domingo, 16 de março de 2025

A raiz do realismo político - Augusto de Franco (revista ID)

A raiz do realismo político

Capítulo 33 do livro “Como as democracias nascem” (Franco, Augusto. São Paulo: Casas da Democracia, 2023)

“A teoria de Darwin sobre a sobrevivência do mais forte… [é] um melhor guia para a compreensão da história do que a moralidade pessoal”.

O realista Kissinger (1994), em Diplomacy, interpretando o pensamento de Theodore Roosevelt, o seu admirado “estadista-guerreiro”.

O realismo político acabou virando uma vertente de política externa ou internacional. Não nasceu assim, porém. Nasceu como um pensamento antipolítico, para efeitos, na verdade, internos.

Há uma tradição autocrática no pensamento político. É essa tradição que constitui o chamado realismo político. Começa com Platão, passa por Maquiavel, Hobbes, pelo Cardeal Richelieu, por Clausewitz, pelos chamados “políticos do poder”, como Metternich e Bismarck e vários outros até chegar aos realistas modernos como Schmitt, Morgenthau e Carr e aos contemporâneos, como, para citar apenas alguns exemplos, Brzezinski, Genscher, Ross, Kissinger e o novo crush dos autocratas de direita e de esquerda chamado John Mearsheimer. Este artigo é sobre isso. Mas não vai comentar exaustivamente as ideologias desses autocratas e sim apenas chamar a atenção para alguns padrões antidemocráticos que estão presentes nos seus pensamentos.

PLATÃO

Podemos dizer – sem medo de errar – que o realismo político nasceu com Platão, quer dizer, tem a ver com os fundamentos dos regimes de Esparta, Creta e Siracusa – não com os fundamentos do regime que vigorou em Atenas nos séculos 5 e 4 a.C. Sua raiz é dória, não jônia. E as tentativas de atribuí-lo originalmente a Tucídides são inconsistências inventadas por acadêmicos americanos.

Platão, nas Leis (626a), escreveu que “na realidade, por questões de natureza (φύσις), todas as póleis vivem envolvidas em um estado de guerra velada”. Bem… aí com certeza começou, no plano teórico, o chamado realismo político. O primeiro problema dessa afirmação platônica não é constatar que as póleis (entendidas erroneamente como cidades-Estado) vivem em estado de guerra e sim achar que isso ocorre por algum tipo de deteminação natural, da phýsis, como qualidade ou propriedade constitutiva de todas as coisas ou sua maneira de ser. O segundo problema é não ver que a pólis, numa democracia (onde Platão vivia, embora a ela se contrapusesse), não é a cidade-Estado e sim a koinonia (comunidade) política. Como percebeu Hannah Arendt (1958), em A condição humana, “a pólis não era Atenas e sim os atenienses”.

Avancemos agora pouco mais de dois milênios para constatar como os padrões autocráticos se replicam em outras regiões do tempo. Hans Morgenthau (1948), um dos principais teóricos do realismo político, acreditava que “a política, como aliás a sociedade em geral, é governada por leis objetivas que deitam suas raízes na natureza humana”. Eis aí, desnudado, o pressuposto ideológico platônico antipolítico. Natureza humana é uma natureza (não, com perdão do neologismo, uma “socialeza”). Natureza, Deus ou História (tudo assim com maiúsculas) dá no mesmo. É uma instância extra-política determinando a política a despeito da interação propriamente política entre as pessoas. Se há algo infenso à política, determinando a política, não pode haver democracia.

Bastaria dizer isso. Mas partamos de uma definição, quase escolar, de realismo político antes de examinar os pensamentos de alguns realistas políticos.

REALISMO POLÍTICO É GUERRA

Em poucas palavras e simplificando ao máximo (o que não é tão inadequado, pois suas construções intelectuais são simplórias), o realismo político parte da constatação de que, não havendo uma instância normativa no plano internacional (uma autoridade máxima à qual os Estados devam se submeter), cada Estado – sim, todo realismo é um estatismo: o sujeito é sempre o Estado, a sociedade é um dominium do Estado – deve garantir a sua própria segurança, agindo em nome de um interesse nacional.

Em nome desse interesse nacional, definido pelo próprio Estado, cada ator deve lutar para aumentar o seu poder (em geral traduzido como capacidade militar, mas não só), para impor sua vontade a Estados mais fracos. Cada Estado deve então decidir por si mesmo se e quando vai usar sua força para alcançar seus objetivos (ou realizar seus interesses).

A colaboração entre Estados, no limite, leva a abrir flancos perigosos, pois o aliado de hoje pode se tornar o inimigo de amanhã (o que é bem resumido na máxima autocrática: “os aliados lhe enfraquecem, os inimigos lhe fortalecem”).

Como não há democracia no plano internacional, não há lei (quer dizer, império da lei) ou critério ético-político a que um Estado deva se submeter. Logo, a única maneira de garantir a sobrevivência do Estado como entidade é organizar-se para se defender de um possível ataque de outros Estados.

Para garantir a paz (entendida como manutenção da integridade do Estado) é necessário se preparar para a guerra por meio da defesa (e por isso toda defesa é guerra preemptiva). E como o sistema é competitivo, a única maneira de evitar a guerra é alcançar um equilíbrio de forças que desestimule, por medo da retaliação, que um Estado faça guerra contra outro e o destrua.

Bem, trata-se de uma definição quase escolar, mas nem por isso incorreta. Pelo menos deixa claro que falar do realismo é falar de guerra. Não, não é falar de outra coisa. É o óbvio. Mas agora vem uma inferência não tão óbvia: toda guerra é interna. Este é o primeiro ponto a ser entendido. Para entendê-lo, porém, é preciso balançar algumas certezas.

Para começar, guerra não é o conflito. É um modo de regular o conflito. E guerra não é o conflito violento. Pode ser praticada sem violência (física), como guerra fria e como política adversarial (a política como continuação da guerra por outros meios).

Depois é preciso ver que guerra não é destruição de inimigos e sim, pelo contrário, construção e manutenção de inimigos (tanto faz se for a Eurásia ou a Lestásia, para lembrar o 1984 de Orwell).

Em seguida é necessário entender que a guerra não tem como objetivo principal derrotar um país estrangeiro a não ser na medida em que isso puder ser usado para instalar internamente um ‘estado de guerra’ (não adianta derrotar um inimigo externo se não se derrotar os inimigos internos, quer dizer, se a força política que está no poder de Estado não continuar estabelecendo sua supremacia). O objetivo da guerra – para quem a faz (e como dizia Maturana, “a guerra não acontece, nós a fazemos”) – é instalar um estado de guerra que enseje, permita e justifique a ereção de estruturas hierárquicas regidas por modos autocráticos. Ou seja, a guerra é um engendramento para possibilitar uma reorganização do cosmo social. Em outras palavras, para impor uma ordem preconcebida em vez de deixar que diversas ordens emerjam da interação, o que acontece toda vez que tomamos a liberdade como sentido da política (e não a ordem). Este ponto é fundamental, porque a democracia é apenas a política que não tem uma ordem pronta (preconcebida) para colocar no lugar de outra, mesmo que essa ordem seja avaliada como a mais perfeita e justa do universo.

Aqui é preciso entender, para resumir, que não é apenas que autocracias façam guerras: a guerra já é a autocracia. E toda autocracia é sempre uma guerra contra um inimigo interno (ainda que um inimigo externo possa existir objetivamente).

Voltemos agora aos pensadores realistas para corroborar essas primeiras impressões.

