O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 23 de outubro de 2022

20o. Congresso do Partido Comunista Chinês - Shanghai Daily

Meu jornal chinês preferido, o Shanghai Daily, foi todo dedicado ao 20. Congresso do Partido Comunista Chinês, encerrado ontem em Beijing.  


sábado, 22 de outubro de 2022

A educação superior brasileira - Simon Schwartzman

 Simon's Site

Site e blog de Simon Schwartzman

A educação superior brasileira

Entrevista a Jorge Priori, publicada em Monitor Mercantil. 21 de outubro de 2022, p. 7 (revisada)

Conversamos sobre a educação superior brasileira com Simon Schwartzman, sociólogo e membro da Academia Brasileira de Ciências.

Como o senhor avalia a educação superior brasileira?

A educação superior brasileira expandiu muito rapidamente nos últimos 20 anos, mas essa expansão trouxe muitos problemas. Eu costumo dizer que essa expansão foi feita em cima de um modelo das profissões liberais. Todos querem um diploma prestigioso e que dê rendimentos tão bons quanto os recebidos pelos médicos e advogados. Essa é uma espécie de aspiração da população brasileira. O sistema público oferece isso em certa medida, e o sistema privado promete oferecer. O sistema expandiu, mas, proporcionalmente, poucas pessoas conseguem esse objetivo. E os que conseguem geralmente vêm de famílias mais ricas e mais educadas, que conseguem dar aos filhos uma educação básica em escolas privadas de melhor qualidade.

Criou-se um sistema que é extremamente custoso para o setor público, que financia a parte pública, e para a população, que, além dos impostos, paga as anuidades do setor privado quando não tem acesso ao sistema gratuito, mas que em grande parte não consegue resultados e fica pelo caminho. O Brasil não soube como lidar com as questões da diversificação e da ampliação da educação superior, que é um processo que ocorreu no mundo inteiro.

Quando o Brasil reorganizou o seu sistema de educação superior com a reforma universitária de 1968, inspirada no sistema norteamericano, a proporção de brasileiros que chegavam ao nível superior era de até 3%. Mas Brasil não copiou o sistema americano como um todo, com sua ampla base de colleges municipais, estaduais e privados, mas só o das universidades de elite de pesquisa e pós-graduação. Quando veio a demanda por mais educação, o setor público não conseguiu responder, e o setor privado abriu e respondeu de maneira bastante caótica.

Assim, nós temos uma situação de uma grande expansão que acabou criando um grande um custo e uma grande frustração.

Na sua opinião, quais são os principais problemas que afligem a educação superior brasileira?

O grande problema é o fato de que, apesar de ter crescido muito, ela não dá a qualificação que se espera para muitas pessoas. Do ponto de vista do setor público, nós temos uma questão complicada já que ele ficou limitado no seu crescimento por causa do modelo que foi adotado na década de 1960, com professores em tempo integral, fazendo pesquisa, cursos de pós-graduação, e alunos passando o dia todo na faculdade. Esse modelo não conseguiu se expandir. Algumas universidades se aproximam mais disso, mas a maioria das outras têm os mesmos custos, como se fossem de pós-graduação e pesquisa, mas não funcionam dessa maneira.

Se você olhar a pesquisa e a pós-graduação brasileira, ela está, relativamente, concentrada em poucas instituições. O custo das universidades públicas é muito alto, basicamente, por causa do regime de tempo integral da quase totalidade dos professores e do regime de serviço público. O resultado disso é que hoje em dia cerca de 25% dos alunos estão no setor público e 75% no sistema privado, que é um sistema desigual que em grande parte dá uma formação muito básica e muito simples.

O sistema privado cresceu em grande parte com subsídios públicos pesados através do sistema de crédito educativo, que foi à falência por causa do aumento descontrolado dos custos e inadimplência. Isso levou a uma situação de crise em que praticamente todo o sistema privado foi para o ensino a distância, que em princípio pode ser uma boa modalidade em alguns casos, mas que na maior parte é uma formação muito precária.

Nós temos um grande funil. Em 2021, 4 milhões de pessoas se candidataram ao Enem (Exame Nacional do Ensino Médio; em 2014, esse número havia sido de 8,7 milhões). Para que tenhamos uma ideia, o número de vagas oferecidas pelo setor público no ano passado foi de 262 mil (SiSU, Sistema de Seleção Unificada).

Grande parte dos que entram no Enem não consegue chegar às universidades públicas. Quando conseguem, uma pequena porcentagem entra nos cursos que gostaria, das universidades mais prestigiadas e carreiras que dão melhor resultado, mas a maior parte fica em cursos de menor qualificação e de menor qualidade. Ou então optam pelo setor privado, que aceita todos que conseguem pagar ou obter uma bolsa ou crédito educativo. Dos que que se matriculam em instituições públicas, metade abandona antes de terminar; no setor privado, o abandono chega a 60% ou mais. E, dos que terminam, metade não consegue uma profissão equivalente ao que se espera do nível superior.

O sistema inchou, cresceu muito rapidamente e criou custos de diferentes lados, gerando oportunidades, mas também muita frustração.

Da mesma forma que existem as soluções mais complexas, existem as soluções mais simples, de fácil implementação e que geram efeitos positivos. Na sua visão, existem soluções mais simples que poderiam ser implementadas para resolver parte dos problemas da educação superior brasileira?

Considerando o setor público, um ponto muito importante é o tema da diferenciação. Em todo o mundo, quando o sistema de ensino superior se expande, ele cria diferentes modalidades de formação. Além dos cursos tradicionais como Medicina e Direito, você tem cursos vocacionais curtos, com duração de 3 anos, mais diretamente direcionados ao mercado de trabalho. O Brasil quase não criou essa modalidade, e, praticamente só no setor privado.

Quando todas as pessoas buscam o mesmo tipo de qualificação, que são os bacharelados tradicionais, muitas delas acabam ficando pelo caminho. É necessário oferecer uma variedade diferente de cursos para as pessoas que chegam ao nível superior com diferentes níveis de qualificação.

Não há sentido em você tratar todas as universidades federais como se elas fossem idênticas, com as mesmas carreiras de professores, quando algumas delas têm uma orientação de pesquisa, pós-graduação e de ensino de alto nível, enquanto outras estão dando uma qualificação mais geral e mais básica, que também pode ser importante, mas que é muito diferente. Hoje em dia, mais de 90% dos orçamentos das universidades federais são gastos com pessoal. Isso não precisaria ser assim.

