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quinta-feira, 3 de junho de 2021

A inserção econômica internacional do Brasil em perspectiva histórica (1999) - Paulo Roberto de Almeida

Um trabalho antigo mas que ainda se sustenta no longo prazo do processo histórico de desenvolvimento do Brasil, em perspectiva histórica com outros países que se desenvolveram nos últimos dois séculos.

713. “A inserção econômica internacional do Brasil em perspectiva histórica

Washington, 20 outubro 1999, 15 p. 

Versão revista do primeiro capítulo do livro O estudo das relações internacionais do Brasil. Publicado em Cadernos Adenauer 2, “O Brasil no cenário internacional” (São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2000, p. 37-56). 

Relação de Publicados n° 252. 

Sumário: 

1. O Brasil de 1820 a 1870: partida difícil, baixa dispersão mundial 

2. O Brasil de 1870 a 1900: crescimento modesto, ascensão do café 

3. O Brasil de 1900 a 1913: aumentam as distâncias internacionais 

4. O mundo entre 1913 e 1950: catástrofes econômicas e sociais 

5. O grande crescimento de 1950 a 1973: a Ásia e o Brasil decolam 

6. Crise e crescimento de 1973 a 1992: as diferenças se acentuam 

7. Desempenho do Brasil e da economia mundial: visão geral 

Bibliografia e tabelas estatísticas


A inserção econômica internacional do Brasil

em perspectiva histórica

 

 
Paulo Roberto de Almeida

Sociólogo. Diplomata.

Cadernos Adenauer 2, “O Brasil no cenário internacional”

São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2000, pp. 37-56).

 

 

O crescimento da economia brasileira registrou grande dinamismo no século XX, pelo menos até seu último quarto: a taxa de expansão do PIB, entre 1870 e 1987, foi de 4,4% ao ano, em média, desempenho poucas vezes igualado na história mundial (Maddison, 1989). Entre 1870 e 1987, o PIB brasileiro foi multiplicado 157 vezes, contra apenas 84 vezes para o Japão e 53 para os Estados Unidos, as duas outras economias de grande dinamismo desde o início da segunda Revolução Industrial. Mesmo considerando-se apenas o período final desse corte temporal, o desempenho da economia brasileira foi impressionante: entre 1957 – data decisiva no processo de modernização brasileira, com a implantação da indústria automobilística – e 1986, a expansão do PIB brasileiro foi de 594,9%, contra um aumento acumulado de apenas 150,4% para o PIB dos Estados Unidos. Em consequência, a distância que separava o PIB nominal brasileiro do dos EUA foi encurtada: de mais de 44 vezes, em 1957, para “apenas” 16 vezes mais em 1986.

Entretanto, a despeito desse desempenho nominal, a economia que mais avançou em termos de renda per capita foi a do Japão, com um crescimento da ordem de 2,7% ao ano no mesmo período, contra apenas 2,1% para o Brasil, este penalizado pelo seu “dinamismo” demográfico. Com efeito, a razão para a diferença de crescimento líquido em relação ao Japão e aos Estados Unidos se situa na vertente do crescimento demográfico, duas vezes mais importante no Brasil ao longo do período, o que reduziu a expansão do seu PIB per capita. Entre o terço final do século XIX e meados do XX, o número de brasileiros triplicou: de um total de 10 milhões de habitantes em 1872 – primeiro recenseamento –, a população brasileira alcançou 41 milhões de pessoas em 1940 e 51 milhões em 1950, tendo triplicado desde então. A taxa de crescimento demográfico, que era de 2,34% ao ano entre 1940 e 1950, passou a 3,17% nos anos 50. Ela caiu para 2,91% ao ano entre 1960 e 1970 e mais ainda a partir dos anos 80 e 90, situando-se num patamar de relativo equilíbrio (menos de 1,6% ao ano), embora com taxas significativas para as zonas rurais e os estratos mais pobres da população.

Adicionalmente à “bomba demográfica”, que diluiu os frutos da expansão do produto, fatores externos a partir dos anos 70 (choques do petróleo em 1973 e 1979, crise da dívida externa em 1982) e obstáculos internos (aceleração da inflação, ruptura de confiança na administração e desorganização da economia) atuaram no sentido de reduzir o ritmo de crescimento. Em consequência, a distância entre o PIB nominal e o PIB per capita do Brasil em relação aos países mais avançados voltou a aumentar.

A estabilização econômica iniciada em 1994 não permitiu a retomada dos índices de crescimento que tinham caracterizado a economia no período mais intenso do processo industrializador. A globalização financeira ofereceu acesso aos capitais (para financiar os déficits em transações correntes), mas criou novos focos de instabilidade em virtude da inversão repentina de alguns desses fluxos. A fase de crises e de turbulências financeiras nas economias emergentes dos anos 1997-99, invertendo a (até então) “irresistível ascensão” das economias asiáticas – e levando muitas delas a um relativo declínio –, ainda está muito próxima para permitir ao observador uma análise isenta e de maior profundidade quanto à verdadeira tendência do ciclo econômico naquela região e, de modo geral, nas economias emergentes. Não há certeza quanto à natureza dos desenvolvimentos nessas economias, inclusive na brasileira, razão pela qual uma análise de tipo estrutural deve se deter na fixação das grandes tendências de desenvolvimento conhecidas no passado. Para a análise do desempenho econômico do Brasil no contexto do sistema mundial desde 1820 valemo-nos da metodologia e das informações compiladas em estudo comparativo do Prof. Angus Maddison (1995), cujos cálculos econométricos, apresentados na Tabela 1, formam a base dos parágrafos seguintes.

 

1. O Brasil de 1820 a 1870: partida difícil, baixa dispersão mundial

(...)


Ler a íntegra neste link: 

https://www.academia.edu/49115167/A_insercao_economica_internacional_do_Brasil_em_perspectiva_historica_1999_


Charles Gauld: Farquhar, o último titã, um empresário americano na América Latina - Book



Charles A. Gauld: 
FARQUHAR, O ÚLTIMO TITÃ
Tradução de Eliana Vale
Editora de Cultura / ISBN: 85-293-0100-5
536 páginas – 16 x 23 cm

FARQUHAR, O ÚLTIMO TITÃ

Odisséia de um homem de visão

Percival Farquhar (1864-1953), um dos mais persuasivos empreendedores do ramo ferroviário na história econômica das Américas, foi um dos últimos construtores de impérios da época moderna.

Ronald Hilton, professor emérito da Universidade Stanford, apresenta o livro


durante a Conferência WAIS naquela universidade, em 2006. 

