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sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

A era dos paradoxos, agora ou mais adiante? - Paulo Roberto de Almeida

Não sei se já vivemos, e estamos deixando de ter, paradoxos, ou se ainda vamos viver uma nova era de paradoxos.
Difícil dizer.
Em todo caso, vários meses atrás, convidado por uma faculdade para falar sobre "paradoxos" na atualidade, acabei compondo o trabalho que vai abaixo, esperando que ele nos reconforte, ou angustie, segundo o entendimento de que eles já ficaram para trás, ou se ainda teremos muitos pela frente. Você decide...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 14 de dezembro de 2018

As relações internacionais numa era de paradoxos

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: notas para palestra pública; finalidade: debate com estudiosos da área]

Introdução: o que são paradoxos, e quais seriam alguns exemplos corriqueiros?
Paradoxo, segundo os dicionários, constitui o contrário de uma opinião admitida como válida, ou contrária ao que se espera do ponto de vista do senso comum. Também pode significar ausência de nexo ou de lógica. Seus sinônimos seriam: contra senso, incoerência, contradição, divergência, ambivalência ou indecisão (Cf. “Dicionário inFormal”: https://www.dicionarioinformal.com.br/paradoxo/). 
Paradoxos não são exclusivos de nossa era de, uma vez que eles podem ser encontrados em praticamente todas as épocas, já que esse tipo de contradição é implícito às decisões dos governantes, está presente em todas as atividades políticas e é próprio de todas as ações humanas. Do ponto de vista da política externa dos países, paradoxos representam decisões políticas cujos efeitos ou consequências são contrários ao pretendido inicialmente. 
Vamos dar, imediatamente, um exemplo corriqueiro: um dirigente nacionalista, ou populista, provavelmente ignorante em economia, pretende reduzir ou eliminar um eventual saldo comercial negativo nos planos bilateral ou multilateral, e adota medidas protecionistas, com a intenção declarada de preservar emprego e renda de sua clientela eleitoral. O que ele provavelmente acaba recolhendo, ao contrário, é aumento dos preços internos, possível deslocamento de empresas nacionais para o exterior (em vista dos níveis mais elevados de salários com que teriam de trabalhar no país), e eventual desvalorização da moeda dos parceiros comerciais assim prejudicados temporariamente, o que torna suas exportações ainda mais atrativas para as mesmas empresas que se dedicam à fabricação daquele produto objeto de salvaguarda ou aumento de tarifa. 
Vocês podem estar pensando que eu estou me referindo a algum líder falaz de um poderoso país avançado, mas o próprio Brasil se encaixa numa série de paradoxos, em sua política externa, ou em várias políticas macroeconômicas e setoriais. Outro exemplo corriqueiro logo vem à mente: o órgão arrecadador de impostos está sempre prioritariamente visando um aumento constante das receitas, por todos os meios cabíveis, imprimindo maior eficiência à máquina arrecadadora, independentemente da criação de novos impostos ou aumento das alíquotas dos existentes. O paradoxo, neste caso, é que a administração das receitas pode provocar elisão ou evasão fiscal, gerar mais informalidade, fechamento de empresas na jurisdição em causa e deslocamento de atividades para paragens fiscalmente mais amenas. Um outro paradoxo, conhecido dos economistas como sendo a “curva de Laffer”, diz o seguinte: a partir de um determinado ponto da carga tributária as receitas começarão a cair, em lugar de aumentar.
Vamos, no entanto, tratar dos paradoxos em política externa, onde eles podem ser tão frequentes quanto no mundo da política e da economia. Antes dos paradoxos atuais, façamos um retrospecto do que tem sido o mundo nos últimos dois séculos.

Nos últimos duzentos anos, o mundo conheceu nações e impérios: 
1) Conflitos napoleônicos que, ao atingir os reinos ibéricos, precipitaram as independências das colônias nas Américas, já agitadas pelas ideias iluministas do século XVIII, pela independência americana e pela revolução francesa.
