quinta-feira, 10 de julho de 2025

Os primeiros habitantes do Brasil - Aurelio Schommer

 Há cerca de 15 mil anos, a América do Sul era desabitada. Os primeiros humanos, vindos da Ásia, chegam ao continente então e se espalham de oeste para leste. No território que viria a constituir a capitania, província e estado da Bahia, os achados arqueológicos identificam os primeiros grupos há 7 mil anos, vivendo nas margens do rio São Francisco e em alguns de seus afluentes. Entre há 3 mil e mil anos, surgem na região os falantes do idioma tupi. Na altura de 1500, quando do primeiro contato com europeus, eles se localizam principalmente no litoral. Para o território hoje correspondente à Bahia, a separação era quase absoluta: falantes de tupi no litoral, falantes de outras línguas nas áreas ribeirinhas dos cursos d’água interiores.  

Não se sabe quantos nativos brasílicos viviam nessas terras em 1500. De modo geral, os não tupis, no interior, se caracterizavam pela transumância: passavam de uma área a outra durante o ano, conforme o regime de chuvas e para obter melhores resultados na caça e na coleta. Por vezes, essas migrações sazonais percorriam centenas de quilômetros. As habitações eram rudimentares, porque temporárias. Parte deles falava idiomas do tronco macro-jê; parte, da família linguística kariri; parte, línguas isoladas. Há indícios de que, entre eles, os paiaiás interagissem eventualmente com os tupis do litoral. Os demais evitavam adentrar as áreas de domínio tupi. Entre grupos não tupis, chamados genericamente “tapuias” pelos tupis, os conflitos eram frequentes, motivados por disputas por terrenos de maior fartura de caça. 

Os tupis cultivavam principalmente a mandioca, obtendo dela a farinha e a fécula, na forma de tapioca ou beiju. Suas aldeias eram numerosas, com até 500 habitantes. Mantinham-se em um mesmo terreno por cerca de 10 anos, até o relativo esgotamento da terra. Não faziam nem comércio nem amizade com as aldeias vizinhas. Eram rivais entre si por regra cultural, evitando a formação de um Estado para além do espaço de uma única aldeia. Por essa e outras características, o antropólogo Pierre Clastres chamou os tupis de sociedade contra o Estado. Não criavam animais. Desconheciam o uso de metais. Eram hábeis no fabrico de canoas, cerâmica e engenhosas armadilhas de pesca. 

Os indígenas encontrados por Pedro Álvares Cabral, descritos por Pero Vaz de Caminha, em Porto Seguro, eram tupis. Catarina Paraguaçu, esposa de Diogo Álvares, o Caramuru, era tupi. Os primeiros baianos de cultura luso-americana eram filhos de homens europeus com mulheres tupis. Durante o século XVI, franceses e portugueses disputaram a amizade, a colaboração, das diversas aldeias tupis. Tanto que os franceses patrocinaram uma viagem de Catarina à França para celebrar seu casamento. Depois, o segundo governador-geral português, Duarte da Costa, a presenteou com as terras que hoje abrigam as áreas mais nobres e valorizadas de Salvador. 


Os tupis não foram um estorvo ao estabelecimento de europeus na América. Foram, ao contrário, absolutamente essenciais ao comércio franco-americano e ao povoamento luso-americano. Os europeus batizaram grandes grupos de tupis com diversos etnônimos. Para os próprios tupis, a distinção não fazia sentido. O falante de tupi era simplesmente tupi, nada mais, não importando se os estrangeiros lhes chamassem caetés, tabajaras ou tamoios, caso de grupos tupis localizados nos atuais Alagoas, Pernambuco e São Paulo respectivamente. Na Bahia, tupinambás e tupiniquins. 


Quando se revoltavam, o resultado era catastrófico aos d’além-mar. O chefe Taparica devorou o primeiro donatário da Bahia, Francisco Pereira Coutinho, em ritual antropofágico típico dos tupis. Acabou ali, em 1548, o empreendimento com sede na Vila do Pereira, atual Porto da Barra, em Salvador. Em 1559, eclodiu uma revolta dos ditos tupiniquins da vila de Ilhéus, então próspera sede de capitania. A economia local só se recuperaria do estrago provocado pelos nativos mais de três séculos adiante. Naquele ano, o governador Mem de Sá recrutou ditos tupinambás de Salvador e Recôncavo para reprimir o levante. Deu-se então a Batalha dos Nadadores, na praia do Cururupe, em Ilhéus. Os tupinambás de Salvador levaram a melhor sobre os tupiniquins locais, derrotando a rebelião. Tradição muito recente identifica os vencedores de então como vencidos, quando a participação portuguesa no episódio foi muito diminuta. Tratou-se de uma guerra tupis versus tupis, uma entre muitas. Na ocasião, venceram os tupinambás, tendo por ali ficado muitos deles.