(Foto: Eliana Vale)


Está à disposição do público brasileiro um dos clássicos mais raros do brasilianismo. Esgotado nos EUA, onde só existe um exemplar disponível para consulta na Universidade Stanford, ele chega às livrarias por obra da Editora de Cultura após mais de uma década de negociações sobre direitos autorais, pois seu autor, Charles Gauld, faleceu sem herdeiros nos anos 1970. A obra utilizada na tradução foi emprestada de um colecionador.

Tido pelos nacionalistas do século passado como encarnação do imperialismo, o americano Percival Farquhar sonhou enriquecer, colocando o Brasil na trilha do desenvolvimento à moda americana. E não mediu esforços para realizar seus sonhos, encarando as derrotas como obstáculos contornáveis e se dispondo a iniciar uma empresa já na altura dos 70 anos.

Segundo o jornalista Elio Gaspari, Farquhar “foi o maior empresário de serviços públicos da história nacional. Em negócios de hoje, ele seria o controlador ou grande acionista da Light, da Eletropaulo, Embratel, Telefônica e Telemar. Isso e mais a Vale do Rio Doce, a Acesita, os metrôs do Rio e de São Paulo, dez ferrovias e um porto. Suas PPPs contribuíram para a explosão da revolta sertaneja do Contestado (três mil mortos) e para a mortandade da Madeira-Mamoré”.

Em 2007, três grandes empreendimentos de Farquhar completam o centenário de início de obras: o Porto de Belém, no Pará; a Madeira-Mamoré, em Rondônia (cidade criada em função das obras da ferrovia), e a Brazil Railway, cujo projeto era se tornar um sistema ferroviário transcontinental, interligando o sul do Brasil ao Pacífico.

Charles A. Gauld, jornalista e historiador, escreveu a biografia originalmente como tese de doutorado, que apresentou à Universidade Stanford. Seu orientador, Ronald Hilton, considerando o trabalho “minucioso e rico em fontes e detalhes”, apoiou sua publicação pelo California Institute of International Studies, de Stanford em 1964.

A obra, finalizado em 1962/1963, reflete bem as preocupações dos EUA em relação ao futuro político da América Latina em um momento em que Cuba se voltava para a União Soviética e o presidente do Brasil – João Goulart – era considerado “esquerdista". O clima que precedeu o golpe militar de 1964 no Brasil fica ali muito claro. Por outro lado, as fotografias que ilustram a obra dão conta da vastidão dos interesses de Farquhar e das dificuldades que ele enfrentou.

Um preview do livro aconteceu na Livraria da Universidade Stanford em 31 de julho de 2006, durante a Conferência Internacional do World Association of International Studies (WAIS). Na ocasião, o professor Ronald Hilton, do alto de seus 96 anos, festejou o lançamento da obra de seu aluno para o público brasileiro. (Foto)


Press Release: 

 

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EDITORA DE CULTURA

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Elaborei uma resenha desse livro quando ele foi lançado no Brasil: 

1666. “O imperador americano das PPPs”, Brasília, 20 setembro 2006, 2 p. Resenha de Charles A. Gauld: Farquhar, o último titã: um empreendedor americano na América Latina (São Paulo: Editora de Cultura, 2006, 520 p.). Publicada em formato resumido e revisto na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília, IPEA-PNUD, a. III, n. 27, out. 2006. p. 63). Relação de Publicados n. 707.

Eis a resenha em versão integral: 

O imperador americano das PPPs

 

Charles A. Gauld

Farquhar, o último titã: um empreendedor americano na América Latina

São Paulo: Editora de Cultura, 2006, 520 p.; tradução de Eliana Nogueira do Vale.

 

Quem imagina que as PPPs sejam uma moderna contribuição do governo petista para reagir a uma suposta “privataria da era neoliberal”, faria bem em revisar sua lição de história. Elas começaram mais de um século atrás, em pleno império, como solução à crônica falta de capitais, no Brasil, para obras de grande porte. A monarquia e a velha república viveram de PPPs por décadas, em modalidades não muito diversas das que hoje são mobilizadas para assegurar um retorno adequado ao investimento privado: à época, os investidores estrangeiros (na maior parte ingleses) tinham direito à famosa “garantia de juros”, tipicamente de 6% ao ano.

Percival Farquhar foi, segundo Gauld, o “maior vulto americano da história do Brasil”, demonizado pelos nacionalistas, incompreendido pelos políticos, hostilizado pelos xenófobos e nada conhecido pelos atuais promotores das PPPs “republicanas”. Nos países vizinhos ele seria chamado de gringo explorador, o típico ianque imperialista que todos adorariam odiar. No Brasil, foi respeitado no início de seus muitos investimentos em obras públicas e empreendimentos extrativistas, passou a ser temido quando adquiriu as dimensões de um Mauá estrangeiro e foi impiedosamente expropriado ao longo da era Vargas. Poucos sabem que a Vale do Rio Doce começou pelas suas mãos: a Itabira Iron Ore Company, que, aliás, já existia antes dele adquiri-la, em 1919. A Vale, a Acesita, a Ports of Pará – construída para exportar a borracha da Amazônia e que começou a funcionar no momento mesmo da crise trazida pela concorrência da Malásia, em 1913 – e várias outras companhias fundadas por Farquhar foram nacionalizadas no decorrer da dura batalha que ele travou contra os demolidores do formidável império econômico que foi construindo a partir de 1904. 

A despeito do tom encomiástico, Gauld reconstrói, além do itinerário desse imperialista exemplar, vários capítulos de nossa história econômica: quase não há setores – que os militares chamariam de “estratégicos” – em que ele não tenha colocado os capitais de seus associados estrangeiros: bondes, ferrovias, navegação, portos, hidrelétricas, pecuária, processamento de carne, agricultura e silvicultura, extração mineral, indústrias de papel e siderurgia. Como Mauá, ele enfrentou inúmeros problemas, a maior parte vinda do próprio Estado brasileiro, mesmo se ele praticou a arte (não inusitada) de “comprar” deputados e jornalistas para defender os seus interesses. Imperialista bizarro, Farquhar apreciava mais o risco do investimento do que a cor do dinheiro; foi um verdadeiro pioneiro, como seus ancestrais quackers, podendo até ser equiparado, sem nenhum exagero, aos nossos bandeirantes. 