2) Ocorreu a segunda grande restruturação das relações internacionais, depois da primeira guerra de trinta anos e dos acordos de Westfália do século XVII, no quadro do Congresso de Viena, que no entanto nem se abriu, uma vez que as principais questões foram resolvidas em conciliábulos entre as quatro grandes potências cristãs – Reino Unido, Áustria, Prússia, Rússia – com alguma tolerância em relação à França restaurada em sua legitimidade monárquica, e aos interesses de atores secundários (como Portugal, Espanha e alguns outros).
3) Nesse ambiente ocorreram as independências latino-americanas, seguidas de avanços europeus sobre novas áreas de colonização ou de submissão imperial na África e na Ásia. Não ocorreu, no entanto, nenhuma mudança significativa dos padrões de inserção desses novos Estados na economia crescentemente global, uma vez que eles permaneceram, em sua maior parte, exportadores das mesmas commodities que já transacionavam no período colonial.
4) No cenário europeu e no de seus descendentes diretos, ocorreram revoluções democráticas, em 1830 e em 1848, por exemplo, que ampliaram franquias eleitorais e reforçaram o princípio de governos constitucionais, com alguma resiliência no caso dos regimes autocráticos – como os da Santa Aliança: Prússia, Áustria e Rússia –, ao passo que o avanço da burguesia triunfante era contrabalançado pelo sindicalismo operário e pelo surgimento de partidos socialdemocratas, já na segunda revolução industrial.
5) A partir de meados do século XIX, amplia-se a dominação europeia sobre o mundo, geralmente em direção da África e da Ásia, com reforço dos impérios coloniais e a lenta conformação de uma economia global, feita de centros avançados e periferias formal ou informalmente vinculadas aos primeiros; trata-se da consolidação do mundo norte-atlântico, que dominou o mundo entre os descobrimentos e o século XXI.
6) Esse mundo de nações e impérios herdado do século XIX seria desmantelado no meio século seguinte, que corresponde a uma “segunda Guerra de Trinta Anos”, ao longo da qual o sistema europeu de dominação universal seria destruído por obra e graça dos próprios impérios europeus, com a ajuda dos nacionalismos emergentes e a emergência da Ásia em formatos variados (primeiro o Japão, depois a China e os novos atores da economia mundial a partir da segunda metade do século XX.
7) De Sarajevo a Hiroshima estamos no próprio coração dessa “segunda Guerra de Trinta Anos”, que não é o “breve século XX” de que falou Eric Hobsbawm, nem o “longo século XX” de que falou Giovanni Arrighi: trata-se da transformação das guerras nacionais do século XIX, ainda de estilo napoleônico em guerras globais, duas, nas quais toda a capacidade técnica do industrialismo da segunda revolução industrial é colocada a serviço de uma dinâmica de guerra total, envolvendo todo o potencial dos beligerantes. Sarajevo ainda é século XIX, ou se quisermos, uma guerra feudal, como bem caracterizado por Arno Meyer em seu estudo sobre a persistência do antigo regime nos impérios centrais europeus, que foram os responsáveis pela carnificina dos quatro anos seguintes, cujo centenário de conclusão vai ser “comemorado”, se é possível dizer, no dia 11 de novembro de 2018. Mas Hiroshima já a impossibilidade prática de uma guerra total, já que ela significaria a virtual destruição da vida civilizada no planeta.
8) O que temos, no longo, ou no breve, século XX, é um duplo movimento, do lado econômico e do lado político de um dos períodos mais mortíferos da história humana. Por um lado, a interrupção da segunda onda de globalização em 1914, e sua retomada já na última década do século, com um poderoso desafio às economias de mercado e às democracias constitucionais lentamente formadas no período precedente pela via de ideologias desafiadoras da ordem global, os coletivismos econômicos e os autoritarismos políticos sob a forma de opostos aparentes, mas gêmeos de fato: os fascismos e os socialismos, que foram, segundo Raymond Aron, duas religiões seculares, num século que deveria ser o da técnica, mas também foi o das ideologias. 
