O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 19 de janeiro de 2020

Cai o secretário, fica o projeto - Miriam Leitão (O Globo)

Cai o secretário, fica o projeto

Miriam Leitão
O Globo, 18/01/2020

Roberto Alvim caiu. O ex-secretário de Cultura era até caricato. Não apenas plagiou Joseph Goebbels, o ideólogo de Hitler, ele imitava seus trejeitos, seu penteado e o reverenciava em objetos na sala. Alvim estava à vontade na transmissão da noite da quinta-feira, ao lado do presidente Jair Bolsonaro, que o elogiou. Ele não é mais o secretário. Foi derrubado pela imprudência de ter copiado e colado a fala de Goebbels. O projeto que ele estava colocando em prática permanece e não era só dele. A ideia de que a cultura possa ser limitada, censurada, dirigida e usada para alavancar uma delirante e perigosa visão de mundo, de país e de poder continua nos editais, decisões e nas ideias de muitos integrantes do atual governo.
Goebbels era o ministro da mentira. Ele sabia a força estratégica da mentira e a usou para deflagrar perseguições contra os adversários políticos. Ele foi o agente que criou o ambiente social em que o nazismo prosperou e que permitiu a mais hedionda das tragédias do século XX: o assassinato em massa dos judeus em campos de concentração. O que aconteceu aos judeus no holocausto afeta cada pessoa, seja de que etnia ou credo for e em que país esteja. É a lição mais cara que a História nos deixou. Não se brinca com um crime dessa dimensão. Jamais. 
Não é aceitável ouvir o que ouvimos na boca de um integrante do governo brasileiro. A lei 9.459 de 1997 pune com a pena de dois a cinco anos a divulgação de símbolos do nazismo. A liberdade de expressão é total numa democracia, mas isso está na categoria do inadmissível.O fato de ele ter sido demitido, após a natural comoção que provocou no país, não elimina as muitas dúvidas que nos rondam. Roberto Alvim não tinha evidentemente a força que teve o ministro da propaganda de Adolf Hitler, mas a dúvida é: o que quer um governo em que um secretário se sente à vontade para fazer a evocação de um notório genocida? E isso logo depois de ser coberto de elogios pelo presidente da República.

— Ao meu lado, o Roberto Alvim, o nosso secretário de cultura. Depois de décadas, agora temos sim um secretário de cultura de verdade. Que atende o interesse da maioria da população brasileira. População conservadora e cristã. Muito obrigado por ter aceito essa missão. Você sabia que não ia ser fácil né? — disse Bolsonaro, tendo de um lado o então secretário de Cultura e do outro o ministro da Educação. Os dois braços de qualquer projeto totalitário.
A transmissão inteira da quinta-feira à noite com Weintraub e Alvim foi deprimente. O ministro da Educação defendeu, sendo ecoado pelo presidente, as escolas cívico-militares como se fossem a única e milagrosa solução para todos os complexos problemas da educação brasileira. Alvim contou ao presidente que lançaria ao final de fevereiro um edital de cinema. “Cinema sadio, ligado aos nossos valores, aos nossos princípios.”
Tanto na transmissão, quanto no video em que declamou Goebbels, o ex-secretário fez um movimento recorrente neste governo, que é se apropriar politicamente do sentimento de família, do amor à pátria e da devoção a Deus. Como se Deus, a família, e o país fossem monopólios do atual governo e só agora estivessem sendo defendidos. Esta é a estratégia mais perversa para falar com uma parte grande da população, capturar evangélicos, manipular as pessoas como se esse governo fosse a encarnação dos valores do cristianismo.
A arte, como disse a imensa Fernanda Montenegro, resistirá nas catacumbas. Ela é múltipla, ela é diversa, ela explode, frutifica e surpreende. Mas o que Alvim estava dizendo, quando foi interrompido, é que existe um plano para despejar milhões em obras encomendadas. O que Bolsonaro disse na transmissão foi em reescrever a história do Brasil, como todos os projetos totalitários fizeram. “Vamos contar a história verdadeira do Brasil de 1500 até agora”, disse Bolsonaro, ao lado de Alvim. O ex-secretário repetiu: “Vai ser a maior política cultural do seu governo e ouso dizer uma das maiores políticas de incentivo à cultura da história do Brasil. É um edital que vai patrocinar em várias categorias obras inéditas. Vamos escolher e lançar.” A cultura sob encomenda, a arte fabricada para um projeto de poder, a história reescrita e num governo que exalta torturadores. O secretário se foi, mas todo o projeto ficou. A questão central é simples: Roberto Alvim não estava só, nem falava sozinho.