“Os brasileiros”, disse uma vez Farquhar, “chamaram minha atenção pela rapidez de raciocínio, embora estejam igualmente prontos a chegar a conclusões apressadas”. Em 1906 ele já se queixava da “constante flutuação da taxa de câmbio” e, no final da vida, em 1952, registrava a “vã manifestação de esperança”, mantida durante meio século, de que algum dirigente corrigisse a “instável economia do Brasil, em perpétua inflação”. A obra reflete o momento em que foi escrita (1962), quando os EUA consideravam que o Brasil corria o risco de tornar-se uma “grande Cuba”. Gauld não esconde uma incontida admiração pelo seu herói e certa impaciência com os nacionalistas brasileiros. Os editores e a tradutora estão de parabéns pela corajosa iniciativa de publicar esta obra esquecida sobre o mais poderoso capitalista estrangeiro da história do Brasil, cujos historiadores parecem querer continuar mantendo no anonimato. 

Candidatos a uma boa dissertação doutoral estão convidados a reescrever, de maneira não apologética, sua fabulosa história de vida, que se confunde com meio século de história econômica brasileira, mas os próprios editores brasileiros desconhecem que os papéis de Farquhar e os manuscritos de Gauld estão depositados na biblioteca da universidade de Yale. Ao garimpo, historiadores...

 

Paulo Roberto de Almeida

[Brasília, 20 setembro 2006, 2 p.]

Publicada em formato resumido e revisto na

revista Desafios do Desenvolvimento

(ano 3, nº 27, outubro 2006, p. 66.

 




A Grande Destruição econômica do Brasil sob Dilma Rousseff - Paulo Roberto de Almeida

 The Great Destruction in Brazil: 

How to downgrade an entire country in less than four years

 

Paulo Roberto de Almeida

Professor of Political Economy at the Master and Doctoral programs in Law of the University Center of Brasília (Uniceub); career diplomat.

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com).

 

 

Although the recent degradation of the Brazilian economy was not the product of a single presidential term, it was during the first mandate of president Dilma Rousseff (2011-2014), and under her direct responsibility, together with that of her main economic advisors, that the Brazilian economy underwent a consistent, irrepressible and fatal descent into the abyss of its worst economic recession in 80 years, with a mega destruction of wealth never seen before in the economic history of Brazil. The definitive deformation of the economic situation took a little longer, but the essential and decisive strikes that were at the origin of Brazil’s loss of its investment grade status – announced first by Standard & Poor’s in September 2015, shortly thereafter by Fitch – were mainly inflicted during her first term in office. She deliberately planned and prepared the changes and completed them in less than four years.

The president and her economic team were the authors of a strange animal called the “New Economic Matrix”, conceived with the objective of sustaining an enlarged demand for consumption goods, as part of a promised “vast domestic mass market”. What it provoked, instead, was more inflation, less growth, worrying double deficits, a significant exchange devaluation, a total budget disorganization, together with an entire series of failed sectorial policies and an overall degradation of economic governance. The troublemakers blamed these consequences on an inexistent “international crisis,” but they were entirely made in Brazil.

To understand how this happened and explain how Brazil underperformed in the context of the world economy, at a time when many emerging economies were growing twice or almost three times as fast as the advanced countries, we have to look at the larger picture, with a certain sense of the historical perspective, taking also into account the regional and international contexts, and the political and social implications of Brazil’s economic policies implemented in recent times. The solution of the current crisis, which is certainly the worst since the early 1990s, and probably since the 1930s, cannot be purely economic. Nor can it wait on the resolution of an alleged international crisis. Fundamental changes in Brazilian governance will be needed.

 

A brief economic history of a mounting disaster

Brazil has not experienced an equivalent economic disaster since the great crash of 1929 and the following recession of 1931 and 1932. Certainly, Brazil experienced many smaller crises, some provoked by external transactions disequilibrium and a rapid exchange deterioration, others by accelerating inflation and disorganization of the public accounts. Turbulence was recorded during the oil shocks of the seventies, and a humiliating penury of exchange followed the external debt default at the beginning of the eighties, as well as the moratorium unilaterally declared in 1987, creating a prolonged low growth period that was not surmounted before the hard renegotiation of the commercial and official debts during the first three years of the nineties. Successive adoption of six currencies attempted to ameliorate the dramatic acceleration of the inflation, until the Real Plan (1994) came to reintroduce a certain sense of rationality into a system of political and economic governance that had forced Brazil to seek rescue from the IMF three times between 1998 and 2002.

There were middle term adjustments in the Real Plan including first an exchange anchor system and then an inflation targeting system, together with the adoption of a floating exchange regime in1999 and a fiscal responsibility law in 2000 that prepared Brazil for a new phase of productivity gains and a competitive integration into the world economy. Energy shortages in 2001, and the final collapse of the convertibility scheme inaugurated in Argentina ten years earlier brought new turbulence to that picture. This was exacerbated by the presidential campaign of 2002, when the prospects for a victory of the PT’s candidate caused a decline in the exchange rate, and an increase in Brazil risk and in inflation. But after the election, the new socialist leader ignored his party’s rhetoric and preserved the same policies established by the previous economic team. As a result of these sensible policies a virtuous cycle of economic growth and external transactions improvements followed for the next five years starting in 2003. 

 Those years, which saw a “Chinese bonanza” pushing commodity prices to historical peaks – soybean at 600 dollars a ton, iron ore at almost 200, and many others  –, were not exempt from policy retrocessions, such as the renewed growth of the state and the increase in the number of public officials (many, if not all, selected from party apparatchiks), both moves that interrupted a positive process of trimming the excessive state apparatus built up during the military regime. Lula, the effective president during both his and Dilma’s administrations, started a conscious and consistent program of rebuilding state power in Brazil, creating many new public agencies, squeezing the regulatory bodies that were implemented during Cardoso’s times and expanding a comprehensive program of social benefits – Bolsa Familia – that was created out of the many separate sectorial benefits that existed previously. The public legitimation for the later was “social inclusion”, but in fact the intention was to consolidate a vast electoral device in favor of his party. It worked: Lula was reelected once (2006), as the amended Constitution (by Cardoso, 1997) authorizes, and was able to elect (2010) and re-elect (2014) his right-hand assistant, Dilma Rousseff. 

Although Lula’s years were characterized by overall positive results after a bad start – which was caused by market fears of an adventurous economic policy, in the hands of a formally socialist party – the fact is that there is a clear break of style and substance in economic policies from his first term in office to his second term. In his second term Dilma Rousseff emerged as the new powerful cabinet head following the demise (already for corruption scandals) of the “great vizier” of the first Lula government (José Dirceu), and acquiring even more power after the demise of the first Finance Minister (Palocci) – who acted totally in line with the previous economic policies –, she inaugurated the practice – supported by Lula – of having the public expenditures growing always ahead of the GDP’s growth rate, and even ahead of the inflation rate and of the tax receipts. Not surprisingly, annual budgets started to be voted and applied with a certain stress in the public accounts, which were conveniently disguised under questionable accounting practices, mixing some flows between the Treasury, the National Bank for Development (BNDES), and state companies and banks (like Petrobras, Banco do Brasil and Caixa Econômica Federal). 

