O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O poder do Itamaraty: o conhecimento como base


O trabalho abaixo, feito de forma circunstancial num voo de três horas entre João Pessoa e Brasília, seis meses atrás, voltando de um curso que dei na UFPB, tinha ficado pouco ou quase nada conhecido, tanto em função do imediato engajamento em novas atividades, de volta ao meu trabalho habitual na capital federal, quanto pelo fato de que eu o enviei a poucos interlocutores mais conhecidos, dentro (creio que nenhum) ou fora do Itamaraty. Ele permaneceu, assim, praticamente desconhecido. O fato de divulgá-lo agora, se prende não a um momento preciso de nosso itinerário político – já que estamos às vésperas da inauguração de um novo governo (talvez de um novo regime), mas porque reparei que, na lista de trabalhos recentemente divulgada na plataforma que normalmente utilizo com essa finalidade, Academia.edu (link: https://www.academia.edu/38041795/Trabalhos_Originais_do_ano_de_2018), não aparece um registro de divulgação.
Eu estava refletindo sobre uma frase do embaixador Rubens Ricupero, numa palestra que ele fez aos diplomatas do Instituto Rio Branco (encontra-se sob a rubrica "Percursos Diplomáticos", no site do IPRI, a primeira delas), sobre o papel da academia diplomática e do IPRI que eu dirijo atualmente, o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, um dos dois órgãos – junto com o CHDD, o Centro de História e Documentação Diplomática, com sede no Rio de Janeiro, atualmente dirigido pelo embaixador Gelson Fonseca – como centros produtores de conhecimento.
Não sei se chegamos a tanto, mas algo produzimos, os diplomatas em seu conjunto, isoladamente ou em nossa interação com acadêmicos e outros pesquisadores "civis", sob a forma de trabalhos de pesquisa no próprio IRBr e no IPRI, na "arqueologia" do que diplomatas do passado produziram, a cargo do CHDD, e com base nos diversos veículos feitos para tal efeito: os cursos de Aperfeiçoamento e de Altos Estudos (mas praticamente sem orientação específica, a não ser pareceres ocasionais de diplomatas e depois bancas de julgamento das teses de CAE) e outros trabalhos elaborados em caráter voluntários, e publicados sob a forma de livros editados pela Funag, ou artigos que são divulgados nos Cadernos de Política Exterior, a cargo do IPRI, justamente.
Em todo caso, aceito essa designação dada pelo embaixador Ricupero, e me permito divulgar esta reflexão sobre o que pode fazer o Itamaraty, numa fase que eu entendo deva ser dedicado primordialmente às reformas econômicas já em curso.
Paulo Roberto de Almeida
São Paulo, 28 de dezembro de 2018

O poder do Itamaraty: o conhecimento como base

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: comentários sobre as reformas no Brasil; finalidade: papel do Itamaraty] 

Introdução
O Itamaraty não tem muito poder, ou quase nenhum. Poucos políticos miram o seu comando, uma vez que ele não dá votos, talvez apenas um pouco de prestígio para quem não deseja maiores cargos na trajetória política. Ele tampouco possui, longe disso, alguma força própria no sentido estrito, poder de polícia, de defesa ou de ataque, nada. Ele não tem, obviamente, nenhum poder econômico ou financeiro: dispondo de menos de 0,5% do orçamento geral do executivo, ele não pode sequer pensar em lançar grandes projetos por sua própria iniciativa, pois sem prévia aprovação das autoridades econômicas, necessitando ainda do empenho pessoal do presidente, nada pode fazer, uma vez que a burocracia do setor podaria qualquer aumento de despesa. Em outros termos, trata-se de um ministério fraco, desprovido de meios, de recursos, dispondo, apenas e tão somente, de algum controle sobre as informações que processa, a partir de suas antenas, que são os postos no exterior, aliás, considerados em número excessivo por essas mesmas autoridades.
O único poder de que dispõe o Itamaraty, mas que pode ser a sua força moral, é a arma do conhecimento, ainda que não se tenha certeza de que ele faça bom uso desse recurso valiosíssimo. A presente nota, de caráter subjetivo, pretende discutir o poder do conhecimento no plano mais amplo das políticas públicas em geral, com referência ao papel subsidiário do Itamaraty no processo de reformas de que carece o Brasil.