SCHMITT

O jurista e estudioso político alemão Carl Schmitt, publicou, em 1932, um famoso livro intitulado “O conceito do político”, que provocou grande controvérsia sobre um suposto militarismo ou belicismo presente nas suas concepções. Sua posição foi encarada como realista, pelo fato de ele admitir (mesmo sem desejar, ou propor) que a guerra é o pressuposto sempre presente como possibilidade real em qualquer relação política. De qualquer modo, não há como negar que, para conceituar o político, Schmitt insiste demais nas noções de guerra e de inimigo, deixando de tratar, com a mesma atenção – e isso não pode ser por acaso –, dos conceitos de paz e de amigo.

Não cabe aqui entrar na controvérsia nos termos em que ela foi colocada. Talvez seja necessário dizer apenas que, para Carl Schmitt, “a diferença especificamente política… é a diferença entre amigo e inimigo”. Ainda que ele tente fazer uma distinção entre inimicus em seu sentido lato (o concorrente comercial, “o adversário particular que odiamos por sentimentos de antipatia”) e hostis (o inimigo público, o combatente que usa armas para destruir meu contexto vital, enfim, o inimigo político), parece claro que Schmitt não via diferença de natureza entre guerra e política. Tanto é assim que ele afirma que “a guerra, enquanto o meio político mais extremo, revela a possibilidade subjacente a toda concepção política, desta distinção entre amigo e inimigo” (1). Quer dizer que, para ele, conquanto seja um “meio extremo”, a guerra é um meio político. Do contrário ele deveria ter afirmado que a política pode levar à guerra, deixando de ser o que é (mudando, portanto, sua natureza) e não que a guerra é um meio político, pois que, assim, ao fazer guerra, ainda estamos fazendo política.

Pode-se perceber em Carl Schmitt um viés realista da chamada realpolitik. Contrapondo-se ao idealismo, o realismo político é uma política baseada no “equilíbrio do poder”, na linha do pensamento e da prática do Cardeal Richelieu – com sua “razão de Estado” (“raison d’état”) colocada acima de qualquer princípio moral – e dos chamados “políticos do poder”, como os já citados Metternich, Bismarck e, mais recentemente, Kissinger (1994), segundo a qual – e ele escreveu isso interpretando o pensamento do presidente Theodore Roosevelt, o seu admirado “estadista-guerreiro” – “a teoria de Darwin sobre a sobrevivência do mais forte… [é] um melhor guia para a compreensão da história do que a moralidade pessoal” (2).

O ponto da discussão é o seguinte: se pode haver guerra como meio político, então devemos ser realistas o suficiente para praticar a política como quem conta com tal possibilidade (e se prepara para isso, o que acaba, quase sempre, sendo a mesma coisa que praticar a política como “arte da guerra”). Ao proceder desse modo, separando os amigos políticos dos inimigos políticos (os que podem nos combater), cristalizamos aquela relação de inimizade que pode levar à guerra (e que, de qualquer modo, leva à prática da política como uma “arte da guerra”).

O problema é que isso não vale apenas para a relação entre Estados soberanos, mas acaba deslizando – inevitavelmente – para todas as relações políticas (Richelieu usava a “lógica” da tal “razão de Estado” para manter o seu poder internamente e não apenas nas relações internacionais da França). Amigo, então, passa a ser todo aquele que está de acordo com nosso projeto e inimigo todo aquele que discorda do nosso projeto. Ora, se quero afirmar o meu projeto, então devo derrotar ou destruir (na verdade, incapacitar) aqueles que podem inviabilizar a sua realização e isso deve ser feito, inclusive, preventivamente, antes que eles (os outros, os inimigos) consigam inviabilizar meu projeto ou substituí-lo pelos projetos deles. Preempção.

Há uma linha divisória muito fina entre derrotar e destruir o projeto do outro e derrotar e destruir o outro como ator político, quer dizer, como alguém que pode apresentar um projeto diferente (que não é o meu). Assim, basta alguém não estar de acordo com meu projeto (político), para poder ser classificado como inimigo (político), pelo menos em potencial.

Esse ponto de vista, portanto, não cogita muito da possibilidade de transformar o inimigo político em amigo político, convencendo-o, ganhando-o para o nosso projeto ou adotando outro projeto, um terceiro projeto, que contemple ambos os projetos (o nosso e o dele). O realismo indica que isso não ocorrerá, pelo simples fato de ele (o outro), para usar o pensamento de Carl Schmitt, não ser um eu-mesmo – o que significa, paradoxalmente, convenhamos, uma construção ideal do inimigo, aquele que deve ser desconstituído como ser político enquanto ameaçar a realização do meu projeto. Não podendo ser destruído de pronto, tal inimigo, pelo menos, deverá ficar em seu canto, respeitando meu espaço, caso contrário será destruído mais tarde ou a qualquer momento: a isso se chama “equilíbrio de poder”. Configura-se assim uma situação de luta permanente, levando a uma política adversarial ou geradora de inimizade. Porque o outro, em vez de ser considerado como um possível parceiro, um aliado ou colaborador, é visto, antes de qualquer coisa, como um potencial inimigo.

Na verdade, o inimigo como construção ideal passa a ser uma peça funcional do nosso esquema de poder, quer dizer, da nossa política (ou antipolítica). Sem o inimigo, desconstitui-se a realpolitik e o tipo de poder que ela visa sustentar, em geral baseado na necessidade de preservação de uma determinada ordem que precisa ser mantida contra o perigo representado pelo inimigo. É para manter essa ordem que se instaura então, internamente, o “estado de guerra” que consiste em uma preparação para a guerra externa (que pode vir ou não, pouco importa) mas sempre em nome da paz (pois que só alguém preparado para a guerra pode manter a paz). E o mais grave é que esse “estado de guerra” interna pode se referir tanto ao âmbito de um país diante de outros países, como ao de uma organização em conflito real ou potencial com outras organizações, como, por exemplo, ao de um governo confrontado por partidos de oposição. O raciocínio, como se vê, é uma perversão, mas o fato de ele ser aceito tão amplamente indica que as tendências de autocratização da democracia ainda estão na ofensiva em relação às tendências de democratização da democracia.

Toda política que admite a guerra como um de seus meios acaba sendo uma política adversarial, baseada na luta constante para destruir o inimigo ou para manter o “equilíbrio de forças” (e deve-se notar que, aqui, a política já começa a se constituir sob o signo da força e não do poder – uma distinção tão cara à Johanna Arendt). Para a realpolitik, a única realidade política – inexorável – é a da interação de forças e, assim, o único critério político deve ser o da correlação de forças. Devo, sempre, fazer tudo o que for possível para alterar a correlação de forças a favor do meu projeto (ou a meu favor, quando se trata de um projeto pessoal, de uma agenda própria – como, aliás, sempre acontece). A política passa a ser uma luta constante para atingir tal objetivo, quando não deveria ser; ou seja, como escreveu Michelangelo Bovero (1988) em “Ética e política: entre maquiavelismo e kantismo”, a política não deveria ser luta e sim impedir a luta: não combater por si próprio, mas resolver e superar o conflito antagônico e impedir que volte a surgir (3).

Não são apenas as teorias políticas que estão, em sua maioria, contaminadas pela visão perversa do clausewitzianismo invertido (a fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin). A chamada sabedoria política tradicional também se baseia, totalmente, nas regras da luta política como “arte da guerra” ou na prática da ‘política como uma continuação da guerra por outros meios’, pois parece claro que, na maioria dos casos, essa sabedoria não se refere à guerra propriamente dita, aquela em que ocorre a violência física: aqui estamos tratando do ânimo adversarial, que tanto está por trás da guerra quanto da política adversarial ou competitiva.

DE HOBBES A CLAUSEWITZ

Thomas Hobbes (1651) – que era autocrático, mas não desprovido de inteligência – já havia percebido que “a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida… [já que] a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal…” (4).

