Em 2019, se continuar no IPRI, pretenderia organizar dois livros em homenagem a duas personalidades da diplomacia brasileira, assim como já fiz em relação ao Roberto Campos, e ajudei a consolidar suas antologias com escritos de Oswaldo Aranha e Celso Lafer.
Um deles é José Guilherme Merquior, cujo esquema de trabalho e colaboradores ainda está muito elementar.
O outro seria em homenagem ao embaixador Rubens Ricupero, planejado muitos anos atrás e ainda não realizado. Uma homenagem a ele, por ocasião da publicação de seu livro
A Diplomacia na Construção do Brasil, 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal, 2017), teve se ser suspensa por "acidentes de percurso", e porque o Itamaraty é sempre pusilânime, como ainda constatado recentemente.
O que vai abaixo é uma assemblagem de dois textos concebidos para duas finalidades distintas: o livro de ensaios e a sessão em homenagem a ele.
Em busca do livro perdido: homenagem a Rubens Ricupero
Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI-Funag
[Saudação a Rubens Ricupero; um reconhecimento e uma dívida pendente]
Em busca do livro perdido
À la recherche du temps perdu é um roman fleuve de Marcel Proust, escrito entre 1906 e 1922, publicado em sete tomos entre 1913 e 1922, cujos três últimos volumes apareceram depois da morte do autor. Mais do que a descrição de uma sequência de fatos e de acontecimentos enfeixados entre essas datas, essa obra de Proust representa uma reflexão sobre a literatura, sobre a memória, sobre o tempo.
Não pretendo, nesta pequena homenagem ao embaixador Rubens Ricupero, mimetizar o esforço monumental de Proust, como uma espécie de compensação pela inexistência de um livro, mas apenas em um único volume, que deveria ter precedido, de alguns anos, este ensaio “fleuve” que é hoje apresentado no Itamaraty pelo seu autor. O que desejo, nesta oportunidade, é, em primeiro lugar, formular um pedido de desculpas, efetuar, depois, um reconhecimento, e, por fim, confirmar que tenho, acho que todos temos, uma dívida, ainda a ser reparada em favor de um mestre, um autor, um professor, um colega de carreira que, reconhecidamente, honra o Itamaraty e suas tradições de excelência, encarnadas da melhor forma possível, ao longo das últimas seis décadas, por um dos nossos intelectuais mais distinguidos.
Por que digo isto, e por que começo esta homenagem a Ricupero, evocando Marcel Proust e seu roman fleuve em busca do tempo perdido? É porque eu também estou em busca do livro perdido, e por isso mesmo formulo, em primeiro lugar, um pedido de desculpas. Mais de cinco anos atrás, formulei um projeto, apresentado pouco depois a Gelson Fonseca e prontamente aceito sob a forma de uma coedição, de fazer um livro em homenagem ao mestre, tentativamente chamado “História, diplomacia e comércio internacional: ensaios em homenagem a Rubens Ricupero”. Esse projeto tinha até uma completa organização, em duas dúzias de capítulos divididos em cinco partes: 1) História: a mais constante das companhias; 2) Diplomacia: princípios, regras e valores; 3) Políticas Públicas: formulação e execução; 4) Comércio e desenvolvimento nos contextos regional e internacional, e 5) Globalização: problemas e perspectivas. Eu ainda me tinha reservado a confecção de uma introdução e de dois capítulos finais, o primeiro uma síntese pessoal sobre o professor e o homem público, o segundo, de cunho conclusivo, um ensaio reflexivo e interpretativo sobre a vida e o pensamento de Rubens Ricupero. Nada disso foi feito, ou o foi apenas em parte, daí este meu primeiro pedido de desculpas que sou agora obrigado a oferecer.
