NO WORRIES!
Adriano Silva Pucci
Camberra, setembro de 2011.
Camberra
é uma cidade do outro lado do globo terrestre. Em termos de população, equivale
à nossa Piracicaba: conta com cerca de trezentos e sessenta mil pessoas absolutamente
normais, o que é deveras estranho. Pronuncia-se como proparoxítona [CANberra], provável
artifício para evitar o cacófono [CanBERra], que pode soar a ouvidos
desavisados como can’t bear it. Se você conseguir achar Sydney no
mapa-múndi, saiba que ainda faltarão trezentos quilômetros ao sul até Camberra.
A capital da Austrália fica no extremo sudeste do continente, graças ao explorador
britânico James Cook, o responsável pela escolha dessa rota marítima, mil vezes
maldito por condenar gerações posteriores de brasilienses a viajar por três
dias, Brasiliaguarulhossantiagoaucklandsidneycamberra, só para encontrarem mais
uma cidade cuidadosamente planejada para ficar longe do litoral. Mas o bravo
navegador está perdoado, pois, graças a ele, hoje temos a Nicole Kidman. Em
ambas as cidades há aborígenes, embora em Brasília sejam mais encontradiços. Nas
duas terras, selvagens seminus e tatuados entoam cantos primitivos e pulam ao
som de tambores, numa espécie de dança da chuva, com a diferença de que em
Camberra não tem trio elétrico, e de que o ritual australiano efetivamente produz
resultados pluviométricos.
O típico natural de
Camberra tem as bochechas vermelhas de quem levou vários tabefes. Os cabelos
das mulheres podem ser loiros ou tingidos de preto-tiziu. Na segunda versão,
elas ficam parecidas com falsas gueixas, por terem a pele branca como talco.
Aparentemente, o pavor máximo do australiano é o de ser atropelado por uma
bicicleta no parque. É possível deduzir isso porque todos praticam corrida
trajando um uniforme amarelo fluorescente, a onipresente high visibility polo shirt. Trata-se de um povo civilizadíssimo, o
que torna viver na Austrália uma experiência tão emocionante como assistir a um
jogo de críquete contra a seleção do Sri Lanka.
Exaltadas manchetes de jornal transpiram empolgação com a visita da
filha do Rolling Stone Keith
Richards, a modelo Alexandra, reverenciada como celebridade pertencente à realeza
do rock. Sim, rock royalty, declaram,
como se alguém já tivesse visto um roqueiro caçando faisões. E leitores
chocados leem ― depois releem ― a notícia da descoberta do corpo de um menino desaparecido desde 2003. No
Brasil, ninguém teria ainda se dado conta nem sequer do sumiço do pequeno
Daniel.
É claro, de vez em
quando eles têm de extravasar. Para isso existe o rugby, que passa em todos os canais de TV aberta, com exceção
daqueles que transmitem futebol americano. A diferença básica entre os dois
esportes consiste em que, no primeiro, são onze marmanjos de cada lado, esmagando-se
mutuamente, sem equipamento de proteção, ao passo que, no segundo, são trinta
mamutes no total, envolvidos na mesma pancadaria, porém usando uma espécie de armadura.
Ah, o terceiro canal exibe lutas de telecatch...
A
primeira página de qualquer manual decente de sobrevivência em Camberra deve
mencionar a necessidade imperiosa de alugar carro. Os táxis, caríssimos e
rarefeitos, pertencem a uma empresa logicamente denominada de Elite. Recomendo
atenta leitura do contrato de locação do automóvel, que mencionará todos os
detalhes, menos a cor. Na garagem do aeroporto, deparei-me com um compacto esverdeado,
da tonalidade “kiwi”. Nessas situações, procuro sempre ver a metade cheia do
copo: localização rápida do veículo no estacionamento do shopping center e remota possibilidade de furto por algum larápio
daltônico.
Pronto, você está dentro
do carro. Ao não encontrar o volante, logo percebe que está sentado no banco de
passageiros. Passada a humilhação, já no assento do motorista, você liga o quiuí
e sai impunemente dirigindo na contramão, leal súdito que é da Coroa Britânica.