Conquanto acumule uma grande dose de sabedoria a tradição política é autocrática, não democrática. Essa sabedoria dos grandes chefes e articuladores políticos, tão admirada pelos políticos tradicionais e pelas almas impressionáveis, tem pouco a ver com a democracia.

Sabedoria não significa democracia nem constitui um requisito para a boa prática democrática. A democracia não é uma tradição: é um acaso; é um erro no script da Matrix, uma falha no software dos sistemas autocráticos.

O conjunto dos ensinamentos oriundos da sabedoria política tradicional induz a um comportamento que gera inimizade e que, consequentemente, exige a prática da política como “arte da guerra”. Tudo está baseado, no fundo, em vencer o adversário, desarmar seu projeto político, ou seja: desorganizar suas forças e, sobretudo, impedir que se reúnam os meios necessários à sua existência como ator político.

Do ponto de vista da democracia – não há como negar – isso tudo é uma perversão. Se existe uma ética da política e essa ética é – ou só pode ser – a democratização, então o recurso da guerra (no sentido da prática da política como “arte da guerra”) deve ser visto como violador dessa ética e, assim, como o comportamento a ser evitado.

Em política, a guerra (quer dizer, a política pervertida como “arte da guerra”) não acontece em função da existência objetiva do inimigo, mas em função de nossas opções de encarar o outro como inimigo e de tentar destruí-lo (mas, na verdade, mantê-lo como impotente para nos destruir). Tais opções só são feitas se estivermos montando ou mantendo um sistema autocrático de poder, que exige o inimigo para a sua ereção ou para o seu funcionamento como tal (quer dizer, como um sistema não-democrático de organização e resolução de conflitos).

Clausewitz (1832) tinha razão, segundo certo ponto de vista, quando dizia que a guerra é uma continuação da política por outros meios: se ficar claro que essa continuação não é mais política e que a política capaz de ter tal continuação é uma política praticada como “arte da guerra”. A chamada “fórmula inversa” (a ‘política como continuação da guerra por outros meios’) é que é perversa, pois a guerra não pode levar à política a menos que queiramos estabelecer a impossibilidade da democracia. Políticas que conduzem à guerra são autocráticas. Coletividades que praticam a democracia não guerreiam entre si (na exata medida em que a praticam).

Há um fundamento hobbesiano na visão da política como continuação da guerra por outros meios. No famoso capítulo XIII do “Leviatã”, Hobbes (1651) decreta que “os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de intimidar a todos”. É claro que ele não está falando apenas de política, mas também revelando os pressupostos antropológico-sociais que condicionam sua maneira de ver a política. Segundo ele, “na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória” – ou seja, essas manifestações de egoísmo não seriam culturais, não emanariam da forma como a sociedade se organiza, mas intrínsecas. Essa inclinação “genética” para o mal explicaria por que, “durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los todos em temor respeitoso, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida… [já que] a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo tempo restante é de paz” (5).

Mas, segundo Hobbes, “tudo aquilo que se infere de um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, infere-se também do tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida pela sua própria força e pela sua própria invenção. Em uma tal condição [de falta de um poder que domestique ou apazigue os homens]… não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta” (6).

O mesmo fundamento hobbesiano para a visão da política como continuação da guerra por outros meios – ao assumir que não pode haver sociedade (civil) sem Estado – conspira contra os pressupostos da democracia.

Enfim, a luta política como “arte da guerra”, cria a guerra e obstrui a democracia. Lembrando novamente do que disse certa vez Maturana, a guerra não acontece: nós a fazemos (7). E como a fazemos? Ora, praticando a “arte” de operar as relações sociais com base no critério amigo x inimigo. Toda vez que fazemos isso estamos, caso se possa falar assim, armando ou fazendo guerra. Não necessariamente a guerra tradicional, “quente” e declarada, entre países ou grupos dentro de um país, a guerra com derramamento de sangue, mas também aquelas formas de guerra “fria” e não instalada: a “guerra sem derramamento de sangue” (como Mao definia a política), a “guerra sem mortes” (como George Orwell definia o esporte competitivo), a paz dos impérios (lato sensu, quer dizer, a paz estabelecida pelo domínio) e a paz como preparação para a guerra, o “estado de guerra” (interno) instalado em função da guerra (externa) ou de sua ameaça (ou, ainda, da avaliação, subjetiva, da sua possibilidade); enfim, a prática da política como “arte da guerra” que compreende: os modos de regulação de conflitos em que a produção permanente de vencedores e vencidos gera inimizade política, os padrões de organização compatíveis com esses modos de regulação de conflitos e o clima adversarial que se instala consequentemente nos coletivos humanos que os praticam.

Para captar os conceitos (na verdade os preconceitos) fundantes é ocioso passear pelos demais realistas. Aí acima estão os principais fundamentos do realismo político e por que eles são incompatíveis com os fundamentos da democracia (um modo pazeante – não-guerreante – de regulação de conflitos). Mas é preciso dizer algo a mais para chegar à conclusões aplicáveis aos tempos que correm.

O QUE APRENDEMOS SOBRE O REALISMO POLÍTICO

São três os principais aprendizados decorrentes da análise democrática do realismo político:

1 – O realismo político é uma ideologia.

2 – O realismo político é um culto ao Estado.

3 – O contrário do realismo político é a democracia.

Examinemos cada um desses aprendizados.

O credo realista

O realismo é uma ideologia que se escuda em uma suposta ciência (às vezes chamada de geopolítica) para não se reconhecer como tal (como uma ideologia). Da constatação de que o mundo está assim, ele passa de contrabando a ideia que o mundo é assim. Como disse John Mearsheimer, respondendo a um jornalista do New Yorker que lhe perguntava se não devemos pensar em tentar criar um mundo onde nem os EUA nem a Rússia se comportem de maneira intervencionista: “Não é assim que o mundo funciona” (8).

As crenças em que se baseia a ideologia realista são, basicamente, as seguintes: a) o ser humano é inerentemente (ou por natureza) competitivo; b) as pessoas sempre fazem escolhas tentando maximizar a satisfação de seus próprios interesses ou preferências (ao fim e ao cabo egotistas); c) sem líderes destacados não é possível mobilizar e organizar a ação coletiva; e d) nada pode funcionar sem hierarquia. Infelizmente extravasa o escopo deste artigo mostrar que essas crenças estão presentes no subsolo das concepções realistas da política. Mas talvez nem seja tão necessário fazer isso (para os propósitos do presente escrito): estes são fundamentos hobbesianos ou decorrentes do hobbesianismo, como o darwinismo social.

O culto ao Estado

O protótipo de qualquer hierarquia (stricto sensu, como poder sacerdotal) é o Estado (e sua forma histórica inaugural, que é o Estado-Templo mesopotâmico).

O realismo é um culto ao Estado. Poder é poder de Estado (degenerado como força). Os Estados são os únicos atores que contam. Para quem adota o realismo político (como uma espécie de religião laica, pois é isso que ele é) não faz nenhum sentido continuar defendendo a democracia. A democracia não se baseia nos interesses dos Estados e sim nos desejos das pessoas. Desejos? Pessoas? Tudo isso é irrelevante para a realpolitik, para a política do poder (como exercício ou ameaça do exercício da força – o que é, a rigor, uma antipolítica).

Não existe a sociedade como forma de agenciamento autônoma. Como já foi dito anteriormente, a sociedade é um dominium do Estado (na acepção feudal mesmo do termo).