O que faz o Itamaraty?
A linguagem, o discurso, as negociações em torno de acordos, o entendimento recíproco no plano bilateral, a participação plena no contexto multilateral, constituem as principais ferramentas de trabalho do Itamaraty, ao longo de toda a sua história e no futuro previsível. Mas todos esses instrumentos representam apenas meios, e não seriam de grande ajuda no plano substantivo, se eles não estivessem apoiados, se não fossem embasados num conhecimento profundo do que é o Brasil e do que é o mundo, e de como evoluem e se relacionam essas duas entidades políticas desiguais, sobre como fazê-las interagir ao melhor dos modos possíveis, de maneira a lograr com que o Itamaraty possa contribuir de modo decisivo para que se alcance a grande obsessão nacional desde largo tempo: o desenvolvimento. Este representa bem mais do que o simples crescimento econômico: sociedade próspera, democracia estável e inclusiva, economia dinâmica, tecnologia avançada, sociedade relativamente igualitária, ou pouco desigual, respeitadora dos direitos humanos, uma nação integrada nos seus vários componentes étnicos, culturais, religiosos, respeitadora das diferenças e dos direitos das minorias e, sobretudo e principalmente, um Estado de Direito.
Alcançar o status de país desenvolvido tem sido o objetivo maior da sociedade brasileira desde sempre, como parece natural. Mas é forçoso reconhecer que nossas elites – todas elas, inclusive a corporação dos diplomatas – têm fracassado nessa meta nacional. Digo isto com certo constrangimento, pois parece que também pertenço a essas elites que fracassaram no atingimento do grande objetivo nacional, embora eu talvez possa me atribuir certa isenção de culpa. Nunca me julguei pertencer a qualquer tipo de elite, exceto, talvez, à elite do conhecimento, justamente. Sendo originário de uma família extremamente modesta, eu ascendi a essa elite social de renda e prestígio exclusivamente pela via do trabalho e da educação, isto é, por meio do conhecimento.
Se existe algum sentido mais elevado no trabalho amplamente burocrático de que nos ocupamos na maior parte do tempo ele deveria estar, precisamente, na produção de conhecimento especializado e instrumental, não apenas na busca, processamento e organização de conhecimento produzido não por diplomatas, mas por outras categorias de trabalhadores não manuais, os “trabalhadores intelectuais”. Pois bem, como se produz conhecimento original? Como fazer aportes inéditos, novos insumos ao trabalho diplomático, trazidos afanosamente para processamento na Secretaria de Estado ou comunicado a postos no exterior, que não seja a mera transmissão de conhecimento produzido alhures, nos meios de comunicação, nos informes e relatórios de organismos internacionais, nas consultas e expedientes de outros governos, nas comunicações de interlocutores, do país e do exterior?

AC e DC na diplomacia
A produção de conhecimento, da mesma forma como a de qualquer outro insumo ou mercadoria, requer agregação de valor pela via da mobilização de fatores produtivos. No caso dos diplomatas, trata-se de produzir conhecimento especializado e adaptado aos requerimentos do serviço exterior da nação. A finalidade última é, obviamente, a de subsidiar a política externa definida pelo governo: no caso dos regimes presidencialistas, aquela definida pelo presidente, auxiliado por seu ministro das relações exteriores; no caso dos regimes parlamentaristas, o presidente do Conselho, ou o primeiro ministro, e o seu auxiliar setorial.
A diplomacia profissional, ao subsidiar esses executivos na política externa, não só deve trazer-lhes as informações mais acuradas sobre as relações exteriores do país, sobre a política internacional e a economia mundial, como também produzir guias de ação para os itens mais relevantes da agenda de política externa desse país. Isso significa, muitas vezes, libertar-se das amarras do passado e inovar, num sentido que por vezes não é bem percebido pelos próprios diplomatas, acostumados que eles estão, como sempre foram, a seguir as ordens vinda de cima, que cumprem disciplinadamente, mesmo quando o senso comum pode revelar o contrário do que lhes é ordenado.
Tomemos, por exemplo, o caso da política externa brasileira que nos foi servida diligentemente nos últimos quinze anos, e talvez até um pouco mais, essa diplomacia que já foi classificada de “ativa e altiva”, mas que, salvo na superfície – como o término do apoio a ditaduras execráveis, na região e fora dela –, não mudou significativamente, talvez alguma coisa na forma e quase nada no conteúdo. Ora, o que faz o Itamaraty, o que faz a diplomacia brasileira, que não produz conhecimento novo sobre a política externa, para servir a um novo governo, animado por outros princípios? O que fazem todos os diplomatas profissionais que continuam disciplinadamente obedecendo aos mesmos padrões de política externa, sem questionar nada do que aconteceu na cronologia política desse período? Eu o divido, como na historiografia cristã, em duas eras bem definidas, uma AC e outra DC: Antes dos Companheiros e Depois dos Companheiros. O que fazem os diplomatas que não elaboram novos conceitos para a política externa brasileira, para subsidiar o presidente e o seu ministro da área?

