quinta-feira, 5 de maio de 2022

Revista da USP: dossiê Bicentenário da Independência: Economia,



“Em 200 anos, fizemos um trabalho muito insatisfatório”

É o que afirma o professor Hélio Nogueira da Cruz, coordenador do dossiê Bicentenário da Independência: Economia, da Revista USP. O dossiê é o primeiro de uma série de quatro que tratarão de aspectos essenciais do País nos últimos 200 anos
Share on facebook
 
Share on twitter
 
Share on whatsapp
 
Share on linkedin
 
Share on email
 
Share on telegram
Dossiê Bicentenário da Independência: Economia – Arte sobre fotos Wikimedia Commons

.
Texto: Juliana Alves, Jornal da USP

.
O Bicentenário da Independência do Brasil, que se comemora este ano, é mais do que uma efeméride — é um momento propício para se refletir acerca do caminhos (e descaminhos) que o País trilhou nesses últimos 200 anos e quais têm sido seus principais desafios. Para colaborar nessa reflexão, a Revista USP — editada pela Superintendência de Comunicação Social (SCS) — vai publicar quatro números especiais, totalmente dedicados ao bicentenário, que ajudarão a entender como o Brasil se estruturou (ou não) como nação. Esta primeira edição trata da economia brasileira, tanto no período logo subsequente à Independência como também nas décadas posteriores e foi coordenada pelo professor Hélio Nogueira da Cruz, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP (FEA-USP). As próximas edições da revista trarão dossiês sobre cultura e sociedade (coordenado pela professora Maria Arminda do Nascimento Arruda, da FFLCH e vice-reitora da USP), política (coordenado pelo professor José Álvaro Moisés, da FFLCH) e ciência e tecnologia (coordenado pelo professor Glauco Arbix, da FFLCH e coordenador do Observatório de Inovação do Instituto de Estudos Avançados – IEA da USP).

Ao longo do dossiê Bicentenário da Independência: Economia, pode-se entender como o Brasil, dois séculos depois, ainda mantém “certos laços históricos profundos que ainda hoje nos aproximam do período da Independência, tais como a péssima distribuição de renda, o racismo, o patriarcalismo, o patrimonialismo e a baixa prioridade à educação e à saúde pública”, como afirma a apresentação da revista, assinada por Hélio Nogueira e também pelos professores Flávio Azevedo Marques Saes e Guilherme Grandi, também da FEA. O dossiê Bicentenário da Independência: Economia está disponível neste link.

Em entrevista ao Jornal da USP (veja vídeo abaixo), o professor Hélio Nogueira falou sobre o dossiê e refletiu sobre esses 200 anos de economia no Brasil. Segundo ele, “nos baseamos em um modelo estático do passado”. “Apesar de conseguirmos fazer um modelo ambicioso, com avanços importantes, a indústria brasileira não está acompanhando as indústrias dos países de porte”, afirma Nogueira.

Escravidão, Revolução Industrial e bancos

O primeiro artigo do dossiê, Dinâmica da Atividade Agrícola Até Meados do Século XIX, escrito pelos professores Francisco Vidal Luna, da USP, e Herbert S. Klein, da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, aborda diferentes aspectos da agricultura, tanto no que se refere à grande lavoura exportadora como no que diz respeito à agropecuária voltada ao abastecimento do mercado interno. Os autores afirmam que os efeitos das atividades não exportadoras são essenciais para explicar a história, ocupação e povoamento do território brasileiro, mesmo que o mercado internacional fosse o elemento dinâmico. Eles analisam a atividade agrícola durante o século 19, período de consolidação da cafeicultura, que alterou profundamente a estrutura produtiva nacional e a infraestrutura econômica, em particular o sistema de transportes.

Já A Escravidão Brasileira à Época da Independência, de José Flávio Motta, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em História Econômica Hermes & Clio, também da FEA, traz estimativas do “estoque” e do “fluxo” de pessoas escravizadas no Brasil na primeira metade do século 19, enfatizando a intensificação da entrada de cativos naquele período.

Em seguida, o autor investiga os impactos desses números nas características da escravidão brasileira na época da Independência. Ele analisa o padrão da distribuição da posse de cativos e evidencia a relação de vulnerabilidade e resiliência das famílias escravas no enfrentamento dos rigores e castigos do cativeiro. O professor também descreve a eventual participação direta das pessoas escravizadas no processo de emancipação política. Nas considerações finais, Motta destaca aspectos da trajetória da escravidão até sua abolição, apontando as cicatrizes profundas por ela deixadas, nitidamente visíveis até hoje.