It was in the context of such practices that it became possible to give generous benefits to the assisted people of Bolsa Família – who knew “Chinese rates” in their income growth, in fact a mere subsidy for consumption – and rises in the minimum wage above the inflation rate and also incorporating a politically fixed “productivity growth”. Of course, many of those social policies materialized only because the fiscal charge was continuously expanding, from the 34% of the GDP to almost 38% (in fact, just 35.9% in nominal terms, but only due to a methodological correction in the national accounts); the heavier taxes penalized goods and services consumed by the middle classes as well as the productive activities of the business sector. In fact, expanding expenditures benefitted much more a small bunch of crony capitalists – who are the great financiers of PT and its apparatchiks – than the poor people of the Bolsa Família.

Lulanomics worked relatively well during the Chinese bonanza years, up to the American housing and financial crises, when some Keynesian measures were taken to contain the reduced external demand and the changes in the foreign credit supply. Other measures – almost all in the public sector – were introduced, supposedly for a transitional period, but maintained for a longer extension of time than required by the partial recovery of the world economy after 2010. Dilma’s presidency, starting in 2011, represented the exacerbation of the worst kind of policies of the old school of ECLA’s (the Economic Commission for Latin America of the UN) “developmentalism”:  sectorial subsidies and tax exemptions, State intervention in the micromanagement of investment policies in the case of SOEs, requirements of local content in contracts for all public companies, a “new automotive investment framework” in a clear disrespect for WTO rules, and many other commercial and trade policies devices, as if Brazil still had an “infant industry” to protect. 

Adding to this confused set of improvised measures, there were political fixes and opportunistic manipulations of both interest rates and exchange rates, which resulted in increasing inflation, exaggerated devaluation and declining growth. At a certain moment Brazil had a totally contradictory picture of a declining unemployment rate and an increase in the insurance payments for the unemployed. More disturbing was the perspective of not having the national accounts properly reflecting the erosion of tax receipts, a true result of the fiscal falsification already in the run. When the terms of trade inverted the course, due to the lessening of China’s growth, the castle of cards start to crumble, although it was not immediately visible, precisely because of the hidden indicators in the public accounts. The downturn accelerated during the 2014 presidential campaign and was finally revealed in the open just after the ballots confirmed Dilma’s victory for a slight margin of votes. 

 

Dilma’s economic unraveling of Brazilian economy, or the Big Destruction

Again: the process of deformation of the Brazilian economy was not only the product of misguided economic policies during Dilma’s years. It is the result of many years of erroneous macroeconomic and sectorial policies during Lula’s presidency, which shaped the two main features of PT’s economic management: commoditization and deindustrialization. The economic consequences of Lula’s government were reflected first of all in the aggrandizement of the state, secondly in the over-stimulus of the demand side of the economy, combined to a total lack of care for its productive, for the infrastructure and against the basic requirements for a productivity growth, which would have required set of reforms – labor, taxation, social security, education, etc. – that were never undertaken by Lula or Dilma. 

Commoditization and early deindustrialization are the two sides of the same coin: an over reliance on the high price peaks of exported Brazilian commodities, and a gradual loss of competitiveness of the domestic manufacturing basis. Over valuation of the Real – due to the huge inflow of dollars – and high prices in the domestic supply – taxed for an average rate of 40%, either in goods or in services – turned Brazil into a very expensive country, inducing the middle class to look to external markets to purchase many durable items: Miami became the new big shopping mall for the affluent and even the less fortunate consumers of the middle class. At a certain point in the American crisis, Brazilian buyers were acquiring plenty of Florida low-priced condos, and flooding Miami shopping malls, for as high as 4 or 5 billion dollars a year in their purchases. 

The declining contribution of industry to national economic activity accelerated at a troubling pace in the final year of Lula’s presidency and during Dilma Rousseff’s entire first administration. The plunge in the trade surplus was catastrophic in the industrial section of the current transactions, although this situation did not create an immediate current account deficit because the floating exchange regime – albeit manipulated by the Central Bank with an eye in the inflation rate – intervened to rebalance the disequilibrium. But it became clear that the bad results reflected in the main economic indicators were not a mere side effect of an alleged “international crisis”, as proclaimed by the government, but a consequence of the bad policies entirely “made in Brazil”, by the government. 

The deindustrialization was not due to Chinese competition – although that was always present even if limited by high tariffs and antidumping measures – but was totally due to over-taxation, overregulation, super-protection and cartelization, as well as the already mentioned state intervention at every level, in all sectors. Excessive expenditures, a chronic deficit in the social security system (especially in the public sector), too low savings and investments rates, a marginal (if not negative) labor productivity growth, and a really poor rate of technology innovation (due to low quality education at every level) complete the bleak picture of the current Brazilian panorama.

The dramatic, negative growth in 2015 (-3,8% of GDP), and the very bad prospects for 2016 and 2017, that is, from recession to depression, clearly point to the longest and the worst crisis in the Brazilian economic history since 1931. Over a five-year period, we can estimate a loss, for the GDP, of about -10%, that is, Brazilians are becoming poor, and are due to stay in that condition for a while. Are there any prospects for an inversion of this vicious circle? Perhaps, depending on the posture to be taken by the politicians in the Congress: they have a rent-seeking behavior, but could help to invert Dilma’s Great Destruction if further deteriorations of Brazil’s risk assessments by rating agencies intervenes at any time. That will certainly happen when the domestic debt rises to new highs, that is, more than 70% of the GDP.

Those ratios of public debt do not seem to be very upsetting, taking into account the Maastricht criteria of national debt (60% of the GDP, also considering 170% for Greece and more than 270% for Japan), but the real question is not its absolute value, but its cost. Interest rates in the case of public debt in Brazil can be as high as 14% (half of that in real terms), a significant part of that being of a short-term maturity; the already higher expenditure in the public budget is the service of the debt, as high as 7% to 8% of the GDP, which is a truly unsustainable charge. Of course, in the bonus side of the picture, Brazil possesses enormous natural resources, a largely renewable energy matrix (based mainly in water powered electricity), a very competitive agribusiness, no foreign conflicts to be dealt with, an active professional diplomacy and a well prepared state bureaucracy (especially federal prosecutors and investigators, who are dealing with the worst corruption case in the Brazilian history, with the Worker’s Party occupying the center stage of the crime scene, as its apparatchiks ransacked the state oil company, Petrobras, and probably many other state companies as well).