Com Alvaro Gribel (de São Paulo)


Nos tempos do stalinismo fotográfico - Masha Gessen (New Yorker)

The Photo Book That Captured How the Soviet Regime Made the Truth Disappear

How unreal can things get? As the sense of shared reality is eroded, more with each passing day, one wonders. Writing on the relationship between truth and politics in this magazine, fifty-one years ago, Hannah Arendt noted just how vulnerable factual truth is, using the example of “the role during the Russian Revolution of a man by the name of Trotsky, who appears in none of the Soviet Russian history books.” Thirty years after Arendt published her article, a British collector and historian of Russia, David King, published a study in the form of a photo album—a study of the disappearance of the physical record of Trotsky and a number of other Russians who fell out of favor, and out of history, during the Stalin era.
The book is called “The Commissar Vanishes.” The title is, incongruously, literal. Its specific reference is to a photograph, from 1919, of a second-anniversary celebration of the October Revolution. In the picture, Vladimir Lenin stands at the top of a set of stairs, surrounded by many unidentified men and children and a few recognizable men, including Leon Trotsky, stationed just in front of Lenin. By the time the photograph was published, in 1967, Trotsky had disappeared: he had been airbrushed out, along with several other commissars.
Vladimir Lenin and Leon Trotsky in Red Square during the second-anniversary celebration of the Russian Revolution, on November 7, 1919.
Photograph by Leo Ya Leonidov / Tate
Leon Trotsky and Lev Borisovich Kamenev have been airbrushed out.
Photograph by Leo Ya Leonidov / Tate
Sometimes it is impossible to tell just who is missing from a photograph—only that someone is. One photograph in King’s collection shows a propaganda train—a train that crisscrossed the country spreading the message of the revolution. “When we look closely at the window on the right of the photograph,” King writes, “a ghostly apparition—the result of the retoucher’s inept hand—is all that remains of the person who had been looking out of the carriage.” We don’t know who is missing or why—only that someone has been elided. We are lucky even to know that there is something we don’t know.
The October Revolution agitational-propaganda train arrives in Sorotskinskoe Station, in 1919.
Photograph from Tate
There is so much more that we don’t know about Stalinist terror—we are no closer today to knowing how many people were killed than we were one, two, or five decades ago. Earlier this month, news came that the F.S.B., the successor agency to the K.G.B., is destroying secret-police records from the terror era; that means that we are unlikely ever to form a significantly more complete picture than the one we have now.
Many of the photographs in King’s collection showcase falsification by commission rather than omission. There is the iconic photograph of Stalin and the masses, in which the image of Stalin is blatantly pasted in, and the masses, less noticeably, are composed of several repeating fragments of crowd. There are the movie stills of the 1905 Russian uprising and the pictures of the storming of the Winter Palace, in 1917—in fact, the images depict historical reënactments that were used as though they were documentary photographs. And there are the enduring myths that underlie the images. Much of the absence of documentary evidence of the Soviet regime—the destruction of personal archives and printed books alike—was a result of citizens’ fear that their neighbors or acquaintances might report them to the authorities. We have since learned that the role of such denunciations during the terror was relatively minor: people were arrested to fill specific quotas; the arrests were essentially random and not, as many have long assumed, the result of reports. But the myth persists, and so does its product—the visuals that have been destroyed can rarely be restored.
Vladimir Lenin speaking in Moscow to Red Army soldiers departing for the Polish front, in 1920. Leon Trotsky and Lev Borisovich Kamenev, behind, are on the steps to the right.
Photograph by G. P. Goldshtein / Tate
Leon Trotsky and Lev Borisovich Kamenev have been airbrushed out of an image of the same scene.
Photograph by G. P. Goldshtein / Tate
Compared to the intentional, crude, and pervasive altering of the Soviet record, the lying currently prevalent in American politics is amateur hour, if not exactly child’s play. President Donald Trump’s routine alterations of the historical narrative, which seem to stem in equal measure from ignorance and ill intent, are ridiculed by the media even as the media reproduces them. Photographs often serve as the corrective to his distortions—as, for example, with his insistence that he had the biggest Inauguration crowd in history. Still, there can be no doubt that Trump is waging an all-out war on the media, the historical record, and the truth in general. In her 1967 essay, Arendt issued a warning:
“The chances of factual truth surviving the onslaught of power are very slim indeed; it is always in danger of being maneuvered out of the world not only for a time but, potentially, forever. Facts and events are infinitely more fragile things than axioms, discoveries, theories—even the most wildly speculative ones—produced by the human mind; they occur in the field of the ever-changing affairs of men, in whose flux there is nothing more permanent than the admittedly relative permanence of the human mind’s structure. Once they are lost, no rational effort will ever bring them back.”
Kliment Voroshilov, Vyacheslav Molotov, Joseph Stalin, and Nikolai Yezhov walking along the banks of the Moscow-Volga Canal, in April, 1937.
Photograph by F. Kislov / Tate
Nikolai Yezhov has been removed from the original image.
Photograph by F. Kislov / Tate