Comércio Interno e Manufaturas nos Tempos da Independência do Brasil é o título do artigo de Maria Alice Rosa Ribeiro, professora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e pesquisadora colaboradora do Centro de Memória da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em seu texto, ela analisa o tráfico de escravizados, distinguindo os negociantes do comércio atlântico daqueles que atuavam na  distribuição de escravizados no mercado interno. Além disso, Maria Alice aborda o comércio de alimentos e de manufaturados comuns transacionados pelos tropeiros e o comércio de manufaturados importados mais sofisticados. Em seguida, a autora muda o foco para a produção manufatureira, a indústria artesanal doméstica, como algodão, alimentos e bebidas, cerâmica e olaria (fabricação de tijolos, telhas e vasilhames de barro). No fim do artigo, Maria Alice ainda reflete sobre uma das mais importantes atividades industriais, a siderurgia.
.

.
A fim de analisar o legado tributário colonial e as primeiras ações do Brasil como nação independente na reestruturação de seu sistema fiscal, na separação das rendas e na definição das competências tributárias, Luciana Suarez Galvão, professora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, e Anne Gerard Hanley, professora da Northern Illinois University, nos Estados Unidos, escrevem o artigo Fiscalidade no Brasil Império: a Manutenção de Privilégios e o Legado da Desigualdade. Nele, as professoras defendem que a retórica do liberalismo e a falta de planejamento levaram ao estabelecimento de um sistema tributário que manteve os privilégios da elite política e econômica, com base no recolhimento de impostos indiretos sobre toda uma população de forma desigual. A mesma falta de planejamento acabou por deixar províncias, e em especial municípios, com grande parte da responsabilidade sobre a organização de bens públicos, mas de maneira inadequada. Segundo as autoras, o conjunto desses aspectos comprometeu de maneira significativa o desenvolvimento econômico de longo prazo, agravando ainda mais a disparidade social.

Sobre o contexto histórico da Independência do Brasil, que foi marcado por inúmeros desafios, dentre eles o estabelecimento de uma rede de vias de comunicação que integrasse o território e, assim, auxiliasse a unidade do Império brasileiro, Guilherme Grandi, professor do Departamento de Economia da FEA, escreve o artigo Transportes e Planos de Viação no Brasil Imperial. O objetivo do texto, de acordo com o autor, é examinar aspectos gerais sobre os transportes terrestre e fluvial ao longo do Primeiro Reinado (1822-1831) e da Regência (1831-1840). Grandi ainda analisa as propostas de alguns dos principais planos de viação que surgiram ao longo do período de 1869 a 1882.

O professor da Universidade Federal de Alfenas (Unifal), em Minas Gerais, Thiago Fontelas Rosado Gambi, no artigo A Independência e o Banco, Brasil 1821-1829, tem a intenção de avaliar, por meio de relatórios do Ministério da Fazenda, a atuação do Banco do Brasil como fornecedor de crédito ao governo desde a Independência até sua extinção, em 1829. O autor investiga a repercussão da imprensa da corte sobre os negócios bancários no contexto da emancipação política. A pesquisa mostrou que, embora os bancos não tenham sido protagonistas na expansão do mercado de crédito no País, o Banco do Brasil cumpriu uma importante função no financiamento do gasto público e na consolidação da Independência. Desse modo, o artigo contribui para esclarecer o papel do banco no financiamento dos gastos públicos depois da Independência e captar, pela imprensa, o efeito de seus desdobramentos políticos sobre a confiança na instituição.

O artigo O Mealheiro Oculto: Dinâmicas Econômicas entre o Norte e o Sul do Brasil no Tempo da Independênciado professor da Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará (UFPA) Daniel Souza Barroso, tem como objetivo analisar a economia da Amazônia, do Nordeste e do Sul do Brasil no período da Independência. Para isso, Barroso examina as exportações e a força de trabalho escravizada dessas regiões.

No final, o professor propõe a hipótese de que – direta ou indiretamente – as dinâmicas econômicas entre o Norte e o Sul do Brasil produziram riqueza à margem do Centro-Sul, ao responderem por grande parte das exportações e da população do País naquele contexto.