9) Outubro de 1917, o putsch bolchevique, vai se encerrar em outubro de 1989, a queda do muro de Berlim, seguido pouco tempo depois pela dissolução do império soviético, segundo Vladimir Putin, a “maior catástrofe geopolítica do século XX”. Pode-se concordar totalmente com o significado dessa implosão quase sem mortos, para dizer que foi a catástrofe mais benigna que poderia ter acontecido ao cabo de um dos séculos mais devastadores que tivemos desde as invasões bárbaras no Ocidente. Mas a Rússia não deixa de ser um ator relevante na geopolítica mundial, devido justamente à posse de armas atômicas e a um sentido nacional imperial que permanece o mesmo, desde Pedro, o Grande, desde Catarina, desde os neoczaristas bolcheviques, atualmente representados pelo próprio Putin. Mas a China também emerge lentamente de seu longo sono declinista, de quase dois séculos, com alguns anos significativos marcados em 9.
10) Temos uma revolta estudantil em 1919, quando jovens modernizadores pós-arranjos de Versalhes manifestam seu descontentamento com o novo quadro imperial então constituído, que dava novas credenciais ao Japão, enquanto deixava a China reduzida a um estatuto semi-colonial. Esta é a condição que a Terceira Internacional, o Komintern reconhecia na China, quando os comunistas orientados desde Moscou, a nova Meca do comunismo mundial, tentam uma tomada frustrada do poder, apenas para serem esmagados pelas forças do Kuomintang, o partido nacionalista chinês criado em 1912, logo após a revolução republicana de 1911 que derrocou um império de mais de dois mil anos. Os estudantes voltaram a se revoltar em 1989, sob o signo da estátua da Liberdade, apenas para serem esmagados pelos novos mandarins da República comunista, criada por Mao Tsé-tung em 1949. Em 1979, após décadas de delírio maoísta, atravessando o período das “mil flores”, o “grande salto para a frente” de 1959 e a revolução cultural de meados dos anos 1970, temos o retorno de Deng Xiao-ping ao poder, o homem que completaria o retorno da China ao capitalismo, e que colocaria as bases de um novo império, agora presidido por Xi Jin-ping. 
11) A paz belicosa da Guerra Fria geopolítica, como a classificou Raymond Aron, na caracterização genial feita desde 1948 – paz impossível, guerra improvável –, é seguida agora, segundo minha própria caracterização, por uma nova Guerra Fria geoeconômica, após um breve interlúdio de unipolarismo arrogante por parte dos Estados Unidos, levado ao máximo de seu poderio imperial pela implosão da União Soviética e pelo fato da China estar ainda engatinhando na sua inserção econômica na terceira onda da globalização e em seu retorno político à diplomacia planetária. Já não mais temos impérios coloniais como até ainda os anos 1960, mas tivemos a chamada “grande divergência”, que foi a nítida divisão do mundo entre nações avançadas, o “clube dos ricos” da OCDE, e países subdesenvolvidos, depois chamados de nações em desenvolvimento, e mais recentemente de economias emergentes. Esta é a problemática do desenvolvimento, agora que estamos numa “lenta convergência” entre essas duas metades do planeta, o que nos leva ao mundo atual e futuro. 

Os paradoxos da modernidade: globalização macro e micro, soberanias resistentes
12) A despeito da evolução do sistema de relações internacionais, com a criação da ONU e de todas as suas agências especializadas, ainda temos velhas nações e novos impérios, mas também, e isso é inédito, os blocos de integração. A modernidade da qual estamos falando começa, na verdade, logo ao início da Guerra Fria, e à sua sombra. Enquanto Estados Unidos e União Soviética se acomodavam aos esquemas de divisão do mundo traçados em Ialta – a segunda grande divisão do mundo entre impérios, depois de Tordesilhas, no final do século XV –, os europeus decidiram encerrar a sua “segunda Guerra de Trinta Anos”, iniciada em 1914 e terminada em 1945, por meio de um mecanismo absolutamente inédito no plano dos arranjos determinados em Westfália, baseados na soberania absoluta dos Estados nacionais. 
