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segunda-feira, 18 de abril de 2011

A "argentinizacao" do Brasil? - Marcelo de Paiva Abreu

O título é meu, e não tem nada a ver com o que escreve Marcelo de Paiva Abreu em seu excelente artigo, que analisa um escrito medíocre que já circulou por aqui anteriormente, de um patético "marxista" inglês -- as aspas vão por conta de não se saber, exatamente, o que representam os marxistas atualmente -- sobre o governo Lula.
Concordo inteiramente com o articulista brasileiro, e até agravaria o caso da "argentinização" do Brasil, que é essa República sindical, mafiosa e corrupta (mas eu me repito), que infelizmente domina atualmente o sistema político brasileiro.
A Argentina ainda não conseguiu se libertar de sua maldição peronista.
Esteremos embarcando no mesmo caminho?
Talvez...
Paulo Roberto de Almeida

Brasil para "inglês ver" Marcelo de Paiva Abreu*
O Estado de S.Paulo, 18/04/2011

Perry Anderson, professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles e antigo editor da New Left Review, publicou na London Review of Books de 31/3 o artigo Lula"s Brazil, recheado de ideias equivocadas e tendenciosas. É importante contestá-lo para evitar que se consolidem análises absurdas. O Brasil que existe de fato pouco tem que ver com o de Anderson, que é um Brasil para "inglês ver".
Do ponto de vista econômico, a análise é totalmente distorcida. Nada há no artigo que indique que a ridícula plataforma econômica que fazia parte do programa do PT até a Carta ao Povo Brasileiro teve influência dominante na deterioração dos indicadores macroeconômicos em 2002. A julgar pelo artigo, foi tudo culpa de seu predecessor. A louvação acrítica do Estado produtor e os lamentos quanto à "desindustrialização" são igualmente patéticos.

No afã de minimizar as consequências do "mensalão" sobre a legitimidade do PT como partido renovador na política brasileira, o autor se escora na menção a práticas fisiológicas empregadas na eleição presidencial de 1998. A assimetria é óbvia. O intuito é desqualificar críticas que possam ser feitas em relação ao naufrágio do partido na fisiologia. Afinal, se as práticas de corrupção política são generalizadas, o PT estava apenas fazendo o que todo mundo fazia. Estamos acertados: não há pecado do lado de baixo do Equador.

Em sintonia com a tentativa de minimizar os respingos do "mensalão" se enquadram seus comentários sobre o Supremo Tribunal Federal (STF). São na mesma linha da cínica menção de Lula ao provável julgamento do assunto lá por volta de 2050. Embora o STF tenha notórias deficiências, os comentários de Anderson são desatinados: "O que pensar do STF que absolveu Palocci? Daumier teria dificuldades em retratá-lo. Supostamente trataria apenas de questões constitucionais, mas processa, se esta é a palavra correta, 120 mil casos por ano, ou 30 por dia por membro da corte. Advogados transacionam privadamente com juízes e há casos em que, favorecidos por seus veredictos, os abraçam à vista de todos e lhes pagam jantares copiosos em restaurantes sofisticados. Dos 11 atuais membros do tribunal, 6 deles indicados por Lula, 2 foram condenados por cortes inferiores. Um deles, escolhido por seu primo Collor, fez história ao garantir imunidade a um acusado antes do julgamento, mas foi salvo de remoção pelos seus pares "para preservar a honra da corte". Outro, amigo de Cardoso, apoiou o golpe de 1964 e não pode se jactar nem mesmo de um diploma de bacharel de Direito. Um terceiro, ao votar em julgamento crucial para absolver Palocci, recebeu agradecimentos do presidente por assegurar a governabilidade. Eros Grau, que se aposentou recentemente, foi condenado por tráfico de influência, é um favorito especial de Lula, chamado de "Cupido" por colegas, autor de uma novela pornográfica de quinta categoria, tentou incluir um associado na corte em troca de voto para enterrar o "mensalão"".

Apesar da última afirmação, a saraivada de críticas cheira a tentativa orquestrada de enfraquecer o STF, dificultando um julgamento sério do caso. A truculência do autor certamente ajuda os que temem os resultados do julgamento. E contrasta com a sua leniência persistente em relação ao Executivo.

A severidade dos juízos de Anderson também é claramente atenuada quando se trata de alisar egos de intelectuais alinhados ao PT. Após elogios a gente séria, o autor descamba para elogios a cupinchas seus do calibre de Emir Sader e Márcio Pochmann, cujas atuações no âmbito da Casa de Rui Barbosa (CRB) e do Ipea são de conhecimento público. Curiosamente, a proposta de programa de pesquisas de Sader na CRB era exatamente "O Brasil de Lula".

O artigo está repleto de erros factuais e omissões que a falta de espaço impede listar exaustivamente. Embora muito longo, ele é curiosamente inconclusivo. O autor não consegue superar seu banzo em relação ao recuo da esquerda em escala global nem esconde sua melancolia quando constata que as perspectivas de mudanças radicais no País são modestas. E, no entanto, há razões suficientes para preocupações com a estabilidade do controle político exercido pela atual coalizão governamental. Lula, arguto e carismático, foi capaz, em 2002-2003, de ejetar o estapafúrdio programa econômico do PT, apropriar-se do cerne do programa econômico do predecessor, mobilizar sua veia populista e ampliar o escopo das políticas sociais. Tudo isso em ambiente em que o PT se propunha, com credibilidade, como paradigma para a reconstrução de outros partidos políticos não fisiológicos. O Brasil iria, enfim, ficar sério politicamente. Após o "mensalão", entrou em colapso o PT paradigmático e ganhou espaço o Lula carismático, amparado na inflação baixa e no Bolsa-Família. Mas no segundo mandato houve considerável "flexibilização" da política econômica, que culminou nas atuais dificuldades quanto à aceleração inflacionária e sustentação do crescimento.

O problema hoje é como Dilma Rousseff, sem o carisma do antecessor e em ambiente político dominado pela fisiologia, terá condições de debelar o recrudescimento inflacionário que certamente minará a popularidade do seu governo. Caso fracasse, até mesmo a volta de Lula, o nosso d. Sebastião, poderia ser ameaçada.

*Doutor em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular no Departamento de Economia da PUC-RIO

Histoire des Relations Internationales - Pierre Renouvin (3 volumes, 1994)

Por acaso, "cai" literalmente nesta resenha que fiz 17 anos atrás de um livro de história das relações internacionais, cuja primeira edição remonta a 1958.
Transcrevo aqui, sem qualquer revisão ou adição, por se encontrar pouco disponível atualmente.
Paulo Roberto de Almeida

Contribuições à História Diplomática
Pierre Renouvin, ou a aspiração do total

Paulo Roberto de Almeida

Pierre RENOUVIN (ed):
Histoire des Relations Internationales
Nova edição, em 3 volumes
Apresentação do Prof. René Girault, Paris I
(Presidente do “Institut Pierre-Renouvin”)
Paris: Hachette, 1994
Volume I: Du Moyen Âge à 1789 (xxviii + 876 pp.)
Volume II: De 1789 à 1871 (706 pp.)
Volume III: De 1871 à 1945 (998 pp.)

A reedição, agora em três volumes de capa dura, da monumental coleção organizada na década de 50 por Pierre Renouvin é uma grande notícia para todos os estudiosos que, por simples curiosidade intelectual ou por obrigação professional, interessam-se ou são levados a ocupar-se da temática das relações internacionais. Com efeito, todos aqueles que se dedicam à pesquisa, ao ensino ou à mera leitura diletante nessa área, sempre souberam apreciar a riqueza analítica e fatual, a qualidade estilística, bem como a abundante aparelhagem bibliográfica e cartográfica dos oito volumes (encadernados nas edições precedentes) coordenados pelo grande mestre francês da história diplomática global.
Desde essa época, os oito tomos sequenciais – por quatro autores – da Histoire des Relations Internationales (publicados pela mesma editora entre 1953 e 1958) foram motivo de leitura obrigatória e objeto de referência indispensável de todo e qualquer estudioso das relações internacionais, de modo geral, e das políticas exteriores dos Estados modernos em particular, sobretudo a partir de uma perspectiva européia. Reeditados pela última vez em 1972, eles tinham se tornado praticamente inacessíveis, sobretudo do outro lado do Atlântico, constituindo-se em verdadeiras preciosidades de bibliófilos e colecionadores. Junto com outros trabalhos de história diplomática do mesmo mestre, falecido em 1974, assim como de Jean-Baptiste Duroselle, seu discípulo e sucessor na Sorbonne, essa obra coletiva (mas concebida por Renouvin em torno de 1950) marcou época na então nascente disciplina das relações internacionais e constitui, ainda hoje, um marco da pesquisa histórica, mesmo se aparentemente influenciada por uma “visão francesa” da política externa dos Estados.
Quarenta anos depois de seu lançamento original e tendo em conta não só a multiplicação de estudos nesse campo, mas também a diversidade de abordagens e o acesso ampliado a determinadas fontes documentais, como se sustenta o trabalho coordenado por Pierre Renouvin ?

Uma Totalgeschichte
O que distingue, antes de mais nada, os textos de François-L. Ganshof, Gaston Zeller, André Fugier e do próprio Pierre Renouvin é uma vontade de ultrapassar os limites da história política tradicional, na qual se comprazia ainda grande parte da história diplomática elaborada nas universidades e academias do velho mundo. Estamos bem longe da chamada histoire historisante, aquela feita de homens brilhantes e de momentos solenes, que aliás estava sendo cruelmente “massacrada” pelos partidários da histoire structurelle agrupados em torno da revista Annales, fundada nos final dos anos 20 por Lucien Febvre e Marc Bloch e retomada depois da guerra por Fernand Braudel.
Trabalhando de forma independente ou paralelamente aos esforços desses renovadores, Pierre Renouvin, recusando-se a deixar levar unicamente pelos documentos revelados pelos arquivos diplomáticos, decide desde muito cedo colocar sua produção sob o signo da “história global”. Na verdade, antes mesmo de vários representantes da école des Annales (com a qual ele nunca foi formalmente identificado, provavelmente por trabalhar num setor mais restrito), Renouvin já mantinha uma preocupação primordial com a história “totalisante”, ou seja, com uma pesquisa extremamente diversificada, capaz de integrar de forma harmônica os resultados e métodos das diversas áreas da disciplina.
Desde princípios dos anos 30, como explica o Prof. René Girault em sua apresentação à esta nova edição do Histoire des Relations Internationales, Renouvin sublinha o caráter relativo dos arquivos diplomáticos e faz apelo às “forças” morais e materiais que agitam o mundo, convertidas vinte anos depois em “forças profundas” (Volume I, p. vi). Consciente de que a análise dessas “forças profundas” levariam o seu trabalho um pouco além dos limites estritos da disciplina à qual iria dedicar toda sua vida, o próprio Renouvin diz nas conclusões gerais de sua obra: “A história das relações internacionais é (...) inseparável da história das civilizações” (Volume III, p. 913). Na mesma época, aliás, Maurice Crouzet dirigia os muitos volumes da Histoire Générale des Civilisations, vasto empreendimento editorial que serviria de inspiração para Sérgio Buarque de Holanda propor entre nós uma História Geral da Civilização Brasileira.
Abrindo o empreendimento, em princípios dos anos 50, Renouvin afirmava que a obra então iniciada não era um “grande manual” de história da política internacional, mas pretendia ser un essai de synthèse (Volume I, p. 7). Deve-se reconhecer que ela realizou plenamente seu objetivo, tendo sido completada, dez anos depois, por outra obra de síntese metodológica, escrita em colaboração com Jean-Baptiste Duroselle, Introduction à l’histoire des relations internationales (Paris: Armand Colin, 1964).