The Legacy of Martin Luther King, Jr. - The New Yorker

O que mais surpreende nestas matérias não é tanto a luta indômita de Martin Luther King, Jr. pelos direitos civis, ou seja, a igualdade completa de todos os cidadãos, independentemente de sua origem social ou cor da pele, é a extensão, a profundidade, a solidez do racismo, da segregação, do Apartheid americano, realidades que eram consideradas normais pouco mais de meio século atrás, e que ainda alcançam um bom número de cidadãos brancos, e não só os supremacistas, estimulados por Trump.
Paulo Roberto de Almeida

Afinal, os nazistas eram capitalistas, socialistas ou “terceira via”? - Chris Calton (Mises)

Afinal, os nazistas eram capitalistas, socialistas ou “terceira via”?
Chris Calton
é estudante da Mises University e historiador econômico. 
Ludwig von Mises, à época, já havia explicado tudo


A controvérsia parece nunca ter fim: afinal, qual era a ideologia econômica dos nazistas?
Recentemente, deparei-me com uma postagem no Twitter até bem espirituosa. A pessoa, de esquerda, afirmou o seguinte, parafraseando: "Pessoas que dizem 'Os nazistas eram socialistas; o próprio nome do partido assume isso!' devem se sentir atordoadas ao lerem 'buffalo wings'[1]."
Hoje, parece ter virado senso comum dizer que os nazistas eram capitalistas, e não socialistas, apesar do capcioso nome do seu partido: Nationalsozialistische Deutsche Arbeiters Partei ou Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Traga o assunto à baila e a reação sempre será a mesma: os intelectuais arregalarão os olhos e dirão que qualquer pessoa com formação universitária tem a obrigação de saber que os nazistas eram capitalistas; se não no nome, ao menos em princípio.
Obviamente, tal alegação não faz nenhum sentido, pois não sobrevive ao mais básico teste de lógica, como será mostrado mais abaixo. No entanto, o primeiro mistério a ser desvendado é: de onde surgiu este mito de que os nazistas eram capitalistas?
Ludwig von Mises, com efeito, já havia respondido a esta pergunta em 1951 em seu ensaio "Planned Chaos".
Durante o século XIX, quando o socialismo estava começando a ficar em voga na Europa, não havia nenhuma distinção entre "socialismo" e "comunismo". Sim, havia formas distintas de socialismo, mas estas não eram diferenciadas pelos termos "socialismo" e "comunismo". Cada intelectual possuía a sua preferência, mas os termos "socialismo" e "comunismo" eram utilizados de maneira intercambiável.
Sobre isso, Mises escreveu: "Em 1875, em seu Crítica ao Programa de Gotha, do Partido Social-Democrata Alemão, Marx fez uma distinção entre a fase precoce e a fase posterior da sociedade comunista. Mas ele não reservou o nome "comunismo" à fase posterior, e não rotulou de "socialismo" a fase precoce, para diferenciá-la do comunismo".
Segundo Marx e sua teoria sobre a história, o socialismo era inevitável. De acordo com sua análise determinista, todos os países do mundo estavam destinados a seguir o mesmo caminho: do feudalismo para o capitalismo, e do capitalismo para o socialismo, quando a história acabaria. Para Marx, essa progressão era inevitável.
Na Alemanha, os primeiros propagadores do "socialismo de estado" surgiram um pouco antes de Marx. Johann Karl Rodbertus, assim como Marx, rejeitava várias das teorias socialistas então em voga, dizendo que eram insustentáveis. Rodbertus foi o primeiro pensador socialista a defender o controle tanto da produção quanto da distribuição. Segundo ele, para alcançar isso, os socialistas teriam de usar o estado. Já o maior propagador dessas idéias foi Ferdinand Lassalle, cujo proselitismo levou a um rápido crescimento da popularidade daquilo que Mises viria a rotular de "socialismo de padrão alemão".