 

What’s to be done, after the economic and political deluge?

But, the big word, today, in Brazil, is uncertainty: we do not know what will be the value of the Real in dollars, tomorrow, the next week, or the next month; we do not know the depth of the deficits, the ceiling for the reference interest rates (today at more than 14%); how deep will go the unemployment; if the investments will continue to be completely paralyzed; and we do not even know if we’ll have this one or another government in a matter of weeks or months. Uncertainty, and insecurity, those are the words of the moment in Brazil. How can an entrepreneur make plans for a year, two years, or five years ahead? Economists were overtaken by the most pessimistic statistics in 2015. Even experienced political analysts do not try to even guess, or imagine, what the immediate political future could be at the beginning of 2016.

This complex set of problems requires, at the economic level, three sets of measures to be instituted simultaneously: (a) urgent measures that have to be adopted in terms of fiscal adjustment and budget balancing, followed by (b) medium term decisions that have to be taken to promote confidence building adjustments, facilitating the return of investments, and (c) the launching of a long term program of structural reforms in order to create a new institutional framework looking for the recovery of competitiveness of the Brazilian industry, and creating a solid basis for a productivity overhaul of the economy. At the political level it is almost impossible to foresee any stable governance in the months ahead. Reforms are also due at the sphere, but the political system is plagued by a myriad of small and opportunistic parties, and regional differing interests, all of which makes an impossible dream to have a stable governing coalition.

Political and economic crises are sustaining each other, and it is difficult to tell where the Gordian knot is. Who will deliver the decisive coup? No guesses for the moment…

 

Paulo Roberto de Almeida

 [Hartford, 2888: October 13, 2015, 6 p.; Brasília, January 21-28, 2016, 7 p.]

 

Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira - Paulo Roberto de Almeida


3878. Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira, Brasília, 26 março 2021, 322 p. Novo livro a ser publicado proximamente pela Editora Appris. 

Apogeu e demolição da política externa

 itinerários da diplomacia brasileira 

(Curitiba: Editora Appris, 2021)

 

Índice


 

 

Nota liminar

Uma história sincera do Itamaraty?

 

1. Relações internacionais do Brasil: uma síntese historiográfica

1.1. A historiografia: uma quase esquecida na história das ideias

1.2. A historiografia brasileira das relações exteriores: principais historiadores

1.3. Varnhagen, o pai da historiografia, o legitimista da corte

1.4. João Ribeiro inaugura a era dos manuais de história do Brasil

1.5. Oliveira Lima: o maior dos historiadores diplomatas

1.6. Pandiá Calógeras: o início da sistematização da história diplomática

1.7. Interregno diversificado: trabalhos da primeira metade do século XX

1.8. Os manuais didáticos de história diplomática: Vianna, Delgado e Rodrigues

1.9. O ideal desenvolvimentista: Amado Cervo e Clodoaldo Bueno

1.10. A diplomacia na construção da nação: Rubens Ricupero

1.11. A historiografia brasileira das relações internacionais: questões pendentes

 

2. As relações internacionais do Brasil em perspectiva histórica

2.1. Padrões e tendências das relações internacionais do Brasil

2.2. Etapas das relações internacionais do Brasil

       2.2.1. O Império: a construção da nação e as bases da diplomacia

       2.2.2. A Velha República: os mitos e as deficiências da política externa

       2.2.3. A era Vargas: escolhas estratégicas, a despeito de tudo

       2.2.4. O regime militar: consolidação do corporatismo diplomático

2.3. A redemocratização e as relações exteriores do Brasil

       2.3.1. Uma periodização diplomática para o período contemporâneo

       2.3.2. A restauração constitucional e os erros econômicos

       2.3.3. Os anos turbulentos das revisões radicais do momento neoliberal

       2.3.4. Estabilização macroeconômica e nova presença internacional

       2.3.5. A primeira era do Nunca Antes: a diplomacia personalista de Lula

       2.3.6. Uma transição pouco convencional: retornando a padrões anteriores

       2.3.7. Uma segunda era do Nunca Antes: a diplomacia bizarra de Bolsonaro

2.4. O que concluir de tudo isto? Que lições ficam de nossa trajetória histórica?

2.5. Nota final: reformas internas e inserção na globalização

 

3. Processos decisórios na história da política externa brasileira

3.1. O que define um processo decisório: observações preliminares

3.2. A diplomacia brasileira como instituição

3.3. A estrutura orgânica da diplomacia brasileira

3.4. Os processos decisórios na diplomacia brasileira

3.5. Virtudes e defeitos do processo decisório na diplomacia lulopetista

3.6. A degradação da cadeia de decisão no governo Bolsonaro

3.7. Conclusões: como funciona, como talvez devesse funcionar...

 

4. A política da política externa: as várias diplomacias presidenciais

4.1. Participação dos presidentes em política externa: da omissão ao ativismo

4.2. O início da liderança presidencial em política externa: a era Vargas

4.3. JK e o desenvolvimentismo: a caminho da política externa independente

4.4. O regime militar: tudo pelo “Brasil Grande Potência”

4.5. Redemocratização: crise externa e integração regional

4.6. Os anos FHC: enfim, uma diplomacia presidencial

4.7. Os anos Lula: o ativismo como norma, o personalismo como finalidade

4.8. A tímida diplomacia presidencial de Michel Temer

4.9. A antidiplomacia de Bolsonaro e dos assessores aloprados: afundamento

4.10. Conclusões: caminhos erráticos da diplomacia presidencial brasileira

 

5. O outro lado da glória: o reverso da medalha da diplomacia brasileira

5.1. Tropeços na independência e durante o império

5.2. Os fracassos da primeira diplomacia republicana

5.3. A difícil construção de uma diplomacia autônoma, e consciente de sê-la

5.4. A diplomacia profissional, como base da diplomacia presidencial

5.5. A deformação da política externa sob a diplomacia bolsolavista

 

6. Um exercício de planejamento estratégico para a diplomacia 

Introdução: demolição e reconstrução da diplomacia brasileira

6.1. A política externa e a diplomacia no desenvolvimento nacional

6.1.1. Etapas percorridas em 200 anos de história institucional

6.1.2. Os desafios: uma matriz dos recursos e das debilidades nacionais

6.2. Campos de atuação da diplomacia e da política externa 

6.2.1. Multilateralismo, regionalismo e bilateralismo como instrumentos

6.2.2. A política externa multilateral: interfaces políticas e econômicas

6.2.3. A geografia política e a geoeconomia global das relações exteriores

6.2.4. América do Sul: eixo de um espaço econômico integrado

6.2.5. O multilateralismo econômico: eixo da inserção global do país

6.2.6. Ambientalismo e sustentabilidade: eixos dos padrões produtivos
6.2.7. Direitos humanos e democracia: eixos da proposta ética do país