As bases da história global
O conceito que mais popularizou a obra de Pierre Renouvin é, sem dúvida alguma, o de “forças profundas”. No vasto e ambicioso panorama traçado pelo historiador francês, não são apenas os Estados que estão em causa, mas também os povos e os interesses dos agentes econômicos, enfim o conjunto das circunstâncias históricas em um momento dado. Ao introduzir o primeiro volume de sua monumental série de história das relações internacionais, assim se exprimiu o historiador francês:
“Nós tentamos, portanto, ‘situar’ as relações internacionais no quadro da história geral – história econômica e social, história das idéias e das instituições. Papel das condições geográficas, dos interesses econômicos ou financeiros e da técnica dos armamentos, das estruturas sociais, dos movimentos demográficos; impulsão dada pelas grandes correntes de pensamento e pelas forças religiosas; influências exercidas pelo comportamento de um povo, seu temperamento, sua coesão moral: estes são os pontos de vista que nós sempre tivemos em mente. Nós não negligenciamos, contudo, o papel dos homens de governo que foram, de forma mais ou menos consciente, influenciados por essas forças, ou que tentaram controlá-las e que por vezes o conseguiram; mas sua ação pessoal nos interessa sobretudo na medida em que ela modifica o curso das relações internacionais. Nós também achamos necessário estudar as condições do trabalho diplomático onde esse estudo (é o caso da Idade Média) jamais tinha sido empreendido. (...) Mas, nós não quisemos que esta busca de explicações estivesse destacada do estudo dos fatos... Era indispensável colocar na base de nosso relato o ‘quadro fatual’ [‘cadre événementiel’], retraçando en conseqüência o desenvolvimento das rivalidades e dos conflitos e mostrando sua trama. Estudar as influências que se exercem sobre as relações internacionais deixando de lado o conjunto de circunstâncias de um momento ou de uma época, seria falsear a perspectiva histórica” (Volume I, p. 12).
Esse método, que tinha sido traçado por Pierre Renouvin antes mesmo de conceber sua coleção mais famosa, seria seguido à risca no desenvolvimento dos diversos textos que se ocuparam das relações entre os Estados e da evolução do sistema internacional desde a Idade Média até 1945. Com efeito, como se encarrega de lembrar Girault, desde 1931 Renouvin buscava escapar ao ponto de vista “trop étroit” da documentação diplomática. Apresentando na Revue historique um balanço dos trabalhos de uma comissão sobre a história da guerra de 14-18 que ele integrava, dizia o professor de história diplomática da Sorbonne:
“Despachos, notas, telegramas nos permitem perceber os atos; é mais raro que eles permitam entrever as intenções dos homens de Estado, mais raro ainda que eles tragam o reflexo das forças que agitam o mundo: movimentos nacionais, interesses econômicos. Não porque os agentes diplomáticos negligenciem inteiramente essas essas forças morais e materiais; mas, eles têm tendência a atribuir maior importância à atitude das chancelarias e dos ministros, a analisar a influência do fator pessoal. É em corrigir esse erro de ótica que os historiadores poderão e deverão se aplicar” (“La publication des documents diplomatiques français, 1871-1914”, Revue historique, tome CLXVI, 1931, p. 10; citado na Apresentação do Prof. René Girault, Volume I, p. v).
Vinte anos mais tarde, na introdução geral do Histoire des Relations Internationales, Renouvin confirmaria essa recusa do curto prazo e sua visão mais ampla do processo histórico:
“Não é portanto o objeto da história diplomática que está aberto a contestações; é o seu método, tal como o praticam muito frequentemente seus adeptos. (...) Ora, as instruções [das chancelarias] se aplicam muitas vezes a nada dizer de essencial, e os relatórios, que dão informações dia a dia, omitem também frequentemente a busca das causas: mesmo no século XIX, a correspondência de muitos embaixadores atribui apenas uma função restrita, muitas vezes derrisória, às questões econômicas e ao problema das nacionalidades – a todas as ‘forças profundas’ – porque, para o diplomata de então, a ‘grande política’ plana muito acima dessas contingências” (Volume I, p. 10).
Ele não pretende, no entanto, descartar o estudo do papel dos homens de Estado – retendo apenas os “movimentos profundos” da história econômica e social, ao estilo da “história estrutural” – mas, tão somente, recolocá-lo numa perspectiva mais ampla: “na origem desses conflitos, as condições econômicas desempenharam o seu papel; mas, a crise só apareceu quando as paixões entraram em jogo” (Idem, p. 11). Em todos os seus cursos dados na Sorbonne (na qual ele se aposenta em 1964) ou alhures, Renouvin dava a seus alunos uma orientação ilustrada por notas deste tipo: “Nunca fazer unicamente história diplomática, mas procurar ver o pano de fundo ec. financ. pol. int., em seus diversos aspectos, preocupações pessoais H. de Estado, estado dos armamentos e estado op. pública” (segundo papéis de curso depositados no Institut Pierre Renouvin, citados na Apresentação do Prof. René Girault, op. cit., p. vii).

Os historiadores engajados e a divisão intelectual do trabalho
Para realizar a vasta síntese que ele pretendia (que deveria comportar apenas cinco volumes), Renouvin convida profissionais que, como ele, tinham uma visão global da história das relações internacionais: o professor belga François Ganshof, especialista em história medieval; seu colega na Sorbonne, Gaston Zeller, autor de diversos trabalhos sobre a diplomacia de Luis XIV; André Fugier, professor da Universidade de Lyon, autor de uma tese sobre Napoleão e a Esspanha publicada nos anos 30. Ele próprio, finalmente, se encarregaria dos séculos XIX e XX.
Ganshof trabalha portanto no primeiro tomo da coleção, não sem algumas reticências metodológicas, pois que ele era inovadoramente dedicado ao estudo das técnicas de relações internacionais na Idade Média (Tome premier: Le Moyen Âge, publicado em janeiro de 1953). O trabalho de Gaston Zeller, cobrindo a idade moderna, estendeu-se perigosamente, num sentido “narrativo” e “cronológico” (o que Renouvin reprovava em parte), tendo então de ser dividido em dois volumes (Tome second: Les Temps modernes, I. De Christophe Colomb à Cromwell, junho de 1953; Tome troisième: Les Temps modernes, II. De Louis XVI à 1789, outubro de 1954). André Fugier terminou por sua vez a redação de seu texto sobre o período napoleônico desde fevereiro de 1952, cuja publicação antecipou-se portanto ao volume precedente a cargo de Zeller (Tome quatrième: La Révolution française et l’Empire napoléonien, fevereiro de 1954).
Quanto a Renouvin, seus dois volumes dedicados respectivamente aos séculos XIX e XX estenderam-se desmesuradamente: o primeiro volume tinha não menos de 692 páginas, o que obrigou à sua divisão em dois tomos, o mesmo acontecendo em relação ao século XX. Entre novembro de 1954 e novembro de 1958 são portanto publicados os quatro outros volumes da coleção: Tome cinquième: Le XIXe siècle, I. De 1815 à 1871. L’Europe des nationalités et l’éveil de nouveaux mondes; Tome sixième: Le XIXe siècle, II. De 1871 à 1914. L’apogée de l’Europe; Tome septième: Les Crises du XXe siècle, I. De 1914 à 1929; Tome huitième: Les Crises du XXe siècle, II. De 1929 à 1945.
A nova edição, em três volumes, introduzida pelo Professor René Girault, atual presidente do Institut Pierre Renouvin e eminente herdeiro da noção “renouviana” de “história dos tempos presentes”, reproduz fielmente o texto da última edição dos oito tomos da série, com apenas duas modificações: a bibliografia de cada um dos capítulos foi suprimida, conservando-se a bibliografia geral de cada tomo, e os fac-símiles das cartas geográficas foram reagrupadas no final de cada volume. Dessa forma, a introdução geral a cargo de Renouvin e os três primeiros tomos de Ganshof e de Zeller estão contidos no primeiro volume, que vai portanto da Idade Média a 1789. O trabalho sobre as relações internacionais na época da Revolução francesa, a cargo de Fugier, e o primeiro tomo sobre o século XIX da responsabilidade de Renouvin ocupam o segundo volume, indo portanto de 1789 a 1871. Finalmente, o terceiro volume cobre os três últimos tomos, tratando da época 1971 a 1945, escritos inteiramentes por Renouvin.
O sucesso da obra, desde a primeira edição foi rápido, justificando reimpressões em princípios dos anos 60 e traduções imediatas em italiano e em espanhol (não sem problemas de censura franquista, que recusava o termo “guerra civil” ou o conceito de “fascista” em relação à guerra espanhola de 1936-1939). A obra tornou-se um “clássico”, portanto, da história das relações internacionais, o que se explicava plenamente pelo caráter inovador do método ou a vastidão de propósitos, mas também pela fama já consagrada do seu autor principal.
O impacto fora das fronteiras francesas, e propriamente internacional, deveu-se também ao fato de que, no imediato pós-guerra, a escola histórica francesa estava na vanguarda da renovação metodológica então empreendida em vasta escala. Se assistia então a uma rejeição clara do “positivismo esclarecido”, praticado pelos mestres de princípios do século,como também à incorporação de conceitos e métodologias marxistas na pesquisa histórica, como revelado nos trabalhos de Ernest Labrousse, de Pierre Villar e, mais tarde, de Jean Bouvier.

Múltiplas causalidades, relações complexas entre atores
Mas, não se pode dizer que os autores da Histoire des relations internationales tenham rejeitado a história diplomática tradicional (ou seja, política) em favor de uma nova determinação “materialista” do processo, com causas econômicas “dominantes” das crises ou dos conflitos entre Estados. A concepção é mais complexa, colocando em relevo o jogo de causalidades diversas e as diversas teias de relações entre fatos econômicos e financeiros, ação das personalidades e influência das mentalidades. O historiador italiano Federico Chabod, cuja Storia della politica estera italiana del 1870 ao 1896 havia impressionado Renouvin, era aliás um dos promotores do estudo do papel da psicologia coletiva nas relações internacionais.
Não só as perspectivas analíticas são múltiplas, mas o campo geográfico é vasto, cobrindo praticamente o mundo inteiro, com uma ênfase lógica na Europa, afinal de contas, o centro das relações internacionais até praticamente o final da segunda guerra mundial. Os desafios eram, portanto, imensos. Como advertiu o Prof. Girault, havia o duplo perigo de se reduzir a multiplicidade dos fatos a algumas idéias simplificadoras ou de deixar esses fatos heterogêneos sem nenhum ordenamento em função de algumas explicações globais. “Para evitar esses dois obstáculos, apenas os aspectos gerais e os fatos significativos deveriam ser considerados. Em consequência, apesar da imensidade do campo coberto por essa história englobando o mundo inteiro, desde a alta Idade Média até 1945, o leitor tem a impressão de estar sendo conduzido com simplicidade e naturalidade até o essencial, saltando, no caminho, da Europa ao resto do mundo, das querelas dinásticas às rivalidades mercantis, dos grandes diplomatas aos homens de negócios, das nacionalidades às Internacionais, etc” (Apresentação, Volume I, p. xiv).
O mesmo historiador sublinha o fato de que, apesar de terem renovado os dados e a própria maneira de escrever a história diplomática, convertendo-a verdadeiramente numa reflexão sobre as relações internacionais contemporâneas, terreno antes exclusivamente ocupado pelo direito ou pelos cientistas políticos, os aportes da “escola” de Renouvin e seguidores (a expressão não é de Girault) deixaram de suscitar a atenção que mereceriam por parte dos partidários da escola dos Annales, sempre tímidos em face da história política. Também aqui parece ter se operado uma espécie de divisão intelectual do trabalho, que deixou a estes últimos uma espécie de monopólio, para não dizer o exercício de uma certa “ditadura conceitual”, sobre a história econômica e social.
Fazendo o balanço dos ensinamentos de Renouvin, Girault renova a visão de uma história das relações internacionais concebida de maneira não-linear e sem fatores dominantes invariáveis, como o peso das guerras ou das relações inter-estatais. Para ele, “as relações internacionais conheceram estágios diferentes porque elas são descendentes das civilizações que as cercam” (Apresentação, op. cit., p. xxvi, ênfase no original). No século XIX, predominaram as relações entre Estados, sobretudo na Europa. Um segundo tipo de civilização se desenvolve entre 1914 e meados dos anos 50, estendido ao mundo inteiro pela crise da dominação colonial e imperialista a partir de 1945. Nessa fase, as relações entre Estados permanecem dominantes, mas dois processos mudam a civilização: por um lado, a mundialização real da economia e das técnicas (transportes e comunicações) reforça o papel das relações econômicas; de outro, as relações internacionais são transformadas pela intervenção das ideologias (fascismos, racismo hitlerista, comunismo e anti-comunismo). Uma terceira geração de civilizações aparece a partir do final dos anos 50, com o término da guerra fria “quente”. De um lado, sob o sistema capitalista, desenvolveu-se uma sociedade transnacional, na qual o Estado-nação perdeu peso em face das novas organizações internacionais e interregionais: esse sistema privilegia as relações econômicas obedecendo às leis do mercado e à potência nuclear, verdadeiro critério de poder. De outro, o sistema dito comunista faz da ideologia sua alavanca mais importante e do centralismo ditatorial um meio de conduzir as relações internacionais. Em posição à parte, os Terceiros Mundos hesitam na busca de uma via autônoma, na verdade submetida às pressões contraditórias dos dois outros contendores (pp. xxvi-xxvii).
Teria a queda do mundo comunista gerado um novo período das relações internacionais, através do estabelecimento de uma nova civilização mundial ?, pergunta Girault. O transnacional tornou-se dominante e, mesmo se atores em alguns Estados continuam a acreditar em sua capacidade de atuar isoladamente, as ideologias parecem ter morrido, pelos menos as que se pretendiam globais. Mas, segundo Girault, ainda é muito cedo para pretender descrever as formas e a externsão geográfica dessa civilização, podendo ela mesmo ser composta de civilizações regionais (mundo islâmico, chinês, africano), cuja natureza particular deve levar em conta as situações geográficas e humanas.
O extraordinário crescimento das instituições regionais de cooperação política e econômica é talvez indicativo de uma nova era histórica. Em todo caso, os diversos níveis interdependentes de análise – política, econômica, social, cultural – no estudo das relações internacionais desses vastos conjuntos regionais de civilizações ou de “sistemas” (para empregar o conceito dos cientistas políticos), nos traz de volta, como sublinha Girault, à fórmula de Pierre Renouvin: “A história das relações internacionais é inseparavel da história das civilizações”.