Esse era o projeto original que, acompanhado de uma carta convite, assinada por mim e pelo embaixador Gelson Fonseca, foi encaminhado a duas dezenas de amigos, de admiradores e colegas do embaixador Ricupero, com o nosso pedido singelo de que oferecessem, em tempo hábil, suas contribuições a um volume de ensaios que se encaixaria naquela categoria, amplamente conhecida nos meios acadêmicos, que os alemães chamam de Festschrift, os franceses pelo qualificativo de Mélanges offertes à..., e, na tradição inglesa e americana, pelo tradicional Essays in Honor of… Pois bem, quero apresentar aqui o nosso humilde pedido de desculpas, por não termos sido capazes de apresentar, muito por falta de cooperação dos convidados, mas também por nossa própria negligência, esse projetado livro que deveria ter precedido, de alguns anos, este que agora vem a público, do próprio autor, e que merece, legitimamente, uma justa homenagem de todos nós. Mas, este não era o livro que eu teria gostado de fazer, de apresentar e de oferecer aos interessados no devido tempo, hélas perdido.
Desejo, em segundo lugar, efetuar um reconhecimento, e creio interpretar a unanimidade dos presentes, no sentido em que, mais do que simplesmente prestar uma homenagem ao maior intelectual da carreira, dizer que somos nós que agradecemos esta oportunidade, a chance e o benefício de recebermos agora, este livro que representa a mais bela síntese sobre o que tem sido, ao longo de dois séculos ou mais, nossa própria história, nossa participação na construção da nação, nosso papel em episódios decisivos de uma trajetória bissecular, nossa contribuição para a edificação, sempre tentativa, de um país, de uma sociedade, que provavelmente gostaríamos fosse mais desenvolvida, mais justa, mais inclusiva, e mais participativa no chamado concerto das nações, mas que é esta que hoje contemplamos um pouco apreensivos quanto ao seu estado presente e seus rumos futuros. Independentemente do balanço que se faça – e o faremos a caminho do bicentenário –, esta é a nação da qual somos representantes mandatados, para a qual contribuímos com nosso quinhão de esforços voltados para a construção – nos termos da sociologia germânica – de uma Gemeinschaftque certamente imaginávamos um pouco mais solidária e mais avançada do que esta que agora temos, se tivéssemos tido a possibilidade de consolidar uma Wirtschaftcompatível com as justas aspirações do seu povo, ao longo destes dois séculos.
Se não o conseguimos, devemos pelo menos reconhecer que esta obra, A Diplomacia na Construção da Nação, 1750-2016, representa a melhor síntese sobre esse itinerário – constante, contínuo e denodado – de esforços de várias gerações de diplomatas e de homens públicos que honraram a nação, e que tentaram dela fazer, senão um país ideal, pelo menos um Estado de bem-estar em benefício de seus próprios cidadãos e perfeitamente cooperativo no plano internacional, em prol da paz, da segurança, do desenvolvimento de todos os povos e nações. Somos nós, portanto, que devemos agradecer ao embaixador Rubens Ricupero, por nos ter oferecido uma rationale histórica dessa longa trajetória que vai das negociações do Tratado de Madri por Alexandre de Gusmão até as angústias e dúvidas do tempo presente, quanto às possibilidades de sermos capazes de honrar os pais fundadores da nação, e também nossos antecessores na diplomacia profissional, dando continuidade à obra ainda inacabada de construção da nação, preservando nossos mais sagrados princípios e valores, os da democracia, dos direitos humanos, da justiça social, do tratamento humanitário e igualitário de todos os brasileiros.
Um livro apenas temporariamente perdido
É comum, no ambiente acadêmico, a organização de volumes comemorativos em homenagem àqueles que se distinguiram em carreiras especialmente bem sucedidas na docência e na pesquisa de uma área qualquer; a prática, é verdade, é bem mais usual e frequente nas humanidades do que nas ciências exatas. O objetivo é justamente o de se render tributo, geralmente por parte de colegas, a quem soube exercer-se com talento e dedicação nas diversas vertentes e feituras do magistério e da pesquisa ao longo de todo um itinerário que costuma estender por uma geração inteira, senão mais, alcançando, ano a ano, dezenas de graduações acadêmicas e de cursos complementares, com possível e não rara influência fora do ambiente estritamente universitário.