Os novos conceitos da diplomacia: seria ela meramente acessória?
Por novos conceitos eu quero me referir, não a uma versão diferente da diplomacia “ativa e altiva”, de tão triste memória (em minha opinião), mas a uma diplomacia da inserção global do Brasil, como aparentemente estamos tentando fazer, com o ingresso pleno no Clube de Paris e a demanda de adesão à OCDE. Considero essas duas iniciativas não como um fim em si mesmo, mas como mero meio para implementar uma política externa de abertura realista, um regionalismo sensato – não aqueles arreganhos de liderança regional de que se jactava o Guia Genial dos Povos –, a continuidade da prática de um multilateralismo ponderado, focado em objetivos pragmáticos, não estrepitoso ou voluntarista, visando definir e estabelecer parcerias estratégicas no estrito limite dos interesses nacionais, não determinadas a priori por uma postura ideológica canhestra e anacrônica, caracterizada por um anti-imperialismo infantil e um anti-hegemonismo de fancaria. O que se visa é uma política externa podendo servir ao Brasil numa fase de transição para um outro tipo de política geral de governo, que será a do país nos próximos anos.
Por que digo isto? Porque vejo o Brasil como um país notoriamente fracassado em atingir o seu objetivo básico de desenvolvimento integrado, ou seja, com igualdade social. Vejo um país frustrado com os retrocessos que lhe foram impostos por uma política econômica esquizofrênica, não apenas inepta, no sentido operacional do termo, mas especialmente corrupta até a raiz dos cabelos, se é possível dizer. Tratou-se de uma administração econômica que nos levou à Grande Destruição a que eu já me referi em outros trabalhos. Não tenho nenhuma dúvida de que o Brasil é um país derrotado por suas próprias elites, irresponsáveis, patrimonialistas, prebendalistas, incompetentes e singularmente corruptas, fenômenos tradicionais desde sempre, mas que se agravaram a partir do momento em que uma organização criminosa tomou de assalto o Brasil.
Estabelecer novos conceitos para uma nova política externa significa, antes de mais nada, reconhecer essa realidade, a de um país fracassado, deteriorado em suas instituições, fragmentado e dividido pela ação criminosa e irresponsável daqueles que insistem em dividi-lo ainda mais, com suas propostas deletérias, equivocadas, enfim, anacrônicas do ponto de vista de um país que pretende se inserir na moderna economia global. Significa também reconhecer que a política externa é meramente acessória, secundária, não determinante na solução dos principais problemas que afligem o Brasil atualmente. Mas, o que é determinante no Brasil atual?
Para mim, trata-se de considerar a questão social como uma questão nacional, a prioridade das prioridades, a única que deveria mobilizar nossas energias de mandarins da República, de altos burocratas, de membros de uma elite privilegiada, que não quer ver-se dessa maneira. E qual é a tarefa básica nessa missão de fazer da questão social a mais alta prioridade da nação?
Parece-me, sem sombra de dúvida, que é o ajuste fiscal. Sem tergiversações, eu diria que esse ajuste deve sim ser feito com austeridade, a mais completa e corajosa austeridade. Não aquela que atingiria os mais pobres, mas a que precisa, desta vez, atingir os mais ricos. Os mais ricos somos nós, não necessariamente os diplomatas, mas os membros da magistratura, os da mais alta cúpula do Estado, os políticos em geral, os mandarins dos três poderes, nos três níveis da federação e os seus associados de carreira ou de circunstância. O ajuste fiscal deve figurar como tarefa básica no contexto da austeridade geral, e esta atingir primeiro o Estado, antes que a sociedade produtiva, os empresários e os trabalhadores, que são os que criam riqueza, renda, empregos. O Brasil precisa empreender um processo vigoroso, continuado, persistente, de reformas estruturais profundas, em todos os setores de sua vida pública, a começar pela Constituição, esse monstro metafísico notoriamente esquizofrênico em seus capítulos econômicos e sociais.
Essas reformas não devem incidir apenas e tão somente sobre aspectos deletérios, iníquos e irracionais de nossa presente organização institucional, como o sistema previdenciário e o assistencialista, a legislação laboral, as políticas setoriais protecionistas e subvencionistas (como na indústria e na agricultura). Elas devem se concentrar, sobretudo e principalmente, no peso do Estado na vida pública, na enorme e opressora carga fiscal, que atinge todos os brasileiros, especialmente os do setor produtivo, e inclusive os mandarins do Estado, que vivem dos recursos extraídos dos verdadeiros criadores de riqueza. Deve-se desde já revisar e eliminar do jargão corrente um conceito totalmente errado, o tal de “custo Brasil”, que só redunda em atribuir genericamente a culpa de nossas mazelas a todo o país, de maneira vaga. Não existe “custo Brasil”. O que existe é o custo do Estado brasileiro, que pesa como uma canga sobre os ombros dos brasileiros produtivos.
Caberia também empreender uma revolução educacional, que não é apenas uma reforma dos sistemas educativos, nos seus vários níveis, do pré-primário ao pós-doc, esse turismo de luxo para os detentores de sinecuras acadêmicas. A reforma da educação, na verdade, exigiria uma verdadeira revolução mental, mudança para a qual a maioria dos brasileiros não está provavelmente preparada para aceitar e empreender. O analfabetismo funcional atinge, ao que parece, os mais altos níveis da educação formal: os brasileiros, já se constatou, exibem uma enorme dificuldade para aceitar a simples lei da oferta e da procura, a coisa mais elementar que existe em economia, equivalente à lei da gravidade para a física.

A produção de conhecimento para uma nova política externa
A reforma da política externa não estaria imune a esse processo de revisão geral das políticas públicas, a começar pela revisão dos conceitos nos quais ela se tem apoiado nas últimas décadas. Isso passa, obviamente, por uma reforma dos métodos de trabalho do Itamaraty, mas não se resume a esse aspecto operacional. Essa reforma da política externa passa também por uma revolução mental, que nos liberte de certas suposições do passado recente e nos coloque num outro patamar de formulação e de execução da diplomacia profissional. Se as palavras máximas da nova política externa de inserção plena do Brasil na economia global são abertura econômica e liberalização comercial, então a diplomacia profissional precisa se preparar para suas novas tarefas.
Já indiquei, em trabalho recente sobre as relações econômicas internacionais do Brasil (em capítulo no livro de Jaime Pinsky, Brasil: o futuro que queremos, São Paulo: Contexto, 2018), os principais elementos que me parecem dignos de integrar uma nova agenda para as relações exteriores do país. Uma formulação paralela dos objetivos estratégicos do Brasil, em linha com esses objetivos e os princípios aqui traçados, encontra-se em curso de elaboração, em texto independente.
Se existe algum poder no, ou do, Itamaraty, esse poder está em sua capacidade, em nossa capacidade, de adaptar a política externa às necessidades mais prementes do país. Os diplomatas profissionais não devem ser mandarins desligados das carências mais sentidas pelos concidadãos mais humildes. Ou melhor: eles são mandarins, mas nem por isso devem se sentir, ou se julgar alheios aos problemas internos do país. A força moral do Itamaraty consiste em usar todo o poder derivado do seu conhecimento especializado para, como já disse alguém, transpor possibilidades externas ao terreno das capacidades internas. Para isso, o mero conhecimento das realidades externas talvez não seja suficiente; um profundo conhecimento do que é o Brasil, de sua história e de sua presente fase de transição, de seus problemas cruciais e dos remédios a eles associados, representa não apenas uma agregação de valor à diplomacia profissional, mas a condição necessária para a expressão de um poder próprio.

