As agências de checagem despontaram como uma ferramenta poderosa na eleição de 2018. Elas floresceram no caos das redes sociais e aplicativos de mensagens onde vicejaram a má-fé de alguns e a boa-fé de muitos, com apenas alguns toques sob a tela do telefone celular, ajudaram a espalhar notícias falsas para todo o seu círculo de amigos e familiares. Submersos no lodaçal da fake news, o leitor brasileiro foi apresentado a essa utilíssima ferramenta de verificação de fatos. O modelo se tornou tão bem-sucedido que muitos sites hospedados nos principais portais do país e até mesmo publicações físicas passaram a citar as agências como fonte verificadora. Quase um atestado de autenticidade para notícia. Ganham os leitores e, consequentemente, a democracia com uma camada adicional de blindagem contra as notícias falsas: o mais antigo novo vilão das eleições recentes no Brasil e em todo mundo.
Na segunda metade de 2000, um executivo da revista VEJA demitiu em público um de seus repórteres por ele ter publicado um erro em uma nota de poucas linhas. Diante do subordinado desconcertado, o chefe disse: “Você é pago para fazer três coisas. 1º apurar, 2º escrever e 3º checar. Uma delas você não fez direito”. Depois disso, vieram várias outras grosserias que hoje claramente se configuraria como assédio moral. Apesar de inadequado, o comportamento do chefe trazia uma lição. “Apurar” e “checar” não são a mesma coisa. São parte de um processo de produção bastante disseminado nas principais publicações dos Estados Unidos e que no Brasil fora introduzido no início dos anos de 1980, pelo então diretor-adjunto de Veja, Elio Gaspari. Conforme o modelo vigente há mais de trinta anos, a apuração é de exclusiva responsabilidade do repórter. É um mandato intrasferível por meio do qual ele coleta o máximo de informações junto às suas fontes. Depois de escrita, editada e já montada na página, a mesma reportagem vai para as mãos de um outro jornalista que tem por missão verificar. Verificar e verificar. A checagem tenta refazer o caminho da apuração ou investigação, como alguns preferem chamar.
Os checadores comparam com fontes oficiais grafias de nomes, refazem contas, unidades de medidas, datas. Apenas para ficar nos elementos mais básicos de qualquer reportagem. Depois de esquadrinhar o texto, esse profissional senta com o repórter e repassa dúvida por dúvida. Mostra os erros encontrados, refaz as contas juntos e sempre duvida quando o resultado é tão harmônico. Quando os resultados são conflitantes entre o que está no texto e o que encontra em materiais de apoio ou em fontes abertas. Não há um dono da verdade ou palavra final. Em muitos casos, repórter e checador chegam a um terceiro resultado em favor da informação mais precisa. Quem já teve a sorte de trabalhar ao lado de um checador sabe a maravilha que é. Veja trouxe a checagem para o Brasil e a mantém ativa até hoje. A revista Época manteve uma equipe ativa em seus quatro primeiros anos de vida, entre 1998 e 2002. Atualmente, sob o risco de errar (olha a falta que faz a checagem), além de Veja, somente a revista piauí conta com checadores na Redação. E como reflexo do fenômeno, alguns jornais começaram a designar profissionais para essa atividade específica.
A checagem tem um limite natural. Uma pergunta clássica dos checadores resume isso: “Não acho em lugar nenhum. É apuração sua?”. Este é o momento crucial no qual os três pilares (lembre-se apuração, redação e checagem) precisam estar bem alinhados. É quando o repórter diz, sim, isso é trabalho meu. Por meio de um documento, uma entrevista ou uma observação de quem voltou da rua ou de uma viagem. É o momento chave do qual o repórter não é excluído. Pelo contrário, cabe a ele reafirmar, ajustar ou suprimir o que escreveu e que já passou pelas mãos de seu editor, redator-chefe e até mesmo o diretor de redação. Uma cadeia de responsabilidades que não está imune aos erros, mas é que é de longe um dos melhores recursos da profissão.
Esse limite natural dos checadores pode ser exemplificado com casos de nossa história recente. As informações apresentadas pelo então presidente do PTB Roberto Jefferson em uma entrevista que revelou a existência do Mensalão, em 2005, era algo impossível de ser verificado. Mas o caso ganhou corpo. Virou o tema principal de uma CPI e levou à condenação de 40 envolvidos naquele chegou a ser o maior escândalo de corrupção do país. O mesmo critério se aplica à reportagem que apresentou aos brasileiros o sítio do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Atibaia. O excelente trabalho dos repórteres “colocou de pé” uma história a partir do zero. Algo que ninguém sem ter tido o acesso as informações que eles tiveram, poderia dizer se tratar de mentira ou verdade. A Polícia Federal e o Ministério Público entraram no caso e o ex-presidente se transformou em réu. Quase quatro anos depois da publicação da história, Lula aguarda a sentença do julgamento pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Os limites da checagem podem ser ainda mais extremos. Os dois exemplos anteriores tratam de furos embasados sob elementos reais. Roberto Jefferson deu uma entrevista em on the record e o Sítio de Atibaia é uma obra física. Está fincado em meio a paisagem local e o seu registro no cartório de imóveis já indicava a proximidade com o presidente: o registro em nome dos sócios de um de seus filhos.