O Brasil chez Renouvin
Uma tão larga perspectiva e um tratamento inevitavelmente centrado sobre as relações inter-estatais e internacionais européias ofereceria, como parece óbvio, pouco espaço a grandes digressões históricas ou políticas voltadas para um país como o Brasil, economicamente periférico, dependente politicamente, pois que, durante a maior parte de sua história, colônia de um país que era por sua vez essencialmente periférico e dependente. De resto, sem nunca ter constituído um centro de poder político, econômico ou militar próprio, o Brasil sempre foi relativa ou absolutamente marginal do ponto de vista das relações internacionais globais.
Não obstante, o Brasil comparece nas páginas dos vários volumes da Histoire des relations internationales, a partir da idade moderna evidentemente, sendo que metade das 35 citações se referem à sua condição de colônia ou ao movimento de independência, cabendo o resto ao próprio Renouvin dentro do período independente. Seria excesso de otimismo esperar encontrar, nos diversos textos, desenvolvimentos minuciosos sobre as relações exteriores ou a posição internacional do Brasil, pois que a coleção tem um compromisso básico com o seu objeto próprio, as relações internacionais, no mais amplo sentido geopolítico da palavra. Mas, uma verificação rápida permitirá algumas constatações interessantes.
As primeiras referências se encontram no texto escrito por Gaston Zeller para cobrir as relações internacionais na alvorada da idade moderna, tomo segundo da obra (Les Temps Modernes, I. De Christophe Colomb à Cromwell), tratando basicamente das consequências dos descobrimentos para as relações recíprocas entre Portugal e Espanha e destes com as demais potências européias (em especial, como seria de se esperar, com a França, de certo modo o centro do primeiro concerto europeu, antes e depois de Westfália). Uma atenção particular é dada aos interesses mercantis do comerciantes bretões na exploração dos parcos recursos florestais da maior e mais recente colonia portuguesa (vide Volume I, pp. 280 e 283).
Outras menções são feitas a propósito da substituição de hegemonias que se opera na Europa do século XVII, quando comerciantes e soldados mais agressivos, vindos da Holanda, Inglaterra e França, começam a dominar os principais circuitos de bens e metais, em detrimento dos antigos monopólios espanhóis e portugueses (vide o capítulo VIII do tomo segundo: “L’Océan: les politiques d’expansion coloniale”, Volume I, pp. 411-419, esp. 413 e 415, bem como o capítulo X, “La guerre de trente ans et la fin de la prépondérance espagnole”, pp. 438-464, cf. p. 448). A ascenção da potência inglesa terá, a partir de então, consequências decisivas não só para Portugal como para o próprio Brasil.
O mesmo Zeller oferece, no tomo terceiro (Les Temps Modernes, II. De Louis XIV à 1789), um panorama dessas mudanças hegemônicas, que consolidam ao mesmo tempo a dominação terrestre da França sobre o continente e a marítima da Inglaterra sobre quase todos os mares. Portugal, pressionado a escolher, mas procurando conservar sua autonomia, torna-se um mero pião nessas disputas, mesmo se ele consegue preservar o essencial de suas colônias, com destaque para o Brasil e Angola (Volume I, p. 513). Novamente, um grande atenção é dada à França e à política de Luís XIV (em um grande capítulo I: “La puissance française au temps de Louis XIV”, pp. 499-578), com uma breve referência à expedição de Duguay-Trouin de 1710-1711 ao Rio de Janeiro (vide pp. 567-8 desse volume).
Essa história de conflitos entre imperialismos rivais será retomada por André Fugier no quarto tomo do Histoire des relations internationales, sobretudo nos capítulos tratando das lutas entre a Espanha, de um lado, e os interesses respectivos de ingleses e franceses, de outro. A “vassalagem” política e militar de Portugal em relação à Inglaterra se faz cada vez mais presente, enquanto sua vida econômica passa a depender, cada vez mais estreitamente da “produção de ouro brasileiro, [da] frutuosa redistribuição de açúcar, café e algodão, compra de mercadorias inglesas...” (p. 66 do Volume II).
No momento do grande enfrentamento entre a “pérfida Albion” e o consul Bonaparte, Portugal se vê, no dizer de seus próprios diplomatas “entre l’enclume et le marteau”, mas continua seus proveitosos negócios com o “immense Brésil” (capítulo IV, “Pacifications (1801-1802)”, pp. 105-133; cf. 119-120). As contradições da política portuguesa eram também de alcova, pois que o Príncipe Regente João tinha casado com Carlota, filha dos soberanos espanhóis, que no momento eram aliados de Napoleão. Essa situação iria prolongar-se até novos desenvolvimentos em 1807, quando uma vez mais, em razão da política de bloqueio continental e do jogo de pressões militares, Portugal tem de submeter-se ou enfrentar a ira de Bonaparte. A “economia política” dos bloqueios inglês e francês são objeto de duas seções bastante instrutivas no capítulo VII do tomo a cargo de Fugier (II. “Économie de blocus britanique”, pp. 187-190, III. “La stratégie napoléonienne du blocus”, pp. 190-196), nas quais se insere precisamente a circulação de mercadorias brasileiras (sobretudo algodão e produtos tropicais) em direção de um ou outro beligerante (pp. 190 e 194).
André Fugier trata igualmente das razões estruturais da dominação européia sobre o resto do mundo, com um excelente capítulo sobre seus fundamentos espirituais, intelectuais, demográficos, militares, científicos e econômicos (capítulo X, “Courants d’Europe”, pp. 269-294), onde se insere a questão das “transferências demográficas”, ou seja a emigração européia para o novo mundo, e a própria partida de toda a elite e administração portuguesa para o Brasil, em 1807 (p. 284). O capítulo seguinte, sobre a independência das colônias americanas (XI, “Émancipation du Nouveau Monde”, pp. 295-312), não trata exatamente do processo brasileiro de autonomia, mas das iniciativas de Carlota Joaquina no Prata, a partir de 1808 (pp. 306-7), e da sustentação econômica e financeira da Inglaterra pela Coroa portuguesa, com as relações privilegiadas (e desiguais) que são então estabelecidas pelos tratados comerciais de 1809 e 1810. Data dessa época, igualmente, o estabelecimento de novas correntes de comércio entre o Brasil e seus parceiros do continente, a começar pelos Estados Unidos (p. 311).
O próprio Pierre Renouvin tratará da independência brasileira, no quinto tomo de sua coleção, todo ele dedicado ao século XIX. Depois de quatro capítulos iniciais sobre as “forças profundas”, sobre os “homens de Estado e as políticas nacionais”, as “ameaças à ordem européia” e os “movimentos revolucionários” no velho continente, Renouvin dedica todo o capítulo V à independência da América Latina. O tratamento é bastante sumário e os autonomistas brasileiros são chamados de “créoles portugais”, que seguem o exemplo dado pelos “créoles espagnols” nos demais países (p. 401). Mas, os eventos são enquadrados por Renouvin num panorama mais vasto:
“Nas relações internacionais, o lugar desses dois eventos é bastante desigual. A independência do Brasil só chama a atenção da Grã-Bretanha: o governo inglês que, em 1810, tinha defendido Portugal contra a França, aproveitou para se ver atribuída, no Brasil, uma tarifa alfandegária bastante favorável à importação dos seus produtos manufaturados; em 1822, frente ao ‘fait accompli’, ele se preocupa em manter essa vantagem; à medida em que Pedro consente, a política inglesa faz pressão sobre o governo português para levá-lo a reconhecer a independência do Brasil. Mas, a independência das colônias espanholas é uma questão de grande impacto para os Estados Unidos e as potências européias” (segundo volume, p. 401).
Ele ainda faz uma pequena referência ao Brasil, no contexto dos primeiros esforços de “solidariedade pan-americana”, com o convite bolivariano ao congresso do Panamá, de 1825, que deveria reunir os novos Estados do continente. Nem os Estados Unidos, que já tinha proclamado sua “doutrina Monroe” (1823), nem o Brasil ou a Argentina participarão da conferência (p. 412). A derrota do esforço de cooperação política dá lugar ao começo da preponderância britânica sobre o continente, hegemonia que vai durar cerca de um século.
Uma última menção ao Brasil nesse texto intervem nas conclusões gerais do tomo sob sua responsabilidade, quando Renouvin se contenta em apontar o papel dos fluxos migratórios europeus no crescimento de países como os Estados Unidos, a Argentina ou o “Brasil meridional” (segundo volume, p. 653), questão repetidamente levantada em diversas passagens ulteriores e mesmo na conclusão geral da obra (vide p. 910 do terceiro volume). Não há, em contrapartida, para o período em que as jovens nações sul-americanas já se tinham completamente desvencilhado da tutela metropolitana, qualquer referência às lutas entre caudilhos na própria região, como os conflitos do Prata ou a guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai: o equilíbrio de poderes, numa região tão excêntrica para a política mundial como a América do Sul, não entra certamente nos esquemas conceituais das relações internacionais vistas da Europa.
O terceiro e último volume da nova edição dessa obra clássica, traz os três tomos finais do Histoire des relations internationales, todos redigidos pessoalmente por Pierre Renouvin e cobrindo o período de 1871 a 1945. Em cada um deles, as referências ao Brasil são, para dizer o mínimo, reduzidas e, em geral, insatisfatórias do nosso ponto de vista: as relações internacionais do continente sul-americano são sempre consideradas a partir de uma perspectiva européia ou norte-americana. É o caso, por exemplo, do capítulo XVI do sexto tomo, “Les Influences Européennes en Amérique Latine” (pp. 237-244), onde Renouvin começa por afirmar:
“O campo de predileção para a expansão européia, não apenas do ponto de vista demográfico ou do ponto de vista econômico e financeiro, mas no terreno da vida intelectual, é a América do Sul. A influência demográfica é importante sobretudo na Argentina e no Brasil” (p. 237).
Seguem, nas páginas seguintes, comentários e informações sobre esses imigrantes, sobre os investimentos estrangeiros ou sobre infraestrutura ferroviária no Brasil que, lidos na ótica da historiografia contemporânea, seriam considerados ingênuos ou, enquanto dados parciais, mesmo irrelevantes, mas que podem ser provavelmente explicados pelo estado da bibliografia disponível sobre o Brasil à época da elaboração do trabalho: velhas monografias de Pierre Denis sobre o café, alguns outros estudos de Roger Bastide (sobre raças ou a dualidade da geografia humana), de Pierre Monbeig (sobre os pioneiros e fazendeiros de São Paulo) ou de Charles Morazé (sobre a evolução política do Brasil), por exemplo.
Da mesma forma, seus argumentos sobre a influência cultural francesa nas repúblicas sul-americanas – marcadas por um “latinisme de sentiments, de pensée et d’action, avec tous ses avantages primesautiers et ses défauts de méthode”, segundo Georges Clemenceau, que voltava de viagem (pp. 243-244) – e sobre as lacunas de sua prática efetiva, beiram o ridículo, tanto o amalgama e o julgamento superficial caracterizam o discurso: “Vassales de l’Europe au point de vue économique et financier, ces Républiques en restent profondement séparées para l’esprit de la vie politique” (p. 244).
No tomo seguinte, sobre as crises do século XX entre 1914 e 1929, Renouvin retoma o argumento sobre a influência cultural e econômica da Europa, agora contestada pela influência dominante dos Estados Unidos em ascenção. O capítulo XIV, especificamente dedicado à posição internacional da América Latina, não agrega nenhum dado significativo sobre o Brasil e o amalgama com outras repbúlicas sul-americanas continua a ser praticado com o agravante da visão política eurocêntrica: o conflito entre o Chile e o Peru a propósito de Tacna e Arica, por exemplo, é pensado em termos de “Alsace-Lorraine”.
Segundo a interpretação de Renouvin, a existência da Sociedade das Nações poderia dar a esses Estados “plus de courage” para enfrentar a hegemonia dos Estados Unidos: “não podem eles esperar que o organismo genebrino lhes dará apoio e lhes fornecerá talvez um meio de escapar ao sistema pan-americano ?” (p. 575). Na mesma linha, Pierre Renouvin parece lamentar que, tendo assinado o “tratado Gondra”, de 1923, os Estados latino-americanos se comprometem em resolver seus litígios no quadro pan-americano (“dominé par les États-Unis”), em lugar de entregá-los à Sociedades das Nações. Em todo caso, Renouvin nota o apoio apenas discreto (“nuancé”), em contraste com a vigorosa tomada de posição argentina, que o Brasil concede, na conferência de Havana em 1928, ao projeto de declaração da Comissão de juristas inter-americanos – Comissão do Rio – sobre os princípios da “não-intervenção” (dos Estados Unidos, entenda-se) e da igualdade de direito entre os Estados americanos, como normas consagradas do direito internacional americano (p. 578).
No último tomo, finalmente, Les Crises du XXe siècle de 1929 à 1945, o Brasil e a América Latina comparecem muito pouco, apenas a título de figurantes secundários num ou noutro episódio ligado à guerra mundial (p. 820) ou como fornecedores de matérias-primas (p. 883), ou seja, numa posição confirmadamente marginal do ponto de vista das relações internacionais. Durante o conflito mundial, ele reconhece, por exemplo, que a América Latina contraiu em relação aos Estados Unidos “des liens de dépendance” que se desdobram numa hegemonia financeira a partir de 1947. (p. 884).