Outra questão, e que também tem a ver com o sistema privado, é o sistema de avaliação. O Brasil criou um sistema de avaliação que começou com o Provão nos anos 90 e depois passou para o Sinaes (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior), já no Governo Lula, em 2004. Trata-se de um sistema obsoleto que avalia as instituições como se elas fossem destinadas à formação de alto nível de pesquisa, quando elas não são assim. É muito claro que esse sistema não funciona e não toma em consideração a diversificação do sistema.

Eu participei da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior, que no papel deveria ter sido responsável por rever esse sistema. O governo brasileiro, já no final da presidência de Michel Temer, contratou uma missão da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) para trazer pontos de vista internacionais, comparar o Sinaes com outros países e propor a sua revisão. O trabalho ficou pronto no final do governo Temer, mas o governo Bolsonaro não teve o menor interesse pelo assunto.

Por fim, existe a questão do financiamento do ensino superior privado e público. Nos dois lados, o estudante que precisa estudar, mas que não tem condições econômicas, precisa ser assistido, se possível com bolsa ou com algum tipo de isenção ou crédito educativo. Além disso, não faz sentido nós termos 25% dos estudantes no sistema público, que é totalmente gratuito, e 75% no sistema privado, onde ele tem que pagar. A questão da gratuidade total no sistema público tem que ser revista.

Os problemas da educação superior pública são os mesmos da educação superior privada?

Não, eles são diferentes. No caso da educação superior pública, há uma questão de custos. Na minha visão, com o volume de dinheiro destinado ao setor seria possível atender mais gente, de melhor forma e com um público diferenciado.

Eu também diria que o sistema público tem problemas em duas pontas. Numa delas, nós temos as instituições de elite, que formam pessoas muito bem qualificadas e que contribuem para colocar o país na sociedade global do conhecimento. Aí o sistema superior brasileiro sofre porque é muito amarrado. As melhores universidades públicas no Brasil não têm liberdade para contratar um professor pagando um salário equivalente ao mercado internacional. Por exemplo, elas não podem trazer um cientista de ponta para coordenar um novo departamento. Os salários são rígidos e uniformes, havendo um sistema burocrático de concurso. As universidades de melhor qualidade não têm condições de competir por talento, o que seria o seu principal acervo e recurso.

Na outra ponta, nós temos a educação universitária de massa, onde você tem que dar uma qualificação prática mas não necessariamente de nível mais alto. O setor público não oferece essa modalidade de formação, pois continua tentando imitar o modelo da pesquisa, que na verdade não se aplica a 70%, 80% das universidades públicas.

Ele está amarrado a uma concepção tradicional da década de 1960, sem que haja um esforço para repensá-lo de forma a que tenha muito mais flexibilidade institucional para trabalhar com modalidades diferentes para atender diferentes públicos. Toda essa discussão de como você moderniza, atualiza e torna mais eficiente o setor público não foi feita.

Com relação ao setor privado, hoje em dia você já tem algumas instituições, que são poucas, que já começam a competir com o setor público em termos de qualidade. Por exemplo, se você quiser fazer uma excelente pós-graduação em Economia, você não vai para uma universidade pública, e sim para uma instituição como a FGV, o Insper em São Paulo ou a PUC no Rio. Estão entrando instituições que estão trazendo pessoas de melhor qualidade, pagando salários para professores de nível internacional e recrutando de maneira mais qualificada os estudantes. Essa competição não se dá em áreas mais pesadas de tecnologia, mas isso está começando a mudar, nas áreas de saúde e engenharia.

Contudo, isso é um setor pequeno. Grande parte do setor privado faz uma educação de massa para alunos, em geral, mais velhos, na casa dos 30, 40 anos, que não tiveram condições de se formar e que ficam buscando um diploma. As instituições privadas oferecem uma educação barata, à distância, mas com um controle de qualidade muito débil. Ninguém sabe exatamente o que os alunos estão recebendo. Eles recebem um diploma na esperança de que ele lhes dê uma excelente posição no mercado de trabalho, mas, cada vez mais, isso é difícil.

Seria necessário ter um sistema de avaliação e de acompanhamento para dar mais informações para a sociedade sobre o que está sendo oferecido, de forma a que as pessoas não caiam numa espécie de armadilha: entrar num curso; passar 3, 4 anos; pagar como puder aquilo que é cobrado, e no final ficar com um papel que não vale nada.

Além do mais, hoje em dia existe uma discussão internacional sobre novos tipos de conhecimentos, demandados pelas novas tecnologias. Fala-se muito das microcredenciais. Em vez de você dar um título depois de 3 ou 4 anos, você pode dar uma formação especializada de 4 meses, por exemplo, numa nova maneira de lidar com o computador, ou seja, um novo tipo de competência que o mercado de trabalho, que está em movimento, solicita. Isso praticamente não avançou no Brasil.

A discussão no Brasil sobre nível superior ainda está muita presa numa temática antiga. Só se fala acesso e financiamento, havendo uma espécie de briga entre o setor público e privado, que na verdade não faz muito sentido. Os dois são muito importantes, não sendo possível dispensar um ou outro.

Entra eleição e sai eleição, esse tema é tratado com um festival de platitudes e lugares-comuns, sendo a principal delas “mais recursos”. Por que a classe política não trata esse tema com objetividade?

Existem muitos interesses criados nos dois lados. O setor público fica se sentindo muito ameaçado, principalmente agora, já que o governo Bolsonaro é muito hostil à educação em geral, e à educação superior em particular. Ele nunca teve uma política, a não ser uma política de hostilidade para o setor como um todo. Há uma situação compreensível de se querer defender as instituições e as pessoas que estão lá, que têm salários e que vivem disso.

Por outro lado, essa postura defensiva dificulta uma discussão mais aprofundada de uma reforma que precisaria ser feita. Seria necessário ter um governo que ao mesmo tempo tivesse consciência da importância da educação superior e dos recursos para viabilizá-la, mas que não se fique simplesmente financiando o sistema que está aí da mesma maneira.

É preciso mudar o regime jurídico para dar mais autonomia e responsabilidade às instituições; diversificá-las para que elas possam fazer coisas distintas; mudar o processo gerencial para ter um sistema mais adequado de uso de recursos, e mudar o sistema de avaliação do setor público e privado, já que o Sinaes só se aplica na prática ao setor privado, com o setor público ficando de fora, pois não há nenhuma consequência ou efeito sobre ele.

Existe uma série de reformas necessárias para trazer o sistema para o nível do que acontece nos países desenvolvidos onde o sistema de educação superior se massificou, é grande, é caro e onde existe uma convivência do setor público com o privado.


