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quarta-feira, 11 de abril de 2018

A diplomacia brasileira e as clausulas democraticas - Eduardo Paes Saboia

A diplomacia brasileira e as cláusulas democráticas: totem e tabu

No dia 2 de dezembro último, a Venezuela foi oficialmente suspensa do Mercosul por não ter incorporado ao seu ordenamento jurídico interno a totalidade das normas exigidas pelo Protocolo de Adesão. A chanceler venezuelana, Delcy Rodriguez, desconsiderou a medida e criticou a “Lei da Selva de alguns funcionários que estariam destruindo o Mercosul”. No Brasil, a ex-presidente Dilma Rousseff lembrou que tampouco o Brasil teria incorporado algumas das normas que se estava a exigir da Venezuela.[1]
A polarização de opiniões em torno das cláusulas democráticas é um fenômeno recente. Nos anos 1990, parecia ser mais fácil alcançar um entendimento quanto à natureza de um regime democrático. Vinte anos depois o panorama tornou-se menos claro.
Comentamos aqui quatro episódios que ajudam a elucidar essa transformação e a apontamos possíveis caminhos para a diplomacia brasileira nessa temática.
Os mecanismos de proteção democrática ou cláusulas democráticas entraram em voga no Sistema Interamericano nos anos 1990. Seu surgimento foi duplamente impulsionado pela redemocratização na América Latina e o fim da Guerra Fria. Antes disso, a Organização dos Estados Americanos (OEA) já se havia referido à importância da democracia representativa. Nas décadas anteriores, no entanto, o apoio da OEA à democracia se enquadrava geralmente na lógica da rivalidade Leste-Oeste e dos interesses econômicos norte-americanos. Em nome da democracia, os Estados Unidos empreenderam a derrubada, em 1954, do presidente da Guatemala, Jacobo Arbénz, eleito democraticamente, e a invasão da República Dominicana por tropas norte-americanas, em 1965, ambas iniciativas com o beneplácito da OEA. Enquanto isso, a Organização fazia vista grossa para as ditaduras militares latino-americanas.
A posição brasileira em relação ao proselitismo democrático (com a notável exceção da decisão brasileira de participar da Força Interamericana de Paz na República Dominicana) resumia-se a uma palavra: desconfiança. Temia-se encorajar os ímpetos intervencionistas norte-americanos. Sobretudo na América Central. Nos anos 1990 esse sentimento arrefeceu, mas não totalmente.
A diplomacia brasileira participou construtivamente da elaboração dos mecanismos de proteção democrática no âmbito da OEA, mas sempre com a preocupação em não criar instrumentos rígidos ou excessivamente intrusivos. Para o Brasil, importava preservar a margem para a solução negociada de crises. A OEA produziu dois instrumentos principais de proteção à democracia: a) o Compromisso de Santiago com a Democracia Representativa e a Resolução 1080, ambos de 1991, que formam o primeiro regime de proteção coletiva da democracia; e a b) a Carta Democrática Americana (2001), atual marco normativo da OEA sobre o assunto.
O Mercosul não tardou a seguir o mesmo caminho da OEA. O bloco passou por duas etapas de elaboração normativa. A primeira compreende a Declaração Presidencial de Las Leñas (1992) e a Declaração Presidencial sobre Compromisso Democrático (1996), compromissos não-vinculantes de defesa da democracia. A segunda abrange o Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático no Mercosul (concluído em 1998, mas tendo entrado em vigor em 2002)[2].
As cláusulas democráticas foram colocadas à prova já em 1992, quando o presidente peruano Alberto Fujimori promoveu um autogolpe. Com base na resolução 1080, o secretário-geral da OEA, João Clemente Baena Soares e o chanceler uruguaio, Hector Gross Espiell, foram despachados a Lima para negociar o restabelecimento da ordem democrática. A intensa atividade diplomática surtiu efeito positivo, e o Peru comprometeu a realizar eleições para Assembleia Constituinte[3].
Nesse episódio, o Brasil engajou-se numa solução pragmática, evitando sanções ou exigência de retorno a status quo ante. A diplomacia brasileira trabalhou com a preocupação de “preservar a nossa adesão ao princípio da defesa da democracia representativa, sem perder de vista a importância e peculiaridades do relacionamento com o Peru. ” [4]
Outro teste para a democracia regional ocorreu no Paraguai. Era 1996, e Juan Carlos Wasmosy, primeiro presidente eleito após a redemocratização, via sua autoridade ameaçada pelo comandante do Exército, general Lino Oviedo. Na iminência de sofrer um golpe, Wasmosy recorreu ao Governo brasileiro, que lhe ofereceu apoio. Com a ajuda do embaixador do Brasil em Assunção, Márcio de Oliveira Dias, Wasmosy arquitetou um plano ardiloso para neutralizar Oviedo[5]. A atuação preventiva da diplomacia brasileira envolveu entre outras ações: pressões sobre Wasmosy para que não renunciasse; o convencimento de congressistas paraguaios a fim de não acolherem eventual; e a articulação de uma saída honrosa para Oviedo. A crise foi debelada em poucas horas, quando Oviedo se viu sem apoio para levar adiante suas pretensões de poder.
O respaldo do Mercosul a Wasmosy, por meio de comunicados oficiais, ocorreu em complemento à movimentação diplomática desencadeada pelo Brasil e outros protagonistas importantes em Assunção.
A ação tempestiva e eficaz do Brasil diante da primeira ameaça de ruptura democrática no Mercosul, projeto que, àquela altura, se tornara o carro chefe da política externa brasileira, inaugurou um padrão de conduta diplomática, que conjugava a negociação diplomática (de preferência preventivamente) e a invocação de cláusulas democráticas. Contudo, esse padrão não se repetiu em 2012.
Em 2012, o Paraguai voltou a atravessar grave crise política. O presidente paraguaio Fernando Lugo havia sido alvo de processo de impeachment relâmpago. A rapidez do procedimento surpreendeu a todos, embora o texto constitucional paraguaio admitisse essa possibilidade.
Não foi essa a opinião dos chanceleres do Mercosul, que –depois de visita às pressas a Assunção- concluíram ter havido ruptura da ordem democrática e razão suficiente para aplicar a suspensão prevista no Protocolo de Ushuaia. Como resultado, o Paraguai foi impedido de participar dos foros do Mercosul “até o restabelecimento da ordem democrática”, isto é, até a posse do presidente Horacio Cartes, que, eleito, assumiu em agosto de 2013.