A Permanência de Renouvin
Profundamente marcado, como todos os homens de sua geração, pelas tragédias guerreiras que, de 1871 a 1945, retiram todo peso político ou econômico e toda influência internacional à Europa e à França, Pierre Renouvin consegue ainda assim produzir uma obra de referência que traz como fundamento metodológico e como premissa filosófica básica a essencialidade das relações inter-estatais européias para as relações internacionais. Esse tipo de perspectiva pode ser considerado como fundamentalmento correto para a maior parte do período coberto, mas um historiador do novo mundo, eventualmente chamado a preparar um trabalho equivalente de síntese, provavelmente produziria uma obra com maior ênfase no peso relativo dos Estados Unidos ou nos fundamentos materiais e políticos da bipolaridade que passaria a dividir o mundo do pós-segunda guerra.
Caberia entretanto observar que as relações internacionais, numa determinada era do desenvolvimento das civilizações, devem ser apreciadas em seu próprio contexto histórico, e não em função do devenir. Aplica-se aqui a famosa frase de Marx em seu 18 Brumário de Luís Bonaparte, segundo a qual a tradição das gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.
Em sua “Conclusion Générale” (Volume III, pp. 907-918), Renouvin retém os dois elementos que lhe parecem essenciais ao cabo de uma vista de conjunto sobre o desenvolvimento das relações internacionais no curso de dez séculos: “um, o mais destacado sem dúvida, é a permanência das rivalidades e dos conflitos entre os grandes Estados, é o espetáculo das mudanças incorridas na hierarquia desses Estados; o outro é, por iniciativa dos europeus, o progresso das relações entre os continentes, ao ritmo dos progressos técnicos que facilitaram os deslocamentos dos homens, o transporte das mercadorias e o intercâmbio das idéias. A história das relações internacionais deve procurar identificar como esses dois aspectos de completam e se penetram; ela estende seu olhar sobre o mundo inteiro” (p. 907).
Depois de passar mais uma vez em revista o papel das condições econômicas, demográficas e psicológicas – as “forças profundas” – que influenciam essas relações internacionais, Renouvin volta a confirmar o papel essencial dos Estados nas relações internacionais. Ao mencionar “l’action déterminante des États”, sobretudo daqueles Estados que conseguiram salvaguardar, de século em século, seu poder, ele deveria certamente estar pensando na França, então ocupada em reconstruir seu poderio material e em recuperar seu antigo prestigio imperial. A mensagem de Renouvin é talvez um pouco voluntarista, mas o parti pris é digno de ser sublinhado: “O Estado impõe sua marca nas forças profundas, que ele acomoda ou utiliza em proveito do seu poder” (p. 915).
Essa mesma opção preferencial, de ordem metodológica e empírica, em favor do Estado comparece no conhecido manual, em co-autoria, de história das relações internacionais. Sua importância, para os estudantes da área, justificaria talvez uma longa citação:
“O estudo das relações internacionais está voltado sobretudo para a análise e a explicação das relações entre as comunidades políticas organizadas no quadro de um território, isto é, entre os Estados. Sem dúvida, ele deve levar em conta as relações estabelecidas entre os povos e entre os indivíduos que compõem esses povos – intercâmbio de produtos e de serviços, comunicações de idéias, jogo das influências recíprocas entre as formas de civilização, manifestações de simpatias ou de antipatias. Mas, ele constata que essas relações podem raramente ser dissociadas daquelas que são estabelecidas entre os Estados: os governos, frequentemente, não deixam a via livre a esses contatos entre os povos; eles lhes impõem regulamentos ou limitações, quer se trate do movimento de mercadorias ou de capitais, de movimentos migratórios, ou mesmo de circulação de idéias; eles podem também, por outros procedimentos, orientar as correntes sentimentais. Essas intervenções não têm somente como resultado mais frequente a restrição ou a atenuação das relações estabelecidas pelas iniciativas individuais; elas também lhes modificam o caráter. Deixadas a elas mesmas, essas relações entre os indivíduos poderiam constituir, algumas vezes, um fator de solidariedade; pelo menos, os antagonismos entre esses interesses individuais não acarretariam, na maior parte dos casos, consequências políticas diretas. Regulamentadas pelos Estados, elas se tornam elemento de negociações ou de contestações entre os governos. É portanto a ação dos Estados que se encontra no centro das relações internacionais” (Cf. Pierre Renouvin e Jean-Baptiste Duroselle: Introduction à l’histoire des relations internationales; Paris: Librairie Armand Colin, 1964, Introdução, p. 1).
Essa mensagem de história global e ao mesmo tempo de confirmação do papel primordial do Estado nas relações internacionais constitui, por assim dizer, a lição de Pierre Renouvin às gerações de nossa própria época histórica, um ensinamento que se pretende também um convite à modéstia de pretensões explicativas em sua disciplina. Com efeito, ele termina sua monumental Histoire des relations internationales por uma lição que é sobretudo uma advertência contra as pretendidas “lições da história”:
“A política exterior está ligada a toda a vida dos povos, a todas as condições materiais e espirituais dessa vida, ao mesmo tempo que à ação pessoal dos homens de Estado. Na busca de explicações, que permanece o objetivo essencial do trabalho histórico, o maior erro consistiria em isolar um desses fatores e atribuir-lhe uma primazia, ou mesmo em querer estabelecer uma hierarquia entre eles. As forças econômicas e demográficas, as correntes da psicologia coletiva e do sentimento nacional, as iniciativas governamentais se completam e se penetram; sua parte de influência respectiva varia segundo as épocas e segundo os Estados. A pesquisa histórica deve tentar determinar qual foi essa parte. Ela oferece assim oportunidade para necessárias reflexões; mas, ela não pretende dar receitas e muito menos ditar lições” (Volume III, p. 918)
Esta é a grande lição que mestre Pierre Renouvin deu em sua Histoire des relations internationales e na maior parte de suas obras: seu sentido e seus propósitos continuam plenamente válidos. Voilà !

[Paris, 08.08.94]
[Relação de Trabalhos n° 444]
Publicado na seção Livros da revista Política Externa
(São Paulo: vol 3, nº 3, dezembro-janeiro-fevereiro 1994/1995, pp. 183-194).
[Relação de Publicados n° 169]

444. “Contribuições à História Diplomática: Pierre Renouvin, ou a aspiração do total”, Paris, 8 agosto 1994, 16 pp. Resenha crítica de Pierre Renouvin (ed): Histoire des Relations Internationales (Paris: Hachette, 1994, 3 volumes: Volume I: Du Moyen Âge à 1789 (876 pp.) Volume II: De 1789 à 1871 (706 pp.) Volume III: De 1871 à 1945 (998 pp.). Publicado na seção Livros da revista Política Externa (São Paulo: vol 3, nº 3, dezembro-janeiro-fevereiro 1994/1995, pp. 183-194). Relação de Publicados n° 169.

Brasil-China: afinidades eletivas? - Zhou Zhiwei

Recebi, do meu amigo chinês Zhou Zhiwei, secretário de Centro de Estudos Brasileiros do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Chinese Academy of Social Sciences, em Pequim, as duas matérias abaixo, que transcrevo para informação de meus leitores.
Zhou Zhiwei pediu que eu comentasse suas afirmações, o que pretendo fazer oportunamente, e talvez discretamente...
Paulo Roberto de Almeida

CHINA: Brasil deve tentar aproveitar melhor investimentos da China, diz acadêmico
Silvia Salek
Enviada especial da BBC Brasil à China,
11 de abril, 2011 - 05:26 (Brasília) 08:26 GMT
Para Zhou Zhiwei, a importância do Brasil para a China é cada vez maior

O pesquisador e secretário-geral do Centro de Estudos Brasileiros da Academia Chinesa de Ciências Sociais, Zhou Zhiwei, disse em entrevista à BBC Brasil, em Pequim, que o Brasil deve buscar desenvolver sua competitividade e tentar aproveitar melhor os investimentos chineses.
“Falta um plano organizado, falta um papel para direcionar estes investimentos para os setores que precisam de mais investimentos”, disse.
Segundo Zhou Zhiwei, as relações do Brasil com a China devem se intensificar e, com isso, mais tensões devem surgir como em um namoro que evolui para um casamento.

Leia abaixo a entrevista da BBC Brasil com o pesquisador chinês.

BBC Brasil - A importância da China para o Brasil é clara. É o principal parceiro comercial e principal investidor do Brasil. E qual a importância do Brasil para a China?
Zhou - A importância do Brasil para a China é cada vez maior. Em termos econômicos, o Brasil é agora um dos maiores parceiros comerciais da China, o nono maior parceiro. Isso é importante para os dois lados. Eu acho também que a relação entre o Brasil e a China já superou a esfera bilateral como disse o vice-presidente Xi Jinping, quando visitou o Brasil em 2009. Essa relação tem agora um significado estratégico mundial.

