.
—
Ao assinar o acordo Mercosul-UE , dirão os antiglobalistas que o que o
Brasil fez foi ampliar nossa inserção dentro dos fluxos de globalização e
nada mais. A contradição na fala deles é que a UE é frequentemente
usada como exemplo dos malefícios do globalismo político. O próprio
chanceler Ernesto Araújo, no famigerado texto "Trump e o Ocidente",
publicado em 2017, refere-se à Europa como um "espaço culturalmente
vazio regido por valores abstratos" — disse Casarões.
Na
versão divulgada pelo Itamaraty, o acordo reforça o compromisso
brasileiro em áreas como meio ambiente e desenvolvimento sustentável,
"inclusive o Acordo de Paris e a Agenda 2030 para o Desenvolvimento
Sustentável, com previsão de aportes dos países desenvolvidos para
mitigação e adaptação, tendo em conta as necessidades dos países em
desenvolvimento". Já o texto divulgado pelos europeus destaca a premissa
de que o aumento do comércio não deve ocorrer às custas do meio
ambiente ou das condições de trabalho. A UE cita explicitamente o
trabalho infantil.
—
O Brasil cedeu, ao assinar um acordo dentro das regras do sistema
multilateral de comércio, com cláusulas ambientais e sociais. Se o país
quer entrar para o Primeiro Mundo, precisa seguir as normas dos países
desenvolvidos — afirmou Nelson Franco Jobim, professor da
pós-graduação em relações internacionais das Faculdades Integradas Hélio
Alonso (Facha).
Franco Jobim acredita que este é "um dos aspectos positivos" do acordo, mas ressalta:
—
Vai contra o antiglobalismo do núcleo mais ideológico do governo. É uma
vitória da globalização, do sistema multilateral de comércio e da ala
mais pragmática do governo, que está empenhada numa abertura comercial
para aumentar a competitividade da economia brasileira — completou.
Políticas não mudam, diz especialista
Carolina
Pavese, especialista em União Europeia da PUC de Poços de Caldas (MG),
não acredita que ter endossado um acordo com cláusulas sociais e
ambientais vá levar o governo Bolsonaro a necessariamente mudar de
posição nessas áreas. Segundo ela, esse tipo de exigência faz parte dos
acordos assinados pela UE com outros parceiros internacionais, e é
encarado como uma formalidade.
—
Claro, com o atual governo certas agendas devem perder um pouco de
fôlego, refletindo a orientação de política externa que se faz presente,
mas a cooperação e a menção a certos temas é uma característica já
presente na estrutura das relações Brasil-UE desde muito tempo. Seria
difícil encrencar agora e arriscar perder tudo, insistindo em retirar
essas cláusulas. Elas não têm poder vinculante no direito internacional.
São apenas uma declaração de intenções, se assim o Brasil quiser —
disse ela.
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