Há, ainda, casos nos quais reportagens são desprovidas de qualquer fonte verificável ou documentação. Uma delas, sem dúvida, se tornou a mais importante do segundo turno da eleição presidencial de 2018: a denúncia de que o então candidato Jair Bolsonaro teria se beneficiado de financiamento irregular de campanha para a distribuição em massa de mensagens de WhatsApp, em matéria de Patrícia Campos Mello para a Folha de S.Paulo. Não há documentos. Não há provas que sustentem a narrativa. Não há fontes identificadas que possam ser inqueridas de forma independente. A sua repercussão se deu no calor da campanha pelo potencial de dano que tinha em relação ao candidato líder nas pesquisas. Nenhum jornalista foi capaz de comprovar, ou, pelo menos, verificar o que foi dito. Tudo se limitou à convicção. De um lado ficaram aqueles que acreditaram na reportagem. De outros os incrédulos que se dividiram entre aqueles que ficaram em silêncio e aqueles que partiram para um tipo de violência intolerável perseguindo e atacando os autores.
Por não demonstrar nenhum tipo de amparo documental, a reportagem em questão não pode ser colocada no escaninho, seja no daquelas que são verdadeiras ou das que são falsas. Isso não é só um problema para os checadores, mas também para os repórteres — e também para os leitores. Paula Cesarino Costa, ombundsman da Folha de S.Paulo, reconheceu algumas falhas. Que o “jornal falhou na forma narrativa”, que “faltaram detalhes que corroborassem as evidências, mesmo sem que fontes fossem reveladas. Essa fragilidade gerou dúvidas nos leitores”.
Histórias fantásticas, importantes e autênticas muitas vezes descambam para o que pode se chamar de “jornalismo de convicção” por falta de frieza de editores deveriam domar o desejável ímpeto dos repórteres que querem ver seu trabalho impresso. O caso do WhatsApp é uma excelente pauta que foi publicada aparentemente antes de se transformar em uma reportagem. Menos confiança nas fontes e mais apuração teriam sido o antídoto para o problema. Só o tempo ou uma investigação oficial poderiam confirmar ou não o que a reportagem não foi capaz de fazer e – ainda bem – nenhuma agência de checagem se atreveu a validar.
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As agências de checagem desempenharam um papel pioneiro de verificar – quase em tempo real – as informações objetivas sobre as quais os presidenciáveis se amparavam para sustentar seus argumentos nos debates ao vivo. Alguns meios de comunicação “terceirizaram” suas obrigações para esse serviço “0800” que foi oferecido por diversas dessas empresas e organizações. Cada vez mais vazias, as redações acataram versões que deveriam ter sido obtidas, de forma independente, por suas equipes. Com a comodidade e economia de não ter que destacar um repórter ou em muitos casos um estagiário para verificar a veracidade da fala de um político, parte da imprensa acatou o veredito dos checadores.
Mas tecnicamente qual é a diferença desse novo modelo de checagem “em tempo real”, que ganhou tanto destaque na eleição, em comparação com o trabalho de apuração de um repórter? Quando a checagem se propõe a fazer o papel de apuração ela avança sobre a coluna mestra do jornalismo que é a reportagem. E ao fazer isso, ela mesmo se desconfigura. Simplesmente deixa de ser checagem e parte para uma reportagem como qualquer outra, com a desvantagem de reivindicar a palavra final. Já que, em tese, não há quem cheque os checadores.
O que boa parte das agências de checagem diz fazer não difere da reportagem. Verificar se uma história difundida em redes sociais ou a fala de um político é verdadeira não tem diferença alguma com apuração básica feita por qualquer jornal ou agência de notícias.
A checagem é uma atividade do jornalismo. Fundamental e complementar. Em tempos de crise de credibilidade e da invasão de falsas notícias no mundo online, é imperativo que a atividade seja apoiada e fortalecida. Mas deve ser compreendida e dimensionada. A tentação de sobrepô-la à reportagem, como algo com credibilidade ou validade superiores, é um equívoco que pode levar o jornalismo a estar contra o jornalismo.
Leonardo Coutinho é jornalista e pesquisador. Também é autor do livro Hugo Chávez, o espectro (Ed. Vestígio, 2018). @lcoutinho
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