BBC Brasil -A relação entre os dois países já tem um grau de tensão e alguns analistas acreditam que essa tensão vá aumentar. Você compartilha dessa opinião?
Zhou - Concordo. Na verdade, eu acho que as tensões vão crescer à medida que a relação entre os países se intensifica. É como a relação entre namorados. Para eles, o mundo é bonito, sem conflitos. Quando se casam, começam a surgir mais problemas e dificuldades para resolverem. O comércio entre Brasil e China cresceu muito nos últimos anos, então, claramente, vai existir competição, concorrência. Mas acho que é um processo natural.

BBC Brasil - Mas as exportações brasileiras não incomodam a China, o problema é a via oposta? Só um lado parece se incomodar.
Zhou -Eu acho que existe uma diferença entre setores. O setor agrícola brasileiro tem uma situação muito favorável. Por outro lado, existe claramente concorrência entre os setores industriais no mercado brasileiro e em terceiros mercados. Esse problema é muito natural, mas o mais importante é que o setor industrial brasileiro deve promover a sua competitividade.

BBC Brasil - Como?
Zhou - Tributos, infraestrutura e também desenvolvimento tecnológico para maior eficiência.

BBC Brasil - E o que o senhor acha de medidas como anti-dumping e salvaguardas contra produtos chineses industrializados? É a ferramenta correta?
Zhou - Para o Brasil, pode ser a ferramenta correta. Se você acha que isso não é bom, pode aplicar medidas para defender seu setor de acordo com as regras da OMC. Mas eu acho que medidas anti-dumping não resolvem este problema. O mais importante para o Brasil é aumentar a competitividade. É o ponto-chave.

BBC Brasil - E o reconhecimetno da China na OMC, prometido no governo Lula, mas não ratificado? Como os chineses veem a postura do governo brasileiro?
Zhou - O primeiro-ministro chinês, Web Jiabao, disse que é lamentável que o Brasil ainda não tenha aprovado o status da China na OMC. Então, acho que, durante a visita da presidente Dilma Rousseff, os dois governos vão discutir esse assunto. Eu acho que o governo brasileiro tem suas próprias condições, por exemplo, a questão da licença para a produção de um novo modelo pela Embraer. Eu acho que essa questão da Embraer será resolvida. Se isso for resolvido, eu acho que a atitude do governo brasileiro vai mudar.

BBC Brasil - Mas com o reconhecimento do status da OMC, o Brasil perde uma arma que alguns setores consideram fundamental, que é a possibilidade de aplicar medidas anti-dumping, usando no cálculo o preço de terceiros mercados.
Zhou - Fechar a porta para os produtos chineses não é uma boa solução. Na minha opinião, o mais importante para outros países é aumentar a competitividade. O status da China não é uma questão muito difícil, é apenas um processo.

BBC Brasil -Pelo cálculo de uma entidade americana, o Brasil foi o principal destino dos investimentos chineses em 2010. Qual a perspectiva nessa área para o Brasil?
Zhou - O investimento da China em 2010 é só o início desta tendência porque o Brasil tem muitas oportunidades e vantagens em termos de recursos naturais e é receptivo ao investimento chinês. As empresas chinesas estão traçando uma estratégia de internacionalização e o Brasil é um país emergente com muitas oportunidades para as empresas chinesas aproveitarem. Como a maior economia da região, o Brasil deve desempenhar também um papel de ponte entre a China e a América do Sul. O Brasil representa claramente uma oportunidade imensa para ser aproveitada.
Já recebi e-mails de empresas chinesas perguntando sobre como fazer negócio no Brasil. Algumas fabricam, por exemplo, material para estádios. Sabem que haverá a Copa do Mundo, Olimpíadas.

BBC Brasil - E o que dificulta que isso se concretize?
Zhou - Existem alguns obstáculos para trazer mais investimentos. Por exemplo, deficiência de infraestrutura, mas essa também é uma boa oportunidade para os chineses.

BBC Brasil - Apesar de haver oportunidades em algumas áreas, o investimento chinês tem sido criticado por se concentrar demais na busca por matérias-primas. Como o senhor vê essas críticas?
Zhou - É engraçado. Antes, lembravam que durante a visita de Hu Jintao, em 2004, os chineses prometeram investimentos e não os concretizaram. Em 2010, chega um monte de investimento, mas muitas pessoas se preocupam porque cresceu demais. Claramente, o investimento chinês representa um certo choque para alguns setores e empresas brasileiras, mas, para aproveitar melhor estes investimentos chineses, o governo brasileiro deve redirecionar os investimentos para os setores que precisam de mais investimentos.

BBC Brasil - O senhor acha, então, que o Brasil não deve aceitar investimento em qualquer área?
Zhou - Falta um plano organizado, falta um papel para direcionar estes investimentos para os setores que precisam de mais investimentos.

BBC Brasil - Mas que poder o governo pode ter sobre isso? Se uma empresa privada quer vender suas operações para a China, o que o governo pode fazer?
Zhou - Sim, mas a relação também tem de ser entre dois governos, entre dois países. O governo tem de desempenhar um papel importante para promover esta relação.

BBC Brasil - O interesse chinês é por commodities, algo que preocupa alguns setores. O senhor vê motivo para preocupação?
Zhou - Os recursos naturais correspondem a 85% de todos os investimentos da China no Brasil. A China precisa desses recursos. Isso representa um desafio para o Brasil. Para resolver esse problema, o governo brasileiro tem de fazer seu dever. Claro que os recursos naturais são as vantagens do Brasil. É o que a China quer para sustentar o crescimento. É uma relação complementar. O Brasil deve se planejar para aproveitar melhor os investimentos chineses. É uma relação que envolve os governos.
Se conseguir apoio dos governos, fica mais fácil para as empresas chinesas investirem em outros países.

BBC Brasil - Então o senhor acha que existe potencial para o Brasil usar os recursos naturais na barganha por investimentos de mais valor agregado?
Zhou - Eu acho que o apetite da China claramente é recurso natural. Se o Brasil quiser mais investimento em outros setores, o que vai oferece para atrair as empresas chinesas? É nisso que o Brasil tem de pensar. O que vai fazer? Muitos países também querem investimentos da China. No Brasil, existem obstáculos para fazer negócios: altos tributos, o custo para as empresas é alto, as regras trabalhistas são rígidas, a segurança pública não é boa. Então, esses são desafios se o Brasil quer mais investimento em infraestrutura e outros setores.

BBC Brasil - Como o senhor vê a reação no mundo à ascensão da China?
Zhou - A China virou a segunda economia do mundo, mas o PIB per capita é muito baixo. Ainda é a metade do PIB per capita no Brasil. O status da China ainda é de um país em desenvolvimento. A China também quer desempenhar um maior papel nos assuntos internacionais, mas o maior desafio agora é o desenvolvimento sustentável. Existem questões sociais, como uma disparidade de renda muito grande. A tarefa para os governos chineses é promover um equilíbrio entre crescimento e desenvolvimento social.

BBC Brasil - Então, a China vai continuar olhando mais para dentro?
Zhou - Há um pensamento corrente que diz que a política externa da China é fazer seu próprio dever da melhor maneira possível, pensando o mínimo nas questões internacionais. Essa é uma diferença entre Brasil e China. A atitude do Brasil na área de política interna é mais ativa e altiva, como diz Celso Amorim. Mas, para o governo chinês, a humildade é mais importante. O Brasil está sempre pensando em ser uma potência mundial. Durante a Segunda Guerra, surgiu uma oportunidade de ser memebro permanente da ONU. E, nas últimas décadas, o Brasil tenta fazer o possível para realizar o sonho de potência mundial. São características dos povos. Os brasileiros são mais otimistas, os chineses, mais reservados.

BBC Brasil - O senhor falou em humildade, mas há um grande número de observadores que têm visto uma maior assertividade ou até agressividade por parte da China principalmente após a crise, quando o país saiu quase ileso e enxergou as rachaduras no modelo americano.
Zhou - De fato, existe uma mudança nos assuntos internacionais no que diz respeito a atitude do governo chinês. O governo começa a pensar que pode desempenhar um papel correspondente ao status econômico. Claramente, a economia chinesa cresceu e a China está desempenhando um papel mais importante. Por isso, veem uma maior agressividade. Mas, considerando a importância que a China ganhou, ainda acho que a postura do governo continua sendo de humildade.

BBC Brasil - Mas com a ampliação dos interesses chineses do mundo, será que a China não vai ser forçada, no futuro, a assumir um papel de liderança, para defender seus crescentes interesses econômicos de forma mais ativa? Será que a política da não-interferência sobrevive por muito tempo?
Zhou - Acho que é uma tendência possível. As empresas chinesas estão elaborando estratégias de internacionalização não só na América do Sul, mas também na África, nos Estados Unidos, na Austrália. Com isso, o governo chinês tem de pensar mais do que antes no resto do mundo para aproveitar a oportunidade de transformação mundial de agora e não só proteger seus interesses, mas também proteger os interesses dos países em desenvolvimento. Acho que esse é um ponto de cooperação entre Brasil e China.

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Americano prevê colapso da China em 2020; chinês vê estabilidade
Amauri Arrais
Do G1, em São Paulo, 11/04/2011 12h52

Para George Friedman, ciclo de crescimento do país está quase no limite.
Governo tenta repassar ganhos em benefícios para o povo, diz Zhou Zhiwei.

George Friedman, autor do best-seller 'The Next Decade' e o chinês Zhou Zhiwei, secretário de centro de estudos brasileiros em Pequim (Fotos)

Enquanto grande parte dos analistas vê o avanço da China como potência global se realizar em um ritmo mais rápido do que se previa, o cientista político americano George Friedman prevê, no best-seller “The Next Decade” (“A próxima década”, ainda inédito em português), que o país deve entrar em colapso até 2020.

Também autor de “Os próximos 100 anos” (Ed. Best Business, 2009), traduzido em mais de 20 línguas, e diretor-executivo da consultoria Stratfor, Friedman acredita que o país asiático, assim como o Brasil, está chegando ao limite do ciclo atual de desenvolvimento, e que as perspectivas, “no longo prazo”, são mais favoráveis ao Brasil.
“Devo dizer que vejo as perspectivas do Brasil no longo prazo bem melhores que as da China. Ainda assim, este é o encontro de dois países cujo “boom” econômico está amadurecendo e que estão tendo mais dificuldades em manter o ritmo. Mas o ritmo brasileiro tem sido mais sólido e equilibrado, e com uma pobreza, embora ainda presente, não tão extrema quanto a da China”, disse ao G1 às vésperas da visita da presidente Dilma ao país, a partir desta segunda-feira (11).

As afirmações do americano são rebatidas pelo chinês Zhou Zhiwei, secretário-geral do Centro de Estudos Brasileiros na Academia Chinesa de Ciências Sociais, em Pequim, que vê o país se desenvolver com estabilidade e o governo "se esforçando para transformar os ganhos do crescimento econômico em benefícios para o povo".
"Há dez anos, ninguém imaginou que o Brasil poderia conseguir o direito de sediar os jogos olímpicos, mas conseguiu. A China está se desenvolvendo estavelmente em meio a muitas previsões como estas. O país está claramente enfrentando alguns desafios, mas nunca parou de fazer suas reformas. Esta é a causa por que algumas previsões se mostraram falhas", diz.

Leia, a seguir, trechos das entrevistas que os dois especialistas deram ao G1.

George Friedman
G1 – Enquanto muitos especialistas concordam que estamos assistindo a uma transferência de poder geopolítico dos EUA para a China, no seu livro o senhor prevê a fragmentação do país até 2020. Por quê?
George Friedman - A China é um país profundamente dividido. 600 milhões de pessoas vivem diariamente com até US$ 3. E 440 milhões têm de sobreviver com de US$ 3 a US$ 6 pro dia. Há cerca de 60 milhões de chineses ganhando US$ 20 mil ou mais por ano. Esta é a China de que todos falam a respeito e que representa menos de 5% da população. É um país extremamente pobre. Tem um pequeno segmento que não pode vender na China, mas deve principalmente exportar. Mas sua taxa de inflação tem rendido à China sua posição como um país de baixos salários, e os bilhões de chineses pobres não podem ser facilmente treinados. Isso significa que há uma grande pressão na China da ameaça de desemprego. O governo chinês é consciente da grande revolta social que isso pode provocar e é por isso que se tornou extremamente repressivo. Eles conhecem as divisões na China e os riscos que têm que confrontar.