Ao final do primeiro século de interação luso-tupi no litoral baiano, esse grupo indígena estava em geral aculturados, mantido o uso da língua por uma minoria. Houve fusão étnica e genética entre portugueses e tupis em todo litoral, embora alguns tenham mantido identidade separada em aldeias ou aldeamentos jesuítas. Aos tupinambás e tupiniquins juntaram-se aparentados guaranis, vindos de São Vicente, e tupis potiguaras, dos atuais Rio Grande do Norte e Paraíba, ambos estabelecidos em Ilhéus. Poucos tupis morreram em confronto contra europeus. Muitos mais, por doenças trazidas por estes e pelos africanos, chegados em grande número a partir de 1570. A variedade africana da varíola revelou-se especialmente mortífera.


Os tupis formavam aldeias novas por um fenômeno cultural conhecido pelos etnólogos como profetismo. Um indivíduo desgarrava de sua aldeia e passava a recrutar outros alhures. Partiam em busca da chamada “terra sem males”. O profetismo foi acelerado pela presença europeia, reunindo os insatisfeitos e indispostos com a presença estrangeira. Essa migração foi especialmente aguda em São Paulo-Rio de Janeiro e em Pernambuco, muitos deles indo parar no litoral do Maranhão, em que reencontraram os franceses. Na Bahia, uma variação do profetismo agregou elementos da fé católica: a Santidade de Jaguaripe. Na década de 1580, numeroso grupo se instalou em um engenho de Jaguaripe, mantendo uma comunidade autônoma. Parte deles se deslocou para o interior do continente. Liderados por tupis, brancos, mestiços e africanos participaram desse experimento de sociedade, peculiar. 


Tupis e mamelucos, mestiços luso-ameríndios, acompanharam os pioneiros das entradas baianas ao interior, como Francisco Bruza Espinosa e Belchior Dias Moreia. Eles vararam os sertões em pequenos grupos e voltaram sãos e salvos, tendo contato com diversos grupos indígenas. Raros ademais os relatos de luso-americanos atacados pelos ditos tapuias nessas andanças de sondagem e descobrimento dos séculos XVI e XVII. Ainda na primeira metade desse último século, indígenas não tupis do chamado sertão de Rodelas, no São Francisco, enviam guerreiros seus para se juntar aos luso-americanos na luta pela expulsão dos holandeses do Nordeste brasileiro. Eles e outros grupos kariris forneceriam importantes contingentes militares para dar combate a quilombos de matriz africana, entre outras missões internas de guerra.


A partir de 1650, as famílias Peixoto Viegas, Ávila e Guedes de Brito patrocinam o povoamento propriamente dito dos sertões pelo gado bovino, que podia transportar a si mesmo aos mercados do litoral depois de criado. Buscam negociar com os nativos encontrados pelos caminhos. Quando dão presentes, como anzóis, facas, roupas e alimentos, ganham aliados entre os ameríndios. Podem, assim, estabelecer casas-fortes e fazendas de criação, contando eventualmente com os novos amigos como mão de obra e reforço na proteção a seus estabelecimentos. Os Ávila, os Guedes de Brito, Domingos Afonso Sertão e Manuel Nunes Viana especialmente levam a civilização baiana a Minas Gerais, Maranhão, Piauí, a Icó, no sertão cearense, e ao vale do Pajeú, em Pernambuco, espalhando seus gados. Desses, Francisco Dias d’Ávila II se mostra menos propenso a aceitar deslealdades ou pontuais resistências dos nativos, sendo dado a ações violentas contra alguns grupos, no São Francisco ou em Jeremoabo, ações por vezes exageradas nas crônicas para a obtenção de sesmarias, direitos sobre as terras ditas conquistadas ao gentio bravo, como se chamava os não colaboracionistas. Enquanto Antônio Guedes de Brito se mostrava mais tolerante quando pequenos grupos matavam bois para consumo próprio. 