Dossiê Bicentenário da Independência: Economia – Foto: Reprodução/Revista USP

Alexandre Macchione Saes, professor do Departamento de Economia da FEA, e Ivan Colangelo Salomão, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), discutem a difusão das ideias da economia política clássica no artigo Pensamento Econômico no Brasil na Época da Independência. Os autores estudam três eventos históricos, entre os séculos 18 e 19, que marcam um período de transições: as independências americanas, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial inglesa. No confronto entre essas ideias e a prática da economia colonial, a assimilação da economia política no Brasil realizada pela geração de d. Rodrigo de Sousa Coutinho, José da Silva Lisboa e José Bonifácio de Andrada e Silva implicou tendência contraditória de difícil conciliação entre interesses metropolitanos e coloniais e a manutenção de práticas mercantilistas em meio às ideias liberais.

O debate sobre capitalismo e escravidão é o tema central do artigo Revolução Industrial e Circuitos Mercantis Globais: a Crise da Escravidão no Império Britânico, de Tâmis Parron, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Para ele, essa temática ilumina as relações materiais entre Revolução Industrial e crise da escravidão negra no Império britânico a partir das perspectivas da teoria crítica e do mundo.

Para fechar a edição, e ainda na esteira das datas comemorativas, a seção Arte traz um artigo da professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Elza Ajzenberg: A Semana de Arte Moderna de 1922 – Cem Anos Depois. Elza conta a história da organização da Semana de Arte Moderna e os debates em torno da exposição de Anita Malfatti entre 1917 e 1918. Além disso, a professora explica o contexto histórico, as principais ideias políticas e movimentos artísticos que cercaram a Semana e a repercussão na imprensa da época.

O dossiê Bicentenário da Independência: Economia, o primeiro da tetralogia, foi organizado pelos professores Hélio Nogueira da Cruz, Flávio Azevedo Marques Saes e Guilherme Grandi, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, e está disponível neste link.

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Arnaldo Godoy: um intelectual que adentra no Instituto Histórico e Geográfico do DF (5/05/2022): discurso de saudação, Paulo Roberto de Almeida

 Terei o prazer de saudar o novo acadêmico do Instituto Histórico e Geográfico do DF, meu colega e amigo Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, que assume na cadeira que tem como patrono Clovis Bevilaqua, o mais longevo Consultor Juridico do Itamaraty, de 1906 a 1934.


Resumo do CV do Lattes, que tem 165 páginas no formato miúdo do padrão CNPq, mas pode alcançar 345 páginas, em Times NewRoman 12, interlinha simples.



  Livre docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo-USP.Professor Visitante na Faculdade Nacional de Direito de Nova Délhi (Índia), na Faculdade de Direito daUniversidade da Califórnia-Berkeley, na Universidade de Pretória (África do Sul) e no Instituto Max-Planck deHistória do Direito Europeu- Frankfurt (Alemanha). Pós-doutorado em Direito Comparado na Universidade deBoston, em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-PUC-RS, emLiteratura no Departamento de Teoria Literária da Universidade de Brasília-UnB e em História do Direito naFaculdade de Direito da Universidade de Brasília-UnB. Doutor e Mestre em Filosofia do Direito e do Estado pelaPontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC-SP. MBA em Direito Comunitário Europeu pela FundaçãoGetúlio Vargas e pela Escola de Administração Fazendária- Brasília. Pós-graduação em Filosofia e Bacharel emDireito pela Universidade Estadual de Londrina- PR. Consultor-Geral da União (fevereiro de 2011 a junho de2015). . Procurador-Geral Adjunto na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (outubro de 2015 a janeiro de2016). Procurador da Fazenda Nacional Aposentado (concurso de 1993). Vencedor do prêmio Capes, orientaçãomelhor tese em Direito, 2018. Advogado em Brasília. 

============

Minha saudação a ele, com base num resumo de sua imensa produção intelectual:

Saudação a Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy


Tomada de posse em 5 de maio de 2022, cadeira Clovis Beviláqua

Recepção por Paulo Roberto de Almeida, cadeira Tobias Barreto

 

Bacharel em direito, formado pela Universidade Estadual de Londrina, onde lecionou direito romano. Após a formatura, fez uma especialização em filosofia: história do pensamento brasileiro, que concluiu com um trabalho sobre a Lei da Boa Razão, que fixou o iluminismo jurídico da era pombalina.