G1 – O senhor já disse que é fácil tirar conclusões superficiais sobre a China (e sobre a Ásia em geral) porque “muito do que realmente importa ocorre sob a superfície e não é discutido em público”. Acredita que há muita manipulação nos dados divulgados pelo governo?
Friedman - Eles não são tão manipulados quanto são mal interpretados. Por exemplo, se a China tem uma grande taxa de crescimento, isso não significa que seja rentável. [O país] Tem uma taxa de crescimento muito elevada das exportações, mas a margem de lucro está encolhendo. Logo, se você olha para as altas taxas de crescimento, vê sucesso. Quando você olha mais de perto, o retrato é mais complexo. Altas reservas de dólares estão sendo vistas como sinal de êxito. O que elas representam é a falta de habilidade da economia chinesa de absorver investimento. É algo semelhante ao que aconteceu no Japão de 1990 ou nos Estados Unidos de 1929. Então, não é que os dados sejam manipulados, mas não estão sendo analisados com cuidado.

G1 – A despeito das preocupações com a situação dos direitos humanos no país, chefes de Estado são relutantes em mencionar o assunto quando visitam Pequim. Acredita que o tema também pode afetar a chance de a China de se tornar uma superpotência global?
Friedman - A opinião de governos de outros países sobre direitos humanos faz pouca diferença para a China. Eles têm sua própria maneira de pensar o assunto. A situação de direitos humanos não deve ser vista nos termos das críticas do Ocidente, mas do entendimento que flui do medo chinês de uma revolta, que poderia ser alimentada por problemas étnicos, econômicos e pela desigualdade. A repressão cresce a partir desses medos. É uma maneira de tentar manter a estabilidade em tempos difíceis.

G1 – A presidente Dilma Rousseff fará sua primeira viagem à China apenas semanas depois da vinda do presidente Barack Obama ao Brasil, num esforço para retomar o posto de principal parceiro comercial brasileiro (tomado pela China). É um mau sinal para as relações entre Brasil e EUA?
Friedman – Não acredito que isso pode afetar as relações Brasil-Estados Unidos. Primeiro porque é apenas uma visita, e este tipo de visita é comum. Os EUA não sofrem ameaça das relações entre China e Brasil. Elas só podem ser econômicas, e não estratégicas, devido à distância e limitações de poder de ambos os países. Segundo, será interessante assistir ao encontro porque Brasil e China compartilham o status de serem estrelas da última geração. Agora, ambos os países estão chegando ao limite do ciclo atual de crescimento, então têm muito o que discutir.

G1 – E quais são os prognósticos do senhor para o Brasil nesse cenário?
Friedman - Devo dizer que vejo as perspectivas do Brasil no longo prazo bem melhores que as da China. Ainda assim, este é o encontro de dois países cujo “boom” econômico está amadurecendo e estão tendo mais dificuldades em manter o ritmo. Mas o ritmo brasileiro tem sido mais sólido e equilibrado, e com uma pobreza, embora ainda presente, não tão extrema quanto a da China. Estas conversas são muito interessantes porque os dois países têm muito em comum, incluindo os problemas atuais.

Zhou Zhiwei
G1 - A presidente Dilma fará sua primeira viagem à China (que no ano passado ultrapassou os EUA como principal parceiro comercial do Brasil) apenas semanas após a visita de Obama ao Brasil. O senhor acha que isso indica alguma mudança de postura do país em relação à China?
Zhou Zhiwei - Eu não acho [que isso indique uma mudança de postura do Brasil], mas isso indica verdadeiramente que os EUA e a China são duas prioridades da política externa brasileira. Sempre acho que a relação Brasil-EUA pode ser mais complicada que a relação Brasil-China. O Brasil e a China possuem mais interesses comuns nos assuntos mundiais, mas há algumas contradições estruturais na relação entre o Brasil e os EUA, não só na região da America Latina, também na ordem internacional.
G1 - De alguma maneira, essa proximidade com os chineses afeta as relações Brasil-EUA?
Zhou Zhiwei - A meu ver, o principal princípio da política externa do Brasil defender os seus próprios interesses nacionais em qualquer relação bilateral. A atitude do governo brasileiro deve corresponder à sua estratégia geral da política externa. Na minha análise, realizar o sonho de ser potência global numa estrutura desequilibrada de hegemonia é o destino da estratégia da política externa do Brasil. Para realizar esse objetivo, o Brasil deve aprofundar as cooperações com os países em desenvolvimento, especialmente com os países emergentes. Isso é o que o governo Lula fez nos últimos 8 anos. Acho que o Brasil conseguiu muito nesse sentido através desse tipo de cooperação com o mundo em desenvolvimento. Desde modo, a maior proximidade com os países emergentes seria boa para que o Brasil assuma um papel mais importante no cenário mundial, pois isso significa que terá maior espaço na política externa para defender seus próprios interesses estratégicos, especialmente na relação com os países desenvolvidos.
G1 - Dilma, que tem assumido posições diferentes de Lula na questão dos direitos humanos, enfrenta um dilema: mencionar ou não o tema na China, em meio às prisões do artista Ai Weiwei e do ativista Liu Xiaobo após criticarem o governo. Acredita que a presidente deveria mencionar o tema? Isso afetaria diretamente as relações entre os países?
Zhou Zhiwei - Não acho que a presidente Dilma vai enfatizar essa diferença de entendimento no conceito de direitos humanos. Também não acho que essa diferença vai afetar o desenvolvimento geral da relação bilateral Brasil-China. Essa relação já chegou a uma maior amplitude e profundidade. Não deixar essa diferença afetar a estreita relação bilateral seria uma atitude ideal para promover e aprofundar as cooperações entre os dois países.
G1 - Assim como os países árabes, a China, a despeito do forte crescimento, ainda tem grande parte da população vivendo na pobreza, muito desemprego entre os jovens e repressão do governo. Uma revolta como a da Tunísia ou Egito é possível na China?
Zhou Zhiwei - Não me preocupo com essa possibilidade. Os povos chineses reconhecem que as questões sociais estão melhorando com o crescimento econômico e o governo chinês está se esforçando para transformar os ganhos do crescimento econômico em benefícios para o povo. O mais importante, na cabeça dos chineses, é que uma ordem estável é um fator fundamental para uma vida melhor.
G1 - Na contramão de outros especialistas em todo mundo, o americano George Friedman se tornou best-seller nos EUA com um livro em que, dentre outras coisas, prevê a fragmentação da China até 2020, baseado em problemas estruturais e do sistema financeiro chinês. O que o senhor pensa sobre isso?
Zhou Zhiwei – Previsão é sempre só é uma previsão. Há dez anos, ninguém imaginou que o Brasil poderia conseguir o direito de sediar os jogos olímpicos, mas conseguiu. A China está se desenvolvendo estavelmente em meio a muitas previsões como estas. O país está claramente enfrentando alguns desafios, mas nunca parou de fazer suas reformas. Esta é a causa por que algumas previsões se mostraram falhas.
G1 - Outra tese do autor é que os especialistas tiram conclusões sobre a China baseados em análises superficiais, já que o país não discute muitos dos seus problemas em público. O senhor acredita que há manipulação dos dados divulgados pelo governo?
Zhou Zhiwei - A conclusão do senhor George Friedman é muitíssimo engraçada. Este possivelmente também é um “bom” jeito de ele atrair os leitores. Hoje, há um ambiente mais livre na área acadêmica, os pesquisadores chineses podem discutir sobre qualquer tema. Não sinto esta questão de manipulação.

domingo, 17 de abril de 2011

Venezuela: a construcao de uma ditadura - Belisário dos Santos Jr

Certos estudantes, sem dúvida alguma dotados de pouca informação e menos ainda de leituras, acreditam que certo coronel do Caribe seja um homem de esquerda. Nisso são estimulados por professores mal informados (na melhor das hipóteses), ingênuos (numa hipótese neutra, ou intermediária), ou simplesmente de má fé (na pior das hipóteses, o que também indica um problema de caráter). Professores debilóides, anti-americanos primários, viúvos do socialismo, ou seja lá por que motivo for, apreciam a linguagem anti-imperialista do candidato a ditador.
Eu costumo dizer a esses estudantes que leiam um pouco de história.
Leiam, por exemplo, a trajetória do fascista Benito Mussolini, na construção de seu Stato totale, entre 1924 e 1928, na Itália, e vejam como as medidas tomadas pelo ditador da península itálica são muito parecidas com o que faz hoje o histriônico coronel do Caribe.
Ambos destroem as instituições, afastam, prendem ou mandam assassinar opositores políticos, cerceiam os meios de comunicação, ganham lealdades na base de compra de seguidores pobres, arregimentam para si brigadas ou milícias "populares" fanaticamente devotadas à figura do líder, enfim, constroem uma ditadura personalista.
Comparem e vejam se o proto-ditador do Caribe não tem o mesmo DNA de Mussolini...
Paulo Roberto de Almeida

Como Hugo Chávez transformou em criminosa a magistrada que ousou fazer corretamente o seu trabalho: aplicar a lei
Belisário dos Santos Jr.
O Estado de S.Paulo, 17 de abril de 2011

"A Justiça morreu!", disse a juíza venezuelana Maria Lourdes Afiuni, em prisão domiciliar, aos advogados da missão da International Bar Association, IBA (Associação Internacional de Advogados), que a visitavam em Caracas, em fevereiro. O "crime" da juíza Afiuni: haver reconhecido, no final de 2009, o excesso de prazo para a prisão preventiva de um acusado de fraude financeira, preso provisoriamente havia quase três anos, quando o período máximo previsto em lei é de dois anos. A especial circunstância: aquele era um "preso de Hugo Chávez".

Afiuni simplesmente aplicou a lei de seu país, e pagou caro por essa ousadia. Quinze minutos após divulgar sua decisão, a magistrada foi presa. A data da detenção não podia ser mais amargamente irônica: 10 de dezembro, dia internacional dos direitos humanos.

Horas depois da prisão de Afiuni, o presidente Hugo Chávez, em pronunciamento veiculado por cadeia nacional de televisão, pediu pena de 30 anos de prisão para a juíza, que havia determinado a libertação de um inimigo do regime.

Nunca houve, entretanto, recurso oficial da decisão da juíza. Em vez disso, ela foi acusada de vários crimes, inclusive o de "formação de quadrilha", acusação posteriormente abandonada diante da ausência de "cúmplices". A acusação de corrupção também caiu ante a falta de prova de qualquer intenção, por parte de Afiuni, de obter vantagem pessoal com sua decisão.

O episódio mostra-se ainda mais estarrecedor diante do fato de que, antes mesmo da decisão da magistrada, o grupo de trabalho da ONU sobre detenções arbitrárias já havia considerado abusiva a prisão por ela revogada.

Trata-se de exemplo flagrante do processo de desinstitucionalização progressiva por que passa a Venezuela. As instituições são formalmente mantidas, mas já não servem ao seu objetivo. Hoje, naquele país, o Estado chama-se Chávez.

Desde 1999, a Constituição Bolivariana dá autorização para a livre remoção de juízes, sem direito de defesa, a título de "depuração da Justiça". Mais da metade do Poder Judiciário é hoje composta de juízes provisórios, que podem ser destituídos ao sabor da vontade do Executivo. São inúmeros os casos de juízes destituídos por tomarem decisões contrárias aos interesses do governo.

Chávez determinou também o aumento da composição do Tribunal Supremo de Justiça, tendo nomeado, em dezembro de 2004, 17 membros efetivos e 32 suplentes, grande parte dos quais ativistas políticos do partido oficialista. Desse modo, segundo análise da Human Rights Watch, o governo se apoderou do mais alto tribunal do país.

A supressão da independência da Justiça venezuelana vem sendo abertamente defendida por alguns de seus principais representantes. A chefe do Poder Judiciário afirmou publicamente, em 2009, que o princípio de separação de poderes debilita o Estado.