Uma vez estabelecidos currais e vilas, passa a se registrar ataques com fins de saque, atribuídos a indígenas. Também nesses casos, os exageros convinham aos povoadores e aos encarregados de dar combate ao gentio bravo. Como convinha dizer que eram apenas ameríndios, pois nesses casos se podia persegui-los e escravizá-los, pelo menos temporariamente. Em muitos casos, quilombolas e criminosos comuns fugidos da justiça no litoral estavam nos grupos atacantes ou mesmo os lideravam. 


Não houve na Bahia ação militar organizada indígena. Nada como o exército do rei Janduí ou de seu neto, Canindé, tarairiús do vale do Açu, menos ainda do que a revolta de Tupac Amaru II, nos Andes, que alijou vastas áreas do domínio espanhol por décadas, exigindo, em ambos os casos, a mobilização de grandes contingentes militares oficiais. O que se deu na Bahia foi uma sucessão de ataques furtivos episódicos, motivados por quebras de promessas de parte a parte. Enquanto se mantinha as aldeias abastecidas de comida, aguardente, ferramentas e roupas, e não se abusava em excesso da colaboração dos nativos, tudo ia bem e, aos poucos, os ameríndios eram assimilados pela cultura baiana de matriz europeia. Assimilados, mas nem sempre aceitos em condição de igualdade. As mulheres e as crianças entre eles podiam se juntar aos agregados das fazendas ou aos moradores dos povoados e vilas. Eram bem-vindas, pois os filhos que tivessem com brancos ou negros livres seriam tidos por brancos e mestiços livres. Daí a herança matrilinear indígena representar mais de um terço dos marcadores genéticos dos atuais habitantes da região Nordeste do Brasil. Aos homens indígenas, as possibilidades de assimilação eram parciais, quase sempre em condição subalterna ou de inferioridade. Tanto que menos de 2% dos marcadores genéticos patrilineares dos atuais moradores do Nordeste são de origem ameríndia. 


Tidos como exceção no quadro de assimilação geral, os denominados maracás foram objeto de ação repressiva organizada, que contou até com a participação do paulista Estevão Baião Parente e seu exército de indígenas sulistas. Os combates se deram na região entre os atuais municípios de Iaçu e Ruy Barbosa. A vitória oficialista, vitaminada por forças paiaiás, foi rápida. Como resultado, Santo Antônio da Conquista dos Maracases, rebatizada João Amaro, atual distrito de Iaçu, foi núcleo pioneiro da expansão ao médio Paraguaçu. Data de pelo menos 1673, povoado inicialmente por 12 brancos e 43 índios aliados. Da região seriam levados até 2 mil indígenas a Salvador como presas de guerra. Apenas Baião Parente teria chegado com 550. A São Paulo teriam ido 800, dada a maior demanda local por “administrados”, eufemismo paulista para escravizados.


Ameríndios são homens tão racionais quanto quaisquer outros. Buscavam antes a negociação pacífica do que o confronto, aceitando muitas vezes se agregar à atividade agropecuária ou a reunião de grupos por padres missionários nos aldeamentos católicos, em que podiam manter a identidade indígena, enquanto tinham acesso à alimentação regular e a ferramentas. Capuchinhos franceses e italianos, e jesuítas administraram indígenas de diversas etnias, no litoral e nos sertões. Particulares também podiam reduzir grupos de uma região a um local determinado. O homem negro João Gonçalves da Costa, fundador do arraial da Conquista, atual Vitória da Conquista, se faria notável por ter aldeado camacãs, pataxós e outros maxacalis, tidos como dos grupos mais resistentes à assimilação, ambos falantes de línguas do grupo macro-jê. Costa e seus filhos, entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do XIX, seriam responsáveis por trazer à civilização baiana o Planalto da Conquista, o Sertão da Ressaca e parte da área ao sul do curso do Rio Pardo. 


Por decisão do Marquês de Pombal, as missões católicas são descontinuadas. Antes, com o rei Pedro II de Portugal, os indígenas aldeados tiveram terras demarcadas para si. Com Pombal, essas terras podiam ser elevadas a sedes de novos municípios. A Bahia dera antes o exemplo em Água Fria, município paiaiá emancipado em 1727. Pombal, em 1758, concede aos paiaiás um segundo município: Santarém, atual Ituberá. Não tupis estavam no litoral, nesse e em outros casos, por terem sido deslocados para lá. 