O caso gerou muita polêmica. Primeiro, em razão da fragilidade jurídica da sanção: o rito constitucional do impeachment havia sido respeitado. Como bem sintetizou Doratioto, “Lugo foi constitucionalmente eleito e constitucionalmente deposto. Não só ele foi eleito, os deputados e os senadores também foram. ”[6] Outra crítica foi a não realização da etapa de consultas, prevista no Protocolo de Ushuaia[7].
Se o impeachment foi consumado no afogadilho, o mesmo se pode dizer da decisão de suspender o Paraguai. Não houve, como em 1996, espaço para ações preventivas ou sequer paliativas. Ao embarcar numa ação coletiva patrocinada pela Argentina e Venezuela, o Brasil abdicou de um formidável ativo de que dispunha, particularmente em função da usina de Itaipu: a importância sem paralelo do Brasil para o Paraguai.
O ingresso da Venezuela foi efetivado ato contínuo à suspensão Paraguai[8]. A medida foi amplamente interpretada como manobra para contornar o impasse em torno da ratificação do Protocolo de Adesão da Venezuela, que o Senado paraguaio se recusava em aprovar.
A suspensão do Paraguai marca inflexão na agenda política do Mercosul, sendo apontada como exemplo de decisão movida muito mais por afinidades partidárias entre o Partido dos Trabalhados e o Frente Guasú, base de apoio de Lugo, do que pela boa prática diplomática. O episódio deixou um saldo negativo para o Governo brasileiro, que se desgastou não apenas com o Governo paraguaio, mas também com o Congresso Nacional, que identificou ali uma prova da fragilidade da atuação do Executivo (particularmente do Itamaraty) no front diplomático. Parlamentares críticos ao Governo brasileiro aproveitaram a oportunidade para impulsionar um protagonismo diplomático do Congresso Nacional sem precedentes na tradição brasileira.
A repressão do Governo venezuelano diante das manifestações populares de fevereiro de 2014, inclusive a prisão de líderes oposicionistas, levou à intensificação do ativismo diplomático do Congresso brasileiro. Àquela altura a oposição venezuelana havia perdido toda interlocução com o Itamaraty[9].
Quando líderes como a ex-deputada Maria Corina Machado saíram em busca de apoio internacional à sua causa, o Congresso brasileiro aproveitou a oportunidade[10]. No Brasil, a bancada da oposição já identificava na política externa, sobretudo nas relações com a Venezuela e a Bolívia, uma fragilidade a ser explorada politicamente[11].
Na segunda metade de 2015, as preocupações em torno da crise na Venezuela convergiram em torno de um tema específico: a presença de observadores eleitorais nas eleições legislativas. A data das eleições havia sido marcada para 6 de dezembro, mas pairavam incertezas quanto às condições em que o pleito se daria. O Governo venezuelano recusava a observação eleitoral pela OEA, admitindo apenas a presença de observadores da Unasul. Ainda assim, o escopo da missão da Unasul permanecia indefinido diante de restrições impostas pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE), órgão eleitoral venezuelano.
A Unasul dialogava com a Venezuela por meio de uma comissão de chanceleres, integrada por Brasil, Colômbia e Equador. O Itamaraty coordenava-se com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na negociação dos termos de referência para a observação eleitoral. O Tribunal defendia que os observadores eleitorais pudessem aferir não apenas os procedimentos de votação, mas também a existência de um ambiente institucional que garantisse participação em condições de igualdade. O TSE propunha, ademais, que a missão de observação eleitoral fosse chefiada pelo ex-ministro Nelson Jobim, cujas credenciais de independência e competência técnica eram amplamente reconhecidos no Brasil.
O nome do ex-ministro, contudo, foi vetado pelo Governo venezuelano, que optou pelo ex-chanceler argentino Jorge Taiana, visto como simpatizante do regime bolivariano. Inconformado com a evolução dos acontecimentos, o TSE tornou público seu descontentamento em nota em que informava que não mais participaria do processo de observação eleitoral.
O gesto do TSE, muito apreciado no Senado, desacreditava a observação eleitoral levada a cabo pela Unasul. O Governo brasileiro, entretanto, procurou minimizar o episódio e se conformou com a escolha de Taiana.
Em meio à crise, o Itamaraty equilibrou-se entre as pressões do Palácio do Planalto para manter-se fiel ao aliado político venezuelano e as críticas contundentes do Senado e do Tribunal Superior Eleitoral, que insinuavam que o Brasil estaria sendo complacente enquanto à exigência de padrões mínimos para a observação eleitoral. Embora as eleições legislativas tenham finalmente ocorrido, dando vitória avassaladora à oposição, a Assembleia Nacional continuou enfrentando dificuldades para fazer valer suas prerrogativas constitucionais.
Embora o cenário político no Brasil tenha mudado substancialmente, não será fácil recuperar a credibilidade do Brasil, acusado de se omitir diante do ocaso da democracia venezuelana. Um importante passo foi dado com a recente decisão de suspender a Venezuela do Mercosul.
Apesar dos percalços, a democracia é marca distintiva da integração latino-americana e do sistema interamericano. Desempenha função aglutinadora. É o nosso totem. Outros blocos terão sido mais exitosos em outras conquistas (igualmente importantes e até certo ponto dignas de emulação pela América Latina): a ASEAN, na inserção competitiva de suas economias no mercado mundial; a Europa, na integração monetária, apesar dos percalços da Zona do Euro.
O fato de o próprio conceito de democracia ter deixado de ser consensual[12] torna imperativo que se busque, pelo diálogo, resgatar uma visão comum sobre um dos pilares da integração. Mas diálogo apenas não resolve. Há linhas vermelhas que não podem ser cruzadas: cláusulas democráticas existem para impor penalidades àqueles que incorrem em flagrantes violações à prática democrática.
Sanções internacionais são recursos extremos, sim. Não cabem em situações dúbias, como a do impeachment do presidente Fernando Lugo. E devem ser combinadas com a ação diplomática, a exemplo do que fez o Brasil diante da ameaça de golpe do general Lino Oviedo. Feitas essas ressalvas, as cláusulas democráticas constituem legítimo instrumento para a diplomacia brasileira. Não são panaceia, mas tampouco tabu.