Há poucas semanas, falando em nome do Tribunal Supremo, um magistrado afirmou que a função principal do Poder Judiciário na Venezuela é apoiar a busca do governo nacional por um socialismo bolivariano e "democrático". E esclareceu os parâmetros "legais" dessa busca: a lei que foi justa ontem, hoje pode não ser mais, ainda que não revogada.

Em depoimento à missão da IBA, uma respeitada juíza venezuelana testemunhou que, desde 1999 até agora, as sentenças vêm sendo proclamadas sob o risco de pronta destituição do magistrado. Agora, além disso, as decisões são adotadas sob o terror da prisão imediata. É o "efeito Afiuni".

Não é exagero supor que a prisão da juíza Afiuni tenha sido praticada como uma espécie de pena de morte velada. As prisões venezuelanas estão entre as mais violentas do mundo, com mais de 450 mortes por ano. A juíza foi obrigada a conviver com presas que ela havia condenado. Foi submetida a humilhações e maus-tratos. Teve recusada atenção médica em várias oportunidades.

Por longo tempo, determinações tanto da Comissão quanto da Corte Interamericana de Direitos Humanos que apontavam a ilegalidade da prisão de Afiuni e instavam o Estado venezuelano a conduzir a juíza a local mais apropriado e seguro foram simplesmente ignoradas. Somente no início de fevereiro, quase 14 meses após sua prisão, o crescente clamor internacional resultou na troca da reclusão em penitenciária pela prisão domiciliar.

Numa reafirmação daquele que deve ser o compromisso de qualquer advogado diante de toda injustiça - e na presença da mãe, da filha e dos advogados da magistrada -, os membros da missão da IBA prometeram a Afiuni divulgar o vergonhoso episódio de sua destituição, perseguição e prisão, e o aparato ideológico arbitrário que o envolve.

Ao saírem da modesta residência, os membros da missão da IBA puderam ler, grafitado nos muros ao redor da casa da juíza, o desagravo de seus concidadãos: "Juíza Afiuni, integridade e valor".

BELISÁRIO DOS SANTOS JR., ADVOGADO, FOI SECRETÁRIO DA JUSTIÇA E DEFESA DA CIDADANIA DO ESTADO DE SÃO PAULO, É MEMBRO DA COMISSÃO INTERNACIONAL DE JURISTAS E INTEGROU A MISSÃO DA IBA À VENEZUELA.

Mercosul aos 20 anos (2): crises e turbulências - Paulo Roberto de Almeida

Publiquei, no mês passado, o primeiro artigo desta série:

Mercosul aos 20 anos (1): um pouco de sua história
Paulo Roberto de Almeida
Especial para o iG, 28/03/2011

Agora, o segundo de não sei quantos, exatamente. Aguardem...
Paulo Roberto de Almeida

Mercosul aos 20 anos (2): crises e turbulências
Paulo Roberto de Almeida
Especial para o iG, 17/04/2011 (link)

A crise do Mercosul se deve a que os governos foram tímidos ou demoraram demais em fazer reformas necessárias e não prepararam os países para as etapas da continuidade e do aprofundamento da estabilização macroeconômica, ou para os ajustes setoriais vinculados aos requerimentos do processo de integração.

A crise no Mercosul foi frequentemente apontada como tendo sido causada pela “desvalorização” brasileira de 1999 e seus efeitos desastrosos sobre a balança bilateral com a Argentina, o que é absolutamente insuficiente como explicação. A Argentina já vinha acumulando desequilíbrios – fiscais, monetários, cambiais – desde muito tempo, tendo sido justamente “ajudada” pela primeira fase de estabilização brasileira, quando o real conheceu uma tendência à valorização relativa (deteriorando a própria balança comercial brasileira, e produzindo, justamente, superávits a favor da Argentina). A “desvalorização” não foi decidida “contra” a Argentina, uma vez que ela foi simplesmente imposta pela realidade dos desequilíbrios acumulados. Estes se manifestaram de forma aguda, no Brasil, mais do que de maneira sistêmica, como no caso argentino, que exibia um modelo de conversibilidade baseado na chamada paridade absoluta com o dólar, uma verdadeira camisa de força cambial.

A carência de análises, na esfera governamental, sobre as raízes profundas dos desequilíbrios monetários, cambiais e de balanço de pagamentos existentes tanto na Argentina quanto no Brasil, em 1999 e no seu seguimento imediato, assim como certo voluntarismo por parte de dirigentes políticos explicam a atmosfera de “crise política do Mercosul” então criada – mais na Argentina do que no Brasil – em torno da questão cambial e de seus reflexos no ambiente negociador ao seio do bloco, atmosfera que nunca chegou a ser recomposta no período subsequente, tanto pelo aprofundamento desses desequilíbrios quanto por divergências objetivas nas orientações de política econômica adotadas dali para a frente, para não mencionar questões prosaicas, como o relacionamento entre chefes de Estado. Mesmo a adoção de expedientes ad hoc para atuar como barreiras à propagação desse tipo de “crise” – como, por exemplo, a criação de um grupo de trabalho sobre a coordenação de políticas macroeconômicas em 2000, mais virtual do que efetivo – não permitiu retomar o processo de aprofundamento, ou de consolidação, do Mercosul comercial, enveredando-se logo depois para subterfúgios políticos e o desenvolvimento do que foi chamado de “Mercosul social”.

Não cabem dúvidas, porém, de que a passagem a um regime de flutuação cambial no Brasil – à falta de alternativas credíveis para sanar os desequilíbrios de transações correntes acumulados nos quatro anos anteriores – constitui apenas um episódio numa sucessão de descompassos efetivamente contrários aos objetivos estipulados no artigo 1º do TA, de “coordenação de políticas macroeconômicas”, cujo marco mais importante sempre foi a adoção pela Argentina de um regime de paridade absoluta – ou seja, de rigidez – em sua política cambial, sistema adotado no momento mesmo em que se tratava de construir o Mercosul. Ora, a coordenação cambial com a Argentina, nessas condições, implicava a adoção pelos demais países membros do mesmo regime de conversibilidade ao par, o que significava, de fato, o abandono de qualquer política cambial pelos Estados Partes do bloco, ou seja, uma não-solução a um problema real. Infelizmente, os dois grandes não conseguiram tampouco caminhar para esse tipo de coordenação quando, em 2001, a Argentina abandonou formalmente o regime de conversibilidade para também adotar um modelo de flutuação (embora administrada num viés de desvalorização desde então), ao passo que o Brasil, depois de comportamentos erráticos no momento das eleições de 2002, o câmbio seguia uma via de valorização gradual como tinha sido o caso no período anterior à flutuação (aliás, para maior conforto comercial da Argentina, que continua temendo uma desvalorização brasileira capaz de lhe retirar seu acesso privilegiado aos mercados do grande vizinho).

Em qualquer hipótese, não se pode atribuir a esses descompassos conjunturais nos ritmos ou processos de estabilização respectivos do Brasil e da Argentina a causa principal da crise no processo de integração, uma vez que eles já se manifestavam desde o início do processo e não impediram, de modo absoluto, o crescimento do comércio e o aprofundamento da integração nos primeiros oito anos do processo. Se eles se manifestaram negativamente depois foi porque, justamente, os governos foram tímidos nas reformas, demoraram demais em fazer reformas e não prepararam seus países para as etapas seguintes, seja a da continuidade e aprofundamento da estabilização, seja a dos ajustes setoriais para acomodar a agenda e os requerimentos do processo de integração, que representa uma espécie de mini-globalização controlada (já que em grande medida administrada pelas burocracias nacionais).

Em resumo, rejeitando as supostas insuficiências institucionais, as fantasmagóricas assimetrias estruturais e os reais, mas exagerados choques adversos advindos de crises conjunturais, tem-se que os fatores efetivos da crise no Mercosul e os impedimentos objetivos para o seu progresso continuado são constituídos: em primeiro lugar, pela incapacidade ou indisposição dos governos em empreenderem as tarefas mínimas associadas ao próprio processo de integração; em segundo lugar, pela falta de vontade, ou de coragem política, dos mesmos dirigentes, de implementar os acordos, normas e decisões adotadas nas reuniões de cúpula do bloco, depois de solenemente, ou de forma ingênua, em alguns casos, terem decidido avançar no processo por meio de medidas aceitas consensualmente, o que foi feito, supostamente, depois de um cuidadoso exame técnico sobre seu custo-benefício, ou seja, sobre os impactos e efeitos imediatos e delongados que as mesmas trariam para suas economias.

Avultam, dentre as inadimplências constatadas, os processos delongados de internalização das decisões adotadas solenemente pelo bloco – pois que quase nada é aplicado de maneira automática no Mercosul, sendo necessária cada uma das aprovações nacionais e sua confirmação pela chancelaria paraguaia – e os descumprimentos práticos, em grande medida ilegais, dos dispositivos regulando o acesso a mercados. Um dos anexos do TA, por exemplo, relativo à cláusula de salvaguarda, indica que os Estados Partes se comprometem a usar esse dispositivo só excepcionalmente, e apenas até o final do período de transição (31/12/1994).

Não é desconhecido por ninguém que, de forma abusiva e arbitrária, a Argentina contrariou seus compromissos sob o TA – e também desrespeitou o código pertinente, no âmbito do Gatt-OMC – ao passar a introduzir salvaguardas discriminatórias contra produtos brasileiros, de forma crescente a partir de 2003; a leniência demonstrada pelo governo brasileiro em relação a essas medidas ilegais, alegadamente para acomodar os projetos argentinos de recuperação econômica e de reindustrialização, em lugar de reforçar o Mercosul, na verdade fragilizam seu arcabouço institucional e enfraquecem a eficácia de suas normas mais relevantes. No regime europeu de violações aos instrumentos fundacionais, o país que rompe compromissos e regras comuns, sobre acesso a mercados, por exemplo, pode ser sancionado, inclusive pecuniariamente, pela corte de Justiça, recurso inexistente no caso do Mercosul (ainda que se admita levar o caso à arbitragem, hélas, não usada pelo Brasil).

Numa avaliação global, pode-se dizer que a distância entre a retórica da integração, excessivamente usada pelos chefes de Estado, e a marcha efetiva do processo, em seus encaminhamentos práticos, tem sido, no Mercosul e em outros esquemas regionais, uma realidade constante desde que líderes políticos se convenceram, ou foram convencidos por outros, de que o modelo integracionista – e não simplesmente livre-cambista, geralmente privilegiados pelos anglossaxões pragmáticos – de cunho europeu (ou seja, menu completo) era o mais adequado para impulsionar o desenvolvimento de seus países e a integração de suas economias no mainstream mundial. Na raiz dessa incompreensão – ou ilusão – está o fato de que o processo europeu foi de fato bem sucedido naquilo que ele pretendia atingir: o desarme “psicológico” e definitivo entre as duas maiores economias continentais e a realização formal, institucional, daquilo que já vinha ocorrendo naturalmente desde séculos: a integração física, econômica e social do mosaico europeu.

Poucos historiadores da Europa, ou de seu processo de integração, se dedicaram ao estudo dos custos – implícitos e explícitos – da integração europeia, preferindo enfatizar seus benefícios reais ou supostos (e eles, de fato foram muitos, mas cabe aos analistas equilibrados sempre fazer um balanço completo do experimento). Da mesma forma, poucos analistas do Mercosul colocam ênfase nas enormes diferenças entre os processos do Cone Sul e do continente europeu, tanto pelo lado positivo – disparidade de grandes conflitos geopolíticos entre os dois grandes – quanto pelo lado “negativo”, ou seja, inexistência de densidade suficiente nas interdependências recíprocas para fundar um processo real de criação de um espaço econômico conjunto.