Tirou o mestrado na PUC-SP, com pesquisa sobre as relações entre direito e literatura; explorando, especialmente a desilusão jurídica em Monteiro Lobato. Doutorou-se pela PUC também, com tese sobre os limites da história do direito, com base no legado romântico da Grécia antiga. Vinha estudando grego moderno (por quase dez anos), e desenvolveu pesquisas na Grécia, especialmente em Tessalônica (que é de onde vinha Aristóteles). Seguiu para um pós-doutoramento na Universidade de Boston, na qualidade de Hubert Humphrey Fellow, uma bolsa concedida pelo governo norte-americano. Pesquisou o direito dos Estados Unidos, e voltou com dois livros publicados (em português): um sobre o direito norte-americano em geral e um segundo sobre o direito tributário naquele país. Seguiu para a livre-docência na USP, que defendeu em 2012, com tese sobre litigância intragovernamental, isto é, um tema de direito administrativo. 

Da defesa do doutorado em diante pesquisou e publicou sobre vários assuntos. Escreveu dois livros sobre direito internacional tributário, um livro sobre transação tributária, um sobre direito tributário diplomático, três livros sobre história do direito e um outro sobre a execução fiscal no direito comparado. 

Ao mesmo tempo, traduziu Roberto Mangabeira Unger (que conheceu em Harvard) e publicou três livros sobre o trabalho dele. 

A maior parte de seus estudos atuais consiste nas relações entre direito e cultura, com especial atenção nas relações entre direito e literatura e entre direito e história. Desde 2010 tem mantido uma coluna semanal na Revista Eletrônica Consultor Jurídico, os “embargos culturais”, espaço no qual comento livros e ideias. Ele costuma dizer que não tem ideias próprias, e que, no mais das vezes, expressa as ideias que lê nos livros, e que lê muito, mas muito mesmo. 

Pois eu acredito, sendo um seguidor contumaz dos seus petardos dominicais, que ele chama apropriadamente de “embargos culturais”, que o Arnaldo Godoy faz uma leitura original de cada livro resenhado, pois são bem mais do que simples resenhas, e sim resenhas-artigos, no modelo da New York Review of Books.

A par de crítica literária, confessa que fez um pouco de crítica de cinema também, sempre relacionando o cinema com a experiência jurídica. Tem inclusive um livro chamado “Direito e Cinema”. 

Nos últimos anos tem pesquisado para escrever biografias. Publicou um estudo sobre Tobias Barreto, que eu utilizei amplamente no meu discurso de posse na cadeira que tem o professor em mangas de camisa da Escola de Recife como patrono, e posso dizer que essa biografia, que recebeu aportes que Arnaldo Godoy foi buscar no Max Planck Institut da Alemanha, sob a forma dos autores alemães que ele leu no original, tendo sido um autodidata no aprendizado da língua germânica.

Atualmente, ele está avançando com uma biografia do jurista Francisco Campos, um dos grandes suportes jurídicos do Estado Novo varguista. 

Atualmente também pesquisa e prepara um livro sobre a teoria das fontes do direito.

Publicou com o jurista Ingo Sarlet, um professor de Porto Alegre, autor mais citado pelo Supremo Tribunal Federal, um livro sobre a História do Direito Constitucional Alemão, que consumiu quase 10 anos de muita pesquisa conjunta. 

Foi professor-pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) onde pesquisou sobre o presidencialismo norte-americano. Esteve como pesquisador também no Instituto Max Planck de História do Direito Europeu (em Frankfurt), quando pesquisou justamente os autores alemães citados por Tobias Barreto. 

Lecionou em Nova Delhi (na Faculdade de Direito) e pesquisou na Universidade de Pretoria (também na Faculdade de Direito). Lecionou um curso na Universidade de New Brunswick (em Frederictown, no Canadá) e também na Universidad Católica do Chile (em Santiago). Palestrou em Buenos Aires e Lima sobre temas de direito tributário.

Atuou como Procurador da Fazenda Nacional de 1993 a 2021, com interregnos. Foi assessor de Ministro no Supremo Tribunal de Federal, Procurador-Geral Adjunto da Fazenda Nacional e Consultor-Geral da União. 

Atualmente, advoga como socio do escritório Hage & Navarro. Leciona no programa de pós-graduação e na graduação no Ceub (desde 2010). Lecionou na Universidade Católica de Brasília (de 2005 a 2010) e leciona também no Iesb (desde 2004).

 

Trata-se de um Currículo que, se traduzido no formato do Lattes, resultou em nada menos do que 457 páginas, o que deveria habilitá-lo a entrar no Guiness do Lattes.

Por outro lado, o que eu prezo mais do que tudo é a sua absoluta fidelidade aos livros, na verdade a todas as formas de comunicação escrita.