Notas

  1. A ex-Presidente declarou ainda que: “não se pode esperar muito do governo ilegítimo que usurpou o meu mandato por meio de golpe parlamentar travestido de impeachment. A medida mostra a pequenez do governo do Brasil diante das exigências da América Latina”. Artigo do jornal “O Estado de São Paulo” intitulado Em nota, Dilma critica decisão de suspender a Venezuela. Publicado em 03/12/2016. Disponível em: http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,em-nota-dilma-critica-decisao-do-mercosul-de-suspender-a-venezuela,10000092346. Consultado em 03/12/2016. 
  2. Dois outros instrumentos que merecem referência: o Protocolo de Montevidéu sobre Compromisso com a Democracia (Ushuaia II), concluído em 2011, mas sem previsão de entrada em vigor; e o Protocolo Adicional sobre Compromisso com a Democracia, concluído em 2010 e em vigor desde 2014. Este último refere-se à União Sul-Americana de Nações (Unasul). 
  3. Em 2000, Fujimori candidatou-se a um terceiro mandato. O pleito foi considerado fraudulento pela missão de observadores da OEA. Ainda assim, o Brasil se opôs à imposição de sanções contra o Peru, tendo sido acusado de prolongar o apoio a Fujimori, quando a natureza autoritária de seu governo já havia ficado evidente para muitos países latino-americanos. 
  4. Trecho do telegrama confidencial (desclassificado) da Delegação Permanente junto à OEA no. 365, de 14/4/1992. Arquivos do Ministério das Relações Exteriores. 
  5. O episódio é descrito em detalhes pelo então embaixador do Brasil em Assunção. Vide DIAS, Márcio de Oliveira. Quando o Brasil ajudou a impedir o golpe de Oviedo. O GLOBO. Edição de 29/11/2015. Disponível em:http://oglobo.globo.com/mundo/artigo-quando-brasil-ajudou-impedir-golpe-de-oviedo-18166197. Consultado em: 02/12/2016. 
  6. FOLHA DE SÃO PAULO. O que houve no Paraguai foi ruptura política, não golpe. Entrevista com Francisco Doratioto. Edição de 01/07/2012. Disponível em: http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2012/07/01/2//5797627. Consultado em 02/12/2016. 
  7. LAFER, Celso. Descaminhos do Mercosul: a suspensão da participação do Paraguai e a incorporação da Venezuela: uma avaliação crítica da posição brasileira. Disponível em: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,descaminhos-do-mercosul-imp-,918638. Consultado em 02/12/2016. 
  8. Comunicado Conjunto dos Presidentes dos Estados Partes do Mercosul – 29/06/2012 http://www.mercosur.int/innovaportal/v/4488/2/innova.front/comunicados-conjuntos. Consultado em 02/12/2016. 
  9. A oposição não possuía sequer um canal de interlocução com a Embaixada do Brasil em Caracas, como é de praxe. Depoimento da ex-Deputada María Corina Machado ao autor em 17 de junho de 2016. 
  10. A deputada notabilizou-se por denunciar violações aos direitos humanos por parte do Governo Maduro em reunião do Conselho Permanente da OEA, tendo falado a partir do assento do Panamá, o que lhe valeu a sua cassação por “traição à pátria”. 
  11. A melhor prova de que as relações com a Venezuela iam mal foi o tratamento reservado aos oito senadores, que viajaram a Caracas em junho de 2015. A comitiva, que pretendia prestar solidariedade a líderes oposicionistas presos, foi achacada ao sair do aeroporto por manifestantes que aparentavam agir a mando do Governo venezuelano. 
  12. Exemplo de visão alternativa é o conceito de democracia participativa, que identifica na relação com movimentos sociais uma fonte de legitimidade política até maior do que a que deriva da representação política parlamentar. 

Sobre o autor

Eduardo Paes Saboia é diplomata de carreira (e_saboia@hotmail.com).

Como citar este artigo

Eduardo Saboia. "A diplomacia brasileira e as cláusulas democráticas: totem e tabu". Mundorama - Revista de Divulgação Científica em Relações Internacionais,. [Acessado em 11/04/2018]. Disponível em: <http://www.mundorama.net/?article=a-diplomacia-brasileira-e-as-clausulas-democraticas-totem-e-tabu-por-eduardo-paes-saboia>.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Mercosul: algum progresso, finalmente - Rubens Barbosa (OESP)


Presidência brasileira do Mercosul 

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 26/12/2017

 

A51.ª edição da reunião de cúpula dos chefes de Estado do Mercosul e Estados Associados foi realizada em Brasília na semana passada. O Mercosul equivale hoje à quinta economia do mundo, com produto interno bruto (PIB) de US$ 2,7 trilhões.
 Mais de 10% das exportações brasileiras têm como destino os demais sócios do bloco e 84% delas são produtos manufaturados. As trocas comerciais no Mercosul (US$ 38 bilhões – 2016) são hoje 8,5 vezes maiores do que as registradas no ano da fundação do bloco (US$ 4,5 bilhões – 1991).
A cúpula de chefes de Estado encerra a presidência pro tempore exercida pelo Brasil durante o segundo semestre de 2017. Em vista dos resultados alcançados, pode-se dizer que a reunião presidencial foi uma das mais eficazes e produtivas dos últimos anos. Nesse período, foram realizadas cerca de 300 reuniões dos órgãos decisórios e especializados do Mercosul, tratando de temas como comércio, regulamentos técnicos, contratações públicas, grupo de monitoramento macroeconômico, direitos humanos, justiça, desenvolvimento social, saúde e educação. Com esse esforço se atualizou a agenda de trabalho do bloco, que voltou a tratar de assuntos relevantes para o intercâmbio comercial e de questões novas e urgentes.
A cúpula de Brasília consolidou o fortalecimento do Mercosul como instrumento de integração capaz de produzir resultados concretos em benefício das sociedades da região, com base nos pilares presentes quando da criação do bloco: integração econômico-comercial, democracia e direitos humanos. O grupo retoma a sua vocação original de regionalismo aberto e busca tornar-se cada vez mais uma plataforma de inserção competitiva de seus integrantes na economia global. Com isso os presidentes decidiram acabar com a retórica bolivariana e dar prioridade a uma agenda reformista e pró-mercado.
Sob a coordenação brasileira foram reiniciadas discussões de temas que não foram tratados nos últimos anos, como serviços, comércio eletrônico, facilitação do comércio, pequenas e médias empresas e o interesse do consumidor nas matérias de comércio exterior. Foi assinado o acordo de compras governamentais entre os países-membros. Novos temas foram introduzidos no programa de trabalho do bloco e há disposição de avançar em setores como questões regulatórias, comércio eletrônico, bens de informática e o desenvolvimento de uma agenda digital, com a criação de um grupo que deverá apresentar plano de ação sobre esse tema no primeiro trimestre de 2018. Modernizou-se o mecanismo de elaboração e modificação de regulamentos técnicos do Mercosul, em discussão desde 2010, que permitirá alinhar o bloco aos mais avançados padrões e práticas internacionais, em benefício dos cidadãos, dos consumidores e das empresas.
Nesse período, foi também adotado um plano de ação para o fortalecimento das áreas comercial e econômica, cuja execução levou a melhorias efetivas na fluidez do comércio regional, e foram reiterados os compromissos de evitar restrições ao comércio entre os países, com a diminuição substantiva de 86% dos entraves ao comércio (de 78 medidas restritivas foram eliminadas 67) entre seus integrantes, fruto de um esforço de fortalecimento do mercado interno.
O Brasil apresentou projetos para Iniciativas Facilitadoras de Comércio e Protocolo de Coerência Regulatória, que terão continuidade na presidência pro tempore paraguaia. Foram aprovados o tratamento do tema de proteção mútua de indicações geográficas, que também terá sequência na agenda do bloco, e o Acordo sobre Direito Aplicável em Matéria de Contratos Internacionais de Consumo, que estabelece critérios para definir o direito aplicável a litígios dos consumidores em suas relações de consumo.
Do ponto de vista político, não menos importante, também houve avanços, como a aplicação da cláusula democrática à Venezuela, cada vez mais autoritária.
Houve compromisso de continuar na busca de soluções para os temas ainda pendentes, como a decisão de incorporar plenamente ao regime jurídico do bloco os setores automotivo e do açúcar, e também a tentativa de corrigir algumas recaídas protecionistas, como a imposição pelo Uruguai de uma sobretaxa às importações que, na prática, estabelece uma tarifa externa diferenciada contra as regras do Mercosul.
Durante recente encontro na Argentina, os negociadores do Mercosul e da União Europeia não chegaram a um acordo para que fosse feito um anúncio político a respeito do progresso e da finalização das negociações em 2018. Agora em meados de janeiro os entendimentos técnicos devem prosseguir, já incorporando as decisões de incluir 90% do intercâmbio comercial dos dois agrupamentos e reduzir o cronograma de desgravação para dez anos. Os presidentes reafirmaram o empenho do Mercosul na conclusão, no mais breve prazo possível, de um acordo ambicioso, abrangente e equilibrado, em todas as suas dimensões. Espera-se que a União Europeia possa melhorar as ofertas de cotas para carne e etanol, de modo a permitir um rápido avanço nos entendimentos, superando a oposição de alguns membros europeus.
A disposição de celebrar acordos com outros países e blocos foi reafirmada com a disposição de avançar nas negociações com a Associação Europeia de Livre Comércio (Efta) e nos entendimentos com os países da Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean), bem como nas negociações com a Índia, o Marrocos e a Tunísia. Foi destacada, ainda, a perspectiva de lançamento de negociações com o Canadá e a Coreia do Sul.
A partir de 1.º de janeiro de 2018 o Paraguai assume a presidência pro tempore do Mercosul e a tendência é que será dada continuidade a essa nova agenda apoiada pelo Brasil.
Bloco troca a retórica bolivariana por uma agenda reformista e pró-mercado
PRESIDENTE DO CONSELHO DE COMÉRCIO EXTERIOR DA FIESP