Paulo Roberto de Almeida
Em voo: Brasília, João Pessoa, Brasília, 28-29 de maio de 2018

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Jornalismo: carecendo de bons veificadores - Leonardo Coutinho

O jornalismo contra o jornalismo: quem checa os checadores?
"O fenômeno das fake news deu aos checadores um reconhecimento justo e tardio. Mas ao reivindicar a palavra final sobre o que é fato ou não, eles avançam sobre a coluna mestra da profissão: a reportagem". Texto de Leonardo Coutinho, publicado em Estado da Arte:


As agências de checagem despontaram como uma ferramenta poderosa na eleição de 2018. Elas floresceram no caos das redes sociais e aplicativos de mensagens onde vicejaram a má-fé de alguns e a boa-fé de muitos, com apenas alguns toques sob a tela do telefone celular, ajudaram a espalhar notícias falsas para todo o seu círculo de amigos e familiares. Submersos no lodaçal da fake news, o leitor brasileiro foi apresentado a essa utilíssima ferramenta de verificação de fatos. O modelo se tornou tão bem-sucedido que muitos sites hospedados nos principais portais do país e até mesmo publicações físicas passaram a citar as agências como fonte verificadora. Quase um atestado de autenticidade para notícia. Ganham os leitores e, consequentemente, a democracia com uma camada adicional de blindagem contra as notícias falsas: o mais antigo novo vilão das eleições recentes no Brasil e em todo mundo.

Na segunda metade de 2000, um executivo da revista VEJA demitiu em público um de seus repórteres por ele ter publicado um erro em uma nota de poucas linhas. Diante do subordinado desconcertado, o chefe disse: “Você é pago para fazer três coisas. 1º apurar, 2º escrever e 3º checar. Uma delas você não fez direito”. Depois disso, vieram várias outras grosserias que hoje claramente se configuraria como assédio moral. Apesar de inadequado, o comportamento do chefe trazia uma lição. “Apurar” e “checar” não são a mesma coisa. São parte de um processo de produção bastante disseminado nas principais publicações dos Estados Unidos e que no Brasil fora introduzido no início dos anos de 1980, pelo então diretor-adjunto de Veja, Elio Gaspari. Conforme o modelo vigente há mais de trinta anos, a apuração é de exclusiva responsabilidade do repórter. É um mandato intrasferível por meio do qual ele coleta o máximo de informações junto às suas fontes. Depois de escrita, editada e já montada na página, a mesma reportagem vai para as mãos de um outro jornalista que tem por missão verificar. Verificar e verificar. A checagem tenta refazer o caminho da apuração ou investigação, como alguns preferem chamar. 

Os checadores comparam com fontes oficiais grafias de nomes, refazem contas, unidades de medidas, datas. Apenas para ficar nos elementos mais básicos de qualquer reportagem. Depois de esquadrinhar o texto, esse profissional senta com o repórter e repassa dúvida por dúvida. Mostra os erros encontrados, refaz as contas juntos e sempre duvida quando o resultado é tão harmônico. Quando os resultados são conflitantes entre o que está no texto e o que encontra em materiais de apoio ou em fontes abertas. Não há um dono da verdade ou palavra final. Em muitos casos, repórter e checador chegam a um terceiro resultado em favor da informação mais precisa. Quem já teve a sorte de trabalhar ao lado de um checador sabe a maravilha que é. Veja trouxe a checagem para o Brasil e a mantém ativa até hoje. A revista Época manteve uma equipe ativa em seus quatro primeiros anos de vida, entre 1998 e 2002. Atualmente, sob o risco de errar (olha a falta que faz a checagem), além de Veja, somente a revista piauí conta com checadores na Redação. E como reflexo do fenômeno, alguns jornais começaram a designar profissionais para essa atividade específica.

A checagem tem um limite natural. Uma pergunta clássica dos checadores resume isso: “Não acho em lugar nenhum. É apuração sua?”. Este é o momento crucial no qual os três pilares (lembre-se apuração, redação e checagem) precisam estar bem alinhados. É quando o repórter diz, sim, isso é trabalho meu. Por meio de um documento, uma entrevista ou uma observação de quem voltou da rua ou de uma viagem. É o momento chave do qual o repórter não é excluído. Pelo contrário, cabe a ele reafirmar, ajustar ou suprimir o que escreveu e que já passou pelas mãos de seu editor, redator-chefe e até mesmo o diretor de redação. Uma cadeia de responsabilidades que não está imune aos erros, mas é que é de longe um dos melhores recursos da profissão.