Cabe mencionar que, ademais da gigantesca tarefa de resenhas dominicais implacavelmente mantidas há mais de dez anos no Conjur, ele também dirige, com um colega do Paraná, Bruno Augusto Sampaio Fuga, a coleção Literatura para Juristas, da Editora Thoth, de Londrina, que já editou grandes nomes da literatura brasileira, entre eles Dom Casmurro e Esaú e Jacó, de Machado de Assis, ambos com densas introduções explicativas em torno das conexões entre o enredo dos livros e o Direito, com considerações jurídicas sobre os temas mais instigantes, entre eles as questões do nosso regime jurídico e constitucional, a transição entre o Império e a República e outras questões pertinentes. Mas Lima Barreto também entra nessa aventura de estudar o Direito através da literatura, e vários outros mestres da arte da escrita, notadamente no volume que contém o seu “Cemitério dos Vivos” e mais um do velho Machado, O Alienista, muito adequado aos tempos atuais. Fui convidado a oferecer meus préstimos a essa magnífica coleção, mas, sendo da tribo dos sociólogos, confesso minha incompetência para a missão. Ambos os organizadores assinam, ademais de uma introdução geral à coleção, uma introdução circunstanciada de todas as interfaces da obra reeditada com a ciência, a prática e a teoria do Direito, não apenas no estrito sentido bacharelesco, mas em conexão com a vida política do Brasil, no contexto da época na qual se desenvolve o enredo. Posso afirmar que se trata de algo absolutamente inédito na crítica brasileira, muito além de uma resenha crítica ou leitura anotada e sim uma profunda reflexão sobre como esses autores – e o herói é inevitavelmente o bruxo do Cosme Velho, o fundador da Academia Brasileira de Letras – traduziram as agruras jurídico-políticos dos personagens imersos no nosso sistema político constitucional e nos problemas corriqueiros da vida em sociedade: casamento, traição, dinheiro, emprego público, enfim, o usual costumeiro de Machado. A coleção deve ter 20 volumes, o que promete leitura para pelo menos meio ano, ou mais.

O trabalho de Arnaldo Godoy, no plano intelectual, é absolutamente fenomenal, e tenho certeza de que sua participação em nosso cenáculo enriquecerá sobremaneira nossos trabalhos e nossa produção intelectual.

Seja bem-vindo, Arnaldo, faça a radiografia jurídica do nosso Instituto e coloque seu bisturi analítico a serviço de nossas memórias dos tempos correntes ou já pensando nas recordações póstumas dos nossos primeiros 60 anos. 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 5 de maio de 2022

O terceiro pós-guerra - Jorge Fontoura (CB)

 Meu amigo Jorge Fontoura publicou nesta quarta-feira 4 de maio de 2022 um rico e denso artigo sobre a atual situação do sistema internacional, a partir da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, como se pode constatar por esta imagem: 


 Entre várias outras considerações bastante válidas, Jorge Fontoura formula uma pergunta básica: 

"Seria a guerra na Ucrânia um fato histórico de transição de era, o fim da Idade Contemporânea?"

Tentarei responder a essa questão mais adiante.

Mas ele também pergunta, na imediata sequência: "Seria a natureza humana irremediavelmente insana?", ao que eu responderia também imediatamente que sim, mas não todos os humanos, só os ditadores mais arrogantes.

Mas, a segunda questão é relativamente secundária, pois sempre teremos insanos, populistas e demagogos entre nós, sendo mais relevante retornar à primeira questão: a guerra de agressão da Rússia e as sanções unilaterais tomadas ao seu encontro por diversos países produziram uma mudança sistêmica no cenário mundial e nas relações internacionais?

Provavelmente sim, mas não na magnitude esperada ao final do seu artigo, quando Jorge Fontoura menciona os acordos de Yalta como o prenúncio de uma nova era. Estávamos então na maior catástrofe geopolítica do século XX e de todos os séculos precedentes, deslocando para um ínfimo terceiro ou quarto lugar a tal "catástrofe geopolítica" da autoimplosão da União Soviética, muito equivocadamente magnificada pelo neoczar Putin. Não se pode esperar que dessa guerra localizada – mas com efeitos mundiais, pelas reações provocadas – saiam grandes arranjos quanto os que resultaram de Dumbarton Oaks, de Bretton Oaks, de Yalta e San Francisco. 

O que ocorrerá será um notável processo de "diminuição" (ou enxugamento) econômico da Rússia, talvez convertida em colônia econômica da China no espaço de alguns anos, dada a sabotagem contra sua oferta conduzida pelas potências ocidentais. Não se pode pensar tampouco numa substituição do dólar no sistema monetário internacional, a não ser marginalmente, já que não existem condições para que outras moedas assumam o seu papel. 