Também foram elevados a sedes municipais, na mesma época, Trancoso, de tupis, depois incorporado a Porto Seguro; Vila Verde, também de tupis e também incorporado mais tarde a Porto Seguro; Olivença, de tupis, incorporado a Ilhéus no início do século XX; Mirandela, de kiriris, atual distrito de Banzaê; Canabrava, de kiriris, atual Ribeira do Pombal; Natuba, de kiriris, atual Nova Soure; Ipitanga, de tupis, rebatizada Abrantes, município com sede posteriormente transferida para Camaçari; Barcelos, de tupis; Almada, de grens, incorporada depois a Ilhéus; além de Pedra Branca, atual distrito de Santa Teresinha. Os indígenas ficavam submetidos à supervisão de um diretor não índio, mas podiam eleger seus próprios vereadores e gozavam dos mesmos direitos dos demais súditos do Império Português. Também podem ser creditadas aos indígenas as criações dos atuais municípios de Belmonte, Prado, Nova Viçosa e Mucuri, todos na então ouvidoria de Porto Seguro. Igualmente pertencia à jurisdição de Porto Seguro, portanto à capitania da Bahia, o município de São Mateus, ora no Espírito Santo, criado na mesma época e com a mesma motivação.


Em 1852, o número total de indígenas aculturados que, ainda assim, mantinha a identidade étnica de origem, foi estimado em 4.333 almas. A primeira contagem geral e oficial, vinte anos depois, em 1872, não menciona indígenas, compreendidos na categoria mais ampla dos ditos “caboclos”. O primeiro recenseamento brasileiro não era por autodeclaração. O recenseador devia distinguir brancos, pardos e pretos. Quem parecesse índio ou mestiço de índio era enquadrado no tipo “caboclo”. O censo então achou 49.882 caboclos na Bahia, 3,5% da população da época. Estavam em todos os 72 municípios, mas só constituíam maioria, mais de 80%, entre a população de Vila Verde. Curiosamente, na freguesia de Massacará, atual município de Euclides da Cunha, antigo aldeamento indígena, só apareceram 2% de caboclos. Em Olivença, apenas 13 indivíduos foram identificados como tendo traços indígenas ou mestiços, traços étnicos ou fenotípicos. Os locais faziam questão de negar pertencimento tupi, sendo a atual evocação étnica tupinambá no distrito de Olivença e arredores fato muito recente, também objeto de acirradas disputas políticas, com boa parte dos não índios se negando a reconhecer tal processo de etnogênese.

Termo mais adequado para descrever emergências indígenas do século XX é etnogênese, ou seja, a formação de novas identidades étnicas, em alguma medida reemergências de pertencimentos do passado. Etnogênese é preferível ao termo “remanescentes”, impreciso e por vezes a evocar preconceitos. 

As atuais terras indígenas situadas na Bahia foram todas objeto de etnogênese. Nelas vivem, segundo os últimos levantamentos disponíveis, pouco mais de 20 mil indivíduos, mais da metade deles autoidentificados como pataxós, um subgrupo maxacali. São secundados pelos tupinambás de Olivença, por pankararés, kiriris, tumbalalás, kaimbés, tuxás, kantaturés, pankarus, xukurus e tupinambás de Belmonte, nessa ordem. Todos falam predominantemente o português, embora algumas comunidades procurem resgatar as línguas de origem. É um direito inegável dessas populações se identificarem como indígenas. Quanto às demarcações, as atuais não pertencem ao terreno da história remota, pois nenhuma delas corresponde às decretadas em 1700 por Pedro II de Portugal, de 36 mil hectares cada, senão por aproximação em alguns casos.

Ameaças de Trump: "Coisa de mafiosos"- Editorial Estadão

 Editorial Estadão, 10/07/2025


Coisa de mafiosos

Que o Brasil não se vergue diante dos arreganhos de Trump. E que aqueles que são verdadeiramente brasileiros não se permitam ser sabujos de um presidente americano que envergonha a democracia

O presidente americano, Donald Trump, enviou carta ao presidente Lula da Silva para informar que pretende impor tarifa de 50% para todos os produtos brasileiros exportados para os EUA. Da confusão de exclamações, frases desconexas e argumentos esquizofrênicos na mensagem, depreende-se que Trump decidiu castigar o Brasil em razão dos processos movidos contra o ex-presidente Jair Bolsonaro pela tentativa de golpe de Estado e também por causa de ações do Supremo Tribunal Federal (STF) contra empresas americanas que administram redes sociais tidas pelo STF como abrigos de golpistas. Trump, ademais, alega que o Brasil tem superávit comercial com os EUA e, portanto, prejudica os interesses americanos.