Esse limite natural dos checadores pode ser exemplificado com casos de nossa história recente. As informações apresentadas pelo então presidente do PTB Roberto Jefferson em uma entrevista que revelou a existência do Mensalão, em 2005, era algo impossível de ser verificado. Mas o caso ganhou corpo. Virou o tema principal de uma CPI e levou à condenação de 40 envolvidos naquele chegou a ser o maior escândalo de corrupção do país. O mesmo critério se aplica à reportagem que apresentou aos brasileiros o sítio do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Atibaia. O excelente trabalho dos repórteres “colocou de pé” uma história a partir do zero. Algo que ninguém sem ter tido o acesso as informações que eles tiveram, poderia dizer se tratar de mentira ou verdade. A Polícia Federal e o Ministério Público entraram no caso e o ex-presidente se transformou em réu. Quase quatro anos depois da publicação da história, Lula aguarda a sentença do julgamento pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Os limites da checagem podem ser ainda mais extremos. Os dois exemplos anteriores tratam de furos embasados sob elementos reais. Roberto Jefferson deu uma entrevista em on the record e o Sítio de Atibaia é uma obra física. Está fincado em meio a paisagem local e o seu registro no cartório de imóveis já indicava a proximidade com o presidente: o registro em nome dos sócios de um de seus filhos.

Há, ainda, casos nos quais reportagens são desprovidas de qualquer fonte verificável ou documentação. Uma delas, sem dúvida, se tornou a mais importante do segundo turno da eleição presidencial de 2018: a denúncia de que o então candidato Jair Bolsonaro teria se beneficiado de financiamento irregular de campanha para a distribuição em massa de mensagens de WhatsApp, em matéria de Patrícia Campos Mello para a Folha de S.Paulo. Não há documentos. Não há provas que sustentem a narrativa. Não há fontes identificadas que possam ser inqueridas de forma independente. A sua repercussão se deu no calor da campanha pelo potencial de dano que tinha em relação ao candidato líder nas pesquisas. Nenhum jornalista foi capaz de comprovar, ou, pelo menos, verificar o que foi dito. Tudo se limitou à convicção. De um lado ficaram aqueles que acreditaram na reportagem. De outros os incrédulos que se dividiram entre aqueles que ficaram em silêncio e aqueles que partiram para um tipo de violência intolerável perseguindo e atacando os autores.

Por não demonstrar nenhum tipo de amparo documental, a reportagem em questão não pode ser colocada no escaninho, seja no daquelas que são verdadeiras ou das que são falsas. Isso não é só um problema para os checadores, mas também para os repórteres — e também para os leitores. Paula Cesarino Costa, ombundsman da Folha de S.Paulo, reconheceu algumas falhas. Que o “jornal falhou na forma narrativa”, que “faltaram detalhes que corroborassem as evidências, mesmo sem que fontes fossem reveladas. Essa fragilidade gerou dúvidas nos leitores”.

Histórias fantásticas, importantes e autênticas muitas vezes descambam para o que pode se chamar de “jornalismo de convicção” por falta de frieza de editores deveriam domar o desejável ímpeto dos repórteres que querem ver seu trabalho impresso. O caso do WhatsApp é uma excelente pauta que foi publicada aparentemente antes de se transformar em uma reportagem. Menos confiança nas fontes e mais apuração teriam sido o antídoto para o problema. Só o tempo ou uma investigação oficial poderiam confirmar ou não o que a reportagem não foi capaz de fazer e – ainda bem – nenhuma agência de checagem se atreveu a validar.

***

As agências de checagem desempenharam um papel pioneiro de verificar – quase em tempo real – as informações objetivas sobre as quais os presidenciáveis se amparavam para sustentar seus argumentos nos debates ao vivo. Alguns meios de comunicação “terceirizaram” suas obrigações para esse serviço “0800” que foi oferecido por diversas dessas empresas e organizações. Cada vez mais vazias, as redações acataram versões que deveriam ter sido obtidas, de forma independente, por suas equipes. Com a comodidade e economia de não ter que destacar um repórter ou em muitos casos um estagiário para verificar a veracidade da fala de um político, parte da imprensa acatou o veredito dos checadores.

Mas tecnicamente qual é a diferença desse novo modelo de checagem “em tempo real”, que ganhou tanto destaque na eleição, em comparação com o trabalho de apuração de um repórter? Quando a checagem se propõe a fazer o papel de apuração ela avança sobre a coluna mestra do jornalismo que é a reportagem. E ao fazer isso, ela mesmo se desconfigura. Simplesmente deixa de ser checagem e parte para uma reportagem como qualquer outra, com a desvantagem de reivindicar a palavra final. Já que, em tese, não há quem cheque os checadores.

O que boa parte das agências de checagem diz fazer não difere da reportagem. Verificar se uma história difundida em redes sociais ou a fala de um político é verdadeira não tem diferença alguma com apuração básica feita por qualquer jornal ou agência de notícias.