6.2.8. Blocos e alianças estratégicas na matriz externa

6.2.9. Relações com parceiros bilaterais e regionais

6.2.10. Vantagens comparativas e exploração de novas possibilidades

6.2.11. Integração política externa e políticas de desenvolvimento

6.3. O Itamaraty como força motriz da inserção global do Brasil

6.3.1. Gestão da Casa, com base nas melhores práticas da governança

6.3.2. Responsabilização, abertura e transparência nas funções

6.3.3. Capital humano de alta qualidade: base de uma diplomacia eficaz

6.4. Planejamento estratégico como prática contínua da diplomacia 

 

Apêndice: O Estado do Brasil em 1587 e sua condição atual

  

Bibliografia e referências

Nota sobre o autor

Livros do autor

 

Uma história sincera do Itamaraty?

 

 

Entre a última década do século XX e a primeira do século XXI — quando o mundo finalmente se libertou da velha Guerra Fria geopolítica, com a implosão do socialismo e o desaparecimento da União Soviética, e adentrava, talvez, numa nova Guerra Fria econômica, com a ascensão fulgurante da China —, a política externa brasileira conheceu um possível apogeu. Simultaneamente, e daí decorrente, a diplomacia profissional desfrutava de seu maior prestígio, aliás bem merecido. 

Nos dias que correm, nos dois anos finais da segunda década deste século, ambas, a política externa e a diplomacia, enfrentam o que foi chamado de demolição, tanto no plano substantivo — o do conteúdo da política externa — quanto no plano operacional ou institucional, ou seja, o da diplomacia. O contraste não poderia ser maior, o que talvez explique que, nos dezoito primeiros anos deste milênio, eu tenha publicado cinco livros, especificamente sobre as relações internacionais e a política externa do Brasil, e que, desde o início de 2019, eu já tenha publicado quatro livros sobre o mesmo assunto (em meio a vários outros, sobre temas paralelos).

Acompanhei, algumas vezes como ator ou protagonista, outras vezes mais como observador ou espectador engajado, os principais episódios e desenvolvimentos dessas duas décadas, sobre elas oferecendo minhas análises críticas, observações, comentários, meu testemunho e minhas reflexões numa dúzia de livros, incluindo obras sobre outros temas, que não apenas política externa e diplomacia brasileira, em edições de autor e em formato digital, grande parte disponíveis nas plataformas de interação acadêmica. Todos os demais temas — isto é, integração, globalização, política econômica brasileira, história econômica, economia mundial, resenhas de livros, artigos sobre a atualidade internacional – figuram em compilações temáticas ou numa infinidade de artigos, notas e postagens – notadamente em meus blogs e ferramentas de comunicação – que cobriram, mais especialmente, minhas “afinidades eletivas”, isto é, meus campos de estudos, pesquisas, aulas e trabalho, em relações econômicas internacionais: integração regional, comércio mundial, finanças internacionais, investimentos estrangeiros, propriedade intelectual, história diplomática e as relações exteriores do Brasil. 

Posso dizer que fui feliz nas duas vertentes de minha vida adulta: a profissional, nas atividades diplomáticas, por um lado, as lides acadêmicas, por outro, estas em meio a um intenso engajamento e dedicação na primeira vertente e, portanto, com algum sacrifício pessoal e familiar na segunda, mas este plenamente assumido, com tanto prazer e satisfação intelectual logrados, quanto na dimensão profissional. Na verdade, a atividade docente precede a inclusão na carreira diplomática, acompanhou sua trajetória em quase todas as etapas – no Brasil sempre, no exterior ocasionalmente – e explica essa feliz integração entre o desempenho profissional e o exercício docente, pois uma fecunda a outra e ambas estão igualmente presentes na produção intelectual.

 

No início daquela última década do século XX, eu estava concluindo meu terceiro posto na carreira, em Genebra, o primeiro multilateral (depois de dois primeiros bilaterais, o segundo coincidindo com um doutorado), sob a chefia do embaixador Rubens Ricupero, o que representou um grande aprendizado profissional, mas também um enorme desfrute intelectual. No primeiro ano da década de 90, eu já estava indo para o quarto posto, o segundo multilateral, na delegação junto à Aladi, em Montevidéu, a convite do embaixador Rubens Barbosa, com quem havia trabalhado logo ao início da carreira, na Divisão de Europa Oriental, ou seja, o mundo do socialismo real, ainda durante a ditadura militar brasileira, cuja doutrina oficial era o anticomunismo (nessa época eu ainda conservava meu caráter de marxista “não religioso”). Foi outra grande oportunidade de aprendizado profissional, sob uma das maiores e mais competentes chefias executivas do Itamaraty, e também mais uma chance de enriquecimento intelectual: foi do trabalho em Montevidéu que retirei a matéria prima para o meu primeiro livro, sobre o Mercosul no contexto regional e internacional. A partir de então, não parei mais de preparar cada novo expediente profissional, tratar cada novo paper acadêmico, cada palestra dada, como partes substantivas de um novo livro.

 

Talvez aquelas duas décadas de “apogeu diplomático” – um conceito objetivo, que significa tanto fastígio, quanto excelência – possam ser concentradas num único decênio, a segunda metade dos anos noventa e o primeiro lustro do novo milênio: antes disso vivíamos a voragem inflacionária dos anos Collor e Itamar; depois de 2005, atravessamos certa húbris lulopetista, quando o excesso de autoconfiança do presidente e do seu chanceler diplomático desembocaram em certos exageros terceiro-mundistas, provavelmente motivados pela ambição megalomaníaca do presidente na eventual conquista de um Prêmio Nobel da Paz. Mesmo praticando uma diplomacia que não era, em sua essência, muito diferente da anterior, os lulopetistas insistiam em se demarcar da política externa da fase socialdemocrata, classificando todo o período precedente sob o signo “neoliberal”. Não importa muito agora, pois essas duas décadas corresponderam, de fato, ao período de maior expressão e atuação da diplomacia profissional, em toda a extensão de suas qualidades técnicas e intelectuais, com alguns aportes “externos” aqui e ali, como nos casos de chanceleres de fora da carreira: Francisco Rezek, Celso Lafer e Fernando Henrique, por exemplo; havia ainda o apparatchik do PT, também chamado de “chanceler para a América do Sul”, que atuava como conselheiro presidencial, mas que respeitava a expertise dos diplomatas profissionais. Depois de uma longa sucessão de chanceleres de carreira na fase lulopetista, dois políticos, senadores do PSDB-SP, ocuparam a chancelaria na transição entre o lulopetismo e essa coisa disforme que foi apelidada de bolsonarismo. No período final do lulopetismo, se registrou um relativo declínio da qualidade da política externa e uma perda de prestígio de sua diplomacia, durante um mandato e meio sob o comando da sucessora de Lula.