No caso do Mercosul, em especial, o mimetismo não foi levado ao ponto alto de suas possibilidades teóricas – ou seja, um modelo reconhecidamente comunitário ou supranacional –, mas mesmo se julgarmos pelo outro modelo europeu de integração em nível de união aduaneira, o Benelux (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo, desde 1948), os resultados alcançados são decepcionantes, ou mesmo irrisórios, pelos padrões de responsabilização – ou de accountability – pelos quais devemos medir projetos verdadeiramente “estratégicos”, e definidos como tal, por administrações sucessivas. O fato é que, sem ter alcançado seus objetivos primários – uma zona de livre-comércio completa e uma união aduaneira acabada – os países membros se deixam envolver em novos projetos mirabolantes – como um Fundo de Correção de Assimetrias, um Parlamento completo, institutos para diferentes causas sociais, e até um risível projeto de moeda comum – que representam, na verdade, uma “fuga para a frente” e um escapismo de natureza política à sua incapacidade de realizar o prometido e de cumprir os requisitos mínimos dos objetivos fixados nos instrumentos constitutivos.

Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, diplomata, professor de Economia Política nos programas de Mestrado e Doutorado do Uniceub. Site: www.pralmeida.org; Nenhum dos argumentos ou posições apresentados neste ensaio especulativo – em caráter exclusivamente pessoal – representa posições oficiais do governo brasileiro ou podem ser identificados a propostas do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.

Socialismo cubano com caracteristicas chinesas? Nao vai dar certo...

Os comunistas cubanos, responsáveis diretos por uma economia miserável e por uma das mais bárbaras ditaduras do hemisfério -- aliás a única que restou, embora um coronel esteja tentando criar outra ali por perto --, necessitam reformar urgentemente seu sistema anacrônico, esclerosado, corrupto, ineficiente, indecente.
Para isso querem preservar a ditadura do partido único -- e os privilégios da burocracia dominante -- e introduzir reformas cosméticas para permitir o renascimento do capitalismo na ilha. Esperam viver das rendas do capitalismo, e preservar sua autocracia senil.
Já vou avisando: não vai dar certo.
Aposto com quem quiser, como essa passagem vai ser caótica, desordenada e vai terminar em desordem, antes de voltarmos a um regime capitalista normal, ou seja, corrupto, deficiente, desigual, enfim, igualzinho ao que temos no resto da América Latina. Com a diferença que existem agora muitos cubanos ricos na Flórida. Eles vão apimentar o capitalismo cubano, com um pouco de tudo: capital, inovação, modernidade, mas também drogas, prostituição, corrupção, enfim, nada de muito diferente do que já existe, com a grande diferença que o povo não vai mais passar fome...
Paulo Roberto de Almeida

Começa o Congresso do Partido Comunista Cubano. Modelo econômico do país vai mudar
Raul Castro anunciou, em 2010, a necessidade de reduzir o paternalismo estatal
(17/04/2011)

Cuba está às vésperas de aprovar importantes medidas para a atualização do modelo econômico. Deste sábado até terça (16 a 19) ocorre o 6º Congresso do Partido Comunista Cubano, o primeiro em 14 anos. As mudanças econômicas vêm sendo tratadas em todo o país desde meados de 2010, quando o presidente Raul Castro anunciou a necessidade de reduzir o paternalismo estatal e garantir maior equilíbrio econômico. “A revolução é mudança permanente”, lembrou o dirigente que promoveu um amplo debate sobre a proposta em todo o país. “Temos o dever essencial de corrigir os erros que cometemos durante essas cinco décadas de construção do socialismo em Cuba”, explicou o presidente, que sucedeu o irmão Fidel Castro.

Associações, sindicatos, cooperativas, os Comitês de Defesa da Revolução e meios de comunicação da ilha realizaram intensas discussões sobre o projeto para abranger os 11,2 milhões de cubanos. Serão medidas duras, mas necessárias. Devem ser demitidos cerca de 500 mil cubanos inicialmente e mais de 1,2 milhão nos próximos anos.

Estima-se que 20% de um total aproximado de 5 milhões de servidores públicos estejam em funções obsoletas. A proposta é que sejam realocados para outras atividades estatais ou estimulados a atuar em 178 serviços privados, atuando por conta própria. Cerca de 300 mil “cuentapropistas” já estão registrados, sendo que a metade se inscreveu depois da abertura de novas condições de trabalho em outubro.

Também está na pauta a criação de uma rede de cooperativas urbanas e rurais para estimular a ida para este modelo associativo; maior autonomia das empresas estatais, descentralização do setor agroalimentar, redução dos subsídios e estabelecimento de um sistema fiscal. Talvez a mudança mais substancial seja a eliminação da cartela de abastecimento — “libreta” — uma cesta de alimentação subsidiada.

“Não podemos seguir adiante sem estas transformações. Precisamos produzir mais comida e mais bens”, reforça o líder da Central de Trabalhadores de Cuba, Raymundo Fernandez. E esclarece: ”É uma atualização do socialismo”

sábado, 16 de abril de 2011

O governo reindexa a economia, e alimenta a inflacao

Parece que o governo é sócio na inflação. Aliás, governos irresponsáveis, sempre foram os responsáveis pela inflação, que lhes trazem receitas crescentes, ao mesmo tempo em que pagam contas e salários em moeda desvalorizada.
Esse jogo foi interrompido durante certo tempo, após o Plano Real.
Mas parece que o governo atual voltou ao jogo outra vez...
Paulo Roberto de Almeida

Governo prevê salário mínimo de R$ 616 no ano que vem
- RENATA VERÍSSIMO E CÉLIA FROUFE
AGENCIA ESTADO, 15/04/2011
Valor é previsto na Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2012; valor chegaria a R$ 676,35 em 2013.

Preparem-se para o pior. Apertem os cintos para entrar na zona de turbulência.

Desigualdade nos Estados Unidos - The Economist, Joseph Stiglitz (Vanity Fair)

Três artigos sobre a desigualdade na sociedade americana:

INEQUALITY
Of the 1%, by the 1%, for the 1%

By Joseph E. Stiglitz
Vanity Fair, May 2011
http://www.vanityfair.com/society/features/2011/05/top-one-percent-201105?currentPage=all

American politics
Democracy in America
Inequality: The 1% solution

The Economist, Apr 15th 2011, 15:03 by M.S.
http://www.economist.com/blogs/democracyinamerica/2011/04/inequality&fsrc=nwl

Inequality and politics
Stiglitz and the progressive Ouroboros

The Economist, Apr 11th 2011, 21:30 by W.W.
http://www.economist.com/blogs/democracyinamerica/2011/04/inequality_and_politics


Leiam todos os três, na sequência inversa, neste post do meu blog Textos PRA:

Desigualdade nos Estados Unidos - The Economist, Joseph Stiglitz (Vanity Fair)
Artigos sobre a desigualdade na sociedade americana
Sábado, Abril 16, 2011
http://textospra.blogspot.com/2011/04/desigualdade-nos-estados-unidos.html

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Governo so usa 0,25% da verba do PAC: que alivio....

Apenas a manchete:

Em 100 dias, governo Dilma usa só 0,25% da verba do PAC
Marta Salomon, de O Estado de S. Paulo - 15/04/2011

Promessas previstas na 2ª etapa do programa não saem do papel; só R$ 102 milhões foram liberados

Comento:
Ufa! Ainda bem.
Imaginem se o governo fosse só um pouquinho mais competente: a inflação já teria passado de 10%.
Ainda bem que temos um governo incompetente, incapaz de planejar, de fazer projetos decentes, totalmente incompetente para administrar obras, e mais ainda para fazer uso racional dos recursos "públicos" (que na verdade são nossos).
Se o governo fosse tudo o que ele não é, a situação seria muito pior.
Quremos mais governo incompetente, atrasado, relapso, preguiçoso...
(Claro, este, como o anterior, gasta muito dinheiro com bobagens, mas poderia ser muito pior...).
Paulo Roberto de Almeida

Agora o resto da matéria:

BRASÍLIA - Lançado em março de 2010 com discurso da então pré-candidata à presidência Dilma Rousseff, a segunda etapa do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC2, desapareceu na burocracia do governo da petista.

Propalada durante a campanha eleitoral, a implantação de centenas de unidades de pronto atendimento (UPAs) não saiu do papel. Na mesma situação, encontram-se também a construção de unidades básicas de saúde e a implantação de postos de polícia comunitária e de espaços integrados de esporte, cultura, lazer e serviços públicos, as chamadas "praças" do PAC.

Entre os gastos autorizados pela lei orçamentária para 2011, há quase R$ 1,3 bilhão destinados a esses projetos, voltados às populações das regiões metropolitanas. Mas, passados os primeiros cem dias de governo Dilma Rousseff, nenhum deles passou pela primeira etapa do processo de gasto público, o chamado empenho.

Levantamento feito pela ONG Contas Abertas a pedido do Estado mostra que, dos R$ 40,1 bilhões de gastos autorizados do PAC para 2011 - o Tesouro não faz distinção entre PAC1 e PAC2 -, valor que inclui as obras da primeira e da segunda versão do programa, apenas 0,25% (R$ 102 milhões) foram pagos até a última terça-feira, de acordo com registros do Siafi (sistema de acompanhamento de gastos da União).
A radiografia dos números mostra que as duas versões do PAC hoje avançam pela inércia, à custa de contratos realizados no ano passado, ainda no governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

Assim, percebe-se que no mesmo período os pagamentos feitos foram dominados por obras e serviços contratados até o final do ano passado.

Esses pagamentos têm de ser feitos com o dinheiro arrecadado com tributos cobrados neste ano. Dos R$ 6,7 bilhões já pagos, R$ 6,6 bilhões referem-se a contas pendentes deixadas pelo governo Lula, inclusive da época em que Dilma Rousseff, na condição de chefe da Casa Civil, coordenava o PAC.

Paralisia. O projeto do PAC que recebeu o maior volume de dinheiro neste ano é mais um bom exemplo da situação de quase paralisia. Trata-se do Fundo de Arrendamento Residencial, dinheiro repassado às empreiteiras responsáveis pela construção de imóveis a famílias de baixa renda, selecionadas por prefeituras e governos estaduais.
O programa recebeu R$ 1,7 bilhão até 12 de abril. Esse dinheiro, no entanto, faz parte do saldo de contas pendentes deixadas por Lula, do qual faltam pagar mais R$ 5 bilhões. Os R$ 9,5 bilhões destinados ao programa pela lei orçamentária de 2011 nem começaram a sair do papel.

Grife. Com o programa patinando, o Ministério do Planejamento confirma que pode a mudança da nomenclatura PAC está em estudo no governo, que oficialmente insiste na tese de que não haverá cortes no programa.

Segundo o Planejamento, agora responsável pela coordenação do Programa de Aceleração do Crescimento, o próximo relatório de avaliação dos projetos será divulgado em julho. Até o final do governo Lula, os relatórios eram divulgados a cada quatro meses. Com Dilma na presidência, serão semestrais.

Sem registro do desempenho das novas ações, o portal do PAC ainda mantém a terminologia PAC 2, com explicações sobre o seu significado. "O PAC 2 chega com a missão de manter a roda da economia girando, investindo em obras e ações que diminuem as desigualdades e geram ainda mais qualidade de vida para os brasileiros".
O site não registra a mudança na periodicidade das avaliações. "A prestação de contas do PAC é feita para a sociedade através de balanços quadrimestrais."

Megainvestimento. O PAC 2 prevê investimentos de R$ 1,59 trilhão. São obras nas áreas de transportes e energia e também as que se destinam aos grandes centros urbanos, bairros populares e bolsões de pobreza. Entre os projetos do PAC 2 estão a ampliação do Minha Casa, Minha Vida e o Água para Todos, além do Cidade Melhor, segundo anúncio feito em março de 2010.

O novo foco em moradores das grandes cidades seria uma das novidades do PAC 2, se disse no lançamento do programa. Os investimentos seriam dirigidos a projetos de saneamento e mobilidade urbana. O Comunidade Cidadã ampliaria a presença do Estado em bairros populares. Haveria investimentos bilionários na construção de 500 unidades de pronto atendimento, 8,7 mil unidades básicas de saúde, mais de 10 mil quadras poliesportivas, 2,8 mil postos de polícia comunitária e 800 praças do PAC.

As faturas de obras já contratadas deixadas pelo governo Lula não param de pressionar os novos gastos do PAC. Até terça-feira, restavam por quitar contas de R$ 26,4 bilhões, quatro vezes o valor já pago nos primeiros cem dias de governo Dilma.