A checagem é uma atividade do jornalismo. Fundamental e complementar. Em tempos de crise de credibilidade e da invasão de falsas notícias no mundo online, é imperativo que a atividade seja apoiada e fortalecida. Mas deve ser compreendida e dimensionada. A tentação de sobrepô-la à reportagem, como algo com credibilidade ou validade superiores, é um equívoco que pode levar o jornalismo a estar contra o jornalismo.

Leonardo Coutinho é jornalista e pesquisador. Também é autor do livro Hugo Chávez, o espectro (Ed. Vestígio, 2018). @lcoutinho

Lista da roubalheira de Lula na PR

O mafioso ex-presidente comportou-se como um desses ladroezinhos vulgares, que roubam talheres em recepções privadas e até oficiais, mas como tudo em sua existência de super-híper-mega ladrão do Brasil ele simplesmente mandou embrulhar e entregar em SP tudo o que havia nos dois palácios presidenciais, tudo, absolutamente tudo, raspou todos objetos, como se fosse dele, incluindo tudo o que tinha sido oferecido a vários presidentes, e ao Brasil, desde décadas antes dele, e que pertenciam a uma instituição chamada Presidência da República, e simultaneamente a essa outra coisa chamada patrimônio público.
O espantoso na história não é que ele, e sua finada esposa (culpada de tudo, como já dito, pois o mequetrefe nunca soube de nada), tenham se comportado como ladrões vulgares, o que já era esperado.
O espantoso é que os funcionários da PR encarregados de zelar pelo patrimônio público tenham deixado levar tudo o que está descrito na lista abaixo sem qualquer preocupação em defender tudo aquilo que estava aos seus cuidados. Têm de ser tratados como cúmplices na roubalheira, processados, condenados e encarcerados, como ladrões vulgares igualmente. E claro, demitidos, do serviço público se por acaso são funcionários públicos.
E ainda acham que eu exagero quando digo que o Brasil esteve comandado por uma organização criminosa entre 2003 e 2016. Aliás, bem mais do que isso: uma quadrillha de meliantes de alta periculosidade e um bando de ladroezinhos vulgares, tipo furta-talheres.


Lista com 33 páginas, de tudo o que o Lula roubou da presidência da República.

A partir da folha nº 13 é que vão aparecer as fotos, inclusive um Cristo que o Lula roubou da parede do gabinete presidencial, até uma escultura de Van Gogh (avaliada em R$ 7 milhões), talheres de ouro doados a Costa e Silva, moedas de ouro com o brasão da Unesco.

 https://cdn.oantagonista.net/uploads/1457739085227-lista+de+presentes+Lula.pdf

Mensagem de Carlos Malamud - Contra o fanatismo

Recebo, de meu amigo Carlos Malamud, do Real Instituto El Cano de Relaciones Internacionales, esta mensagem de Ano Novo, que compartilho com meus leitores:


“La literatura contiene un antídoto contra el fanatismo mediante la inyección de imaginación. Quisiera poder recetar sencillamente: leed literatura y os curaréis de vuestro fanatismo. Desgraciadamente no es tan sencillo. Desgraciadamente, muchos poemas, muchas historias y dramas a lo largo de la historia se han utilizado para inflamar el odio y la superioridad moral nacionalista. A pesar de todo hay ciertas obras  literarias que pueden ayudar hasta cierto punto”.

Amos Oz, Contra el fanatismo

El fanatismo es un excelente caldo de cultivo para los populismos de todo tipo que nos rodean y atiza la polarización en nuestras sociedades. Combatirlo no es tarea sencilla por cuanto está muy enraizado en sentimientos profundos de cada uno y va acompañado de una potente carga redentora. 

Contra él hay algunos antídotos eficaces como la razón y el respeto por el otro, por el diferente. Como recuerda Amos Oz, la literatura también puede ser una herramienta útil siempre y cuando seamos capaces de podarla de cuanto brote xenófobo y fanático asome, así como de la mediocridad que pulula como las malas hierbas y que últimamente se expresa, exuberante, a través de las redes sociales. 

De ahí que mi consejo para este ya inminente 2019 sea leed mucho, cuánto más mejor. 

Y junto al consejo, mis mejores deseos para el año próximo.

¡¡¡¡MUY FELIZ 2019!!!!

Carlos Malamud

Gilberto Freyre e Rabindranath Tagore - A.R. Venkatachalapathy


The Telegraph India, 
  • Published 26.12.18, 8:17 AM
  • Updated 26.12.18, 8:44 AM