Biblioteca Nacional: A França no Brasil: Ferdinand Denis

http://bndigital.bn.br/francebr/ferdinand_denis_port.htm

  • Apresentação
  •  

  • Percurso Temático
  •  

  • Galeria
  •  

  • Parceiros
  •  

    Ferdinand Denis

    Entre os franceses que seguiram para o Brasil no início do século XIX, Ferdinand Denis (1798-1890) ocupa um lugar excepcional. Após o período de uma estadia que o levou do Rio a Salvador, com uma incursão até Jequitinhonha, e durante o qual teve alguns contatos com os Taunay (1816-1819), ele consagrou uma dezena de obras à apresentação do Brasil aos franceses. A primeira é fruto justamente de uma colaboração com um dos filhos do pintor Nicolas Taunay, Hippolyte, e é publicada no ano da proclamação da independência. Os seis volumes de Le Brésil, ou Histoire, mœurs, usages et coutumes des habitants de ce royaume (Paris: Nepveu, 1822) serão rapidamente condensados em um Résumé de l’Histoire du Brésil, suivi du Résumé de l’Histoire de la Guyane (Paris: Lecointe & Durey, 1825), dessa vez tendo ele como único autor. E depois, após o sucesso dos dois primeiros volumes de Voyage pittoresque, o de Jean-Baptiste Debret e o de Rugendas (1835), virá o seu Brésil, associado à Colombie et Guyanes, de César Famin (Paris: Firmin Didot Frères, col. “L’Univers. Histoire et Description de Tous les Peuples”, 1837).

    Por seu desejo de reunir os “documentos que constituem a história”, Ferdinand Denis surge como o pai dos estudos brasileiros na França, o primeiro, por exemplo, a assinar um artigo sobre o Brasil na então recente Revue des Deux Mondes (1831, tomo 2, sobre Saint-Hilaire). Como muitos dos seus livros foram escritos nos anos 20, dentro do contexto perturbado do processo de independência de um país em busca de equilíbrios políticos e identitários, F. Denis se mostra particularmente atento aos diferenciais brasileiros. Ele vai buscar a partir da era colonial as sementes do sentimento nacional que progressivamente vão afastar o território da metrópole portuguesa. Numa época em que a Inglaterra se beneficia de acordos comerciais privilegiados, ele se esforça para brigar pela causa das trocas franco-brasileiras, destacando, sempre que pode, os laços que unem os dois “povos” desde o “descobrimento”: “[…] no Brasil, os franceses são amados, e os ingleses poderosos.” (Résumé…, p. 224). Daí o seu cuidado em realçar os momentos fortes desta relação, como, a partir de fontes do século XVI, em Une Fête Brésilienne, célébrée à Rouen en 1550, suivie d’un fragment du XVIe siècle roulant sur la théogonie des anciens peuples du Brésil, et des poésies en langue tupique de Christovam Valente (Paris: J. Techener, 1850).

    O chamado para reequilibrar as relações internacionais em proveito dos franceses não tem apenas um alvo econômico; ele encontra um terreno de expressão simbólica através do indianismo: a especificidade da “nação brasileira” se inscreve em origens ameríndias que havia pouco tempo Chateaubriand se empenhara a enaltecer. Reavivando a chama do primeiro romantismo francês, Ferdinand Denis oscila entre a preservação de culturas ameaçadas de extinção (“[…] possam ser conservadas essas respeitáveis ruínas de nações poderosas!” (Résumé…, p. 124)) e a “pacificação”: “Esperemos que novas tentativas façam a maioria das tribos tomar parte da população ativa e útil.” (Résumé…, p. 242). Atrás desta atividade útil se esboça uma crítica da colonização predatória e um encorajamento ao desenvolvimento através da agricultura e o comércio.

    No plano literário, ele vê, na paisagem grandiosa e na generosidade do clima, material para inspirar uma poesia sublime, uma mensagem que em um primeiro momento se destina aos seus compatriotas, mas que chegará também aos brasileiros. Este é o sentido de suas Scènes de la nature sous les tropiques et de leur influence sur la poésie. Suivies de Camoens et Jozé Indio (Paris: Louis Janet, 1824), ilustração do poder poético daquelas terras e populações exóticas. Na sequência, o Résumé de l’histoire littéraire du Portugal [suivi du] Résumé de l’histoire littéraire du Brésil (Paris: Lecointe & Durey, 1826) consagra o reconhecimento de uma “jovem” literatura e cristaliza a consciência nacional dos escritores brasileiros. “O pequeno livro de Denis parece hoje insignificante, mas foi sem dúvida o que teve maiores consequências em toda a nossa crítica, porque foi o primeiro a conceber a literatura brasileira como algo diferenciado e a indicar quais deveriam ser os rumos do futuro.”, constata Antônio Cândido (O Romantismo no Brasil, São Paulo: Humanitas-FFLCH/USP, 2002, p. 22.). O pensamento de F. Denis vai de fato nutrir e orientar o programa da geração romântica que, num primeiro momento, se reuniu em torno da revista Nitheroy (1836). Traduzido no Brasil em 1835, este livro entrará para o programa do Imperial Colégio de Pedro II, inaugurado em 1837. Hoje, sem se aperceberem que o que está em jogo é quase sempre a sina de uma construção identitária, certos críticos assinalam o paradoxo de ter exaltado sua singularidade nacional à partir de uma matriz exógena.

    Com gosto pelos livros e arquivos, F. Denis trabalhou de 1841 a 1883 na biblioteca Sainte-Geneviève, em Paris, primeiro como funcionário da biblioteca, depois como administrador. Recebendo os visitantes, mantendo uma abundante correspondência, durante estas décadas ele foi um ponto de passagem incontornável de inúmeros franceses, escritores, historiadores ou viajantes, e de brasileiros, entre os quais o próprio Imperador D. Pedro II. Acumulando e exumando vários documentos, ele deixou à biblioteca um acervo importante, somente um pouco disperso, do qual o pintor Cícero Dias estabeleceu um primeiro levantamento: Catalogue du Fonds Ferdinand Denis, Paris: Bibliothèque Sainte-Geneviève & Institut Français des Hautes Études Brésiliennes, 1972.