Mas se pode pensar num debate consistente sobre o fim do "direito de veto", um privilégio abusivo, derivado de uma paz armada em 1945, e que poderá ser revisto no espaço da próxima geração de estadistas, em consonância com a experiência presente, de se ter um agressor em condição de impor sua vontade a todos os demais (o que também ocorre, diga-se de passagem, com os EUA, capazes de impor sanções econômicas unilaterais a quase todos os demais países).

É um debate necessário, tanto porque esse poder exorbitante não existia no Conselho da Liga das Nações, e tampouco existe no plano do direito interno dos países, onde juízes com algum interesse no caso são chamados, ou institucionalmente comandados, a não participar de julgamento e decisão.

Vou continuar escrevendo sobre isto.

Paulo Roberto de Almeida

Brasilia, 4 de maio de 2022


Documentos da RFA sobre a imediata queda do muro e a implosão da União Soviética, 1991: contra a expansão da OTAN - Der Spiegel

 Der Spiegel, Hamburgo – 3.5.2022

Bonn-Moscow Ties

Newly Released Documents Shed Fresh Light on NATO's Eastward Expansion

In 1991, German Chancellor Helmut Kohl wanted to prevent the eastward expansion of NATO and Ukrainian independence, according to newly released files from the archive of the German Foreign Ministry. Was he trying to assuage Moscow?

Klaus Wiegrefe

 

Usually, only experts take much note when another volume of "Documents on the Foreign Policy of the Federal Republic of Germany" is released by the Leibniz Institute for Contemporary History. They tend to be thick tomes full of documents from the Foreign Ministry – and it is rare that they promise much in the way of reading pleasure.

This time around, though, interest promises to be significant. The new volume with papers from 1991 includes memos, minutes and letters containing previously unknown details about NATO’s eastward expansion, the collapse of the Soviet Union and the independence of Ukraine. And already, it seems that the documents may fuel the ongoing debate surrounding Germany’s policies toward the Soviet Union and Russia over the years and up to the present day.

In 1991, the Soviet Union was still in existence, though many of the nationalities that formed the union had begun standing up to Moscow. Kohl, though, felt that a dissolution of the Soviet Union would be a "catastrophe" and anyone pushing for such a result was an "ass." In consequence, he repeatedly sought to drum up momentum in the West against independence for Ukraine and the Baltic states.

Estonia, Latvia and Lithuania had been annexed by Soviet dictator Josef Stalin in 1940, with West Germany later never recognizing the annexation. But now that Kohl found himself faced with the three Baltic republics pushing for independence and seeking to leave the Soviet Union, Kohl felt they were on the "wrong path," as he told French President François Mitterrand during a meeting in Paris in early 1991. Kohl, of course, had rapidly moved ahead with Germany’s reunification. But he felt that Latvia, Estonia and Lithuania should be more patient about their freedom – and should wait around another 10 years, the chancellor seemed to think at the time. And even then, Kohl felt the three countries should be neutral ("Finnish status"), and not become members of NATO or the European Community (EC).

He felt Ukraine should also remain in the Soviet Union, at least initially, so as not endanger its continued existenceOnce it became clear that the Soviet Union was facing dissolution, the Germans were in favor of Kyiv joining a confederation with Russia and other former Soviet republics. In November 1991, Kohl offered Russian President Boris Yeltsin to "exert influence on the Ukrainian leadership" to join such a union, according to a memo from a discussion held between Kohl and Yeltsin during a trip by the Russian president to the German capital of Bonn. German diplomats felt that Kyiv was demonstrating a "tendency toward authoritarian-nationalist excesses."

When over 90 percent of Ukrainian voters cast their ballots in favor of independence in a referendum held two weeks later, though, both Kohl and Genscher changed course. Germany was the first EC member state to recognized Ukraine’s independence.

Nevertheless, the passages could still cause some present-day eyebrow raising in Kyiv, particularly against the backdrop of the ongoing Russian invasion.

Germany’s policies toward Eastern and Central Europe also raise questions. The Warsaw Pact collapsed during the course of 1991, and Genscher sought to employ a number of tricks to prevent countries like Poland, Hungary and Romania from becoming members of NATO – out of consideration for the concerns of the Soviet Union.

The momentum of Eastern and Central European countries toward joining the NATO alliance was creating a volatile mixture in Moscow of "perceptions of being under threat, fear of isolation and frustration over the ingratitude of former fraternal countries," reported the German ambassador as early as February 1991.