When a Brazilian historian met Tagore in New York

Historical sociologist Gilberto Freyre was charmed by Tagore's ideas

The Nobel Prize won Rabindranath Tagore world renown. With our colonial hangover, we often conflate the world with the West. But Tagore’s fame spread was not confined to the West. He was feted in China and in Japan as well. To this one must add Latin America. Within years of the Nobel, Tagore’s poems were being translated into Spanish. Tagore even made a short, if truncated, visit to Argentina in late 1924 and early 1925. In 1924, a twenty-year-old Pablo Neruda paraphrased a poem from Tagore’s The Gardener in his Twenty Love Poems and a Song of Despair. The book sold over a million copies, and the poet himself went on to win a Nobel about half a century later. Translated into most Indian languages, the Chilean poet writing in Spanish needs little introduction. 
At about the same time that Neruda paid poetic tribute to Tagore, another brilliant young Latin American, a Portuguese-speaking Brazilian, met Tagore in New York. This was the historical sociologist, Gilberto Freyre (1900-1987, picture). Not nearly as well known globally as Neruda, Freyre is nonetheless a major cultural figure in Brazil. His trilogy on the making of modern Brazil through its colonial encounter — The Masters and the Slaves, The Mansions and the Shanties, and Order and Progress — remains a classic. Of Freyre’s work it has been said that it almost single-handedly changed Brazil’s image of itself: at ease with its own identity, it no more wished to be like Europe. Celebrating miscegenation, Freyre pushed Brazil to see itself as a fusion of three cultures — native Indian, Portuguese and African. Freyre’s mastery of the historian’s craft and sociological theory apart, he was a literary stylist. Despite many stints in various prestigious universities across the world, Freyre was more a public intellectual. Immersed in politics — he was once Brazil’s delegate to the United Nations with the rank of an ambassador — Freyre’s support for the Salazar dictatorship in Portugal and the Branco dictatorship in Brazil made him controversial.
Freyre’s reputation in the English-speaking world owes much to his discovery by the American publisher, Alfred A. Knopf. From the mid-1940s, Knopf commissioned and published translations of his works. But Freyre’s name remains obscure outside Brazil. Recently, Peter Burke and Maria Lúcia G. Pallares-Burke, who describe his work as “a social theory in the tropics”, have tried to underline the continuing relevance of his work. 
Freyre was a precocious young man. He began his college education in the United States of America in Baylor University in Texas. During this time, he got to personally know W.B. Yeats, the Irish poet and Tagore’s great early champion. Even before collecting his degree at Baylor, in 1920, he joined Columbia University in New York and studied with Franz Boas who is often referred to as ‘the father of American anthropology’. 
Shortly after his admission to Columbia University, towards the very end of October 1920, Tagore arrived in New York. Tagore was on a world tour to raise funds for Visva-Bharati. This was the third of his five visits to the US. Unlike the adulation that he received on his earlier visits, as an exotic novelty from the East, the reception now was tepid. Spurned by the Rockefellers and the Carnegies, Tagore spent most of his time cooped up in Manhattan. 
On one occasion, some students from Columbia University were invited to a tea hosted in his honour. Among them was “a restless young South American eager to learn”: Gilberto de Mello Freyre. As Freyre recalled, writing in the early 1960s, Tagore was then as old as Freyre was at the time of writing: he was pushing sixty. Tagore’s “face... was surprisingly young, although his long beard and long hair were already completely white. Dazzlingly white.” But his voice, like that “of a girl, contrasting oddly with his virile, biblical prophet’s air”, surprised Freyre.
The students enthusiastically conversed with “one of the world’s greatest living poets”. The subjects spoken about were wide-ranging but predictable. Apart from the British presence in India, art, literature, religion and philosophy were discussed. Freyre was already under “the stimulating influence of Yeats” and, therefore, comparison was inevitable. Freyre considered both to be geniuses, although Yeats did not make himself “known by either wide, staring eyes or wild, unkempt hair”. In Tagore, Freyre saw the gaze and smile of an eternal child.
Apart from Tagore’s appearance, Freyre was charmed by his ideas. More than ten years after this memoir, he would reflect on his poetry in a short essay, “Tagore: A Brazilian view of his lyrical poetry”. Tagore’s “international spirit” and his desire that the East and the West comprehend each other held Freyre’s attention. As Tagore spoke about his dream project of building Visva-Bharati, Freyre admired the spirit behind it. 
After the talk that afternoon — most likely to have been the lecture, ‘East and West’, collected later in Creative Unity (1922) — Tagore turned to Freyre. As Freyre was sipping some Indian tea, Tagore greeted him with the words, “You look like an Indian. Where are you from?” On hearing his reply, the poet remarked in his mellifluous voice, “Ay, yes, from Brazil”. Freyre wondered if Tagore was “reluctant to reveal either his knowledge of a country that was so remote or his curiosity about what was then a terra incognita to even the most knowing Orientals”.
Tagore’s fame apparently did not leave even the terra incognita untouched.

The author is a historian and Tamil writer based in Chennai

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

STF: a caverna de todas as vergonhas - José Nêumanne


 O STF nos envergonha, a todos nós, isso já sabemos.
Mas como sempre existem os mais iguais, alguns nos envergonham mais que outros...
Paulo Roberto de Almeida