Mas já a partir do segundo mandato de Lula (2007-2010), tinha ocorrido certa exacerbação do ativismo diplomático do chefe petista, bem mais em função da sua megalomania do que a iniciativas do próprio corpo profissional. Este, em vários casos, nem tomava conhecimento de certos lances da diplomacia “paralela” (e clandestina) do assessor presidencial partidário ou do próprio chanceler: relações com os comunistas cubanos, com os aliados bolivarianos ou “paz na Palestina” e programa nuclear iraniano. Foi a partir do terceiro governo petista, com a inoperância total em diplomacia da presidente escolhida por Lula para ser uma simples boneca de ventríloquo do chefe, que as coisas começaram a se deteriorar do lado da política externa. Por alguma razão desconhecida, Dilma Rousseff tinha desprezo pelos diplomatas, e se enfastiava com a agenda diplomática, a ponto de deixar embaixadores designados aguardando numa longa fila para entregar suas credenciais: uma descortesia gratuita e danosa para o país. 

Depois que, nas eleições de 2014, os diplomatas apostaram na sua derrota, eles e a política externa se viram livres da incômoda presidente com o impeachment de 2016, produto secundário da maior recessão de nossa história, mas também por infrações à Lei de Responsabilidade Fiscal e a disposições orçamentárias. A partir daí, dois chanceleres políticos operaram um retorno da diplomacia e da política externa a padrões tradicionais e mais conformes aos métodos de trabalho do Itamaraty. Foi quando, depois de muito tempo sem qualquer cargo na Secretaria de Estado, voltei a emprestar minha força de trabalho à diplomacia brasileira, passando a chefiar, na duração do governo Temer, o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, o think tank do Itamaraty.

Tão pronto ficaram claras as tendências eleitorais no início do segundo semestre de 2018, eu tinha certeza de que seria exonerado no primeiro dia do novo governo, em função das posturas adiantadas durante a campanha eleitoral e no período de transição. No final desse ano, um grupo de amadores em diplomacia se reuniu secretamente à margem da Casa para operar uma reforma completa na estrutura orgânica, nas unidades setoriais da Secretaria de Estado e nas próprias orientações fundamentais da política externa, sem que qualquer consulta ou informação fossem efetuadas junto à diplomacia profissional. Essa foi a primeira das várias violências perpetradas contra o Itamaraty. Muitas outras seriam exercidas de modo sistemático e contínuo, nos dois anos decorridos desde então, contra valores e princípios tradicionais da diplomacia, a começar por um bizarro, inaceitável e ridículo antimultilateralismo, uma cópia grotesca do “antiglobalismo” que era praticado pela diplomacia americana sob Trump, e que também se inspirava nas teorias conspiratórias da nova direita americana.

 

O conceito de apogeu, empregado para caracterizar a política externa e a diplomacia nas décadas anteriores ao presente governo – resultado da lenta acumulação de aperfeiçoamentos na substância e na forma das relações exteriores do Brasil –, pode ser considerado como pertencente ao terreno de uma avaliação objetiva, como se a condução dos processos e uma avaliação positiva das realizações alcançadas surgissem a partir de um julgamento factual. Já o conceito de demolição é um conceito ativo, digamos na primeira pessoa – inclusive dada a extrema personalização de todas as políticas públicas sob Bolsonaro –, uma vez que foi o próprio presidente e seu chanceler que declararam o muito que havia a ser “destruído” no Brasil, para adequá-lo e torná-lo conforme ao primeiro governo assumidamente de direita ou de extrema direita no país. 

A parte do “apogeu” da política externa e da diplomacia está descrita e analisada nos primeiros capítulos deste livro, que se referem à historiografia e à trajetória histórica das relações internacionais do Brasil, aos sucessivos processos decisórios da diplomacia brasileira e ao exercício da liderança presidencial nessa política setorial. A “demolição”, por sua vez, ainda em curso, foi analisada nas últimas seções dos capítulos 2 a 5, e dela trato dentro das possibilidades do momento, quando vários insucessos e frustrações já se acumularam, em decorrência de uma direção inepta (ou de uma falta completa de visão do país e do mundo), em face das incertezas que ainda podem vir pela frente. Finalmente, um último capítulo trata, de maneira preliminar, de um exercício relevante para a diplomacia, mas que se dirige, basicamente, à política externa do país, que é o planejamento estratégico, bastante usual entre os militares e nas grandes empresas, mas ainda relativamente incipiente na corporação diplomática, que pessoalmente considero de boa qualidade, mas ainda excessivamente patrimonialista, quando não “feudal”. Por fim, como sou um grande leitor de história – minha inclinação, na sociologia do desenvolvimento brasileiro, sempre comportou um importante componente de história econômica –, aproveitei uma releitura da primeira crônica sobre o “estado” do Brasil, de 1587, com a colônia já posta sob a administração espanhola da União Ibérica, para refletir sobre determinadas permanências na atualidade, ou seja, anacrônicas.

 

Minha intenção, inicialmente, seria a de oferecer uma espécie de história sincera do Itamaraty, um projeto que tenho em mente já há algum tempo. Temo, contudo, que um exercício desse tipo talvez só possa ser conduzido depois que corações e mentes, mas sobretudo a fala, sejam liberados do ambiente de intimidação que paira atualmente sobre a diplomacia profissional, na Secretaria de Estado, e em praticamente todos os postos no exterior. É conhecido, por exemplo, que a partir do marco cronológico das eleições de 2018, e sobretudo a partir de 2019, muitos colegas preferiram ser removidos para consulados, do que ter de cumprir as instruções mais estapafúrdias jamais recebidas por chefes de postos em embaixadas ou delegações junto a órgãos multilaterais (estas especialmente visadas pelos fanáticos do antiglobalismo). Alguns colegas se dobraram às loucuras do momento, outros enterraram a cabeça na areia: eles sabem do que estou falando, tanto porque intentei um exercício muito discreto de “reconstrução” pós-Bolsonaro (mas frustrado pela ausência de reações suficientes).