Na prática, portanto, só há uma lei. A lei do mais forte. E o que é surpreendente aqui não é que o mais forte diga que a única lei que vale é a do mais forte. O que é supreendente é que os mais fracos repitam isso (por obra de ideologia). No mundo ideológico de Mearsheimer, que funciona de uma determinada maneira e não de outra, “só a força faz o que é certo” (9).

Ora, se a única “realidade” é a lei do mais forte, foram inúteis as vidas e as obras de Clístenes, Efialtes, Péricles, Aspásia, Protágoras e outros sofistas, Spinoza, Locke, Montesquieu, Rousseau, Jefferson e os Federalistas, Paine, Constant, Tocqueville, Mill, Dewey, Popper, Arendt, Berlin, Havel, Lefort, Bobbio, Castoriadis, Maturana, Rawls, Dahrendorf, Sen, Dahl… Isso nos leva ao próximo aprendizado.

O contrário do realismo político é a democracia

O contrário do realismo político não é qualquer idealismo irrealista e sim a democracia. Democracia pressupõe sempre direitos (sobretudo direitos políticos). Mas para a mentalidade realista, o poder é sempre de fato, não precisa ser de direito. Retira sua legitimidade de sua própria existência, não importa para nada se for uma tirania. Os que desafiam o poder, mesmo quando despótico, podem ser terroristas, mas o poder nunca, por mais atos terroristas que pratique.

O problema do realismo político é que ele acha irrelevantes as diferenças entre democracia e autocracia. Esquece que democracias não invadem militarmente democracias. E que só há guerra (quente) quando pelo menos uma autocracia está envolvida.

A democracia não é irrealista. Países democráticos devem reconhecer países autocráticos como regimes de fato, não de direito. Porque não pode ser ‘de direito’ um regime que não se baseia em um Estado de direito, onde não vige o império de leis legitimamente aprovadas por um parlamento autônomo, escolhido pela população em eleições livres e limpas, onde há violação de direitos políticos e onde as liberdades civis são restringidas; por exemplo, onde a oposição seja proibida ou perseguida e os direitos humanos desrespeitados.

Isso não significa que países democraticos devam atacar países autocráticos usando a força, nem que com eles não possam manter relações, inclusive comerciais ou, ainda, que com eles não possam se associar para resolver problemas que afetam toda a humanidade, como o aquecimento global, por exemplo. Só não podem legitimá-los, sob o pretexto de que o mundo é assim ou funciona assim. Ou sob a alegação de que a autodeterminação dos povos dá direito a tiranos de oprimir suas populações e usar o Estado para mover guerras contra os de seu próprio povo, encarando partes desse povo, que não os obedecem, como inimigos internos.

Autodeterminação dos povos. Tudo bem. Mas quem fala pelos tais “povos”? O realismo político entende, por “povos”, os Estados (mesmo se seus regimes e seus governos forem autocráticos). Se é assim, então, autodeterminação dos povos só pode valer, a rigor, em democracias. Pois ditadores não podem decidir em nome das pessoas (o “povo”) porque não são governantes legítimos.

E aqui entra toda a problemática da diplomacia que, em geral, mesmo nos regimes democráticos, não é democrática.

Sim, diplomacia não é democracia porque no plano internacional não vige a democracia e sim o regime de equilíbrio competitivo. Ou seja, a política externa é sempre uma continuação da guerra por outros meios. A diplomacia das democracias cuida então para que esses meios não sejam violentos. Evitar a guerra quente (com derramamento de sangue) é bom, mas não basta. Uma diplomacia democrática deveria defender a democracia, que não é o contrário da guerra violenta e sim o contrário de qualquer guerra (quente, fria ou como política adversarial). Uma diplomacia democrática teria de fazer a distinção entre democracias e autocracias. Porque sabe que autocracias não são regimes legítimos. São regimes de fato, não de direito. Não pode lidar apenas com jogos de poder na base da realpolitik. Tem que defender a democracia contra as tiranias.

O que é próprio da democracia, o que está, por assim dizer, no seu “genoma”, é ser um processo de desconstituição de autocracia. Assim, o papel dos democratas é defender a democracia contra as tiranias. Não importa se a tirania é dita de direita ou de esquerda. Não importa se a tirania é contra o imperialismo (dos outros). Não importa se a tirania diz ser contra o capitalismo ou o socialismo. Isto não é irrealismo, mas realismo democrático (se é que essa expressão faz algum sentido).

DISTINGUINDO REALISTICAMENTE DEMOCRACIAS DE AUTOCRACIAS

E é perfeitamente possível distinguir democracias de autocracias. Numa democracia, sejam quais forem os critérios propostos por diferentes teóricos e os diversos indicadores adotados por institutos de pesquisa que monitoram os regimes políticos no mundo (como a Freedom House, a The Economist Intelligence Unit e o V-Dem Institute), os seguintes pontos devem ser observados:

1) A liberdade (de ir e vir, de imprensa, no ciberespaço, de reunião e de manifestação, de organização social e política e, inclusive, de empreender e ter propriedades) não pode ser violada, nem restringida (sob qualquer pretexto).

2) A eletividade (o direito de eleger seus representantes para governar ou elaborar as leis – executivo e legislativo – e de ser eleito para essas funções) não pode ser violada, restringida ou fraudada. Aqui cabe um comentário: esse critério é necessário, porém não suficiente para caracterizar um regime como democrático (democracia não é eleição: a maioria das ditaduras realmente existentes hoje em dia no mundo – 60 em 90, segundo o V-Dem Report 2022 – promove eleições).

3) A publicidade ou transparência (capaz de ensejar uma efetiva accountability), ou seja, a inexistência de opacidade e de segredo nos negócios de Estado, deve estar garantida por mecanismos eficazes.

4) A rotatividade ou alternância também deve ser observada: os mandatos constituídos por representação ou nomeação devem ser limitados no tempo, não podendo um governante se prorrogar no posto (ou alternar com alguém do mesmo partido ou corrente política indefinidamente).

5) A legalidade deve ser mantida, o que exige um judiciário independente e um conjunto de leis democraticamente aprovadas (inclusive uma Constituição elaborada por um parlamento constituinte legitimamente eleito). É o chamado Império da Lei, expressão utilizada para dizer que não há império de uma pessoa e que os habitantes do país são cidadãos e não súditos de ninguém.

6) A institucionalidade, garantida por um conjunto de instituições que funcionem com a sua dinâmica própria e tenham proteções suficientes para não serem invadidas por interesses empresariais, corporativos ou partidários e político-eleitorais. Isso significa, por exemplo, não transformar as instituições em palcos de disputa de hegemonia, onde um partido ou coligação de partidos tentem conquistar maioria para converter essas instituições em correias de transmissão de suas vontades ou diretivas políticas.

Há muito realismo aqui. A democracia pode até acabar se estiolando por excesso de realismo. Foi tentado e funcionou. Continua sendo tentado em 32 democracias liberais e, com menos intensidade, em 58 democracias eleitorais. A maioria dos que vivem nesses regimes tem preferência por eles em relação às quase 60 autocracias eleitorais e às 33 democracias fechadas (não-eleitorais). Irrealismo é dizer que tudo isso é irrealismo porque não corresponde a uma ideologia segundo a qual o mundo não funciona assim. O subtexto realista é sempre o mesmo: o mundo não pode ser mudado. Por que? É aqui que surgem, como pulsões, aquelas crenças mencionadas acima. Ora, porque a natureza humana… Ora, porque o egoismo… Ora, porque os grandes estadistas-guerreiros… Ora, porque o tronco hieráquico gerador de programas verticalizadores… ou seja, o Estado, o Estado, o Estado tem sempre razão!

“GUERRA É PAZ, LIBERDADE É ESCRAVIDÃO, IGNORÂNCIA É FORÇA”

Eis que chegamos ao tempo presente: 2022. 2022 é 1984. Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força. Ou, na síntese de Putin, Autocracia é Democracia.