Marco Aurélio Mello e a porta dos fundos do STF
O Antagonista, Brasil, 26.12.18 11:10
No Estadão, José Nêumanne se vale daquela liminar indecorosa de Marco Aurélio Mello, para escrever um artigo magistral sobre a raiz dos problemas no STF: a porta dos fundos do patrimonialismo exercido por meio do quinto constitucional e da Justiça trabalhista.
É preciso fechar essas portas.
Pedimos permissão para publicar o artigo na íntegra, lembrando que Nêumanne disse na cara de Marco Aurélio que não confiava no STF, durante uma entrevista do ministro no programa Roda Viva.
Leia:
“A lambança do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello a poucos minutos do expediente de fim de ano do Poder Judiciário, ao tentar soltar 169 mil presos condenados pós-segunda instância, entre eles Lula, despertou mais uma vez a fúria popular. E com ela emergiu também a criatividade das fórmulas desejadas para substituir a atual indicação de seus componentes pelo presidente da República, com aval do Senado Federal após sabatina. Eleição direta dos ministros, concurso público para admissão e indicação por notáveis ou mesmo associações da classe jurídica são, entre elas, as mais citadas.
Como dizia minha avó, ‘devagar com o andor, que o santo é de barro’. E seguindo instruções de Jack, o Estripador, ‘vamos por partes’. Quem tem conhecimento mínimo do resultado de eleições diretas, principalmente para ocupantes de colegiados, como o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais, não pode nutrir a mínima esperança de que o voto direto livre os tribunais superiores dos vícios de sempre com a escolha dos mais sábios e mais justos. Concurso público pode escolher mais membros com mais conhecimentos para lidarem com informações sobre determinada área, mas não há prova, oral ou escrita, que escolha entre os pares o mais habilitado a dirimir questões sobre a adequação de determinada lei ao texto constitucional vigente. Não há notáveis ou instituições isentas da interferência de lobbies e que tais na escolha de um profissional para ocupar um cargo de tal relevância e que representa o mais elevado posto na carreira de um profissional do Direito.
A vida do protagonista citado no início deste texto dá a oportunidade de indicar caminhos mais seguros para levar gente mais capacitada e equilibrada para ocupar o topo. Marco Aurélio Mello é o exemplo perfeito de como o patrimonialismo atravessou incólume todas as tentativas de superá-lo e resiste, como entulho, no terreno das instituições republicanas, acentuando suas imperfeições e demolindo a reputação de seus agentes. Ele entrou na carreira pública como procurador na Justiça do Trabalho, invenção de Getúlio Vargas depois da Revolução de 1930, para funcionar como elo no aparelho de poder de um tipo de populismo latino-americano, o trabalhismo. Uma espécie de fascismo cucaracho, também estrelado por Juan Domingo Perón, na Argentina, e Haya de la Torre, no Peru.
 O cargo não foi obtido por concurso público, mas por nomeação patrocinada pelo pai, Plínio Affonso de Farias Mello, patrono até hoje reverenciado no ambiente do sindicalismo patronal como uma espécie de benemérito da classe dos representantes comerciais. O prestígio de Plínio Mello era tal que o último presidente do regime militar, João Figueiredo, manteve aberta a vaga no Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro para o filho dele, Marco, completar 35 anos, em 1981, e com isso cumprir preceito legal para assumi-la. O prestígio paterno levou-o ao Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília, onde Fernando Affonso Collor de Mello o encontrou para promovê-lo – tcham, tcham, tcham, tcham! – para o Supremo Tribunal Federal (STF).
Neste caso, em que se entrelaçam parentela, compadrio e interesses corporativos, Fernando merece citação especial, pois seu avô materno, Lindolfo Collor, revolucionário de 1930, foi ministro do Trabalho. É também uma história com marcas de chumbo e sangue: Arnon, pai do ex-presidente, irmão de Plínio e tio de Marco Aurélio, atirou em Silvestre Péricles de Góes Monteiro, seu inimigo em Alagoas, no plenário do Senado e matou, com uma bala no coração, o acriano José Kairala, que entrou na tragédia como J. Pinto Fernandes, citado no último verso do poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade: ‘que não tinha entrado na história’. É um caso comum na era dos ‘pistolões’ e pistoleiros.
No STF Marco Aurélio sempre foi voto vencido e um espírito de porco até que encontrou um rumo depois que a ex-presidente Dilma Rousseff nomeou sua filha Letícia desembargadora no Tribunal Regional da 3.ª Região, no Rio, demonstração de como o nepotismo se perpetua. Foi desde então que o campeão das causas perdidas abraçou cruzadas que atendem aos interesses petistas e aos de nababos da advocacia de Brasília, que defendem a troco dos dólares que ganharão, quando for, se é que vai ser, extinta a jurisprudência que autoriza a prisão de condenados em segunda instância. Foi em nome dela que cometeu o tresloucado gesto.
O antagonista no episódio, Dias Toffoli, presidente do STF, mas adepto da mesma cruzada, até tentou ser juiz por concurso, mas foi reprovado em dois. Como defensor de José Dirceu e do PT e advogado-geral da União de Lula, contudo, ascendeu ao cargo que hoje ocupa. O posto, aliás, já tinha pertencido antes, com graves danos para a Constituição, rasurada por ele na ocasião do impeachment de Dilma, a Ricardo Lewandowski. Este foi nomeado pelo quinto constitucional para o Tribunal de Alçada Criminal por indicação de seu então chefe, Aron Galant, prefeito de São Bernardo do Campo. Extinto o órgão, foi transferido para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e chegou ao STF por mercê de suas ligações de compadrio e amizade com o casal Marisa e Lula da Silva. O monturo patrimonialista só será desmanchado se forem fechadas a porta dos fundos do STF, pela qual entram os quintos, e a Justiça trabalhista.
Este conto de trancoso terá um final feliz se loucuras como a de Marco Aurélio e do desembargador Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, em Porto Alegre, não forem sequer tentadas. Toffoli marcou a sessão plenária do STF para decidir sobre a jurisprudência da possibilidade de prisão em segunda instância para 10 de abril. Mas só haverá solução final se Bolsonaro e Moro levarem à aprovação do Congresso uma lei para determiná-la. O resto é lero.”