    DOCUMENTOS ANEXOS

    As considerações programáticas, e os desdobramentos narrativos de Scènes de la nature…, de F. Denis, sobre os “machakalis” — e em uma medida menor “Palmarès” —, deixam suas marcas na adaptação francesa de Caramuru, de Santa Rita Durão (1871), por Eugène Garay de Monglave, Caramuru ou la découverte de Bahia (Paris: Eugène Renuel, 1829) e no romance de Daniel Gavet e Philippe Boucher, Jakaré-Ouassou ou Les Tupinambas. Chronique brésilienne (Paris: Timothée Dehay, 1830).

    O polígrafo Eugène Garay de Monglave (cujo nome verdadeiro era Eugène Moncla, de origem basca), que chegou a pensar em se naturalizar brasileiro, foi próximo de D. Pedro I, de quem traduziu a correspondência com o pai, D. João VI. Frequentou vários círculos institucionais, em particular sendo o secretário perpétuo do Institut Historique de Paris, fundado em dezembro de 1833. Dos cerca de vinte livros que disse querer traduzir, ele conseguiu realizar apenas Marilia (a partir dos poemas de Marilia de Dirceu, do poeta arcadista Tomás Antônio Gonzaga — Paris: C. L. F. Panckoucke, 1825), e o já citado Caramuru, cuja tradução é dedicada à filha do imperador, D. Maria da Glória, futura rainha de Portugal.

    Daniel Gavet também passou alguns anos no Brasil, sete precisamente. O prefácio do romance a quatro mãos no qual apareciam em segundo plano o português “Alvarez”-“Caramourou” e sua esposa índia “Paragouaçou”-“Catherine”, proclama o desejo contrariado de ter desejado fazer “apenas uma sequência de quadros de costumes, sob uma forma dramática”, sem “diminuir tudo o que os selvagens e a natureza do Novo Mundo inspiram tão profundamente.” Mas foi preciso criar uma intriga…


    sexta-feira, 21 de outubro de 2022

    O Fascismo sai do Armário - Paulo Gustavo (Revista Será)

    O Fascismo sai do Armário

    Paulo Gustavo 

    Revista Será, out 21, 2022 

     

    Um perfil de uma rede social postou recentemente a seguinte frase: “Ninguém imaginava que dentro do armário tinha mais fascistas do que gays”. A tirada vem a propósito. A ascensão de um extremista como Bolsonaro fez de fato o armário se abrir. Com isso, nossa jovem e precária democracia dá um sofrido soluço. 

    O cientista político alemão Yascha Mounk, em seu livro “O povo contra a democracia”, foi profético neste seu conselho: “Bolsonaro é o adversário mais poderoso que a democracia brasileira enfrenta em meio século, e seus partidários são cidadãos que, como você, terão que compartilhar o país por uma década ou até um século. Não o subestime e não menospreze essas pessoas […] Você poderá voltar à luta por taxas de impostos mais justas ou debater os limites do Estado de bem-estar social depois que esse perigo iminente tiver sido afastado. Por ora, é preciso união […]”.

    As palavras de Mounk formam uma boa síntese: união, a despeito das diferenças políticas, e foco condizente à situação, que agora se sabe não é nada passageira, que é, ao contrário,  de coexistência com o já onipresente adversário. Essa coexistência exigirá dos verdadeiros democratas uma permanente vigilância. Dispensável dizer (mas uma boa redundância por vezes vale a pena) que os fascistas não estão apenas nos três poderes da República, eles estão a seu lado: são vizinhos, colegas, jovens, maduros, idosos, artistas, cientistas, acadêmicos, pessoas ditas “de bem”, ressentidos em geral, autoritários simpáticos e até envernizados pelo saber: enfim, gente como a gente.

    Há quem ache o termo “fascista” pesado. Bem, leve é que não é. Seu uso como xingamento não diz outra coisa. Mas seu uso adequado não muda muito a carga negativa que carrega para sempre. Pouco ou nada propondo e muito reagindo, em especial à modernidade, o fascismo, para falar como e com o Umberto Eco do ensaio “O fascismo eterno”, tem uma permanente suspeita em relação ao mundo intelectual e uma “terrível” acusação ao mundo liberal, a saber: o abandono por este dos valores tradicionais. Não por acaso, brota entre fascistas a flor vigorosa de uma imensa hipocrisia.

    O termo é pesado, mas leves e levianas são “as ações pelas ações”, como diz Eco. De nossa parte, acrescentamos: “leveza” hoje potencializada pelo fluxo sem consciência crítica das redes sociais. Daí a exacerbação da mentira. Daí, ao revés, a busca frenética pelas “verdades eternas” que só a religião promete, aliás não poucas vezes tem se falado no bolsonarismo como uma espécie de seita. Seita, como bom neofascismo, liberticida. Portanto, é preciso estarmos atentos às palavras e para onde e para quem se dirigem: o que sobra em agressividade, falta em crítica e racionalidade. Não por acaso, como lembra Eco, “Todos os textos nazistas ou fascistas se baseavam em um léxico pobre, em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico”.

    Além de liberticida e autoritário, o fascismo explora o rancor na política, e Mussolini  foi o primeiro a compreender isso, como bem observa o narrador de “M, o filho do século”, o primeiro volume do monumental romance histórico do italiano Antonio Scurati. Se Mussolini não foi o primeiro, foi um dos mais importantes. No Brasil de hoje, o arauto do rancor chama-se Bolsonaro. Sim, é ele indubitavelmente o maestro a arrancar de boa parte da população o ritmado ódio a fantasmas que supúnhamos desfeitos e pretéritos. Do rancor à violência, eis o passo que resvala para a barbárie e o terrorismo. Nada impede que a violência atual, ainda desorganizada politicamente, degenere em violência institucionalizada, até para “reparar” o líder eventualmente destituído de lugar de poder.

    A saída do armário é faca de duas lâminas: de um lado, ela corta explicitamente o laço democrático e constitucional que rege a sociedade; de outro, delimita, por assim dizer, um campo político novo no Brasil, obrigando-nos a ver o que estava incubado ou pelo menos mitigado por certa visão otimista, senão mítica, do próprio País. Como quer que seja, será preciso coexistir à altura e fazer da lucidez, em meio à irracionalidade que irriga o iliberalismo, uma prática cotidiana.

    Para jogar esse jogo, será preciso contermos nossas próprias emoções, e isso é algo que leva tempo. Será preciso demonstrar incansavelmente — ressalte-se — que nossa visão pode ser kantianamente edificada como um imperativo categórico que salva a humanidade e que a visão bolsonarista, caso alçada a uma máxima universal, seria o fim da democracia e do Estado de Direito. Oxalá o armário fique vazio e que se possa apontar os extremistas como quem são: extremistas. Extremistas e totalitários.