O socialismo alemão, como Mises o definiu, diferia do "socialismo de padrão russo". O socialismo de padrão alemão, disse Mises, "mantinha, ao menos aparentemente, a propriedade privada dos meios de produção e permitia, ao menos nominalmente, o empreendedorismo e as transações de mercado".
No entanto, tal arranjo era apenas superficial. Por meio de um abrangente e complexo sistema de regulações e intervenções econômicas, a função empreendedorial dos proprietários dos meios de produção era totalmente controlada pelo estado. Industriais e comerciantes, por exemplo, não mais tinham a função empreendedorial de tentar antecipar quais seriam as demandas futuras dos consumidores para então fazer as devidas alocações de recursos visando à satisfação desta demanda e, consequentemente, ao lucro. Assim como na União Soviética, essa função de especulação empreendedorial e alocação de recursos era feita exclusivamente pelo estado.
Consequentemente, dado que era o estado quem estava no controle efetivo da alocação de recursos, o cálculo econômico de preços e custos se tornava impossível.
"Na Alemanha nazista", disse Mises,
Os proprietários dos meios de produção eram chamados de dirigentes comerciais, ou 'Betriebsführer'. O governo dizia a estes supostos empreendedores o que produzir, como produzir, em quais quantidades e a que preços. O governo também determinava de quem eles deveriam comprar, a quais preços e a quem poderiam vender. O governo decretava os salários que deveriam ser pagos para cada trabalhador. E determinava também para quem e sob quais condições o capitalista deveria investir seus fundos.
As transações de mercado não eram genuínas; eram apenas um fingimento, uma simulação.
E, dado que todos os preços, salários e taxas de juros eram estipulados pelas autoridades, eram preços, salários e juros apenas na aparência. Com efeito, eram termos meramente quantitativos em meio a um ordenamento autoritário que determinava a renda, o consumo e o padrão de vida de cada indivíduo. Era a autoridade, e não os consumidores, quem comandava a produção.
O comitê central de gerenciamento da produção era supremo. Todos os cidadãos se transformaram em meros funcionários públicos. Isso nada mais é do que um arranjo socialista camuflado sob uma aparência externa de capitalismo. Alguns termos que remetiam a uma economia capitalista foram mantidos, mas seu significado era totalmente diferente daquele de uma genuína economia de mercado.
Em suma: os nazistas praticaram controle de preços, controle de salários e arregimentaram toda a produção. A propriedade dos meios de produção continuou em mãos privadas, mas era o governo quem decidia o que deveria ser produzido, em qual quantidade, por quais métodos, e a quem tais produtos seriam distribuídos, bem como quais preços seriam cobrados, quais salários seriam pagos, e quais dividendos ou outras rendas seria permitido ao proprietário privado nominal receber.
Desnecessário ressaltar que determinar preços e salários, e estipular o que deve ser produzido, como e para quem, representam um claro ataque à propriedade privada, pois retiram dos produtores as opções que eles teriam no livre mercado para aplicar seus recursos. Trata-se de uma intervenção estatal que, na prática, proíbe os proprietários de investirem seus recursos onde e como bem quiserem.
A propaganda soviética
Mas os próprios soviéticos também tiveram um papel crucial em criar o mito de que os nazistas eram capitalistas. Os nazistas nunca tentaram esconder suas propensões socialistas (afinal, não obstante os twitteiros sarcásticos, o socialismo estava no nome deles); eles simplesmente estavam implantando o socialismo seguindo uma estratégia diferente daquela dos socialistas marxistas.