domingo, 22 de outubro de 2017

Politica externa do governo Geisel: rupturas e continuidades - Paulo Roberto de Almeida

Em meados de 2002, fui contatado por um grupo de alunos das Faculdades Casper Líbero que pretendiam fazer um "livro-reportagem" sobre temas de política internacional, e me pediram para que respondesse um conjunto de questões sobre a política externa do Governo Geisel. Nunca me deram retorno sobre o projeto, e é muito provável que, como muitos outros sonhos loucos de estudantes, ele nunca tenha sido levado a termo.
Mas, descubro agora, quando dou início a um novo exercício de avaliação do pensamento diplomático durante a era militar, que esse trabalho permaneceu inédito e não utilizado durante esses últimos 15 anos. Mesmo sem ler o texto, para saber o que exatamente eu escrevi, transcrevo-o agora, pois pode ter utilidade para alguém.
Sempre vale o registro de algo que nos custou tempo e trabalho durante pelo menos algumas noites...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22 de outubro de 2017


Política externa do governo Geisel
breves considerações sobre rupturas e continuidades

Paulo Roberto de Almeida
Depoimento prestado em 11 de Julho de 2002 para
Grupo de alunos da Faculdade Casper Líber,
na qualidade de colaborador intelectual do projeto de livro-reportagem:
“O Brasil diante das escolhas e os desafios da Multipolarização:
rupturas e continuidades do governo Geisel (1974-1979)”
(a ser publicado no final do ano de 2002)

Temática geral da obra: a influência da política externa desenvolvida pelo presidente Ernesto Geisel, nas relações regionais e multilaterais que o Brasil mantém hoje.


Perguntas formuladas a Paulo Roberto de Almeida (PRA):

1.   Podemos fazer uma relação entre a política externa desenvolvida por Geisel (diversificação de parcerias bilaterais, utilização da diplomacia presidencial para obtenção de novos investimentos e parceiros, dentre outras características) com a política de diversificação de parcerias bilaterais realizada hoje com o atual governo?