Mas o papel dos democratas é resistir às tiranias e não ficar buscando razões para explicar porque as tiranias se comportam como tiranias. Basta isso para nos posicionarmos diante da invasão da Rússia à Ucrânia. Ficar buscando as razões pelas quais as tiranias se comportam como tiranias – em geral, para os realistas, por culpa de alguma democracia, que as provocou querendo ou não – é apoiar, objetivamente, as tiranias.

A guerra que o ditador Putin decretou às democracias liberais revelou um novo tipo de cretinismo. O cretinismo geopolítico. É aquele cara que fica olhando os mapas e quase tendo orgasmos ao contabilizar o poderio bélico das grandes potências. É assim – pensa ele – que o mundo funciona. É a sua φύσις, como dizia Platão, Morgenthau e todos os realistas que vieram antes ou depois – e continuam vindo agora.

“Vou usar armas nucleares”. Ah! Então melhor não reagir. Pode invadir à vontade, “seu” Putin. Aproveite para destruir tudo, anexar os territórios e matar o maior número de pessoas. Não gostou? O mundo é assim, fazer o quê? Realpolitik. A força é o (único) critério da correção – e da verdade – em política externa.

Curioso que todos os autocratas falam que querem democracia e paz. Goebbels falava. Stalin falava. Putin fala. Ping fala. Mas, para alcançar esses supernos princípios, sabem como é, na vida real, é preciso fazer autocracia e guerra. Assim, quando um autocrata-realista pronuncia a palavra ‘democracia’ é bom se esconder da polícia. E quando fala a palavra ‘paz’, melhor correr logo para um abrigo antiaéreo.

Notas e referências

(1) Cf. Schmitt, Carl (1932). O conceito do político. Petrópolis: Vozes, 1992.

(2) Cf. Kissinger, Henry (1994). Diplomacia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2001.

(3) Cf. Bovero, Michelangelo (1988). “Ética e política entre maquiavelismo e kantismo” in Revista Lua Nova número 25: “Ética, política e gestão econômica”. São Paulo: CEDEC, 1992.

(4) Cf. Hobbes, Thomas (1651). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

(5) Idem.

(6) Idem-idem.

(7) Cf. Maturana, Humberto (1991). El sentido de lo humano. Santiago: Dolmen Ediciones, 1997.

(8) Cf. Isaac Chotiner, The New Yorker (01/03/2022). Why John Mearsheimer Blames the U.S. for the Crisis in Ukraine https://newyorker.com/news/q-and-a/why-john-mearsheimer-blames-the-us-for-the-crisis-in-ukraine

(9) Cf. Mearsheimer em vídeo: 

Revista ID é uma publicação apoiada pelos leitores.

Dossiê Holodomor: o genocídio ucraniano por Stalin - Materiais coletados por Airton Dirceu Lemmertz

Dossiê Holodomor: o genocídio ucraniano por Stalin

 

Materiais coletados por Airton Dirceu Lemmertz

 

Holodomor (A Grande Fome) - o genocídio de milhões de ucranianos através da fome pelo regime stalinista: https://diplomatizzando.blogspot.com/2025/03/holodomor-grande-fome-o-genocidio-de.html . 

https://pt.euronews.com/2013/11/22/holodomor-um-caso-de-genocidio

 

Holodomor: um caso de genocídio?

https://static.euronews.com/articles/247074/1920x1080_247074.jpg 

De  Euronews


Ler a íntegra do dossiê: 

https://www.academia.edu/128249344/Dossie_Holodomor_o_genoc%C3%ADdio_ucraniano_por_Stalin_Airton_Dirceu_Lemmertz 


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parte final do texto “Holodomor: 4 milhões de ucranianos morreram de fome devido à política de Stálin” 

(Jornal Opção, 6/2/2022; link: https://www.jornalopcao.com.br/colunas-e-blogs/imprensa/holodomor-4-milhoes-de-ucranianos-morreram-de-fome-devido-a-politica-de-stalin-378370/) mostra os horrores decorrentes de uma fome generalizada a um povo.

Confira (atenção: contém relatos de cenas perturbadoras): 


[...] 

O horror, o horror, o horror!

A partir de agora, o que se lerá é terrível. Leia apenas se quiser saber sobre a ação inominável dos comunistas liderados por Stálin na Ucrânia. Tenha em mente, ao tomar ciência dos horrores, que algumas pessoas comuns às vezes foram transformadas em “monstros” pela fome. Uma fome induzida pela cruel política dos comunistas soviéticos (e não necessariamente russos; Stálin, por exemplo, era de Gori, na Geórgia).

O capítulo mais duro de se ler do livro de Applebaum talvez seja “Fome: primavera e verão, 1933”.

A fome não começou em 1933, mas intensificou-se nesse ano. A sobrevivente Tetiana Pavlychka, da província de Kiev, disse sobre a irmã Tamara: “Tinha uma barriga grande e inchada, e seu pescoço era longo e fino como o de um pássaro. As pessoas não pareciam gente — assemelhavam se mais a fantasmas famintos”. 

Outro sobrevivente contou que sua mãe “parecia uma jarra cheia de água cristalina. Todas a partes de seu corpo à mostra (…) podiam ser perfuradas pelo olhar, como se fosse um saco plástico cheio de água”.

Um homem, igualmente sobrevivente, disse que seu irmão ficava deitado — “vivo, mas completamente inchado, com o corpo brilhante como se fosse de vidro”. As pessoas, de tanta fome, viviam zonzas.

Uma criança, balançando o corpo para a frente e para trás, entoava uma “canção”, à meia-voz: “Comer, comer, comer”. Um homem que a escutou nunca mais a esqueceu.

Convocado para colaborar no confisco de alimentos dos ucranianos, um comunista falou sobre as crianças que encontrou: “Todas iguais: cabeça como se fosse semente pesada, pescoço como o de cegonhas, cada movimento de osso era percebido através da pele de braços e pernas, a pele em si parecia gaze amarelada e enrolada em torno de seus esqueletos. O rosto delas era de gente idosa, exausta, como se já tivessem vivido na terra por uns setenta anos. E seus olhos, meu Deus!”.

Muitos dos famintos tinham escorbuto. “Os acúmulos patológicos de líquidos — edemas — inchavam as pernas das vítimas e sua pele se tornava muito fina, até mesmo transparente. Nadia Malyshko” disse “que sua mãe ‘ficou toda inchada, enfraquecida, e parecia idosa, embora só tivesse 37 anos. Suas pernas brilhavam e a pele rachava’”.

“Os indivíduos com pernas muito gordas, cobertas de feridas, não podiam sentar: ‘Quando um deles sentava, a pele rachava e o líquido começava a escorrer pernas abaixo, o fedor era horroroso e as pessoas sentiam dores insuportáveis’.”.

Applebaum anota que “a barriga das crianças inchava e a cabeça parecia pesada demais para ser sustentada pelo pescoço. Uma mulher recordou-se de ter visto uma menina tão emaciada que ‘era possível ver seu coração batendo por baixo da pele’”.

Trabalhando numa escola, a irmã de Volodymyr Slipchenko “testemunhou crianças morrendo durante as aulas — ‘a criança, sentada em sua carteira, de repente desmaiava e caía’ —, ou no recreio, enquanto brincava sobre a grama do pátio. Muitas morreram enquanto caminhavam, na tentativa de escapar”.

As margens das “estradas que levavam à Donbas ficaram repletas de cadáveres”. “Havia mais corpos que pessoas para recolhê-los”, rememora um sobrevivente.