13) Começou, então, o esquema comunitário da integração europeia, na verdade iniciada em 1951, pelo Tratado de Paris criando a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, e completada pelos tratados de Roma, de 1957, criando o Euratom e, sobretudo, o Mercado Comum Europeu. Não se tratava mais de um simples acordo interestatal, mas de uma explícita cessão de soberania, sob a forma de direito comunitário, isto é, um mecanismo pelo qual estados soberanos transferem uma parte de sua soberania a um ente supranacional, ou pelo menos supostamente desnacionalizado. Esse foi o preço a pagar para que a França não fosse invadida uma quarta vez pela Alemanha, economicamente mais poderosa e dotado de um militarismo prussiano altamente eficiente. Muitos outros acordos foram negociados subsequentemente, até chegarmos na atual União Europeia, que comporta igualmente uma moeda comum, o euro.
14) Países latino-americanos tentaram replicar o modelo europeu de integração, primeiro pela Associação Latino-Americana de Livre Comércio (1960), depois pelo Pacto Andino (1969), depois pela Associação Latino-Americana de Integração (1980) e, finalmente, pelo Mercosul (1991), mas nunca conseguiram ir além de meros esquemas de preferências tarifarias e liberalização comercial ao estilo mercantilista, de forma que o bloco europeu permaneceu rigorosamente solitário como o único exemplo exitoso de uma união econômica funcional, ainda que estressado por tendências centrifugas e permanência de assimetrias políticas e culturais que também refletiam condicionantes geopolíticos do teatro europeu. O Mercosul, enquanto união aduaneira incompleta, avançou de modo razoável em seus primeiros anos, mas depois sofreu retrocessos, em especial sob os regimes populistas de Lula e Kirchner, que se desviaram de seus objetivos comercialistas originais, passando a adotar uma orientação puramente política, o que limitou suas possibilidades de inserção na economia global.
15) O traço mais óbvio do sistema de relações internacionais contemporâneo é a relativa dominância da diplomacia multilateral sobre antigas formas de relacionamento bilateral ou plurilateral, o que se reflete, por exemplo, no sistema multilateral de comércio, mas que ainda assim possui seus desvios “minilateralistas”, sob a forma de acordos bilaterais ou plurilaterais de livre comércio, que derrogam explicitamente à cláusula de nação-mais-favorecida. Este é um dos paradoxos do sistema multilateral de comércio, um dos muitos que existem, e que precisam ser avaliados em sua dimensão própria. O antigo Gatt, o Acordo Geral de Tarifas Aduaneiras e Comércio, criado em 1947 e atualmente incorporado ao quadro institucional da Organização Multilateral de Comércio, é considerado como sendo um promotor do livre comércio, e como tal é objeto de críticas dos chamados antiglobalizadores, uma tribo de militantes totalmente equivocados, o que não deixa de ser um desses paradoxos: o Gatt, na verdade, assim como as instituições de Bretton Woods, não são, a despeito do que se crê, promotores dos livres mercados e do liberalismo irrestrito. Eles são, sim, o reflexo de rupturas econômicas graves na economia mundial e como tal promovem o intervencionismo, o mercantilismo e a regulação estatal, uma vez que o protecionismo, tradicional nos estados soberanos, o dirigismo crescente das burocracias contemporâneas se refletem inteiramente nas instituições do multilateralismo econômico e em outras esferas.