PRA: Existe uma certa convergência de orientações políticas, de ênfases bem como de métodos entre a política externa praticada durante o Governo Geisel (1975-1979) e aquela seguida durante as duas administrações FHC (1995-2002), muito embora elas pertençam a dois universos políticos distintos e respondam a preocupações diferentes quanto aos objetivos finais.
Comecemos pelas convergências. Em ambos os casos, houve forte ênfase na diplomacia presidencial, assim como no objetivo da diversificação de parcerias, na construção de certas alianças privilegiadas e na busca de um diálogo de qualidade com interlocutores importantes do cenário internacional, tanto no horizonte tradicional das potências ocidentais, quanto no cenário menos comum de parceiros do mundo dos países em desenvolvimento. Em ambos os casos, igualmente, se buscou valorizar os diversos planos de trabalho diplomático, tanto o cenário regional, estrito senso, como o âmbito dos esquemas plurilaterais e, sobretudo, o sistema multilateral. Existe convergência similar na busca de diálogo privilegiado com as grandes potências econômicas (EUA, Alemanha, Japão, uma tríade dominante no cenário financeiro), assim como na busca de parcerias tecnológicas e industriais que capacitassem o Brasil a elevar-se na escala de desenvolvimento tecnológico e e de equipamento militar.
No plano das divergências contudo, os elementos seguintes devem ser destacados. As condições econômicas, políticas, geopolíticas e de ordem doméstica nas quais foram exercidas as políticas externas respectivas de Geisel e de FHC foram sensivelmente diferentes, com ênfase nas condições domésticas, mas também no cenário internacional. Neste último plano, com efeito, vivia-se então, ainda, sob o impacto da Guerra Fria, muito embora a Administração Nixon (1968-1974) e seu Conselheiro de Segurança Nacional e depois Secretário de Estado, Henry Kissinger, tivessem se esforçado para ampliar os espaços de détente, com diversos acordos de redução de armas estratégicas negociados (SALT I, ABM), início das negociações para a conclusão da guerra do Vietnã (e do Camboja) e iniciativas nos planos multilateral e regional (confidence-building measures na Europa), por exemplo). Mas a União Soviética ainda mostrava uma face agressiva no cenário internacional, com um forte programa de armamentismo nuclear (mísseis, equipamentos convencionais e projeção naval) e um apoio incontido a diversos regimes “progressistas” em diversas partes do mundo em desenvolvimento (África, sobretudo, mas também América Latina e Ásia), ademais da preservação da chamada “Doutrina Brejnev” que “autorizava” intervenções unilaterais em países de sua órbita em caso de “ameaças” ao poder socialista (casos da Tchecoslováquia, Polônia, RDA).
No plano interno, mais espetacularmente, o País vivia uma situação ditatorial de repressão a grupos de oposição, censura prévia à imprensa e sentimentos anticomunistas fortemente disseminados em todo o establishment militar. O alinhamento ideológico com as teses mais conservadoras em política externa comandava ausência quase completa (ou apenas formais) de relações diplomáticas com países comunistas como China e Cuba e fortes restrições aos demais da órbita soviética. O Governo Geisel, precisamente, inovou tremendamente ao “normalizar” relações diplomáticas com vários desses países (como o reconhecimento da China comunista e de Angola “marxista”, mas não de Cuba), mesmo ao preço de fortes tensões com determinadas cúpulas do sistema militar (o próprio ministro do Exército, Silvio Frota, era virulentamente contrário a tal tipo de política). O chanceler escolhido por Geisel, Antonio Francisco Azeredo da Silveira, vinha de uma tradição “desenvolvimentista” e nacionalista, no Itamaraty, além de ter assistido a diversos episódios de engajamento do Brasil em esforços de cooperação com outros países em desenvolvimento no quadro do Grupo dos 77, da UNCTAD, dos movimentos em prol da descolonização e do rompimento da dependência econômica desses países em relação às potências ocidentais (UNCTAD). Ele deu início a uma forte reorientação da política externa em direção do chamado “Terceiro Mundo” e das teses pregando o estabelecimento de uma nova ordem econômica internacional nos foros multilaterais.
O próprio Geisel envolveu-se diretamente na formulação e execução dessa nova diplomacia desenvolvimentista, assim como buscou parcerias privilegiadas entre os principais parceiros avançados, com o objetivo de obter financiamento e tecnologia (inclusive nuclear) para conformar o projeto do “Brasil grande potência” (política mais praticada do que verdadeiramente afirmada). Tendo encontrado fortes resistências nos EUA (que se preocupavam com a proliferação nuclear), Geisel busca uma aliança privilegiada com a Alemanha, de que resulta o acordo de cooperação nuclear (supostamente de orientação basicamente energética e com características apenas “civis”), implementado apenas parcialmente e a custos altíssimos para a sociedade.
O cenário externo não foi contudo favorável ao desenvolvimento dessas estratégias de atuação formuladas conjuntamente por Geisel e “Silveirinha”. Depois do primeiro choque do petróleo em 1974, o mundo viveu o recrudescimento da pressão inflacionária e o aumento das taxas de juros, até que o segundo choque do petróleo, em 1979, consumasse um cenário externo de “estagflação”. No plano regional, igualmente, os conflitos com a Argentina em torno do aproveitamento dos recursos hídricos da bacia do Paraná (depois do acordo concluído com o Paraguai, em 1975, para a construção de uma grande barragem hidroelétrica nas proximidades da fronteira tripartite de Iguaçu) recrudesceram ao ponto de se temer a ruptura em um conflito aberto, num cenário geopolítico já caracterizado pela competição militar entre os dois países e pela possível pressão para a aquisição da arma nuclear pelos establishments militares respectivos.
Na era FHC, esse cenário se encontra radicalmente transformado: fim do socialismo e da bipolaridade, pacificação, cooperação e integração nas relações com a Argentina e mudanças na matriz energética do País, com a diminuição da dependência em relação ao Oriente Médio. Mas, não resta dúvida que a orientação em prol da diversificação de parcerias, sobretudo no plano econômico e tecnológico, aproxima a administração atual da era Geisel, inclusive em seus aspectos eventualmente negativos, como seria a confiança exagerada no crescimento econômico do País e a dependência ampliada em relação aos capitais de empréstimo e ao financiamento externo de modo geral.
Também se repete a forte política de atração de investimentos diretos externos, mas neste caso cabe destacar a forte ênfase dada no Governo Geisel a grandes projetos nacionais (e sobretudo estatais) de infraestrutura e indústrias básicas, ao passo que FHC deu continuidade ao processo iniciado por Collor de privatizações e de desengajamento do estado das atividades diretamente produtivas na esfera econômica. Este encontrou um País basicamente industrializado (daí ter caracterizado o Brasil não como um país “subdesenvolvido”, mas como um país “injusto”), processo que tinha sido completado, justamente, na administração Geisel. Ambos deixaram dívidas interna e externa maiores do que as encontraram ao iniciar seus governos respectivos, muito embora tenham procurado controlar o processo inflacionário interno (com mais sucesso no caso FHC, mas descontando-se a pressão inflacionária representada pelo petróleo na era Geisel).
Em todo caso, há talvez semelhanças de forma, como de objetivos, entre as duas fases do Brasil contemporâneo, mas com cenários interno e externo bastante diverso e portanto com ênfases especiais no plano diplomático divergentes no que respeita objetivos básicos da construção do Brasil enquanto nação inserida no contexto mundial: Geisel gostaria de ver um Brasil menos dependente do exterior, totalmente autônomo tecnologicamente e capacitado militarmente, enquanto FHC trabalha basicamente nos quadros da interdependência, da globalização (que ele aceita como um dado da realidade) e da regionalização (conceitos de América do Sul e construção do Mercosul) e não tem a pretensão de construir uma potência militar, e sim uma nação econômica e socialmente desenvolvida (ou pelo menos mais “justa”), com aceitação das realidades geopolíticas atuais.

2.   Poderíamos dizer que o governo atual retomou esta política de diversificação de parcerias e a valorização da diplomacia presidencial exercida no governo Geisel (que representou o fim do alinhamento do governo militar aos EUA) depois de uma política de “alinhamento” aos EUA exercida também (de certa forma) pelo presidente Fernando Collor? Podemos dizer, então, que entre o governo Geisel e o governo FHC tivemos uma política externa “morna” sem grande valorização da diplomacia brasileira?

PRA: FHC praticou uma diplomacia presidencial em toda a sua extensão, inclusive porque não tinha os constrangimentos de Geisel (direitos humanos, ditadura, repressão política etc) e, de certa forma, ele foi o seu próprio “chanceler”, ao passo que o papel de Silveirinha na gestão Geisel foi bem mais destacado do que o de Lampreia na era FHC. A diversificação de parcerias era um método, não um fim em si mesmo, ainda que a busca de novos parceiros para compensar a presença predominante dos EUA tenha figurado como objetivo importante na era Geisel (que já tinha assistido a uma relativa deterioração das relações com os EUA na gestão anterior, de Costa e Silva e Magalhães Pinto). O alinhamento com os EUA, na era militar, só existiu, de verdade, na primeira gestão dos generais, sob Castello Branco, por uma simples questão de “reconhecimento” pelo apoio dado na estabilização do novo regime e sua situação econômico-financeira.
Não se pode dizer, verdadeiramente, que tenha havido “alinhamento” com os EUA na gestão Collor, mas sim o rompimento de certos “tabus” que dificultavam as relações bilaterais, como na questão da informática, da proliferação nuclear e missilística, das patentes, da política comercial, do alegado “terceiro-mundismo” da política externa (e suas repercussões em termos de dívida externa, relações com os banqueiros privados e com o FMI, negociações comerciais multilaterais da Rodada Uruguai) etc. Várias dessas “inovações” diplomáticas não representavam “alinhamento” estrito senso, mas a busca de uma modernização na forma de inserção do Brasil na economia internacional, como a redução tarifária e a adoção de um novo código de propriedade industrial reconhecendo patentes farmacêuticas, por exemplo. A chamada “política nuclear independente” não trouxe nem independência nem benefícios econômicos ou tecnológicos ao País, daí a decisão acertada (apoiada pelos EUA) de renunciar às armas de destruição em massa (possibilidade aliás negada pela Constituição) e de aderir aos principais instrumentos internacionais vinculantes nessa matéria.
De toda forma, em nenhuma das duas épocas, a política externa foi “morna” ou secundária, para os interesses internos e externos do Brasil. Em ambas, ela foi fundamental, estratégica mesma, para a consecução de determinados objetivos que poderiam ser, genericamente, classificados sob a rubrica “desenvolvimentista”.