Esta foi a razão de eu ter eliminado, de uma primeira versão deste livro, diversos capítulos essencialmente conjunturais para reservá-los a um outro tipo de publicação, dedicado exclusivamente ao bolsolavismo diplomático, a deformação da política externa que desabou sobre o Itamaraty em 2019 e que ainda não foi corrigida em seus fundamentos e modalidades (et pour cause: seu promotor direto não é o infeliz chanceler acidental, mas o próprio presidente, estimulado por uma pequena tropa de amadores nessa área, animados pelas mais loucas teorias conspiratórias). Desde 2019, o Itamaraty e a diplomacia profissional passaram a viver sob uma espécie de “surrealismo exótico”, no qual os titulares presumidos da área se aferraram às fantasmagorias demenciais de um guru expatriado. Elementos centrais nesse coquetel destrambelhado de “teses” conspiratórias partiam de uma suposta ameaça do monstro metafísico do “globalismo”, mancomunado ao “comunismo”, junto a outras coisas bizarras como o “climatismo”, o “comercialismo” e outros “ismos”, como sendo os maiores perigos para a sobrevivência da “alma conservadora” do povo brasileiro, além de outras loucuras diplomáticas, só capazes de frequentar mentes muito doentias e desequilibradas. Infelizmente, é o que desabou sobre o Itamaraty e seus profissionais, com cenas explícitas de esquizofrenia política, inéditas em quase duzentos anos de história diplomática. Toda essa loucura merece um registro próprio e separado deste volume, que tem a pretensão de trazer ensaios menos conjunturais e mais dotados de alguma substância estrutural.

 

Como descrevi no primeiro livro dedicado aos responsáveis pela “nova política externa para o povo”, estamos em face de uma “miséria da diplomacia” (2019a), inteiramente decorrente da “destruição da inteligência no Itamaraty”: as antigas posturas fundamentadas em bases técnicas, centradas exclusivamente nos interesses nacionais, foram substituídas por uma série de irracionalidades ideológicas, identificadas com os preconceitos da nova direita, alinhadas, não aos interesses brasileiros, mas aos do governo Trump. Depois disso, o Itamaraty entrou num “labirinto de sombras” — título de meu segundo livro (2020c) — para o qual o adjetivo “sincera” não mais poderia ser aplicado, uma vez que interlocutores da diplomacia ativa passaram a enfrentar enormes dificuldades para se expressar com toda clareza e transparência sobre uma das fases mais obscuras e vergonhosas da política externa e da diplomacia. O Serviço Exterior passou a ser constrangido, e a viver encabulado no mundo, basicamente em virtude de deformações e mentiras mais abundantes do que as que existiram, comparativamente, no período da ditadura militar, quando agentes consulares eram impedidos de sequer expedir certidões, passaportes e outros documentos para os adversários exilados do regime ou a seus familiares. 

Finalmente, meu terceiro livro dedicado ao trabalho de “demolição” revelou uma “certa ideia do Itamaraty” (2020b), no qual eu também tratei dos possíveis caminhos para a “reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia”. Não é uma tarefa fácil, tantas são as incongruências, o desprestígio, o isolamento regional e internacional aos quais o Brasil e sua diplomacia foram relegados em dois anos de desmantelamento promovido pelo próprio governo, contra uma de suas instituições mais renomadas. Vários ex-chanceleres estão ativos nessa reconstrução, ao divulgar, em 8 de maio de 2020, um “manifesto” – anexo a esse terceiro livro do ciclo – apontando diversas inconstitucionalidades presentes na atual antidiplomacia e apresentando os fundamentos conceituais e os elementos práticos desse trabalho de restauração de uma política externa nacional.

 

O objetivo do presente livro, retomando alguns dos temas e escritos de obras anteriores, é o de relatar, na maior extensão possível, a grande marcha do itinerário diplomático brasileiro e o desenvolvimento de sua política externa, com um foco mais detido nas últimas décadas, saindo do que chamei – com certa tolerância semântica – de “apogeu” (o que pode ser conceitualmente e substantivamente contestado) para um inédito projeto e trabalho sistemático de “demolição”, este sim conduzido com a sanha dos novos crentes. O lado sincero da presente obra poderia ser confirmado pelo primeiro subtítulo escolhido para ela, representado pela informação de que seu conteúdo consistia num conjunto de “reflexões”, assim como pela auto designação sequencial de que elas seriam de um “diplomata não convencional”. Poderiam ser, ainda mais sinceramente, as reflexões de um “anarco-diplomata” – do grego an arkhé, sem comando –, que consiste em minha disposição de falar abertamente sobre minha corporação e sobre as prioridades que orientam o seu trabalho. Mas, preferi adotar um subtítulo mais neutro: itinerários da diplomacia brasileira, dado seu forte conteúdo histórico.

O ex-chanceler Azeredo da Silveira costumava dizer que a melhor qualidade do Itamaraty é saber renovar-se. Nunca apreciei especialmente essa frase – ademais daquela outra, sobre a suposta “excelência” do Itamaraty –, pois que ela revela, de certa forma, uma satisfação gratuita com nosso trabalho, como se ele fosse sempre perfeito, podendo dispensar críticas internas e pouco tolerante com contrarianistas como este que aqui escreve. Temo que a tal tarefa, da próxima vez, será muito mais complicada do que uma simples renovação superficial. O trabalho consistirá em reconstruir os fundamentos conceituais da política externa e as bases operacionais de sua diplomacia, bastante abalados pelos golpes de borduna dos novos bárbaros, pelos tacapes da ignorância dessa franja lunática que assaltou o poder com todo o furor dos verdadeiros crentes. 

Será preciso uma reconstrução conceitual e uma restauração de métodos e procedimentos que não mais reproduzirão o que tínhamos num passado parcialmente “feudal”. Nada que o corpo profissional não consiga fazer, desde que disponha de liberdade para mudar a maior parte, senão tudo, do que foi feito sob a infeliz gestão dos fanáticos da bolsodiplomacia. Os ex-chanceleres já prepararam o “menu” dessa obra de reconstrução, mas será a nova geração, os jovens frustrados com o balde de água fria que receberam, ao tomarem conhecimento da nova condição de “párias” que os aloprados assumem como normal, são eles que terão de arregaçar as mangas, limpar os escombros e restaurar as linhas suaves do Palácio dos Arcos, o nome do edifício onde está, em Brasília, o Itamaraty. Continuarei acompanhando esses embates, seja na frente de batalha, seja no meu quilombo de resistência intelectual, o blog Diplomatizzando.

 

Brasília, 29 de março de 2021