Os soviéticos rotularam os nazistas de capitalistas simplesmente porque eles já haviam começado a redefinir os termos "socialismo" e "comunismo". Os membros de seu partido, os bolcheviques, agora eram diferentes dos outros grupos socialistas rivais. Os termos "comunismo" e "socialismo" ainda eram usados de maneira intercambiável, e a própria União Soviética era apenas uma abreviação de "União das Repúblicas Socialistas Soviéticas". Só que, ao rotularem seu grupo de "Partido Comunista", o título "Comunista" — que agora significava um membro do partido de Lênin — se tornou uma maneira de dizer que aquilo era "o socialismo verdadeiro", por assim dizer.
"Foi somente em 1928", explicou Mises, "que o programa da Internacional Comunista ... começou a diferenciar o comunismo do socialismo (e não somente comunistas de socialistas)." Essa nova doutrina afirmava que, no arcabouço marxista, havia outro estágio de desenvolvimento entre capitalismo e comunismo. Esse estágio, obviamente, era o socialismo, e era neste estágio que se encontrava a União Soviética.
Em sua teoria original, Marx fez uma distinção entre o comunismo em sua fase inicial e o comunismo em sua fase final: a verdadeira igualdade só seria alcançada no estágio final do comunismo, após o estado ter sido bem-sucedido em seguir todas as políticas recomendadas por Marx e os seres humanos já terem evoluído para alem de sua "consciência de classe". Na nova doutrina, "socialismo" simplesmente se referia ao estágio inicial do comunismo marxista, ao passo que o verdadeiro comunismo — a fase final do comunismo marxista — só seria alcançada quando todo o mundo fosse comunista.
Assim, a União Soviética era meramente socialista, mas os membros do partido eram comunistas, pois representavam os poucos iluminados que já estavam trabalhando em prol do objetivo supremo do comunismo.
Por outro lado, os nazistas ainda alegavam ser socialistas e, com efeito, agiam de maneira muito semelhante à teoria socialista, com suas abrangentes e autoritárias intervenções econômicas. Só que, como ainda havia desigualdade econômica entre os cidadãos da Alemanha nazista (assim como havia na União Soviética, mas isso não interessava à narrativa), e como os nazistas mantiveram alguns dos termos técnicos de uma sociedade capitalista — especificamente, ainda havia a existência superficial de propriedade privada, ainda que em termos meramente nominais —, isso já bastava para serem vistos como o exato oposto de seus congêneres comunistas.
E então, quando os nazistas invadiram a União Soviética, Josef Stálin e seus lacaios recorreram à nova narrativa comunista para redefinir o socialismo nazista — o qual, embora não fosse marxista, se baseava nas teorias dos socialistas alemães originais que influenciaram diretamente as idéias de Marx — como "capitalista".
De acordo com essa nova narrativa, os nazistas estavam na etapa suprema do capitalismo, a qual seria a pior de todas.
Em uma época em que vários membros da intelligentsia européia estavam encantados com a União Soviética, essa narrativa de que os nazistas eram capitalistas passou a ser uma falácia extremamente conveniente. Mas trata-se de uma ideia sem o mais mínimo fundamento em princípios econômicos. É apenas uma deturpação soviética com base no arcabouço marxista. Os nazistas, que apregoavam orgulhosamente seu socialismo e que implantaram políticas socialistas com grande consistência, passaram a ser chamados de capitalistas pelo simples motivo de que eles não se encaixavam pristinamente na visão de mundo soviético-marxista.
Esta narrativa segue viva até hoje.