3.   No que se refere a parcerias estratégicas que visavam fortalecer o projeto nacional do governo Geisel, poderíamos afirmar que ela foi retomada em algum momento posterior que não o do governo Fernando Henrique que é criticado por não ter um projeto nacional? Quais seriam os principais objetivos de uma política externa como a desenvolvida pelo atual governo? Que benefícios ela traz para o país?

PRA: O “projeto nacional” do Governo Geisel foi o do fortalecimento da base econômico-industrial do País, como grande ênfase na capacitação tecnológica nacional e na autonomia em matéria de insumos básicos (substituição de importações). O “projeto nacional” do governo FHC, mais praticado do que teorizado, é o da plena inserção do Brasil nas correntes dinâmicas da economia internacional, objetivo de certa forma oposto ao buscado por Geisel, mas não menos legítimo, uma vez que ambos buscavam fortalecer o País para competir no cenário externo. A visão “autárquica” de Geisel correspondia, mais bem, ao tipo de educação militar que ele recebeu (inclusive com fortes influências de um tipo de economia “nazista”, aquela que, nos anos 30 valorizava a “plena autonomia” do País em situação de ruptura do abastecimento externo), ao passo que a visão bem mais “interdependente” de FHC reflete sua educação cosmopolita e fortemente engajada na cooperação internacional, sem qualquer receio de “dependências nocivas” para o Brasil. São duas mentalidades opostas, mas ambas fortemente comprometidas com a plena valorização da capacitação tecnológica nacional (embora por métodos distintos).
Os benefícios supostos ou reais da atual política externa são os da plena valorização dessa inserção econômica internacional e, sobretudo, o caráter estratégico atribuído ao processo de integração regional e à cooperação com a Argentina, ao passo que Geisel não tinha nenhuma intenção de renunciar à “soberania” brasileira no quadro da integração regional (inclusive por desconfiar da Argentina enquanto “competidora estratégica). Essa opção tem um enorme custo para o País, uma vez que a enorme autonomia praticada (na verdade a busca da autarquia) não é economicamente racional, nem atende ao sistema produtivo como deveria. O Governo Figueiredo tentou retomar, ou continuar, o projeto de Geisel, mas a situação de deterioração financeira e de crise econômica então vivida, a forte pressão política interna em favor da redemocratização, bem como a incapacidade gerencial e a falta de gosto do presidente pela diplomacia (como pelo simples exercício da autoridade presidencial) inviabilizaram completamente tal continuidade. A era Sarney, ainda que inovadora em certos aspectos (como na integração com a Argentina) foi basicamente de transição e de má administração econômica, dificultando a continuidade desse tipo de projeto (que aliás não contava mais com condições financeiras ou externas para ser implementado). Faltou-lhe, também, um chanceler com visão estratégica, ainda que a máquina do Itamaraty tenha funcionado de maneira relativamente eficiente.
De todo modo, projetos econômicos não são implementados segundo a vontade dos dirigentes, mas também em função de um contexto interno e externo favoráveis. Ora, apenas nos anos 90, com o sucesso da estabilização no Brasil e o degelo da Guerra Fria, pode o Brasil retomar um projeto nacional dotado de certa continuidade. Ainda que a diplomacia da era FHC não tenha tido nenhum slogan (como a diplomacia “ecumênica” e o “pragmatismo responsável” da era militar), ela teve um sentido, uma clara direção e sobretudo uma implementação fortemente embasada no interesse nacional (ainda que levando em conta nossas limitações intrínsecas em termos de poder financeiro).

4.   Dentro de uma análise mais histórica, a diplomacia brasileira pode se considerada uma diplomacia voltada para atender os interesses econômicos do país?

PRA: Certamente que sim, desde a era Vargas, basicamente, a política externa está organizada para atender aos objetivos nacionais de desenvolvimento econômico. Ela é uma diplomacia “instrumental”, “oportunista”, ambos os conceitos no bom sentido da palavra, voltada para o aproveitamento de todas as chances de promoção dos interesses econômicos do País, seja no plano comercial, seja no tecnológico, seja ainda no financeiro.

5.   O governo Geisel, desta forma, representou um marco para a política externa do país quando atribui a política externa um caráter econômico?

PRA: Nisso ele não inovou essencialmente no que vinha sendo praticado desde os anos 50 e no que já vinha sendo feito na administração anterior, de Costa e Silva e Magalhães Pinto (este um mero executor do que o Itamaraty formulava). Mas, certamente que a forte personalidade do presidente Geisel, seu envolvimento direto com os dossiê de política externa, seu conhecimento preciso e discussão minuciosa da agenda externa, em muito contribuíram para imprimir essa marca de forte ativismo presidencial no plano da política externa.

6.   E a política externa do governo atual, tem este caráter?

PRA: Provavelmente sim, ainda que com características particulares diferentes, como ressaltado nos parágrafos anteriores, especialmente, na questão dos cenários diferentes em cada época. Mas, se Geisel foi essencialmente “econômico” e “tecnológico”, FHC não se deixou prender por esse tipo de “restrição” setorial, inclusive porque ele nunca enfrentou os fortes constrangimentos políticos de seu antecessor militar, um autocrata administrando uma ditadura repressiva. FHC voltou-se para o debate dos grandes temas políticos e sociais do mundo contemporâneo, envolvendo-se diretamente no diálogo com dirigentes do G-7 na discussão dos problemas sociais acarretados pela globalização e pela volatilidade financeira, nas assimetrias da falta de desenvolvimento em várias regiões periféricas, no desenho (pelo menos tentativo) de uma “nova ordem política internacional”, com a forte expressão do desejo do Brasil de ocupar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, candidatura impensável na era militar. Sobretudo, a decisão de romper o “tabu” da autonomia tecnológica no terreno nuclear e de assinar o TNP representa uma pequena (ou talvez grande) revolução nos próprios fundamentos da diplomacia brasileira. Essa agenda ultrapassa a mera questão do desenvolvimento econômico do País, mas certamente ela continua a ter a vocação do desenvolvimento no centro das preocupações nacionais.