Não há outra conclusão a se tirar dessa mixórdia: trata-se de coisa de mafiosos. Trump usa a ameaça de impor tarifas comerciais ao Brasil para obrigar o País a se render a suas absurdas exigências.

Antes de mais nada, os EUA têm um robusto superávit comercial com o Brasil. Ou seja, Trump mentiu descaradamente na carta para justificar a medida drástica. Ademais, Trump pretende interferir diretamente nas decisões do Judiciário brasileiro, sobre o qual o governo federal, destinatário das ameaças, não tem nenhum poder. Talvez o presidente dos EUA, que está sendo bem-sucedido no desmonte dos freios e contrapesos da república americana, imagine que no Brasil o presidente também possa fazer o que bem entende em relação a processos judiciais.

Ao exigir que o governo brasileiro atue para interromper as ações contra Jair Bolsonaro, usando para isso a ameaça de retaliações comerciais gravíssimas, Trump imiscui-se de forma ultrajante em assuntos internos do Brasil. É verdade que Trump não tem o menor respeito pelas liturgias e rituais das relações entre Estados, mas mesmo para seus padrões a carta endereçada ao governo brasileiro passou de todos os limites.

A reação inicial de Lula foi correta. Em postagem nas redes sociais, o presidente lembrou que o Brasil é um país soberano, que os Poderes são independentes e que os processos contra os golpistas são de inteira responsabilidade do Judiciário. E, também corretamente, informou que qualquer elevação de tarifa por parte dos EUA será seguida de elevação de tarifa brasileira, conforme o princípio da reciprocidade.

Esse espantoso episódio serve para demonstrar, como se ainda houvesse alguma dúvida, o caráter absolutamente daninho do trumpismo e, por tabela, do bolsonarismo. Para esses movimentos, os interesses dos EUA e do Brasil são confundidos com os interesses particulares de Trump e de Bolsonaro. Não se trata de “América em primeiro lugar” nem de “Brasil acima de tudo”, e sim dos caprichos e das ambições pessoais desses irresponsáveis.

Diante disso, é absolutamente deplorável que ainda haja no Brasil quem defenda Trump, como recentemente fez o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que vestiu o boné do movimento de Trump, o Maga (Make America Great Again), e cumprimentou o presidente americano depois que este fez suas primeiras ameaças ao Brasil por causa do julgamento de Bolsonaro.

Vestir o boné de Trump, hoje, significa alinhar-se a um troglodita que pode causar imensos danos à economia brasileira. Caso Trump leve adiante sua ameaça, Tarcísio e outros políticos embevecidos com o presidente americano terão dificuldade para se explicar com os setores produtivos afetados.

Eis aí o mal que faz ao Brasil um irresponsável como Bolsonaro, com a ajuda de todos os que lhe dão sustentação política com vista a herdar seu patrimônio eleitoral. Pode até ser que Trump não leve adiante suas ameaças, como tem feito com outros países, e que tudo não passe de encenação, como lhe é característico, mas o caso serve para confirmar a natureza destrutiva desses dejetos da democracia.

Que o Brasil não se vergue diante dos arreganhos de Trump, de Bolsonaro e de seus associados liberticidas. E que aqueles que são verdadeiramente brasileiros, seja qual for o partido em que militam, não se permitam ser sabujos de um presidente americano que envergonha os ideais da democracia.

https://www.estadao.com.br/opiniao/coisa-de-mafiosos/

Livro: A Diplomacia dos bancos centrais: renovação versus anacronismo no Banco de Compensações Internacionais (BIS) - Davi Augusto Oliveira Pinto


A Biblioteca Digital da Funag "esconde" algumas preciosidades para o pesquisador de história diplomática, como pode ser este livro, de alguns anos atrás, que só agora vim a descobrir e que é de meu direto interesse nos trabalhos de história econômica.