O mapa da cidade tem o formato de uma menininha de saia e tranças dreadlock, à la Bob Marley. A idéia é você ficar girando na “cabeça da
menina”, o State Circle, até arriscar
impetuosamente uma das “tranças” ou artérias viárias que o conduzirão a
Deus-sabe-onde. Meu conselho é não dobrar à esquerda, confiando na seta que
indica Tuggeranong, sob pena de acabar em Wagga-Wagga. Ou, carinhosamente,
“Wagga”. E cuidado! O australiano ficará indignado se você confundir essa
cidadezinha com o sítio histórico de Mugga-Mugga (nada que ver!). Mais
prudente, portanto, é socorrer-se no GPS e ir direto para a rua Bunda, talvez
batizada assim por ficar no centro e por ser bastante movimentada. Em Camberra,
Bunda Street sempre termina em Mort Street. No Brasil, nem sempre as
duas se conectam.
As lojas em Camberra
fecham às cinco da tarde. Raros comerciantes gananciosos esticam o horário até as
sete, quando ainda podem ser encontrados restaurantes abertos, que servem, vai
entender, porções pequenas para Aussies
corpulentos. A gastronomia, diversificada, atende a todos os paladares, do
vietnamita ao indiano, mas prevalece a culinária italiana. Aliás, nada de
especial nessa observação, visto que a pizza é a pandemia do nosso tempo:
barata, rápida e plana, como a sociedade contemporânea. A pizza é o novo dólar.
Bem, abandonando essa digressão histórico-nutricional e voltando o relógio para
as dezenove horas, produz-se então verdadeiro toque de recolher, acentuado pela
precária iluminação urbana. Poucos carros transitam à noite, e fazem-no sempre
com o farol alto, o que provoca incômoda sensação de caçada policial.
Evidentemente, tamanha escuridão só pode ser parte de um sistemático plano de
governo, donde se intui que as autoridades australianas escondem de nós um
terrível segredo sobre ataques aéreos, discos voadores ou vampiros. A dificuldade
de avistar um pedestre após o jantar só é comparável, em Camberra, à escassez
de latas de lixo nas vias públicas, devidamente compensada pela falta de lixo
para botar nas lixeiras. Um dia a verdade virá à luz, e descobriremos que os
australianos enterram o lixo nos quintais de suas casas, silenciosamente, numa
cerimônia macabra, protegidos pelo manto negro da madrugada. Nem ladrão sai de
casa ao anoitecer: Camberra é cem por cento segura.
Todo país tem sua mania
nacional. As Grandes Guerras são a Copa do Mundo dos australianos. Felizmente,
as guerras mundiais ocorrem em intervalos de tempo maiores. A batalha de
Gallipoli, travada contra os turcos otomanos, em 1915, na qual a Austrália
sofreu heróica, mas fragorosa derrota, equivale ao nosso Maracanaço de 50. No
Memorial da Guerra há um nobre mausoléu erigido para o Soldado Desconhecido,
que, ironicamente, é o australiano mais notório (depois da Nicole Kidman,
repito). Na TV, é comum ver a imagem de um recruta agonizante nas trincheiras,
seguida de um pedido de doação para o clube de veteranos de guerra. Em troca,
você recebe um brochezinho de alumínio e a consciência tranquila.
Dizem que cangurus
saltitam livremente nos bairros residenciais de Camberra. Até agora, para mim,
isso não passa de lenda urbana. Não vi nem sombra de canguru, nem mesmo de
pelúcia. Sem entender o boicote marsupial de que sou vítima, ando tomado de
certo complexo de inferioridade. Ir para a Austrália e não ver cangurus é o
mesmo que visitar o Brasil e não encontrar flanelinhas. Mas essa ansiedade toda
― e aí o nosso estereótipo está
desatualizado ― é
típica do brasileiro. Se tem uma lição que aprendi com os australianos, é que o
estresse não vale a pena: no worries,
ensinam-me eles a todo momento. “Sem probs”, traduzo em pensamento. Um bom lema
para levar de volta em minha bagagem.
* * *
2 comentários:
Você escreve muito bem...
Um abraço
Luciane Munhoz
Lu Munhoz,
A Cesar o que é de Cesar.
Não sou eu o autor desse texto, mas sim o Adriano Pucci, o que aliás está muito bem indicado..
Talvez eu até escreva bem, mas não esse...
Paulo Roberto de Almeida
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