     

    CONSELHO EDITORIAL

    Sérgio C. Buarque - Editor Chefe
    João Rego
    Clemente Rosas
    Ivanildo Sampaio


    Ucrânia acusa Rússia de colocar minas em barragem (Deutsche Welle)

     Existe monstro maior do que Putin na atualidade? Um legitimo sucessor de Hitler.

    Ucrânia acusa Rússia de colocar minas em barragem

    Existe 50 minutos

    Segundo Zelenski, Moscou planeja explodir represa de usina hidrelétrica no sul do país. Ruptura da estrutura pode causar "desastre de grandes proporções", alerta o presidente ucraniano.

    Deutsche Welle, 21/10/2022

    O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, alertou a comunidade internacional de que a Rússia planeja explodir a barragem de uma usina hidrelétrica na região de Kherson, no sul do país. Kiev lançou uma ofensiva na área, depois de nas últimas semanas ter recuperado diversos assentamentos ocupados por tropas russas.

    Em um vídeo divulgado na noite desta quinta-feira (20/10), Zelenski afirmou que militares russos colocaram minas na barragem da usina hidrelétrica de Kakhovka, localizada no rio Dnipro. Segundo ele, uma explosão da represa faria o canal do norte da Crimeia desaparecer, num "desastre de grandes proporções", afetando cerca de 80 comunidades, incluindo a capital regional, Kherson.

    A represa de Kakhovka tem 2,1 mil km² de extensão e foi construída na década de 1950. O canal do norte da Crimeia é a principal fonte de abastecimento de água da península.

    "A Rússia está deliberadamente criando as bases para um desastre de grandes proporções no sul da Ucrânia", afirmou Zelenski num apelo direcionado aos líderes da União Europeia (EU), que estavam reunidos em Bruxelas.

    De acordo com Zelenski, Kiev tem informações de que, além de colocar minas no local, Moscou está planejando um ataque de bandeira falsa. No vídeo aos líderes europeus, o presidente disse ainda que a Rússia transformou a estrutura energética da Ucrânia num campo de guerra, cujo objetivo, segundo ele, seria, ao causar problemas de aquecimento e apagões, obrigar o maior número possível de ucranianos a deixar o país no inverno.

    Ataques à infraestrutura civil

    As acusações surgem num momento em que a Rússia lançou uma série de bombardeios à infraestrutura civil da Ucrânia. Os ataques levaram o país a restringir nesta quinta-feira o fornecimento de energia. A empresa responsável pelo setor anunciou cortes de energia de até quatro horas em todas as regiões do país e disse que não descarta outras restrições com a chegada do frio.

    Os recentes ataques russos destruíram cerca de 40% do sistema de energia elétrica da Ucrânia, segundo uma autoridade ucraniana do setor. De acordo com Zelenski, desde 10 de outubro, 30% das usinas de geração de energia do país foram destruídas em bombardeios.

    A Rússia vem ainda perdendo territórios ocupados após a invasão em fevereiro. Diante do sucesso da ofensiva ucraniana em Kherson, Moscou iniciou a evacuação da região e vem alegando que a Ucrânia está atacando alvos civis na área – algo que Kiev nega. Cerca de 15 mil moradores já foram retirados da região. No total, as autoridades pró-russas pretendem retirar entre 50 mil e 60 mil habitantes em seis dias.

    Nesta sexta-feira, a administração pró-russa de Kherson acusou as tropas ucranianas de matar quatro e ferir 10 num bombardeio à ponte Antonovsky, uma das principais rotas de abastecimento para as forças russas no sul da Ucrânia.

    Mais de 400 crianças mortas

    A Procuradoria-Geral da Ucrânia afirmou nesta sexta-feira que, desde o início da invasão russa em 24 de fevereiro, 429 crianças morreram na Ucrânia em decorrência da guerra, e mais de 800 ficaram feridas. Os ataques russos danificaram ainda 2.663 instituições de ensino em todo o país.

    A ofensiva militar lançada em fevereiro pela Rússia na Ucrânia causou já a fuga de mais de 13 milhões de ucranianos, destes, 7,7 milhões fugiram para outros países europeus. Segundo a ONU, o conflito causou a pior crise de refugiados na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.

    De acordo com a ONU, em apenas quase oito meses, a guerra já deixou mais de 6,3 mil civis mortos e 9,6 mil feridos.

    cn (AP, DW, Lusa)

    Que liberalismo é esse? - Pedro Doria (Canal Meio)

     Pedro Doria pode ter efetivamente razão, mas a verdade é que esses jogos conceituais só ocupam mesmo os acadêmicos, pois os verdadeiros agentes da política e da economia não dão a mínima para conceitos: ele só querem mesmo defender seus interesses, indiferentes a esses rótulos!

    Paulo Roberto de Almeida 


    QUE LIBERALISMO É ESSE?


    POR PEDRO DORIA

    Canal Meio, 20/10/2022

    https://www.canalmeio.com.br/notas/que-liberalismo-e-esse/

    O liberalismo brasileiro cindiu, nesta eleição de 2022, de uma maneira como jamais havia ocorrido antes. A maior mostra deste movimento talvez seja a maneira como dirigentes do Partido Novo reagiram à declaração de voto, pelo seu fundador João Amoêdo, no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “A declaração é uma traição aos valores liberais”, escreveu Felipe D’Ávila, candidato à presidência do Novo este ano. “Amoêdo, pega o boné e vai embora.” O presidente da legenda foi no mesmo tom. “Vergonhosa, constrangedora e incoerente a declaração de voto”, afirmou Eduardo Ribeiro. Amoêdo, porém, não está sozinho. Declararam voto em Lula Pérsio Arida, Pedro Malan, Edmar Bacha, Armínio Fraga, Elena Landau, José Roberto Mendonça de Barros, Henrique Meirelles. Ao passo que inúmeros, na Faria Lima, gritam que a dupla Jair Bolsonaro-Paulo Guedes são os únicos capazes de tocar um projeto liberal no Brasil. “Hoje sou um liberal”, declarou à Veja o próprio Bolsonaro faz duas semanas.

    Isto é novo no cenário político da Nova República. Se pessoas que se dizem liberais votam tanto em Lula quanto em Bolsonaro porque veem no adversário incompatibilidade com o liberalismo, algo fica evidente. Estão chamando pelo mesmo nome ideologias muito diferentes.