Genscher was concerned about fueling this situation further. NATO membership for Eastern-Central Europeans is "not in our interest," he declared. The countries, he noted, certainly have the right to join the Western alliance, but the focus should be on ensuring "that they don’t exercise this right."

Was his position born merely of prudence and a desire to ensure peace for the good of Europe? Or was it a precursor to the accommodation with Moscow "at the expense of other countries in Eastern Europe" that Social Democratic (SPD) parliamentarian Michael Roth recently spoke of? The chair of the Foreign Affairs Committee in the German parliament, Roth is in favor of establishing a committee of inquiry to examine failures in Germany and within his own party when it comes to Ostpolitik. He believes that Germany "de facto denied the sovereignty" of its neighboring countries.

Roth is referring specifically to Berlin’s policies in recent years. But should the analysis perhaps take a look further into history? All the way back to the era of Kohl and Genscher?

“Initially, the former Warsaw Pact countries pursued the intention of becoming NATO members. They have been discouraged from doing so in confidential discussions.”

German Foreign Minister Hans-Dietrich Genscher in 1991

Curiously, Germany’s Ostpolitik – both in the period leading up to German reunification and since then – has today become the focus of criticism from all sides. Russia, too, is among the critics, accusing the West of having broken its word with the eastward expansion of NATO.

Some of the documents that have now been declassified may even be reframed by Russian President Vladimir Putin and his acolytes as weapons in the ongoing propaganda war. Because in several instances, Genscher and his top diplomats refer to a pledge made during negotiations over German reunification – the Two Plus Four negotiations – that NATO would not expand into Eastern Europe.

Russian politicians have been claiming the existence of such a pledge for decades. Autocrat Putin has sought to use the argument to justify his invasion of Ukraine. Yet Moscow approved the eastern expansion of NATO in the NATO-Russia Founding Act of 1997, if only grumblingly.

 

Many of the documents that have now been made public seem to support the Russian standpoint:

* On March 1, 1999, Genscher told the U.S. that he was opposed to the eastward expansion of NATO with the justification that "during the Two Plus Four negotiations the Soviets were told that there was no intention of expanding NATO to the east."

* Six days later, the policy director of the German Foreign Ministry, Jürgen Chrobog referred in a meeting with diplomats from Britain, France and the U.S. to "the understanding expressed in the Two Plus Four process that the withdrawal of Soviet troops from the West cannot be used for our own advantage."

* On April 18, Genscher told his Greek counterpart that he had told the Soviets: "Germany wants to remain a member of NATO even after reunification. In exchange, it won’t be expanded to the east ..."

* On October 11, Genscher met with his counterparts from France and Spain, Roland Dumas and Francisco Fernández Ordóñez, respectively. Minutes from that meeting recorded Genscher’s statements regarding the future of Central and Eastern European Countries (CEECs) as follows:

"We cannot accept NATO membership for CEEC states (referral to Soviet reaction and pledge in 2 + 4 negotiations that NATO territory is not to be expanded eastward). Every step that contributes to stabilizing situation in CEEC and SU is important." SU is a reference to the Soviet Union.

As such, Genscher wanted to "redirect" the desires of CEEC to join NATO and was on the lookout for alternatives that would be "acceptable" to the Soviet Union. The result was the North Atlantic Cooperation Council, a body within which all former Warsaw Pact countries would have a say.

"Initially, the former Warsaw Pact countries pursued the intention of becoming NATO members," said Genscher. "They have been discouraged from doing so in confidential discussions."

For a time, the Germans were even in favor of NATO issuing an official declaration that it would not expand eastward. Only after the German foreign minister visited Washington in May 1991 and was told that an expansion "cannot be excluded in the future" did he quickly back off and say that he was not in favor of a "definitive declaration." De facto, however, it appears that he wanted to avoid expanding NATO to the east.

In Bonn, the initial capital of newly reunified Germany, the mood was one of self-confident optimism. The Cold War was over, Germany had been unified and Kohl and Genscher were pushing forward the consolidation of the EC into the European Union.

The chancellor also saw an historic opportunity when it came to relations with the Soviet Union. "Perhaps we will now be able to make right some of what went wrong this century," he said. After World War II with its millions of deaths and the partitioning of Germany that resulted, Kohl was hoping to open a new chapter in relations with Moscow.

The Soviet Union at the time was under the leadership of Mikhail Gorbachev, an idealistic, pro-reform communist who the Germans loved since he had acquiesced to the end of East Germany. "If the Germans are prepared to help the Soviet Union, it is primarily out of gratitude for the role played by Gorbachev in Germany’s reunification," was Kohl’s description of the situation. The fact that Gorbachev was vehemently opposed to expanding NATO into Central and Eastern Europe was of no consequence when it came to the esteem in which he was held in Germany.