7.   Apesar do Mercosul ter sido formado durante o governo Collor, ele não continua sendo um bloco inativo? O Brasil não continua atuando individualmente sem o respaldo do mesmo, principalmente no momento atual de crise da Argentina?

PRA: O Mercosul NÃO foi formado no governo Collor: ele deriva de decisões tomadas na administração Sarney, ainda que no âmbito estritamente bilateral, Brasil-Argentina. O que Collor e Menem fizeram foi mudar o caráter (de dirigido para livre-cambista) e acelerar o ritmo da desgravação tarifária bilateral em direção de um mercado comum (decisão que já tinha sido tomada em 1988, mediante o Tratado de Integração) e aceitando a incorporação de novos membros nesse processo (que diga-se de passagem não tinham sido excluídos anteriormente, mas que tinham preferido, no caso do Uruguai, ficar à margem das obrigações jurídicas de uma integração plena). Ele tampouco é um bloco inativo, e seus problemas atuais derivam de crises individuais dos países membros, que foram levados a adotar, voluntária (no caso do ministro Cavallo, na Argentina) ou involuntariamente, medidas anti-integracionistas, não de problemas estruturais ou institucionais da própria arquitetura integracionista.
O Brasil é o país que mais tem cumprido o espírito e a letra dos objetivos integracionistas, mas tem consciência que, por ser o país mais forte e economicamente mais poderoso em termos de PIB, população, indústria, comércio exterior, lhe cabe uma responsabilidade adicional na construção e manutenção do edifício integracionista.

8.   A cada momento que passa a realização de parcerias como a Alca, o Mercosul e, consequentemente, Mercosul x UE não ficam mais distantes devido aos subsídios e o protecionismo apresentado pelos países que representam estes blocos?

PRA: Não há esquemas excludentes em termos de liberalização de comércio e todos esses blocos podem ser inter-complementares nos processos de abertura comercial e de aumento da interdependência econômica. Não resta dúvida, porém, que os processos recentes de recrudescimento do protecionismo e das práticas anti-liberalizadoras (como o subvencionismo extremado, no plano interno e externo, em relação a determinadas atividades) pode atuar negativamente na consecução dos processo de liberalização comercial, quer no plano regional ou hemisfério, quer no âmbito multilateral ou ainda na esfera inter-regional (UE-Mercosul). São percalços que devem ser superados para atender aos objetivos proclamados pelos líderes desses blocos.

9.   Quais são as perspectivas que o País tem em termos de política externa com as próximas eleições?

PRA: Basicamente as mesmas da atual administração: continuar os processos negociadores em curso (Mercosul, América do Sul, Alca, OMC e UE, além de outros esquemas bilaterais ou plurilaterais), aumentar nossa participação no comércio  internacional e, de forma inédita talvez, diminuir a dependência financeira externa, mas essa não é uma tarefa basicamente ou essencialmente diplomática., uma vez que ela depende, sobretudo, de condições internas (aumento da poupança doméstica, continuidade do esforço de superávit fiscal, fortalecimento do processo de estabilização, melhoria da capacitação tecnológica nacional), que são administradas pela área econômica, não pelo setor diplomático.

10. De que forma a estabilidade econômica conseguida com o atual governo influencia ou influenciou nas relações externas mantidas pelo Brasil?

PRA: Foi de uma enorme “utilidade” na apresentação externa do País, mas sobretudo nos livra de certos constrangimentos externos a que estávamos antes expostos: alta inflação, corrosão do instrumento monetário, ausência de orçamento realista etc. Pode-se entretanto observar que a maior parte da administração FHC teve de conviver com fortes crises financeiras externas (começando pelo México, em 1994-95, passando pela Ásia, em 1997-98, atingindo a Rússia, em 1998, e chegando ao próprio Brasil nesse último ano), o que obrigou o País a retomar o caminho dos acordos com o FMI, para a sustentação financeira externa de nosso posição de balanço de pagamentos.

11. Como embaixador nos EUA, teria como nos informar de que forma o Brasil é visto por este país e em que escala a formação da ALCA interessa aos americanos?

PRA: Não sou “embaixador” nos EUA, mas ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington. O Brasil não é propriamente “visto” nos EUA, a não ser pela pequena fração da comunidade oficial (diplomatas, funcionários da área de segurança), acadêmica (scholars especializados dos centros de pesquisa voltados para a região, professores “brasilianistas) e, sobretudo, da área econômica (investidores diretos, analistas financeiros, banqueiros), que tem uma visão muito realista, por vezes algo imprecisa, das realidades do País. O conjunto da população ignora solenemente não só o Brasil como o resto do mundo: os americanos são profundamente ignorantes em relação ao que se passa no resto do mundo, este é um dado da realidade e do panorama social dos EUA. Mas, obviamente, eles entretêm uma “visão” do Brasil, como a de um país tropical, de natureza luxuriante, com um povo simpático e jogador de um esporte estranho conhecido como “soccer”, com grandes belezas naturais (Amazônia, Rio de Janeiro, Bahia, Pantanal), mas também com imensas desigualdades sociais e miséria amplamente disseminada, o que não está muito distante da realidade. Salvo problemas graves, o Brasil comparece muito pouco nas informações correntes disponíveis ao americano comum (ainda que os jornais de negócios tenham bastante matéria sobre o Brasil, sobretudo como “mercado emergente”).
Em relação à Alca, os EUA estão tão divididos quanto o Brasil nessa matéria: políticos e sindicatos preocupados, ecologistas e anti-globalizadores opostos, economistas favoráveis, acadêmicos céticos quanto às suas chances reais, industriais divididos quanto a suas vantagens e desvantagens (dependendo do setor), e diplomatas moderadamente favoráveis ao avanço do processo negociador, por perceberem as vantagens de longo prazo ou de caráter estrutural que adviriam desse imenso bloco liberalizador hemisférico.
De modo não surpreendente, as oposições localizadas coincidem com as ameaças percebidas ou supostas derivadas do processo de liberalização: assim como os nossos agricultores estão confiantes na capacidade de competição do Brasil na área dos produtos primários, os americanos temem a concorrência dos produtos brasileiros. Assim como os industriais e as empresas de alta tecnologia (inclusive na área de serviços e de lazer) dos EUA desejam ardentemente a Alca, os nossos industriais de eletrônicos e de bens de capital temem seu impacto em seus setores respectivos, por razões óbvias de diferenças de competitividade, de “custo Brasil” etc. Ou seja, o panorama é relativamente similar em ambos os países, com uma grande maioria indefinida ou incerta quanto às possibilidades reais de implantação do esquema liberalizador, tão complexo é o processo negociador.
Mas, a Alca é basicamente um projeto americano e atende a seus interesses fundamentais. Isso não quer dizer, contudo, que ela seja totalmente negativa para o Brasil ou que sua implantação redundará em “perdas” absolutas para o País. Provavelmente seus resultados de médio e longo prazo serão positivos para o Brasil em termos de comércio, investimentos e finanças, ainda que o impacto de curto prazo possa ser significativo (mas seu período de implantação pode ser delongado, pois tudo depende de negociação).