A Diplomacia dos bancos centrais: renovação versus anacronismo no Banco de Compensações Internacionais (BIS)

Descrição:
Instituição financeira internacional mais antiga do mundo, o Banco de Compensações Internacionais (BIS) permanece relativamente desconhecido. Quem controla o chamado “banco central dos bancos centrais”? O que leva os principais banqueiros centrais do mundo a participarem regularmente de reuniões reservadas em uma bucólica cidade suíça? Para que servem os Acordos de Basileia? Por que a célebre conferência de Bretton Woods determinou a extinção do BIS? Houve colaboração entre a entidade e o regime nazista? Como a criação do Banco Central Europeu contribuiu para o ingresso do Brasil no BIS? Essas e outras questões são desvendadas neste livro, que, com base em inédita pesquisa nos arquivos do BIS, relata os esforços do organismo para permanecer relevante face a constantes mudanças ao longo das últimas nove décadas. O trabalho avalia a crescente participação do Banco Central do Brasil na instituição – um brasileiro ocupa desde 2015 o segundo cargo mais elevado na hierarquia burocrática do BIS – e examina implicações para a atuação do Itamaraty no contexto mais amplo da política externa Brasileira. 

Detalhes
Autor(a)Davi Augusto Oliveira Pinto
EditoraFUNAG - Fundação Alexandre de Gusmão
AssuntoAcordos de Basileia | Banco Central do Brasil (BCB) | Banco de Compensações Internacionais (BIS) | Brasil - História diplomática | Diplomacia financeira - cooperação entre bancos centrais | Itamaraty - política externa brasileira
Ano2021

Edição1ª edição

Nº páginas440

IdiomaPortuguês
ISBN978-65-8708-324-7

Mais uma dessas previsões aleatorias (perdão por especular) - Paulo Roberto de Almeida

Mais uma dessas previsões aleatorias (perdão por especular):

Dois poderosos dirigentes atuais, Trump e Putin, estão, de modo sistemático, meticulosamente, um deliberadamente, o outro de forma inconsciente ou involuntariamente, destruindo seus respectivos países, para dentro e para fora. 

Os EUA vão se recuperar, após a passagem do seu furacão eleitoral, pela democracia e pelas liberdades consagradas em sua formação cultural. 

A Rússia vai entrar num período de lutas internas, como a República da China já conheceu na primeira metade do século XX. Não sabemos ainda o que restará dela, pois os valores são outros, pouco propensos à democracia ou às liberdades. 

Enquanto isso, o Brasil segue o seu curso hesitante e impreciso, por falta de clareza de seus dirigentes.

Desculpem o atrevimento.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 10/07/2025


A destruição de Bolsonaro pelo seu amigo Trump - Paulo Roberto de Almeida

A destruição de Bolsonaro pelo seu amigo Trump

O que o negacionismo vacinal não conseguiu fazer durante a pandemia, nem os vários atentados à democracia brasileira, tampouco a tentativa golpista demostrou possuir poderes efetivos, a tarificação precoce de Trump no comércio bilateral EUA-Brasil vai finalmente produzir um resultado fatal: afundar de vez o conceito do ex-presidente na aceitação nacional. Um bumerangue fatídico.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 10/07/2025