[1] Buffalo wings, ou asas de Búfalo, nada mais são do que asas de frango apimentadas. O nome se deve ao fato de tal prato ter sido inventado na cidade americana de Buffalo, Nova York.
________________________
Leia também:

Maquiavel: o primeiro realista da política - Arnaldo Godoy

Maquiavel, entre a astúcia, a hipocrisia e a crueldade

Nicolau Maquiavel (1469-1527) afastou da teorização política a invenção da realidade. Não expôs nenhuma utopia. Mas também não legou nenhuma premonição de um mundo distópico. O futuro não é sombrio, e nem nirvânico, nem infernal, e também não é um paraíso. É apenas o resultado de nossa ação, pautado por nossos cálculos, e também influenciado por eventos externos, que fogem de nosso controle. A principal preocupação de Maquiavel consistia no esforço em influenciar a condução dos negócios públicos. Era um prático. Não teorizava. Intervinha na realidade. 
Nasceu em Florença. Seu pai chamava-se Bernardo; sua mãe, Bartolomea. O pai era advogado. Pouco conhecido, teria exercido a profissão sem nenhum brilho. Acrescentava aos poucos ganhos algum recurso que ganhava na administração de seus escassos bens. Parece também que Bernardo foi um rígido pai. Estudou latim, gramática e cálculo. Em 1497, com 28 anos, Maquiavel esteve em Roma. No fim daquele ano, 1498, foi nomeado secretário na Segunda Chancelaria de sua cidade de nascimento.
Maquiavel defendeu a república florentina e a ordem estabelecida. Inspecionava pessoalmente as fortalezas da cidade. Em 1500 partiu para a França em missão diplomática. Casou-se em 1501 com Marietta di Luigi Corsini. Teve seis filhos. Em 1504 esteve novamente na França. Em 1506 acompanhou os aliados do Papa Júlio II em Perúgia e em Bolonha. Em 1510 teria mediado uma disputa entre o Papado e o Rei da França.
Com a queda da república florentina em 1512 Maquiavel viveu seu inferno. Em 1513 foi preso e torturado. Tinha 44 anos. Retornou aos negócios públicos de Florença somente em 1519. Em 1521 teve de abandonar a vida pública. Dedicou-se a literatura. Morreu em 21 de junho de 1527, aos 58 anos. Estava empobrecido e não exercia nenhuma influência política.
Maquiavel é personagem emblemática do Renascimento, época que se opunha ao misticismo, ao coletivismo, ao antinaturalismo, ao teocentrismo e ao geocentrismo. O Renascimento foi marcado por intensa defesa do racionalismo, do individualismo, do antropocentrismo, do heliocentrismo. O humanismo foi também um dos traços definidores daquele tempo, centrado na retomada dos valores greco-romanos, circunstância muito característica na obra de Maquiavel.
O Príncipe, segundo Jacob  Burckhardt, um dos maiores historiadores da Renascença, “representa a objetividade renascentista e a ideia de Estado como obra de arte”. O Príncipe não é um trabalho de ideologia e de proselitismo, é um livro de conselhos práticos. E embora nos pareça que Maquiavel tenha rompido com toda a tradição de pensamento político que o precedia, há também fortes motivos para supor que tenha retomado uma linhagem romana. Maquiavel seria o restaurador de uma tradição esquecida.
Realista, Maquiavel procurou explicar com exemplos suas conjeturas. Continuou uma tradição de historiografia que remontava a Cícero, e que via a história como mestra da vida. A história foi por Maquiavel utilizada como recurso retórico para compreensão do presente; trata-se de uma sabedoria de onisciência quase divina, secularizada em favor de uma causa.