Vários indivíduos morriam quando estavam comendo. Em 1933, segundo Hryhorii Simia, as pessoas iam para os campos para comer “espiguetas restantes da colheita” e, quando tentavam comê-las, morriam. “O mesmo aconteceu nas filas de pão das cidades: ‘Houve casos de pessoas que conseguiram um pedaço de pão, comeram-no e morreram no ato, exauridas demais pela fome’.”.

Um sobrevivente levou beterrabas para a avó, que comeu duas cruas e cozinhou as demais. “Poucas horas depois, estava morta, pois seu corpo não aguentou a digestão.”.

Havia a “psicose da fome”. “Em função da fome, as psiques dos indivíduos ficaram perturbadas”, disse Petro Boichuk. Pitirim Sorokin “recordou-se de que apenas com uma semana de privação de alimentos, ‘era muito difícil manter a concentração, nem sequer por um minuto, em qualquer coisa que não fosse a fome’”. As pessoas alucinavam.

A fome, que trazia a morte, superava até mesmo os sentimentos familiares. “Uma mulher, que sempre fora gentil e generosa, mudou quando os alimentos começaram a escassear. Ela expulsou a mãe de casa e mandou-a morar com outro parente. (…) ‘Deixe de ser um estorvo para meus filhos’.”.

“Uma mulher afirmou aos vizinhos que, embora fosse sempre possível ter mais filhos, ela só tinha um marido, e queria mantê-lo vivo. Ela então confiscou os alimentos que os filhos pequenos haviam recebido na escola, e as crianças morreram”, narra Applebaum. “Um casal colocou os filhos em um poço fundo e lá os deixou, para não presenciar seus falecimentos. Vizinhos escutaram os gritos de crianças, e elas foram resgatadas e sobreviveram.”.

A sobrevivente Uliana Lytvyn clamou: “Acredite em mim, a fome cria animais irracionais, a partir de seres humanos bons e honestos. O intelecto e a consideração desaparecem, assim como a piedade e a consciência também deixam de existir”. Ela contou que chorava até dormindo.

Miron Dolot declara que “o medo passou a ser nossa constante companhia: havia imenso terror de se ficar sozinho e desamparado diante do monstruoso poder do Estado. (…) Vizinhos foram obrigados a espionar vizinhos”. O Estado totalitário, com sua polícia secreta, a OGPU, estava em ação.

Por causa da fome, tudo mudou. “A sinceridade e a generosidade cultivadas por séculos não existiam mais; sumiram quando os estômagos ficaram vazios”, conta Iaryna Mytsyk. As pessoas, quando tinham alimentos — sempre poucos —, comiam escondidas. Temiam tanto o poder do Estado, que recolhia tudo e com violência, quanto roubos.

Como era preciso sobreviver, às vezes sacrificava-se valores. Em Mariupol, uma garota de 15 anos viu uma fila e pediu nacos de pão àqueles que estavam comprando. O dono da loja bateu na mão da jovem, chamando-a de preguiçosa. Ela caiu e foi chutada. “A menina gemeu, esticou-se toda e morreu. Alguns na fila começaram a chorar. O dono da loja, comunista, notou o choro e ameaçou: ‘Tem gente muito sentimental por aqui. É muito fácil identificar inimigos do povo’”, anotou um habitante do lugar.

Anastasiia Kh, uma criança, comprou “uma fatia de pão” e “correu para casa com o alimento”. No caminho, uma camponesa, com um bebê nos braços, pediu-lhe um pedaço do pão. A menina saiu correndo. “Tão logo virei as costas, a mulher se ajoelhou e faleceu. O medo tomou meu coração, porque parecia que os olhos abertos da mãe me acusavam de ter-lhe negado alimento. Chegaram pessoas e pegaram o bebê, que, mesmo morta, a mulher agarrava firmemente. A imagem daquela mulher estirada me aterrorizou por muito tempo”.

Ante a fome intensa e letal, postula Applebaum, “as regras comuns da moralidade não mais faziam sentido. Roubos de vizinhos, de primos, das fazendas coletivas, dos locais de trabalho tornaram-se corriqueiros”. Crucial era sobreviver.

 

A morte do multilateralismo sob Trump e Putin: Tempo de tormenta e vento esquivo - Celso Lafer O Estado de S. Paulo

Tempo de tormenta e vento esquivo

Celso Lafer

O Estado de S. Paulo, domingo, 16 de março de 2025

A erosão e a crise do multilateralismo comprometem o potencial de gestão cooperativa no âmbito da interdependência dos Estados

 

Pesa sobre a inserção internacional do Brasil a lógica das circunstâncias de relações cambiantes de um mundo de intensificados conflitos. São conflitos permeados pelas tensões de poder de alta voltagem que se dão no contexto do caleidoscópio da geopolítica.

Disso são exemplos o andamento da guerra na Ucrânia, guerra de conquista deliberada pela Rússia de Putin, e a intensidade bélica no Oriente Médio, cujo ponto de partida foi o ataque terrorista do Hamas a Israel. São conflitos que têm alcance geral. Apontam para uma renovada presença dos riscos da situação-limite paz/guerra na vida internacional, numa escala distinta dos chamados conflitos de baixa intensidade que emergiram no pós-Segunda Guerra, contidos na sua abrangência pelo precário equilíbrio da dissuasão nuclear da bipolaridade EUA/União Soviética.

A geopolítica, com sua ênfase no controle político dos espaços, insumos e matérias primas, é um componente das tensões internacionais, não apenas no campo estratégico-militar. Vem se desdobrando no campo econômico, na lógica de uma geoeconomia. Esta dá margem à ênfase no unilateralismo das preocupações dos Estados com sua segurança lato sensu. É o que coloca entre parênteses o multilateralismo das normas gerais orientadoras do comércio internacional. Daí, na vigência da geoeconomia, as tendências de renovados protecionismos de feitio autárquico, às quais Trump dá inequívoco ímpeto.

Trump, com o decisionismo desrespeitador de normas de seu modo inamistoso de atuar, vem traçando a vis directiva das guerras comerciais com sua elevação arbitrária de tarifas. Os demais atores econômicos vão e estão calibrando, na lógica da reciprocidade da equivalência, as contramedidas das suas respostas às iniciativas de Trump, com base nos recursos do poder de seus mercados e da interdependência do mundo. Assim, intensificam-se também no campo econômico os riscos da vida internacional, instigando a incerteza de difícil mensuração.

No campo dos valores, as tensões são multiplicadas pelo efeito da prevalência da geografia das paixões na Torre de Babel da agenda da opinião pública dos países. Para isso contribuem o advento e a consolidação dos fundamentalismos e de populismos nacionalistas e xenofóbicos e a sua rejeição ao “diferente” constitutivo da pluralidade do mundo.

É um dado instigador do aumento dos “deslocados do mundo” – imigrantes não documentados e refugiados – no espaço planetário e no seu âmbito as atitudes de lideranças políticas, voltadas para a corrosão dos valores da democracia e da vigência da tutela dos direitos humanos.

A máquina do mundo em que estamos inseridos – porque somos do mundo, e não estamos apenas nele –, como diz Hannah Arendt, movimenta-se num tempo de “tormenta e vento esquivo”, para recorrer às palavras de Camões, de múltiplas facetas e da escala planetária que alcança a todos na interdependente indivisibilidade atual dos campos estratégico-militar, econômico e dos valores.

O crescente desrespeito das normas do direito internacional é uma expressão da descontinuidade estrutural em relação ao que foi elaborado no pós-Segunda Guerra para operar a ordem mundial dentro de certa “normalidade” de previsibilidade.