quarta-feira, 9 de julho de 2025

O ataque de Trump à grandeza americana - Martin Wolf Financial Times

PRA: Apenas uma observação pessoal a este artigo de Martin Wolf: a China NÃO É COMUNISTA, sequer totalitária. Ela é uma autocracia conduzida por um partido leninista que constroi um capitalismo fortemente estatizado e estritamente controlado pelos milhares, milhões de mandarins, que são os funcionários do PCC, em nada marxistas, apenas tecnocratas disciplinados e obedientes ao Partido, para gozarem de melhores vantagens do capitalismo autoritário tipicamente chinês.
O ataque de Trump à grandeza americana
Martin Wolf
Em seis meses, o presidente dos EUA fez grandes avanços na implementação de uma agenda contra tudo o que tornou o país bem-sucedido
Financial Times, 9/07/2025
        Às vezes é preciso olhar para o quadro geral. Em 4 de julho de 2026, os EUA celebrarão seu 250º ano de independência. A própria declaração de independência afirmava que: "Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade." Essas ideias foram realizadas de forma imperfeita. Uma guerra civil e o movimento pelos direitos civis ainda estavam por vir. No entanto, o nascimento dos Estados Unidos da América seria um momento extremamente significativo.
        Os EUA tinham o potencial de se tornar a primeira república verdadeiramente poderosa desde a romana, que pereceu na batalha de Ácio em 31 a.C. Sem o poder dos EUA, uma ditadura alemã ou russa certamente teria conquistado a Europa. Sem o exemplo dos EUA, o capitalismo democrático não teria se espalhado pelo mundo. Este seria um mundo muito mais pobre, assolado por todos os males do despotismo.
        Como argumentei em uma coluna de 2016, a chegada de Donald Trump ao cenário político coloca tudo isso em risco. O perigo está muito mais próximo hoje. Ele sobreviveu à tentativa de derrubar o resultado da eleição presidencial de 2020, para retornar triunfante em 2024. Trump está sem amarras. A energia desta administração está transformando o mundo.
        Comecemos pela frente doméstica.
    Estamos assistindo a um ataque ao estado de direito. Abbe Lowell, antigo defensor de Jared Kushner e Hunter Biden, adverte que Donald Trump está levando a democracia dos EUA ao ponto de ruptura. As ações incluem ordens executivas contra escritórios de advocacia e a nomeação de aliados não qualificados para posições-chave. O mais sinistro de tudo, como observa Edward Luce, é a expansão do poder e dos recursos do Serviço de Imigração e Alfândega (ICE, na sigla em inglês), que opera muito como uma polícia secreta.
Intimamente relacionado tem sido o ataque ao governo. O chamado Departamento de Eficiência Governamental de Elon Musk foi uma fraude. O objetivo não era a eficiência, mas a subserviência. Era destruir a independência dos servidores públicos.         No processo, muitas atividades valiosas também foram destruídas, notadamente os programas de saúde da Usaid. Os custos serão enormes.
        Outro aspecto é o extenso uso de poderes de emergência e decretos por Trump. Ele emitiu 168 destes últimos apenas nos primeiros meses deste mandato, elevando seu total a um número muito acima de seus predecessores recentes. Trump governa por decreto. Esse é um dos sinais de uma ditadura.
Uma preocupação adicional é a legitimação da corrupção. Isso é revelado em seu próprio comportamento e no de sua família. Também é demonstrado na pausa na aplicação da Lei de Práticas de Corrupção no Exterior (FCPA, na sigla em inglês), que já foi um exemplo de bom comportamento.
        Ainda mais fundamental é a guerra contra a ciência, uma fonte potente do excepcionalismo americano. Larry Diamond, de Stanford, um especialista líder em democracia, escreve: "O escopo e a profundidade da devastação que Trump está causando na liderança americana em ciência e tecnologia são tão massivos e abrangentes que é difícil entender sem recorrer a uma teoria absurda, como a de que Trump é um agente não da Rússia imperial, mas da China comunista".
        Por último, mas não menos importante, está a política fiscal recém-promulgada na "big, beautiful bill" (grande e belo projeto de lei). Isso garante enormes déficits fiscais por tempo indeterminado. Isso, por sua vez, também assegura enormes déficits em conta corrente para sempre, já que é assim que a economia dos EUA equilibra oferta e demanda.
        Agora, vejamos o impacto nas relações internacionais dos EUA e nos bens públicos globais.
        Acima de tudo, a guerra comercial não acabou. A pausa de 90 dias nas tarifas do "dia da libertação" está prestes a terminar. Acordos não foram alcançados com mais do que um punhado de parceiros. Esta guerra economicamente destrutiva contra os credores dos EUA e, sobretudo, a incerteza que ela cria, continuará. A guerra comercial representa um ataque às instituições criadas pelos EUA após a Segunda Guerra Mundial. Também está danificando as alianças dos EUA. De modo mais amplo, todos os compromissos dos EUA estão em dúvida: a humilhação grotesca de Volodymyr Zelensky na Casa Branca mostrou isso.
        O regime comercial era um bem público global. Outro tem sido o regime monetário baseado no dólar. Novamente, as políticas de Trump lançam dúvidas sobre a estabilidade da moeda e a credibilidade de seu emissor. Por último, mas não menos importante, embora totalmente alinhado com o ataque do movimento à ciência, está o virulento "negacionismo" climático: se é inconveniente, não pode ser verdade, é o lema. O paralelo histórico óbvio é com o lysenkoísmo, a ruinosa campanha stalinista contra a biologia evolutiva.
        Quase tudo o que Trump está fazendo enfraquecerá os EUA em sua rivalidade com a China. Esta rivalidade pode e deve ser gerenciada no interesse de todos. Mas eu, pessoalmente, quero desesperadamente que os valores fundamentais de liberdade de opinião, política democrática, estado de direito e abertura para o mundo como um todo sobrevivam. Trump não está apenas atacando esses valores em casa, ele os está enfraquecendo no exterior, notadamente destruindo a credibilidade dos EUA como aliado. Como se pode razoavelmente esperar que um EUA volúvel e fiscalmente pródigo, que está destruindo instituições e valores fundamentais, se iguale a um gigante com mais de quatro vezes sua população? Isso é certamente uma fantasia.
Em pouco menos de seis meses, apenas um oitavo de seu mandato, Trump fez grandes avanços em sua guerra contra tudo o que tornou os EUA bem-sucedidos.             Apenas a base Maga, Vladimir Putin e Xi Jinping deveriam se sentir felizes. A parte mais coerente do programa é a tentativa de transformar os EUA em uma autocracia.         Grande parte do resto é incoerente. Mas, dado o evidente sucesso, em seus próprios termos, de apenas seus primeiros seis meses, seria uma pessoa imprudente quem assumisse que esta contrarrevolução contra tudo o que os EUA representam, em casa e no exterior, fracassará. Pode-se ter esperança. Mas Trump está se saindo assustadoramente bem.