    A confusão não é nova. A eleição de 2022 apenas a tornou evidente. Meu companheiro neste espaço, o cientista político Christian Lynch, os distingue chamando uns de liberais-democratas e, os outros, de neoliberais. José Guilherme Merquior os dividia de forma mais direta. Liberais de um lado, liberistas do outro. Uns defensores da liberdade no sentido mais amplo da palavra, outros focados apenas em liberdade econômica. A diferença entre os dois grupos não é pequena mas se tornou mais aguda, principalmente na América Latina, após os anos 1980.

    Neste momento de risco à democracia, é bom que se separem para nunca mais se encontrarem.

    Mas antes é importante fazer a distinção entre as duas visões de mundo — e poucos o fazem melhor do que o cientista político Michael Freeden, professor emérito de Oxford. Porque uma ideologia tão antiga e longeva quanto o liberalismo, nascida com a publicação de Uma Carta sobre Tolerânciade John Locke, em 1689, não poderia atravessar mais de três séculos sem mudar profundamente e fazer nascer muitas variantes.

    Freeden não vê um único liberalismo — vê gerações de filósofos refletindo sobre seus tempos, sociedades, e reagindo às dificuldades e questões que apareciam. Foram, assim, depositando camadas de novos valores e ideias, por vezes ignorando o pensado antes, noutras recuperando o que havia se perdido. Ao todo o liberalismo, em sua descrição, foi construído uma camada após a outra ao longo dos séculos. Ao final são cinco camadas, nem sempre coerentes entre si, mas bem ou mal alicerçadas pela busca dos mesmos de princípios.

    A primeira, a raiz de todas, é movida pelo impulso de ser contrário a qualquer forma de tirania. É a âncora que garante a toda pessoa, todo indivíduo, um espaço em que sua liberdade pessoal seja garantida. A liberdade de se expressar, de tomar parte no debate sobre a política, e agir sem medo de sofrer consequências pelo que pensa. Esta liberdade, Locke já via desde o início, teria inevitavelmente de ser limitada pela liberdade do outro.

    É deste liberalismo mais base que nasce o instinto de formar um Estado a partir de uma Constituição na qual todos serão iguais perante a lei.

    A segunda camada, que surge já com os primeiros movimentos da Revolução Industrial, trata da liberdade econômica. É o liberalismo de Adam Smith e David Ricardo. Conforme os mercados globais começam a se abrir, ainda num ambiente de governos absolutistas, o direito de poder negociar salários e determinar preços de produtos sem que o Estado se envolva começa a ser cobrado. A crença no trabalho individual, honesto, que leve ao crescimento econômico da pessoa e, assim, da nação, passam a ser defendidos com argumentos sólidos e lógicos. No entorno desta ideia surge o contrato entre duas pessoas ou empresas com valor perante a Justiça. Aquele Estado de Locke passa a ser, também, um garantidor destas relações privadas.

    A partir de meados do século 19, quando a miséria que acompanhou a industrialização se tornou evidente, mais uma vez o liberalismo mudou seu foco, puxado por um de seus pensadores mais importantes — o inglês John Stuart Mill. Esta terceira camada não se opõe ao livre comércio, mas já não o vê mais central. A prioridade se torna liberar o potencial do desenvolvimento de cada pessoa. Se a primeira camada do liberalismo dizia “deixa eu ser quem sou”, esta terceira proporia “deixa eu crescer tanto quanto posso”. Há um sentido de igualdade de oportunidades e a busca por um Estado que garanta as condições para que todos possam encontrar seu melhor. O mercado já não é mais um de bens — o mercado torna-se uma metáfora para explicar as dinâmicas de como circulam ideias, valores, mesmo pessoas.

    É daí que surge, na virada para o século 20, o que os ingleses batizaram de Novo Liberalismo — um que ressaltava interdependência dos indivíduos em sociedade. Por mais que existam direitos individuais, todos dependemos uns dos outros até para que possamos garantir os mesmos direitos individuais. Os agentes do Novo Liberalismo são os principais promotores da criação de uma teia de proteção social que incluísse seguro desemprego, aposentadoria, saúde pública, alimentação gratuita nas escolas. Para que a pessoa seja realmente livre é preciso garantia de dignidade para todos, diziam. Se as camadas anteriores viam indivíduos e o Estado, esta quarta camada incluiu um terceiro elemento na dinâmica. A sociedade.

    Da segunda metade do século passado para cá, economistas, juristas e filósofos do liberalismo vêm criando sua quinta camada, observando que as relações humanas em sociedades livres se tornaram bem mais complexas do que se poderia imaginar. Grupos de interesses se formam normalmente para disputar suas pautas, e seu espaço deve ser garantido. Estes grupos — partidos, sindicatos, entidades de classe, igrejas, mais recentemente ONGs — todos disputam a palavra no debate e poder de ação, e nenhum deve ter seu monopólio. Uma sociedade liberal, portanto, deveria ser capaz de garantir não apenas o ambiente para livre manifestação e relação entre indivíduos, mas também entre estes grupos.

    É neste momento em que pensadores como o Nobel indiano Amartya Sem florescem. Ou o americano John Rawls.

    Hoje, novos debates chegam à pauta, como o da questão identitária, quando grupos se organizam na sociedade não ao redor de interesses econômicos ou no entorno de ideias, mas pelo que consideram uma identidade comum. O multiculturalismo, talvez inevitável com a ampliação daquele velho desejo liberal das fronteiras abertas, cria novas tensões e certamente, nas próximas décadas, uma sexta camada será adicionada à mais antiga das tradições de pensamento político em democracias. O liberalismo ainda não produziu um pensamento coeso sobre como lidar com as novas tensões que surgem.

    As cinco camadas do pensamento liberal descritas por Michael Freeden são todas relacionadas, todas se encontram nos princípios essenciais da liberdade individual observados por Locke. Mas, a respeito dos inúmeros aspectos do pensamento liberal, temas diversos foram colocados com maior ou menor ênfase dependendo da época ou do lugar. E, ainda assim, todas estas camadas compõem a mesma tradição do que a ciência política engloba nesta palavra: Liberalismo.

    Cada liberal constrói o seu liberalismo com as peças disponíveis nas prateleiras do pensamento passado, seguindo o mesmo princípio de pesar as ênfases. Os limites são sempre claros. Um presidente da República intolerante não representa aquilo que o autor de Carta sobre Tolerância pensou.

    Se o presidente não tolera diversidade entre pessoas, se fala em extermínio de parte da oposição, se a atuação privilegia uma igreja sobre outras, então não descende de Locke.

    Não é liberal. É iliberal.