Maquiavel seguia os preceitos literários dos autores clássicos: inculcava lições morais por meio de um estilo recorrentemente exemplificativo. No Príncipe há várias personagens da antiguidade greco-romana e oriental, que buscou em Tito Lívio, Plutarco e nas Escrituras. Há também um desfile de contemporâneos de Maquiavel, ou de personagens muito próximos de seu tempo. Seu método é histórico e comparativo. É inegável a influência de Cícero nos humanistas florentinos; e Maquiavel é da afirmação a prova mais eloquente. Nesse ponto Maquiavel é renascentista até a medula: retomou com reverência a grandeza do passado romano.
A recepção de Maquiavel decorre também da capacidade de apreensão e das necessidades dos leitores que encontrou. E porque o destino dos livros depende da capacidade de seus leitores; não se pode negar que a acusação de que Maquiavel justificaria todas as tiranias depende menos dele mesmo do que dos tiranos que o aplicaram, sem jamais terem estudado sua obra.
Na tradição ocidental Maquiavel é a própria encarnação da astúcia, da hipocrisia, da crueldade; é lugar comum lembrar que o substantivo próprio se transformou em adjetivo cheio de antropologia negativa. O substantivo próprio – Maquiavel - desdobrou-se num substantivo comum, maquiavelismo, e num adjetivo, maquiavélico.
Maquiavel é o ponto de inflexão de uma época, o Renascimento; de uma nação, a Itália; de uma cidade, Florença; de uma missão: o bom funcionário florentino. Há Maquiavel para todos os gostos, projetos e regimes políticos; há quem impute a Maquiavel a culpa de tentar conduzir a humanidade para a perdição; e há quem acuse Maquiavel de tentar conduzir a humanidade para a salvação.
A razão de Estado não é certamente uma invenção sua. A ação política, porém, em seu sentido utilitário, é uma originalidade de seu pensamento. Sua doutrina é relativamente simples: as circunstâncias da vida tornam inaceitável para a vida prática o moralismo político das teorias clássicas. Maquiavel não especulava. Enfrentava as divisões internas que enfraqueciam a Itália, tornando-a presa fácil de potências estrangeiras. A Itália da época de Maquiavel era dividida em mais de uma dúzia de reinados independentes, ducados, feudos, cidades-estado e repúblicas.
Maquiavel deixou de fabulizar a realidade política, como o fizeram Platão e Morus. Preocupou-se com a vida real, a única que nos permite algum espaço de ação prática. Menos do que as prosaicas e úteis instruções deixadas no Príncipe, talvez o maior legado de Maquiavel seja o próprio exemplo, no sentido de que entendamos que a vida nos exige muita ação e muita energia.
“Matai os inimigos, e se necessário, os amigos também”, “Fazei o mal, mas fingi fazer o bem”, “Sede bruto”, “Sede miserável”, “Se apunhalar o inimigo, que o faça pelas costas”, são frases aladas talvez equivocadamente atribuídas a Maquiavel, cujo pensamento foi correta (ou falsamente) resumido na expressão de que os fins justificariam os meios, o que traduziria um projeto político e não necessariamente uma citação literal. Aplica-se a Maquiavel, e à glória que envolve seu nome, passagem de um de nossos maiores críticos literários (Carpeaux): “a glória, já se disse, é um conjunto de mal entendidos que se criam em torno de um nome”. 