16) A Carta da ONU reconhece expressamente o princípio da igualdade soberana das nações – tal como defendeu Rui Barbosa na II conferência internacional da paz, em Haia, em 1907 –, mas na prática, e no direito, existe a realidade de conviverem nesse sistema quase universal os “iguais”, e os “mais iguais”, ou seja, as cinco grandes potências que são os membros permanentes do Conselho de Segurança, o decisor em última instância das questões de paz e segurança no planeta (com os problemas decorrentes de seus desacordos também permanentes). Esse é talvez o maior dos paradoxos existentes no atual sistema de segurança internacional: certas guerras civis, determinados conflitos dentro ou entre estados soberanos podem, sim, ser objetos de resoluções do CSNU e entrar em alguma missão de manutenção da paz ou até de manutenção da paz (peace keeping, ou peace making), sendo que o Brasil participou de várias missões na primeira categoria, mas de nenhuma na segunda. 
17) O outro grande paradoxo nesse campo é oferecido pelo próprio Brasil, cujas tentativas de aceder a uma cadeira permanente no CSNU são sempre classificadas como sendo com o objetivo de “democratizar o sistema internacional de defesa da paz e da segurança”, tornando-o mais representativo do mundo atual. Ora, o argumento é falho, pois tal pretensão nada mais representa do que o seu ingresso num clube restrito, apenas expandindo moderadamente o sistema oligárquico tal como ele existe desde 1945. O outro argumento defendido pelo Brasil, o de tornar o processo decisório do CSNU mais representativo da diversidade política e econômica do mundo, é também um paradoxo, pois parece que claro que um Conselho ampliado para refletir essa diversidade irá inevitavelmente redundar em sua menor eficiência e em possíveis entraves a uma decisão sempre difícil no plano dos equilíbrios geopolíticos. 
18) Seguindo no mesmo terreno, um terceiro paradoxo, sempre oferecido pelo Brasil, foi o de criar um grupo, o G-4, supostamente para reforçar essa pretensão, mas que pode ter atuado, ao contrário, no sentido de complicar ainda mais a candidatura do país, uma vez que reunindo países – Japão, Índia e Alemanha – que possuem “vetores de bloqueio” provavelmente muito mais poderosos e consistentes do que aqueles que o Brasil encontra em sua própria região. O Japão, por exemplo, encontra sérias objeções do lado da China, fruto dos terríveis crimes contra a humanidade cometidos contra o gigante asiático na primeira metade do século XX. A Índia também pode encontrar resistências por parte da mesma China, e adicionalmente do Paquistão. A Alemanha, por sua vez, enfrenta restrições por parte de seus próprios parceiros do continente europeu, o que torna particularmente difícil a aceitação de propostas do G-4. Ainda um quarto paradoxo, o governo da “diplomacia ativa e altiva” dos companheiros no poder – uma designação pelo menos pretensiosa, e provavelmente enganosa – proclamou em altos brados esse seu objetivo de fazer o Brasil aceder a essa cadeira permanente, o que não deixou de afetar a autoestima de vizinhos que se julgam tão merecedores quanto este candidato. Por fim, um quinto e último paradoxo, mas que também simboliza uma expressão da concepção primária dos amadores que comandaram a diplomacia do Brasil nesses anos, a ampliação desmesurada das representações diplomáticas do país ao redor do mundo, como se a decisão sobre a reforma da Carta da ONU e a eventual ampliação dos membros permanentes do seu Conselho de Segurança fosse ser resolvida apenas pelo número de votos obtidos na Assembleia Geral. 