    Ou, como escreveu no Twitter Michael Reid, colunista de Américas da revista The Economist, “nenhum liberal de verdade pode achar que Bolsonaro, que não aceita restrição ao poder, é menos ruim que Lula”. Reid escreve para a revista que é o bastião do pensamento liberal britânico faz quase dois séculos e respondia ao ataque de Felipe D’Ávila a Amoêdo. “Você tem todo o direito a sua opinião mas representa qualquer coisa menos o liberalismo.”

    Se não é liberalismo, o que é isso que D’Ávila, Paulo Guedes, os parlamentares ainda eleitos do Novo, empresários como Luciano Hang e Salim Mattar, e um bando de gente na Avenida Faria Lima chama por este nome? O que é isto que Christian Lynch chama de neoliberalismo em distinção ao liberalismo-democrático e Merquior batizou liberismo em contraste com liberalismo?

    De volta a Michael Freeden. Há duas razões políticas para chamar de liberalismo o que não é liberalismo. Parecem contraditórias entre si mas, na verdade, são complementares. Uma parte de pensadores marxistas e militantes de esquerda, em geral, cujo objetivo é reforçar uma caricatura hostil do liberalismo. A outra vem do outro flanco, da direita, para empurrar um pacote de ideias impopulares como se fossem benéficas. A direita quer se beneficiar da marca. A esquerda pretende detrata-la. Ambos os grupos se beneficiam do mesmo movimento. O jogo de um interessa ao outro. E, na sua ação, ambos sufocam o espaço do real liberalismo.

    No neoliberalismo, no liberismo, as esferas social, política e cultural são todas subordinadas ao mercado no sentido estritamente econômico do termo. O Estado serve apenas como garantidor dos fluxos contínuos de capitais e produtos, o que fere de morte a ideia essencial de Locke de que todo poder deve ser limitado. De que pessoas não podem ser oprimidas. Esta ideologia pode lembrar, à primeira vista, uma versão pura da segunda camada do liberalismo, como se a primeira jamais tivesse existido. Mas não há Adam Smith e David Ricardo sem John Locke, o Barão de Montesquieu ou Voltaire. Smith era profundamente tocado por valores humanistas. Escreveu A Riqueza das Naçõese escreveu, também, a Teoria dos Sentimentos Morais, quando reflete sobre a mútua busca por simpatia nas relações entre pessoas. Na busca por respeito entre pessoas. E mesmo quando escrevia sobre economia, assim como Ricardo, eles pensavam não nas relações entre grandes corporações que produzem anualmente mais do que o PIB de meio mundo. Pensavam, isto sim, em negociantes, em gente procurando construir suas vidas. Havia uma missão ética no pensamento de ambos com uma única direção: a construção de uma sociedade justa.

    “Uma das principais características do conservadorismo é a crença nas origens extra-humanas da ordem social”, escreve Freeden. Ideologias não são conjuntos estáticos de ideias. São como linguagens. Partem de uma ideia forte — a liberdade, para o liberalismo, ou o conflito de classes, para o marxismo — e vão se adaptando aos momentos da história. A ideia forte do conservadorismo é esta, a de que a ordem social não é uma construção humana. É algo que está além do controle das pessoas. Em certos momentos do passado, sua origem foi percebida como divina. Vem de Deus. Para este grupo, a ordem social é dada pelo mercado e mexer com o mercado é sugerir que pessoas poderiam intervir na ordem social.

    Para o professor de Oxford, esta filosofia, este neoliberalismo ou liberismo ou o que for, não é uma vertente liberal. É a captura da linguagem do liberalismo para vender uma forma de conservadorismo.

    No fim, o conservadorismo é uma ideologia a serviço da manutenção dos privilégios de um grupo perante outros. É assim desde a Revolução Francesa, quando protegia aristocratas. Na descrição do historiador das ideias alemão Jan-Werner Mueller, em essência o conservadorismo acredita que deve haver uma hierarquia social. A existência de desigualdade entre grupos é compreendida como parte da ordem natural.

    É do jogo que se pense assim. Só não é liberal. De Locke, não vem.

    Liberais são poucos, no Brasil. Por um bom tempo foi conveniente, politicamente, uma aliança com conservadores e tolerância com a captura do nome. Por um tempo, até, foi possível encontrar pontos de encontro nos pensamentos e evitar os muitos atritos. Ser liberal na economia, conservador nos costumes, virou até frase corriqueira. Como se fosse coerente.

    Quando aquele grupo quer cruzar a linha da democracia, o rompimento não é apenas desejável. É imperativo. Já causou dano demais.


    Esse artigo é parte de uma das edições de sábado do Meio. Exclusiva para Assinantes Premium.

    Conheça: Chega mais rápido, edição extra de sábado, editoria de economia na edição diária e acesso ao Monitor, o software que usamos para ver as notícias de todos os sites em tempo real.

    quinta-feira, 20 de outubro de 2022

    Who was George Canning? - Richard Luckett's book review of Wendy Hinde (The Spectator)

    Um diplomata brasileiro, Caio de Freitas, compôs um livro, enquanto servia em Londres, na segunda metade dos anos 1950, intitulado Canning e o Brasil, sobre o papel desse ministro inglês na independência do Brasil. 

    Who was George Canning? (1973)

    Who was George Canning? (1973)
    Credit: Getty Images

    Until Liz Truss, George Canning was the shortest-serving prime minister. He needn’t be forgotten by pub quizzers, general knowledge collectors and historians alike. In 1973, Richard Luckett reviewed a major biography of Canning’s life for The Spectator.


    Wendy Hinde: 

    George Canning

    London: HarperCollins, 1973


    Every schoolboy knows about the duel with Castlereagh; students of that neglected subject, abusive language, remember Brougham's description of his behaviour over the Catholic question (‘the most incredible specimen of monstrous truckling for the purpose of obtaining office which the whole history of political tergiversation could furnish’); historians recall his reputation as an orator, his part in the decision to bombard Copenhagen, his divisive effect on Tory ministries, his forceful conduct of foreign policy and the trouble caused by his early death after only a few months as Prime Minister. Anyone with a serious interest in the earlier nineteenth century knows, of necessity, a good deal more than this, but it is certainly true that Canning's career has neither been greatly studied nor greatly appreciated.

    Part of the reason is to be found in a certain ambivalence in the man himself. The duel with Castlereagh illustrates this clearly enough; when he came to take his place his second cocked his weapon for him, saying: ‘I cannot trust him to do it himself; he has never fired a pistol in his life.’ Afterwards Canning, wounded, wrote to friends that if they wanted to get a ball through the fleshy part of the thigh, ‘I would recommend Lord Castlereagh as the operator.’ The whole incident — two of the King's ministers in a duel — which promises so well as material for the historical novelist is rendered slightly absurd and at the same time almost innocuous; it does not even become farcical. 