Later, the chancellor would say in public that he had been Gorbachev’s "best advocate." The two leaders used the informal term of address, passed along greetings to their wives and gossiped over the phone.

Kohl sought to drum up support around the world for "Misha" and his policies. He helped secure an invitation for the Kremlin leader to attend the G-7 summit and under Kohl’s leadership, Germany sent by far the most foreign aid to Moscow.

Kohl was deeply concerned that Gorbachev detractors in the Soviet military, secret services or state apparatus could seek to overthrow him. And an attempted putsch only just barely failed in August 1991. A group surrounding Vice President Gennady Yanayev detained Gorbachev, but mass demonstrations, the widespread refusal to obey orders in the military and resistance from Boris Yeltsin, who was president of the republic of Russia at the time, doomed the attempted overthrow to failure. Gorbachev remained in office.

It is hard to imagine what might have happened if the Soviet military had ended up under the command of a revanchist dictator at the time. Hundreds of thousands of Soviet soldiers were still stationed in what had been East Germany and additional units were still waiting to be pulled out of Poland and Czechoslovakia. The German Foreign Ministry files make it clear that the withdrawal of the troops was a "central priority" of German policy.

And then there were the roughly 30,000 Soviet nuclear warheads, which represented a significant danger. The "nuclear security on the territory of Soviet Union has absolute priority for the rest of the world," the Foreign Ministry in Bonn stated.

From this perspective, any weakening of Gorbachev was out of the question, and the same held true for the Soviet Union as a whole, which Gorbachev was trying to hold together against all resistance.

Kohl and Genscher believed in a kind of domino theory, which held that if the Baltic states left the Soviet Union, Ukraine would then follow, after which the entire Soviet Union would collapse, and Gorbachev would fall as well. And that is roughly what happened throughout the year of 1991. Kohl, though, had his doubts as to whether such a dissolution would be peaceful. He felt that a kind of "civil war" was possible, of the kind that was soon to break out in Yugoslavia.

Gorbachav’s longtime foreign minister, Eduard Shevardnadze, even warned the Germans. During a Genscher visit to Moscow in October 1991, Shevardnadze, who was no longer in office by that time, prophesied that if the Soviet Union were to fall apart, a "fascist leader" could one day rise to power in Russia who may demand the return of the Crimea.

Putin annexed the Crimea a little over two decades later.

In 1991, Kohl even felt it was possible that the poisonous form of nationalism that appeared in Eastern Europe following World War I could make a reappearance. He believed that if the Baltic countries were to become independent, "the clash with Poland will start (anew)." Poland and Lithuania fought against each other in 1920.

The conclusion drawn by the German chancellor was that "the dissolution of the Soviet Union cannot be in our interest ..."

Ultimately, the Baltic countries and Ukraine went on to gain independence. And it likely won’t ever be possible to determine conclusively if Kohl’s analysis of the situation was erroneous or whether the Latvians and Lithuanians were simply lucky that their path to independence was more or less peaceful.

Many Western allies, in any case, tended to side with the Germans in their analysis of the situation. French President Mitterrand, for his part, complained about the Baltics, saying "you can’t risk everything you have gained (with Moscow – eds.) just to help countries that haven’t existed on their own in 400 years." Even U.S. President George H. W. Bush, a cold realist, complained about the forcefulness of the Baltic politicians as they pushed for independence.

Germany’s friendship with the Kremlin even led Chancellor Kohl to overlook a criminal offense on one occasion. On Jan. 13, 1991, Soviet special forces in the Lithuanian capital of Vilnius were unleashed on the national independence movement there, storming the city’s television tower and other buildings. Fourteen unarmed people were killed and hundreds more injured.

The protests from Bonn were tepid at best.

Just a few days after the violence, Kohl and Gorbachev spoke on the phone. The diplomat listening in on the call noted that the two exchanged "hearty greetings." Gorbachev complained that it was impossible to move forward "without certain severe measures," which sounded as though he was referring to Vilnius. Kohl’s response: "In politics, everyone must also be open to detours. The important thing is that you don’t lose sight of the goal." Gorbachev concluded by saying that he "very much valued" the chancellor’s position. The word Lithuania wasn’t uttered even a single time, according to the minutes.

Gorbachev’s role in the violent assault remains unclarified to the present day.

Postagem em destaque

Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...