19) A terceira onda da globalização deveria, supostamente, produzir uma “nova ordem mundial”, caracterizada pela ausência de oposições radicais entre modelos dicotômicos, como tinha sido o caso durante a vigência do comunismo na União Soviética e a de sua extensão mundial, seja na primeira metade do século XX, com a existência do Komintern – a terceira Internacional, a Comunista, criada por Lênin em 1918, extinta por Stalin em 1943 –, seja na segunda, a época da Guerra Fria, primeiro com o Cominform – o órgão de coordenação dos partidos comunistas criado por Stalin em 1947 – e depois com a expansão agressiva do movimento comunista em diversas regiões do planeta, bem como o próprio fortalecimento militar da alternativa comunista às democracias de mercado. Tudo isso acabou entre 1989 e 1991, com a débâcle e depois a implosão final do comunismo – que no entanto sobrevive em dois pequenos países miseráveis nas antípodas –, mas a “nova ordem mundial”, feita de cooperação, de convergência dos modelos políticos e econômicos, de ampla abertura aos intercâmbios e relações de todos os tipos entre povos, nações, estados, movimentos sociais e pessoas. Não é isso, infelizmente, o que tivemos na sucessão de uma curta fase de acomodações tentativas entre os Estados nacionais, ainda separados pela história, pela cultura, pelas tradições políticas e que, finalmente, voltaram a se afirmar em seus exclusivismos nacionais, em seu mosaico de expressões políticas, em seus níveis desiguais, por vezes opostos, de desenvolvimento econômico, enfim, em vários casos de restrições estatais às liberdades (amplamente assimétricas) concedidas aos indivíduos. Este é mais um paradoxo da contemporaneidade: o fim da “cortina de ferro”, a queda do muro de Berlim, a supressão de várias “prisões dos povos”, não significou a disseminação de sistemas abertos como se esperava. Em alguns casos, a implantação de sistemas formalmente democráticos deu lugar a experimentos recorrentes na história política da humanidade, como o bonapartismo, o cesarismo, o democratismo plebiscitário, quando não as autocracias, que não são tiranias abertas apenas porque espaços para esses tipos de experimentos diminuíram, não por falta de vontade de certos dirigentes.
20) Um outro paradoxo, ainda mais preocupante, é o fato de, a despeito de toda a disseminação do conhecimento, da elevação dos padrões educacionais um pouco em todas as partes, do amplo acesso à informação, praticamente instantânea e global nos dias que correm, os eleitores continuam a se render à demagogia política e ao populismo econômico, deixando se seduzir por propagandistas superficiais que se instalam no poder pela via democrática e contribuem na sequência a deteriorar a qualidade dos sistemas democráticos ou a de suas políticas econômicas. Por vezes, esses retrocessos se devem a fatores circunstanciais, como crises econômicas, ou afluxo excessivo de levas de imigrantes, refugiados econômicos de países pobres ou vítimas de conflitos graves em seus locais de origem. O populismo é uma deformação da democracia de qualidade, e um desvio quanto ao suposto itinerário de elevação constante dos padrões de governança política, ao, inevitavelmente, produzir respostas simplistas, geralmente equivocadas, aos problemas sociais e culturais existentes. Ele começa pela divisão do país entre povo e elite, pela deformação das políticas no sentido de estimular uma sensação fugaz de melhorias sociais, e termina invariavelmente por uma crise fiscal e por eventual recessão econômica, quando não deriva para regimes autoritários, e mesmo celerados, como foi o caso, não raramente, na história da América Latina.
21) Finalmente, o grande paradoxo das relações internacionais contemporâneas constitui, em minha visão, o caráter duplo da globalização, um processo irrefreável em sua essência, mas eventualmente contido, limitado, desviado de seu curso natural pela ação de governos e de organismos internacionais. Costumo distinguir, a esse propósito, entre uma globalização microeconômica e uma outra, que podemos chamar, talvez, de macroeconômica, mas que não é exatamente uma globalização e sim, no fundo, uma antiglobalização. A primeira é aquela feita pelos inovadores individuais, pelos pequenos e grandes “gênios” das novas tecnologias, das soluções práticas aos problemas da vida corrente, ou aqueles inventores de coisas com as quais sequer sonhávamos antes, e que introduzem, individualmente pela internet, ou por meio dos mercados com o suporte de empresas – grandes, médias, pequenas, físicas ou virtuais – novos produtos e novos serviços, ou transformam velhos produtos e serviços com a ajuda dos processos por eles inventados, modificados, remodelados e em seguida disseminados nas redes sociais, nas lojas online, nas simples comunicações entre indivíduos, dando até uma aparência de free lunch ao que, na verdade, traz todo um marketing acoplado a esses novos intrusos em nossa vida cotidiana. Essa globalização, de origem e natureza essencialmente microeconômica, pois que feita por indivíduos e empresas, é praticamente irrefreável, pois ultrapassará todas as barreiras que governos autocráticos insistem em erigir para defender seus sistemas fechados e antidemocráticos. Ela é a verdadeira essência da globalização, e a ela devemos toda a modernidade que consumimos avidamente todos os dias. 