    Canning's courage is evident, but what is equally apparent is his refusal to indulge in heroics; consequently the incident is defused of both its tragic and its comic potential. Something similar occurs with his oratory: this made an enormous impression on all his contemporaries, and after the death of Pitt he was widely regarded as the most brilliant speaker in the house, yet a picture of him as a man of passionate convictions would be misleading. Perhaps Coleridge was near the mark when he observed that Canning's speeches ‘flashed such a light around the constitution, that it was difficult to see the ruins of the fabric through it.’ His political opponents, noting the same phenomenon, had no difficulty in explaining it; to them Canning was a man of little principle, interested above all in personal position, in short an actor. The more reactionary members of the Tory party would never have agreed in public, for Canning was after all — in name — a Tory. But in private they expressed the same doubts. Both groups knew that early in life, and apparently for the sake of a seat in Parliament, Canning had deserted the Whig connection in which he had been brought up, and with it the friends who had helped him in his youth; both groups also knew that Canning's mother was a professional actress. It seemed to them an adequate reason to doubt his sincerity, since the circumstance not only conveniently suggested an hereditary taint, but also demonstrated a lack of background that would necessarily be reflected in his political behaviour.

    Wendy Hinde has put everybody with the slightest interest in the period in her debt by writing a biography of Canning that sorts out the formidable complexities or the political manoeuvring that complicated so much of his career, and provides a sympathetic but not unduly partisan account of his beliefs and actions. 

    Two factors should recommend her book to a wider public: the ease and clarity of her style, which makes it an exceptional pleasure to read, and Canning's peculiar position as the first British Prime Minister to have been a career politician in the modern sense. For, as Miss Hinde makes clear, he started from nothing; his father, who came from an Ulster family, had been disinherited, and when he died a year after Canning's birth his widow turned to the stage in an endeavour to earn a living. True, at the age of eight Canning was sent to a respectable school, but the arrangement which provided him with an education and a middle-class home deprived him of the opportunity of living with his mother, and ensured him, in his later life, no more than a very modest income. He was to suffer both from the separation from his mother entailed by his new life, and from the embarrassment that her attempted incursions into this new life would cause him.

    Education at Eton and Christ Church has since become an accepted pattern for the aspiring Tory leader, but it was not so well worn a path when Canning trod it. He had to make the most of his opportunities, and he did so brilliantly, editing a magazine at Eton which was read with approval by the Royal family and was perhaps even more noteworthy in that it showed a reasonable financial return. At Eton and Oxford he revealed a remarkable talent for making friends, and when, on leaving Oxford to read for the bar, he offered his services to Pitt, he demonstrated an even more remarkable talent for keeping them. In due course the ultras of both parties would regard this capacity to remain on terms of affection with men of different political loyalties as evidence of innate hypocrisy. It was a quality which his friends interpreted rather differently. 

    In any case his most valuable associates were those who shared his new political creed, and they were to form a caucus to be reckoned with in any political struggle. Their loyalty to their leader — for that was the position which Canning swiftly and effortlessly came to occupy amongst them — was matched only by his loyalty to Pitt. Canning's adherence provides another instance of his capacity to go through the motions of high drama and yet to remain unscathed, since by following Pitt out of office in 1801 he made a gesture that was at once extravagant and extremely hazardous to his own career, and at the same time managed to survive his period in the wilderness. It was not enough, however, to convince his enemies of his loyalty and until his death the charge of deviousness was at the root of many of their criticisms.

    Canning rose because of his brilliance and his capacity for hard work, but the actual mechanics of the rise were those of influence and patronage. His marriage, to a girl in whom devotion and good sense were almost miraculously allied to a considerable fortune, eventually enabled him to buy his own way into parliamentary seats, if he wished, but not until the death of Pitt was he entirely free from obligations which influenced his political behaviour. The problem, then, is to identify those causes about which he felt passionately, and to mark the point at which his concern ceased to be the implementation of policy and became its formulation. 

    From the start he was opposed to discrimination against Roman Catholics, to the slave trade and to despotism. On issues concerning freedom of individual conscience, that is, he was liberal, and this almost induced the Whigs to believe that he was one of them. At the same time he entirely rejected what he regarded as the pusillanimous Whig line on foreign policy, and his pre-emptive strike against the Danes reduced the Whigs to fury. High Tories were equally—though more circumspectly displeased with his rejection of Metternich's ' holy league,' his championship of the cause of South American independence and a number of his economic measures. 

    But on the central issue, parliamentary reform, he was firmly Tory, and this indicates a further paradox. For Canning rose through a system which it was impossible to reconcile with the ideas of the reformers, without possessing any of the hereditary interests which the anti-reformers sought to defend. If on one level he lacked — and still today seems to lack — credibility, it was because of this. Like Burke and Sheridan he seemed to exist to speak, yet his speaking was limited by that fact; unlike his fellow countrymen he reached high office. 

    Late in his career he discovered, in the people of Britain, a new audience and a new political base which could serve as a bastion against a king who began by cordially disliking him (George IV thought that he had been one of Queen Caroline's lovers) and an unconvinced Parliament. His speeches to corporations became as important as any that he delivered in the house. Yet he never reconciled his political creed with his dependence on his new allies, and it is difficult to imagine what would have happened had he lived on. 

    Perhaps the truth is merely that the events of 1832 would have been postponed. It emerges from this that the difficulties faced by Canning were very much those of the modern politician, who seldom emerges from the class whose interests he seeks to defend (e.g. Mr Heath) and who professes, on the one hand, a belief in the ineffable rightness of public opinion and, on the other, confidence in his own rectitude and the ineffable rightness of his private judgement. A further similarity emerges from something which Canning said, but to which Miss Hinde does not refer. I owe the reference to Coleridge, who put it like this: ‘The stock-jobbing and moneyed interest is so strong in this country, that it has more than once prevailed in our foreign councils over national honour and national justice.’ Canning felt this very keenly, and said that he was unable to contend against the city trained-bands. 

    Extend the reference to the trained-bands of organised labour and the parallels become even more striking. Miss Hinde's achievement is to have given us a picture of Canning in which the elements of personal ambition and of principle are held in a believable balance; further than this, she has something to tell us about our own times.

    Written byRichard Luckett

    Richard Luckett was a lecturer in seventeenth-century literature at Magdalene College, Cambridge. He died in 2020.