O tamanho da conta - Marcelo Guterman

 O tamanho da conta

MARCELO GUTERMAN
JUL 9, 2025

(Artigo da jornalista Vera Rosa, "A tradução do nós contra eles", Estadão 9/07)


A jornalista Vera Rosa explica a estratégia do governo na discussão sobre o sistema tributário. Cabe lembrar que tudo isso é marketing, pois o IOF está longe de ser um imposto que afeta somente o “andar de cima”. Mas sigamos.

Que o nosso sistema tributário é concentrador de renda não há dúvida razoável. Pessoas físicas com rendas mais altas se escondem atrás de pessoas jurídicas para pagarem menos imposto de renda. Desde o funcionário que constitui uma MEI, passando pelo profissional liberal até grandes empresários com esquemas sofisticados de blindagem patrimonial, todos usam alguma forma permitida em lei para fugir das garras do leão. Mas eleger o sistema tributário como o bode expiatório dos nossos problemas é jogar areia nos olhos da opinião pública, para que se distraia do principal fator de concentração de renda no Brasil: o desequilíbrio das contas públicas. Vou explicar no final.

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Focar na injustiça tributária é só uma forma de tornar moralmente desejável o aumento da carga tributária. Já pagamos 34% do PIB em impostos, mas o desejo da sociedade brasileira por mais benefícios, alimentado por políticos populistas, e a insaciável máquina do Estado brasileiro, acham 34% pouco, e querem mais. Assim, “taxar os ricos” torna socialmente aceitável o aumento da carga tributária.

Temos dois problemas com esse raciocínio. O primeiro é que, se 34% não são suficientes, quem disse que, por exemplo, 40% serão? Sabemos como a coisa funciona: toda receita adicional será engolida pela insaciável máquina de privilégios encastelada no Estado brasileiro. Além disso, e esse é o segundo problema, políticas públicas concentradoras de renda continuarão intactas. (Prometo um outro post listando políticas públicas, incluindo aquelas caras à esquerda, que concentram renda). Assim, o efeito de aumentar a carga tributária é aumentar a concentração de renda, não reduzi-la.

Toda essa discussão isenta o governo de atacar o problema do equilíbrio das contas públicas pelo lado das despesas, assumindo como premissa razoável de que 34% do PIB de carga tributária já é mais do que razoável em um país de renda mediana como o Brasil. E, ao abandonar essa questão, o governo está alimentando o principal fator de concentração de renda do País: o pagamento de juros.

A leniência no trato da dívida pública faz com que os juros a serem pagos aos seus financiadores precisem ser mais altos. Além disso, pressionam o Banco Central a manter juros elevados para conter a inflação. O resultado é que hoje o Estado brasileiro transfere entre 7% e 8% do PIB em juros para os detentores de poupança. Os demonizados “rentistas” só estão se aproveitando de um estado de coisas criado pelo próprio governo, ao não endereçar o problema do equilíbrio das contas públicas.

Discutir quem vai pagar a conta tem certamente o seu mérito, desde que não abandonemos o principal, que é a discussão sobre o tamanho da conta.

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