Revista Consultor Jurídico, 19 de janeiro de 2020, 8h00

===========

Permito-me remeter aqui a um dos meus livros: 

O Príncipe, revisitado: Maquiavel para os contemporâneos (Hartford, 8 Setembro 2013, 226 p.) Publicado em formato Kindle (disponível: http://www.amazon.com/dp/B00F2AC146). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/5547603/20_O_Principe_revisitado_Maquiavel_para_os_contemporaneos_2013_Kindle_edition). 

Demissão do secretário pró-nazista não muda Bolsonaro - Vera Magalhães (OESP)

Discordo da última frase: "É democracia que chama.". Impossível: Bolsonaro nunca atenderia a um "chamado da democracia". São as instituições que constrangem...

Mudança x concessão

Demissão de Alvim não sinaliza que Bolsonaro vá mudar, mas que foi obrigado a recuar

Vera Magalhães
O Estado de S. Paulo, 19/01/2020

Como tudo no Brasil de hoje, o filme Dois Papas foi tragado pela polarização rasa e redutora que engolfa da política às artes, passando pelo esporte e pelas relações familiares. Direita e esquerda “adotaram" cada uma um Papa, alheias à complexidade de uma Igreja de milhares de anos e aos aspectos sutis da obra.  
Numa das cenas mais marcantes do filme, os dois monstros Anthony Hopkins (Bento 16) e Jonathan Pryce (ainda Bergoglio) discutem a diferença entre mudança e concessão. “Eu mudei”, diz o argentino ao Papa, diante de cobranças sobre a revisão que ele fez de dogmas e ritos da Igreja. “Não, você fez concessões”, replica Bento. “Não, eu mudei. É algo diferente.” De fato. 
Em mais um episódio de espantosa gravidade, o País foi dormir na quinta-feira e acordou na sexta assombrado por um pesadelo: num vídeo de composição macabra, o então secretário nacional de Cultura, Roberto Alvim, recitava com excitação indisfarçada e olhos vidrados um texto com trechos copiados de Joseph Goebbels, o mais fanático dos ideólogos do nazismo, que foi com Hitler até o final e morreu e matou a mulher e os seis filhos para não fazer nenhuma concessão e não abdicar da ideologia mortífera que ajudou a implementar. 
A reação foi avassaladora, mas não unânime. Num sinal de deterioração profunda do tecido social, houve quem defendesse o discurso tresloucado de Alvim pela necessidade de uma cultura que ou será nacional ou “não será nada”, alinhada aos valores cristãos e da família, e lamentasse sua demissão. Outros contemporizaram, celebrando a “rapidez” com que o presidente demitiu Alvim. E é aqui que entra a diferença entre mudança e concessão a que aludi no início do texto. 
O presidente de fato se indignou com o que o auxiliar disse? Não, de forma alguma. Menos de 24 horas antes de demiti-lo e poucas antes de ele publicar sua ópera bufa, Bolsonaro o saudou numa das lives semanais – também elas obra da estética autoritária do bolsonarismo, não nos enganemos – como o redentor da cultura nacional. Finalmente, disse o presidente do Brasil, tínhamos um secretário da Cultura digno do posto. E ali Alvim já desfiava sua política cultural sectária, anunciando um prêmio que contemplaria apenas os alinhados com o regime. 
Bolsonaro mudou entre os dois atos, o da louvação e o da demissão? Não, fez uma concessão. A contragosto, momentânea. Que não muda o caráter francamente autoritário de seu projeto de poder para a educação, a cultura, a política externa e os costumes, para ficar em poucas áreas.  
Na manhã de sexta o presidente ainda relutava em rifar Alvim. Tanto que a primeira nota do Palácio diz que ele já havia se explicado, e o fã de Goebbels se pôs a dar entrevistas em que reiterava o conteúdo da frase copiada. O que levou Bolsonaro a fazer sua concessão foi a evidência de que a comunidade judaica, aliada política importante de seu projeto, não aceitaria uma demonstração tão violenta de antissemitismo vinda de um auxiliar direto do presidente. 
Portanto, não haverá mudança. As manifestações racistas, autoritárias e francamente persecutórias a vários setores da sociedade continuarão vindo diariamente do presidente e da ala ideológica do governo.  
Mas foi riscada mais uma linha no chão. A sociedade não tolerará mais esses arroubos e nem as tentações de aparelhar e tutelar a vida nacional num projeto que é tudo, menos liberal e democrático. Quantos e quais setores ainda estarão dispostos a fechar os olhos para essa evidência em nome da política econômica é algo que será definidor dos próximos anos.  
Mas Bolsonaro foi avisado: pode xingar, ofender, tentar calar a imprensa, que não vai adiantar. Ele não vai mudar. Mas terá de fazer concessões. É democracia que chama.