Esses volumes são menos conhecidos fora da academia, isto é, nas corporações de ofício que também possuem no trabalho intelectual a base fundamental de suas reflexões e de suas práticas: estas seriam, por exemplo, a magistratura, os encarregados de políticas públicas, como os funcionários dos tesouros nacionais, dos bancos centrais e várias outras na burocracia oficial. Poderiam também merecer tais distinções algumas categorias do “mandarinato estatal” que, em diversos casos, possuem instituições de ensino, de formação e treinamento, bibliotecas especializadas e, por vezes até, um corpo estável de professores, dedicados a instruir e aperfeiçoar, nos ossos daquele ofício, os novos recrutas e os funcionários concursados da profissão em causa.
Este deveria ser também o caso da diplomacia, uma carreira de Estado altamente intelectualizada, dotada de instituições próprias de seleção, recrutamento e treinamento, com professores designados, dentro e fora da carreira, para o processo de socialização, homogeneização e aperfeiçoamento dos admitidos na carreira. A mais forte razão, os diplomatas são, junto com os soldados e marinheiros, agentes do Estado por excelência, dos quais se exige, justamente a mais alta qualificação técnica e intelectual na defesa dos interesses do país e na consecução dos grandes objetivos nacionais. De fato, temos notícia de que o Instituto Rio Branco, que exerce, desde 1945, o monopólio nessas tarefas, ou o braço editorial do Itamaraty, a Fundação Alexandre de Gusmão, têm se esforçado em prestar uma justa homenagem, sob diversas formas, aos mais brilhantes ou distinguidos mentores e profissionais da carreira, por exemplo na modalidade de “leituras públicas” enfeixadas sob a rubrica de “Percursos Diplomáticos” que criamos com o Diretor-Geral do Instituto Rio Branco, ou ainda pela publicação ocasional de diversos volumes de compilação de escritos esparsos ou das memórias de um ou outro dentre os diplomatas que deixaram suas marcas intelectuais nesta Casa.
Volumes comemorativos do sesquicentenário do nascimento do ícone ímpar da diplomacia brasileira, de sua entrada em funções, em 1902, e de sua morte no exercício do cargo, dez anos depois, foram publicados pela Funag, em 1995 – aliás, pelo próprio Ricupero, uma fotobiografia do Barão do Rio Branco, com João Hermes Pereira de Araujo –, e em 2002 e 2012, respectivamente. Mas não se tratou, obviamente, de obras comparáveis, no espírito e no estilo, a um Festschrift, como o que reconhecemos deveria ser feito em homenagem a Ricupero. Um exercício vagamente assimilável a esse gênero – mas exercendo-se apenas em direção de personagens falecidos – foi constituído pela obra organizada em 2001 pelo diplomata e acadêmico Alberto da Costa e Silva, em torno da presença de figuras relevantes do Itamaraty na cultura brasileira, certamente título ambicioso, mas que permitiu registrar a registrar a trajetória de um número seleto de diplomatas intelectuais, desparecidos, que se exerceram com talento nas letras e nas humanidades, em geral.
Embora reconhecendo o mérito do empreendimento, foi como se a iniciativa dissesse algo do gênero: “Aos mortos, todas as nossas homenagens; aos vivos, mais um pouco de paciência: contentem-se, por enquanto, com algumas medalhinhas, antes que possamos nos ocupar, no devido tempo, de seus despojos literários”. Existe um duplo risco no empreendimento: por um lado, os mortos, a exemplo de Varnhagen, Edmundo Penna Barbosa da Silva, ou Oswaldo Aranha – todos eles contemplados em livros editados recentemente pela Funag – já não podem reclamar do que contarmos ou escrevermos sobre eles. Mas se fossemos, por outro lado, nos ocupar de alguns muito vivos, pessoas do presente, dotadas de certa influência, sempre se pode correr o risco de cair no conjuntural ou, pior, sofrer pressão política indevida, para que elas sejam entronizadas como supostos arautos geniais da verdadeira doutrina social, ou até mesmo da melhor prática diplomática. Em relação aos desaparecidos existe hipoteticamente o risco de cair em exagerados elogios póstumos, atribuindo-lhes todas as virtudes e nenhum vício; no segundo caso, o perigo seria o de fazer algum tipo de panegírico aos poderosos do momento, que podem ser ególatras compulsivos, a exemplo de certo “filho do Brasil”.