22) A outra globalização, a que eu chamei de macroeconômica, constitui na verdade uma contrafação da globalização, e se expressa nos foros multilaterais, nas grandes conferências internacionais, nos exercícios de regulação nessas organizações interestatais, nas negociações bilaterais ou plurilaterais, que pretendem, alegadamente, “normatizar”, estabelecer padrões uniformes, disciplinar o uso, coibir práticas tidas como nocivas ou deletérias à saúde, à segurança, à paz social das nações, quando no mais das vezes representam os esforços de burocratas nacionais e internacionais para enquadrar e controlar a primeira globalização, que é espontânea e que pode, na verdade, ser usada para fins diametralmente opostos. Pensemos, por exemplo, no caso das moedas virtuais, que fogem ao monopólio emissionista dos governos, ao controle das autoridades monetárias e das respectivas administrações fiscais, mas que também podem servir para a lavagem de dinheiro e para a prática de crimes ainda mais graves. Essa “globalização”, feita de acordos, protocolos e outros atos internacionais, ou ainda, de medidas nacionais – leis, decretos, portarias regulatórias, estatutos, etc. – tenta enquadrar processos espontâneos de inovação tecnológica, ou até comportamental, uma vez que essa é a missão dos governos nacionais, mesmos os mais democráticos: eles querem sempre tutelar a vida dos indivíduos, dizer o que eles podem e, sobretudo, o que eles não podem, fazer, uma vez que as burocracias nacionais (ou as internacionais) adquirem vida própria e se exercem em seu próprio mundo circular. O que faria um burocrata senão emitir normais, guias, regulamentos, para controlar os súditos?

Uma conclusão pouco conclusiva: a eterna disputa entre duas lógicas
23) Termino pelo paradoxo maior em nossas vidas, que não é contemporâneo, nem sequer traduzível numa expressão única da vida em sociedade, uma vez que ele é da própria essência da vida em sociedade. Existe uma contradição básica, irredutível, um paradoxo insuperável entre a vida econômica e a atividade política, e essa divisão radica na própria natureza desses processos sociais. Vou estender-me, para finalizar, sobre uma e outra.
24) A vida econômica será tanto mais dinâmica, viva, criadora de prosperidade, de bem estar, talvez de felicidade humana, quanto mais livre ela for, quanto mais estiver desimpedida pelos entraves regulatórios que são criados pelos governos para corrigir supostas “falhas de mercado”. Ora, para mim não existem “falhas de mercado”, pois eles são uma impossibilidade prática. Os mercados não entes dotados de vontade própria, que se movem como se obedecendo a ordens superiores, ou comandos unificados. Mercados, na verdade, não são espaços físicos, e sim interações momentâneas entre indivíduos e organizações, uma relação que se estabelece entre um ofertante e um demandante, entre um vendedor e um comprador, que decidem livremente concluir uma transação entre si. Sendo a expressão da vontade soberana de indivíduos conscientes e companhias organizadas, de milhões desses agentes atuando livremente – ou assim deveria ser em mercados dignos desse nome –, tais interações não podem ter falhas, ou deformações que sejam derivados de outra coisa que não a soma dessas interações fugazes, ou até estáveis, entre indivíduos e empresas. Numa sociedade democrática, nenhum indivíduo ou qualquer companhia podem ser levados a contrair uma relação que não expresse suas vontades soberanas. Numa economia aberta, os mercados farão exatamente o que a vontade individual ou coletiva desses agentes de mercado desejará fazer, como que guiados por uma “mão invisível”, na feliz expressão de Adam Smith. Por isso, uma sociedade será tanto mais próspera quanto mais livre forem os mercados, o que significa que eles serão necessariamente atomizados, dispersos, virtuais ou físicos, temporários ou estáveis segundo a vontade das pessoas. Esta é a lógica da vida econômica, ou pelo menos assim deveria ser nas sociedades abertas, não necessariamente libertárias, mas pelo menos liberais.