12. Na sua opinião, quais são os principais problemas apresentados pela diplomacia brasileira no contexto em que vivemos?

PRA: Não temos propriamente problemas “da” diplomacia brasileira, mas talvez problemas “instrumentais”: número relativamente pequenos de diplomatas para todas as frentes de negociação, recursos orçamentários extremamente reduzidos para viagens, estudos, promoção comercial, contratação de consultorias técnicas, ampliação da rede consular externa, reduzida capacidade das demais agências governamentais brasileiras em “abastecer” os diplomatas de “inputs” adequados a certas negociações, enfim, problemas típicos de um país em desenvolvimento, com um funcionamento deficiente das instituições públicas e uma baixa interação com o mundo.
Creio pessoalmente que o Itamaraty, ou os seus diplomatas, deveriam abrir-se mais às interações com a sociedade civil, dialogar mais intensamente no plano interno e externo e participar mais abertamente dos debates públicos em temas de relações internacionais e de política externa. Os constrangimentos criados pela existência de um instrumento de controle dessas manifestações públicas, mais vulgarmente conhecido como “lei da mordaça”, certamente não ajudam nessa abertura ampliada do Itamaraty à sociedade civil.

13. Para finalizar, o que explica o Brasil que é considerado um gigante em extensão e capacidade econômica, língua única, estabilidade, falta de conflitos e uma diplomacia tão elogiada ter uma participação tão pequena no comércio mundial (de cerca de 0,8% atualmente, não é isso?)

PRA: A participação do Brasil no comércio  internacional gira efetivamente em torno de 0,8 a 1% dos intercâmbios globais, o que é efetivamente pouco se pensarmos na dimensão global da economia (8º ou 10º PIB no mundo), mas relativamente compatível com o baixo grau de abertura econômica externa (coeficiente de 10% do PIB aproximadamente). Tal situação deriva de fatores histórico-estruturais que são muito lentos a serem transformados: fechamento da política econômica durante a fase de industrialização e o enorme grau de nacionalização do aparelho produtivo construído durante a fase de desenvolvimento econômico “autárquico” (era Vargas e regime militar), ademais de uma desconfiança “natural” do País em relação aos processos de liberalização comercial e de uma especialização exportadora em setores caracterizados por baixo dinamismo e elasticidade-renda (commodities agrícolas, por exemplo, onde estão nossas grandes vantagens comparativas). Mas, somos, em contrapartida, um grande “tomador” de recursos externos, seja sob a forma de investimentos direitos (voluntários), seja sob a forma (obrigada) de capitais de empréstimo e financiamentos diversos (em virtude de nosso crônico desequilíbrio das transações correntes e da necessidade de importar capitais para compensar essa defasagem).
Existem portanto diversos fatores que explicam essa baixa participação no comércio internacional, mas os mais importantes talvez sejam, não os “estruturais”, mas aqueles de ordem psicológica: somos introvertidos, pouco propensos a nos abrir ao mundo e temerosos de uma maior exposição (e fragilidade) externa, provavelmente por falta de confiança em nós mesmos e por medo de não poder (ou não sabermos) competir vantajosamente com a concorrência externa. Pouco a pouco o Brasil vai superando essa timidez, como se vê na nova confiança adquirida em termos de competitividade agrícola, nos esportes e na música, e gradualmente nos produtos de tecnologia mais avançada, como aviões ou mesmo manufaturados industriais.
O Brasil tem todas as condições de vencer esses constrangimentos e de se inserir mais ativamente nos circuitos da globalização e da economia internacional. Ele certamente o fará, com a ajuda de uma diplomacia competente e autoconfiante.

Washington, 924: 11 de julho de 2002

Paulo Roberto de Almeida é doutor em Ciências Sociais, mestre em Planejamento Econômico e diplomata de carreira desde 1977. Publicou os seguintes livros: Mercosul: fundamentos e perspectivas (LTr, 1998), Relações internacionais e Política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização (UFRGS, 1998), O Brasil e o multilateralismo econômico (Livraria do Advogado, 1999); Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud (Paris: L’Harmattan, 2000); Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (Senac, 2001); Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (Paz e Terra, 2002); Une Histoire du Brésil: pour comprendre le Brésil Contemporain (Paris: L’Harmattan, 2002). Website: www.pralmeida.org.


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DOSSIÊ GEISEL
Celso Castro - Maria Celina D´Araujo (organizadores)
R$ 37,00 / 252 págs.

O LANÇAMENTO MAIS EXPLOSIVO DO ANO !
Uma Visão dos Bastidores do Governo Geisel
Arquivos Confidenciais Divulgados ao Público pela 1a.Vez !

Este livro examina importante acervo documental sobre a recente história do Brasil : o arquivo pessoal de Ernesto Geisel, doado por Amália Lucy Geisel , filha do ex-presidente , em 1998, ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil ( CPDOC) da Fundação Getulio Vargas .
Os textos foram produzidos no período em Geisel ocupou a presidência da República, consistindo, basicamente nos despachos diretos dos ministros com o presidente , abordando as principais questões nacionais do período que dependiam de decisão do presidente.
Os autores fazem uma avaliação dos dossiês dos ministérios da Justiça, Fazenda, Relações Exteriores, Educação, Previdência, Trabalho, Comunicações além de relatórios do SNI.
Sumário :
- Introdução.( Celso Castro e Maria Celina D ´Araujo)
- Ministério da Justiça , o lado duro da transição.( Maria Celina D´Araujo)
- As apreciações do SNI.( Celso Castro)
- O Dossiê Ministério da Fazenda do Arquivo Ernesto Geisel: fontes sobre a gestão de Mario Henrique Simonsen.( Carlos Eduardo Sarmento e Verena Alberti)
- O pragmatismo responsável no arquivo do presidente Geisel.( Letícia Pinheiro)
- Educação e cultura no Arquivo Geisel.( Helena Bomeny)
- Abertura política e controle sindical: trabalho e trabalhadores no Arquivo Ernesto Geisel.( Angela de Castro Gomes).
- O " Ministério da Revolução" de 1964: previdência e assistência sociais no Governo Geisel.( Angela de Castro Gomes).
- As telecomunicações no Brasil sob a  ótica do governo Geisel.( Alzira Alves de Abreu)
- O arquivo Geisel e os bastidores da fusão.(Marieta de Moraes Ferreira)
- Bibliografia.
- Sobre os autores.
- Anexos