Mas aqui entra um nicho histórico em favor de Rubens Ricupero, em relação ao qual, dado o testemunho concreto de sua imensa obra já publicada, não se corre nenhum risco de incorrer numa ou noutra tentação. O sentido de uma verdadeira homenagem, e acredito que o fazemos agora, é o de prestar um justo reconhecimento a quem tanto contribuiu para o nosso próprio enriquecimento intelectual, para a valorização desta Casa e a de nossa carreira e para o engrandecimento da nação. Estamos, portanto, nos antecipando à inevitável passagem do tempo, prestando uma homenagem em vida a um dos nossos mais distintos intelectuais e homens públicos. Ao fazê-lo, cabe, em terceiro lugar, o reconhecimento desta dívida, que ainda precisa ser reparada, e o será, no devido tempo, esperamos não mais perdido.
O sentido de uma justa homenagem
Por que decidimos romper com esta sadia precaução e prestar uma homenagem a um colega de carreira ainda em plena e intensa produção intelectual? Poderíamos alinhar parágrafos e mais parágrafos de justificativas e explicações, mas dispensamo-nos da redundância. Bastaria o atestado, informal, de quem conhece o personagem e sua produção. Quem quer que tenha acompanhado a diplomacia brasileira nos últimos cinquenta anos, quem sorveu suas aulas na Universidade de Brasília ou no Instituto Rio Branco, quem assistiu a qualquer uma de suas centenas de palestras em algum canto do mundo, quem percorreu, nas últimas décadas, as páginas dos jornais mais importantes do país, nas seções de economia ou de atualidade internacional, quem acompanhou a saga da implementação do Plano Real, ou quem cotidianamente segue a discussão bem informada e responsável, em quaisquer veículos, em torno dos temas do comércio, do meio ambiente, os diplomáticos e, de modo geral, os de relações internacionais, ou de qualquer outro assunto, quem já leu seus artigos e ensaios, ouviu suas opiniões, assistiu a entrevistas de Rubens Ricupero, qualquer um desses pode responder melhor do que os organizadores e colaboradores de uma coletânea ainda em preparação sobre a razão desta homenagem, sendo apenas de se estranhar o atraso na tarefa. Não parece caber, assim, qualquer justificativa para a presente sessão de homenagem: o personagem aqui presente, e suas produções, constituem sua própria mensagem e sua apresentação, sem qualquer necessidade de campanha publicitária.
Esta iniciativa, preliminar, portanto, a um verdadeiro Festschrift, deve ser vista no sentido preciso que possui um Festschrift: uma homenagem, singela, mas sincera, de amigos e admiradores de Rubens Ricupero a um dos mais distinguidos diplomatas e homens públicos do Brasil do último meio século e um pouco além. Os elogios que podemos fazer em sua intenção deveriam tocar pelo menos alguns – senão todos – os domínios da inteligência e do pensamento intelectual que percorreu e frequentou nosso personagem: todos os aqui presentes certamente possuem ou exibem, em relação a ele, aquilo que Goethe chamou de “afinidades eletivas”. Este é o sentido de nossa sincera e justa homenagem, nosso reconhecimento pela obra intelectual que Ricupero construiu em benefício da nossa diplomacia, neste exercício que eu mesmo chamaria, numa pequena inversão do conceito de Goethe, de “escolhas afetivas”. Este é o sentido desta homenagem, que fazemos ao mestre, com carinho.
Nosso mais sincero reconhecimento ao embaixador Rubens Ricupero.
Cheers!
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22 de setembro de 2017
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