A primeira regra de coexistência de uma ordem internacional interestatal é a da preservação estabilizadora da integridade territorial de Estados soberanos, consagrada na Carta da ONU. Tem como objetivo deslegitimar as iniciativas de valer-se de força militar para o que foi o unilateralismo da ampliação do “espaço vital” de um país – uma das grandes causas da Segunda Guerra.

A guerra na Ucrânia, conduzida por Putin e respaldado pela China, está voltada para ampliar o “espaço vital” da segurança geopolítica de uma grande potência nuclear. É um imenso precedente que coloca em questão a prévia ordem jurídica internacional. Abre espaço para o inaceitável da rediscussão da estabilidade das fronteiras. É no clima deste precedente que Trump se permite falar sobre o Canal do Panamá, o Canadá, a Groenlândia, a Faixa de Gaza e a cessão de território da Ucrânia para a Rússia.

As normas de mútua colaboração têm como fonte material a “ideia a realizar” proveniente da necessidade de lidar por meio do multilateralismo com a dinâmica das interações das sociedades num sistema internacional interdependente e interligado, não obstante sua heterogeneidade e suas assimetrias. É uma necessidade óbvia da indivisibilidade do mundo quando se pensa, por exemplo, em clima e meio ambiente.

A erosão e a crise do multilateralismo comprometem o potencial de gestão cooperativa no âmbito da interdependência dos Estados. Abrem espaço para o unilateralismo decisionista de soberanias que rejeitam se ver circunscritas por normas em função de um autocentrado solipsismo de curto prazo de seus interesses nacionais. Desconsideram o comitas gentium da diplomacia. Projetam também uma visão hobbesiana de polarização generalizada de uma guerra de todos contra todos.


Marcelo Guterman revisita o calote de Collor

 

35 anos do confisco

16 de março de 1990. Há exatos 35 anos, após a posse festiva do primeiro presidente eleito por voto popular desde a eleição de Jânio Quadros, em 1960, todos aguardavam a “bala de prata” que Collor tinha na agulha para matar o “tigre da inflação”.

Escaldados por nada menos do que 4 planos de estabilização de preços nos 4 anos anteriores (Cruzado, Cruzado 2, Bresser e Verão), os brasileiros sabiam que viria algum tipo de congelamento de preços. Por isso, os empresários correram para se proteger, remarcando os preços preventivamente. A inflação, que já vinha alta durante o melancólico fim do governo Sarney, explodiu no início de 1990 (vide gráfico). Atenção crianças, os números se referem à inflação MENSAL, não anual.

No final, o congelamento de preços veio, mas foi o de menos: durou apenas 45 dias, só para dar tempo de organizar a bagunça. Ao contrário do Cruzado, o Plano Collor tinha outra coluna vertebral: o confisco do dinheiro.

A ideia é um entendimento literal do monetarismo: a inflação é causada pelo excesso de dinheiro perseguindo poucos bens e serviços disponíveis. Assim, se não houver meio circulante suficiente, a inflação morre por asfixia. É mais ou menos como acreditar que Deus literalmente fez o mundo em 6 dias, e descansou no sétimo: entende-se a alegoria como uma descrição literal da realidade.

No caso do monetarismo tupiniquim, os idealizadores do Plano Collor viam o meio circulante como uma realidade em si, e não como a tradução de fenômenos micro e macroeconômicos. Acabar com a disponibilidade de moeda sem acabar com o fenômeno que, no final, exige a criação de mais moeda, é o equivalente a esvaziar a bacia e colocá-la de volta debaixo da torneira: será uma questão de tempo para que encha e transborde novamente. No Plano Collor, a alegoria trocou de lugar com a realidade.

O principal problema do Plano Collor, no entanto, não foi o diagnóstico incorreto do fenômeno inflacionário. Os sucessivos congelamentos anteriores também erraram no diagnóstico, mas seus efeitos no tempo desapareceram, restando apenas o folclore de um tempo ingênuo em que acreditávamos que as maquininhas de etiqueta de preços eram as grandes responsáveis pela carestia. Na verdade, se algum efeito de longo prazo houve, foi benéfico: depois dessas experiências, poucos brasileiros ainda acreditam que congelamento de preços resolve alguma coisa. Este foi, sem dúvida, um avanço civilizatório.

O grande problema do Plano Collor foi demonstrar que o governo pode fazer qualquer coisa impensável, inclusive confiscar a sua poupança. Fernando Collor, ao aprovar o plano, certamente não pensou no tipo de mensagem que estaria deixando para as gerações seguintes. Uma parte do prêmio que o governo é obrigado a pagar para emitir a sua dívida é justamente o receio de que, no futuro, alguém poderá fazer o mesmo. Afinal, por que não?

O Plano Collor tinha como objetivo “enxugar a liquidez” da economia. No entanto, indiretamente, significou um calote da dívida pública. 80% de todo o dinheiro aplicado no overnight e fundos de investimentos (que financiava o déficit público) ficou retido, e seria devolvido 18 meses depois, em 12 suaves prestações, corrigidas pela inflação mais 6% ao ano de juros. Tratava-se de um alongamento do prazo da dívida e mudança na remuneração, uma forma clássica de dar um calote.

Os que defendem a tese de que a dívida pública doméstica não pode ser objeto de calote, esquecem-se do Plano Collor, que fez exatamente isso. Collor decidiu trocar uma hiperinflação (que é o resultado de finanças públicas completamente fora de controle) por um calote. Ambos têm o mesmo efeito, reduzir a dívida pública impagável.

O Plano Collor foi acompanhado de medidas louváveis, eclipsadas que foram pelo confisco: extinção de 24 estatais, redução ou eliminação de impostos de importação, liberalização do câmbio, medidas gerais de redução do Estado. Collor foi um Milei on stereoids: além de adotar a mesma agenda liberalizante do argentino, fez o confisco. Talvez se tivesse começado somente pelo lado liberalizante, seu governo tivesse alguma chance de ter dado certo. Seu voluntarismo além de todas as medidas o derrotou.

É simbólico que o primeiro dia do primeiro presidente democraticamente eleito no Brasil em 30 anos tenha sido marcado por um calote. Nada representa mais a nossa atávica dificuldade em respeitar instituições.

Blog do Marcelo Guterman é uma publicação apoiada pelos leitores. 



A intencionalidade do mal: uma digressão sobre Trump - Paulo Roberto de Almeida

A intencionalidade do mal: uma digressão sobre Trump

Paulo Roberto de Almeida

A famosa reportagem de Hannah Arendt na New Yorker sobre o julgamento de Eichmann em Israel, a propósito do qual ela foi muito criticada por inventar o duvidoso conceito de “banalidadade do mal” para o reles funcionário da máquina de matar nazista, responsável pelo Holocausto, decididamente não se aplica a Donald Trump, seja como pessoa, seja como magnata venal, seja como presidente acidental.

Em Trump nada é banal, nada é corriqueiro ou ocasional, tudo é intencional e todos os seus gestos foram devidamente (mal) calculados.

Ele não cumpre ordens, como o vulgar burocrata nazista o fazia. Eichmann era certamente um dedicado servo da máquina nazista de matar e a ela se aplicou com zelo, talvez até por gosto, pois fazia parte de um grande e racional empreendimento, concebido exatamente para aquela finalidade.

Trump faz o mal com gosto, apuro e intencionalidade. Ele tem uma forte necessidade, íntima, deliberada, irresistível, de chocar, de provocar, de provar que pode fazer, ordenar e executar tudo o que está fora dos padrões habituais da sociedade americana. Ele precisa mostrar que é poderoso e provar, de uma vez por todas, mais do que da primeira vez (inconformado com a rejeição de 2020), que é capaz de chocar e de confrontar as elites habituais, políticas, empresariais, intelectuais, que ele é quem manda, e para isso tem de desmantelar o que existe e de oferecer seus mais loucos desejos.