Outra é a lógica da política, que é sempre, segundo as lições weberianas, a expressão de um sistema de dominação. Para que uma sociedade não se consuma no arbítrio dos mais fortes, que se transformam em tiranos, num esquema hobbesiano do Leviatã todo poderoso, os arranjos sociais levam a um contrato coletivo pelo qual se estabelece uma entidade, o Estado, que passa a deter o monopólio da força, para, a partir daí administrar a segurança e a justiça em favor do súditos ou cidadãos. O problema está, justamente, em que essa lógica leva à concentração do poder, o contrário do que se deveria esperar de um sistema econômico pujante, dinâmica, baseado precisamente na livre disposição dos indivíduos, transformados em agentes econômicos, sobre o seu patrimônio, sobre os seus bens, sobre a sua capacidade produtiva (e acumulativa). O poder político geralmente não tolera essa dispersão de fontes de poder que está implícito à lógica econômica, e pretende tudo concentrar em poucas mãos, se preciso for pelo meio da força, da coação, da violência. Nas sociedades democráticas conhecidas, um sistema contratual (constitucional), dispondo sobre pesos e contrapesos, os famosos checks and balances, organizado pelos princípios de harmonia e equilíbrio entre os poderes do Estado, permite que não se chegue aos extremos do arbítrio e da violência. 
O grande problema, para a vida em sociedade, é quando essas duas lógicas se misturam de forma indevida entre ambas, por uma promiscuidade indesejável entre o poder econômico e o poder político, quando agentes poderosos da vida econômica conseguem transformar o seu papel econômico de produtores e ofertantes de bens e serviços num regime de concorrência aberta em um regime de monopólios ou de concessões exclusivas, garantidas por um poder político que, por sua vez, extrai recursos criados no terreno econômico para aumentar seus ganhos também exclusivos e monopólicos. A colusão entre o poder econômico e o poder político, a promiscuidade entre capitalistas e líderes políticos está na origem da corrupção e da perversão dos sistemas democráticos, e deve ser combatida institucionalmente pelos próprios agentes do Estado encarregados de assegurar a resiliência de uma sociedade aberta, ou se necessário pelos cidadãos conscientes em defesa de seus próprios interesses individuais.
Como se diz habitualmente, o preço da liberdade é a eterna vigilância. Se queremos viver em sociedades livres, prósperas, abertas aos talentos individuais, em bases meritocrática e de responsabilização dos agentes públicos devemos estar sempre atentos a que esse tipo de colusão indesejável não se estabeleça e não se perpetue. Por isso mesmo, devemos imprimir, até mesmo ao Estado, a mesma lógica que prevalece na vida econômica: a liberdade dos mercados, a atomização das ofertas, a livre disposição dos seus bens, a defesa da propriedade contra a intrusão dos donos do poder, o controle permanente sobre a regulação excessiva, a responsabilização dos agentes públicos num sistema aberto e transparente. Dessa forma evitaremos o supremo paradoxo que possa haver em nossas vidas: a total liberdade de que possam dispor os agentes políticos para disciplinar, enquadrar e tosquiar os agentes econômicos que somos todos nós. 
Lembremos sempre: o Estado não cria um grama de riqueza, não produz nenhum tipo de renda que não seja aquela que extrai dos produtores primários, que são todos os indivíduos da sociedade. Não deixemos a lógica da concentração de poder que é inerente ao Estado asfixie a lógica da dispersão de poder que é próprio da vida econômica. A liberdade começa por uma sociedade economicamente livre, cuja primeira missão é justamente a de evitar a colusão entre a dominação política e a atividade econômica. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 18 de maio de 2018

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