Nada foi mais revelador de sua personalidade doentia do que o vídeo feito por IA sobre a Riviera trumpista que seria construída na Faixa de Gaza, enfim limpa e liberta dos “resíduos” palestinos: dinheiro jorrando do céu, garotas de programa, luxúria, prazer e esbórnia de mau gosto, tudo o que parece conforme à personalidade vulgar do mentecapto que chegou aonde queria. (A ajuda de Putin foi preciosa e providencial.)

Não, Trump ainda não terminou sua obra, e nada nela será banal, como não pode ser banal a construção do mal. Trump é um personagem de romance distópico, mas nem Orwell poderia ter imaginado o enredo.

Será único na história dos Estados Unidos e de grande parte da comunidade internacional. 

O mundo não será como antes, em face da não-banalidade do mal que Trump está e continuará causando, antes de tudo e de todos para a pobre Ucrânia e para os ucranianos. 

Paulo Roberto Almeida

Brasília, 16/03/2025


O Furacão Trump na escala 5 - Fernando Dourado Filho e Paulo Roberto de Almeida

Family business e outras

Fernando Dourado Filho

“1 - Não sou expert nas relações sinistras de Trump com Moscou, e jamais imaginei que elas pudessem incluir uma espécie de perdão por uma brutal investida russa no território ucraniano.

2 - Conheço bem a Rússia que Trump descobriu quando lá esteve, no período da Glasnost e da Perestroika de Gorbachev. O que viria pela frente seria apetitoso para sua lendária voracidade. 

3 - Apetitoso porque para um empreendedor de perfil predatório como ele, os desmandos da era Yeltsin ofereciam um momento propício para seus devaneios. Sob o czar bêbado, tudo era possível. 

4 - Ora, de par com um falcão local certo, ele poderia erguer a sonhada torre com seu nome na capital do velho império. Daí as viagens sucessivas que fez à Rússia com Ivanka, a tcheca primeira mulher.

5 - A criação desses laços legítimos num homem de negócios, cujo lado hedonista está fartamente documentado e, evidentemente, de posse de Putin, fizeram de Trump um joguete nas mãos do Kremlin. 

6 - Como sabido, a Torre Trump ainda não saiu. Mas a idéia não o abandonou. Sem medo de fazer da presidência um family business, Trump se obstina febrilmente em ir atrás do sonho. 

7 - Socorrido por Investidores russos para se livrar de uma quebra iminente,  para Donald tudo é simples: catapultar negócios às expensas do cargo é natural, ele releva quaisquer conflitos de interesse. 

8.- Agora o jogo está escancarado. Para ele, Putin significa centenas de bilhões em oportunidades para os americanos - incluindo seu grupo. Por que se importar com a Ucrânia e o Donbass? 

9 - Putin não poderia ter recebido presente maior do que a investidura de um rematado pateta em Washington. Jogando a OTAN às calendas e rearmando a Europa, Trump quer ser o pacificador.

10 - Casado agora com uma eslovena, tudo o que lhe interessa é ressuscitar a velha agenda e retomar negócios com o gigante que virou pária por uns tempos. Business First, reza a etiqueta dele. 

11 - Dizer que o jovem Trump foi recrutado para Moscou nos idos dos anos 80, seria puxar demais o elástico. O KGB não admitiria narcisistas patológicos, por preciosos que fossem um dia.

12 - Mas algo de nostálgico calou fundo na alma rasa de Trump naquela visita, que foi além das orgias filmadas no hotel Ukraina. O perdão americano à Rússia é indecente. Putin só sorri.” (FDF)

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Nota PRA:


Trump não é um agente russo, ou melhor, do KGB de Putin, no sentido convencional do termo, como argumenta Fernando Dourado Filho. O KGB-FSB nunca confiaria num idiota ignorante e trapalhão como Trump, pois precisa de agentes “confiáveis”, resolutos e decididos, o que Trump notoriamente não é. Agentes de um serviço de inteligência podem ser ideologicamente motivados, o que não é o caso dele, ou fazer o serviço por dinheiro (o que poderia ser o seu caso), pessoas psicologicamente desequilibradas, frustradas com seu país ou sociedade, chantageadas por diversos motivos.

Não, Trump não é um simples agente; ele é algo muito pior: um grande idiota útil a serviço dos interesses russos e especificamente putinescos, por confusas motivações pessoais, devido a seu narcisismo exacerbado, sua ambição desmedida de provar à nata da elite política e empresarial americana, que no fundo sempre o desprezou, que ele poderia ser alguém que conseguiria deixar um profundo impacto na vida, nos negócios, no papel internacional do seu país, para assim passar à História como um grande homem (machista, obviamente), e parece estar conseguindo: está destruindo os EUA e o Ocidente como entidades dotadas de valores e princípios, para não colocar nada em seus lugares e papeis histórico-institucionais. Putin percebeu isso e o selecionou para ser uma joguete em suas mãos. Mas nem mesmo Putin poderia imaginar que o idiota dos anos 90 e início dos 2000 pudesse ir tão longe no trabalho de sapa e de desmantelamento de tudo o que havia de relevante nos EUA, na OTAN, no Ocidente. Trump é um bulldozer com comando parcial de Putin, mas este não precisa guiá-lo metodicamente como se faz com os agentes profissionais. Ele consegue fazer sozinho o trabalhos de vários bulldozers erráticos. Certamente vai entrar para a história universal da infâmia.


O impasse - Paulo Roberto de Almeida

 Os Democratas têm vergonha e não querem proclamar ao mundo que sua grande nação está sendo “dirigida” por um completo imbecil. 

Os Republicanos, que foram seduzidos e submetidos, tampouco querem admitir que deu tudo errado e que agora são caudatários de um idiota total.

Poucas vezes na história um país inteiro hesita em reconhecer que todos, absolutamente todos estão entregues a um cretino fundamental, o Grande Mentecapto.

Existe algum projeto, alguma ideia, behind the chaos? - Paulo Roberto de Almeida

Existe algum projeto, alguma ideia, behind the chaos?

Paulo Roberto de Almeida

Uma pergunta simples: qual mundo, exatamente, Trump pretende criar?

Os grandes vilões da História, os autocratas que provocaram grandes rupturas na ordem internacional, ou em seus próprios países, aqueles mataram milhões, em grandes guerras, guerras civis, massacres e repressões internas, possuíam projetos para as sociedades e os impérios que pretendiam criar, manter ou ampliar. 

Napoleão, Bismarck, os Habsburgos, os Hohenzollerns, Romanovs, Lenin, Stalin, Mussolini, Hitler, Mao, Putin, todos tinham grandes projetos, alguns escreveram copiosamente a respeito, até citando algum filósofo ou historiador de referência, ou seja, não eram apenas homens de guerra ou autocratas ignorantes, tinham lido, tinham livros.

Alguém sabe exatamente o que move Trump, alguma grande ou objetiva ideia atrás do MAGA, ele leu livros sobre a história americana, sobre a Europa, Rússia, China?

Alguém já ouviu pelo menos três frases, minimamente racionais, coerentes, com começo, meio e fim, sobre como e por que ele pretende implodir o mundo atual e criar um outro? Qual exatamente?

Não é nem a “destruição criadora” de Schumpeter, sobre quem ele nunca deve ter ouvido falar.

Anomia, entropia, buraco negro, ele também não tem a mínima ideia do que sejam. “Eu vim para destruir”, deve ser o slogan de sua bandeira!

Paulo Roberto Almeida

Brasília, 16/03/2025


Postagem em destaque

Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...