Constituição deve se
moldar à vontade do povo
Revista Consultor Jurídico, 6 de outubro de 2013
Na segunda edição desta coluna quinzenal publicada neste espaço da
ConJur, Carlos Bastide Horbach criticou alguns mitos próprios ao Direito
Constitucional, mormente ao Direito Constitucional brasileiro. Esta edição da
coluna dedica-se a outro mito, que se soma àqueles examinados por Carlos
Bastide Horbach: “The Constitution means what the Supreme Court says it
means.”
Trata-se de famosa frase do Chief Justice Charles
Evans Hughes. Tem sido traduzida, adaptada e repetida — de modo consciente e
inconsciente quanto às suas implicações — pela doutrina e jurisprudência
brasileiras: “A Constituição significa o que o Supremo Tribunal Federal diz que
ela significa”, ou “A Constituição é o que o Supremo diz que ela é.”
Em uma primeira leitura, é possível que a afirmação impressione e
pareça irretocável, sobretudo porque de há muito é tão disseminada quanto bem
aceita a ideia de que na guarda da observância da Constituição, está o Poder
Judiciário “acima dos demais Poderes, não havendo, pois, que falar-se, a esse
respeito, em independência de Poderes”, como explicou, com precisão habitual, o
ministro Moreira Alves no Mandado de Segurança 20.257/DF, julgado em 8 de
outubro de 1980.
Por outro lado, da circunstância de o Supremo na maior parte das
vezes efetivamente ter a última palavra sobre a constitucionalidade das leis,
não decorre a desnecessidade de a Corte tomar em consideração a compreensão
popular acerca da própria Constituição, muito antes pelo contrário.
Em um regime de governo verdadeiramente democrático, em que “todo
o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente” (cf. parágrafo único do artigo 1o da
Constituição brasileira de 1988), a frase do Chief Justice Hughes
não faz o menor sentido.
A Constituição — insista-se, ao menos em um regime democrático — é
obra do próprio povo ou de seus representantes para tanto eleitos, de modo a
instituir e disciplinar o exercício do poder pelo povo (aqui também:
diretamente ou por meio de representantes eleitos), inclusive no que se refere
ao seu significado.
A importância do impulso popular rumo a práticas mais democráticas
exerce papel essencial na evolução das instituições políticas, aí incluídas as
altas cortes de Justiça.
A Constituição americana de 1787, por exemplo, com o passar do
tempo, a bem da democracia, foi sendo paulatinamente aperfeiçoada em sua letra
e, sobretudo, em sua prática. A propósito, Robert Dahl aponta o que considera
sete elementos não democráticos contidos em seu texto original (DAHL,Robert. How
democratic is the American Constitution?, 2a edição,
New Haven: Yale University Press, 2003, p. 15-20):
1) escravidão: não proibia a escravidão, nem conferia poderes ao
Congresso para fazê-lo;
2) sufrágio: não garantia o direito ao sufrágio, o que deixava a
matéria para os estados. Assim, implicitamente, deixou em vigor a exclusão de
metade da população: mulheres, afro-americanos e nativos;
3) eleição presidencial: a eleição do Presidente estava separada
da maioria popular e do controle do Congresso, o que acabou descartado pela
crescente tendência democrática do povo americano;
4) escolha dos senadores: originalmente os senadores eram
escolhidos pelas assembleias dos estados, não pela população desses, o que
perdurou até a XVII Emenda, de 1913;
5) igual representação no Senado: o mesmo número de senadores para
cada estado, independentemente do número de habitantes desses, fornece um poder
desproporcional a algumas minorias privilegiadas;
6) Poder Judiciário: a Constituição falhou no limitar os poderes
da magistratura, que pode declarar inconstitucionais leis regularmente
aprovadas pelo Congresso e sancionadas pelo Presidente; e
7) poderes do Congresso: o Governo federal não tinha poder para
regular e controlar a economia.
O próprio Dahl registra que as gerações americanas subsequentes à
fundação, com aspirações mais democráticas, desencadearam uma revolução
democrática.
Vejam-se dois exemplos.
Primeiro: A escolha do presidente americano, não obstante ainda
sujeita formalmente à eleição indireta por meio do colégio eleitoral,
tornou-se, em sua prática, uma eleição direta. O colégio eleitoral foi pensado
para evitar a partidarização das eleições presidenciais. No entanto, não só a
eleição partidarizou-se desde muito cedo, como os 538 delegados que compõem o
colégio eleitoral americano passaram a ser escolhidos precisamente com base no
apoio dado a determinado candidato presidencial. Engendrou-se, com isso, um
sistema atípico e ritualizado de colher os votos dos estados para a
presidência. Porém, ainda embute o risco de um candidato com a maioria dos
votos populares perder a presidência se não vier a obter a maioria no colégio
eleitoral (risco que decorre da opção feita pela grande maioria dos estados de
conferir todas as respectivas vagas no colégio eleitoral apenas ao partido mais
votado, ou seja, sem repartição proporcional: “winner-take-all”).
Aconteceu em 2000 (Bushv. Gore) e três vezes antes (op. cit., p.
30-31)
Segundo: A superação do horror da escravidão passou pela Guerra de
Secessão (1860-1865), cujo resultado jurídico foi, justamente, emendar a
Constituição americana de 1787 para dar ao Congresso poder de legislar sobre o
assunto, abolindo a escravidão e integrando (inclusive com direitos políticos)
o afro-americano na sociedade americana (no silêncio da Constituição, a
competência era estadual, daí uma das razões do conflito entre estados). Isso
foi feito por meio das três Emendas da Reconstrução ou Restauração americana
(XIII, XIV e XV, ratificadas entre 1865 e 1870), devidas ao empenho do
presidente Abraham Lincoln (e que lhe custaram a vida).
No entanto, a Suprema Corte dos Estados
Unidos, em 1896, ao decidir o caso Plessy v. Ferguson, estabeleceu
a doutrina segregacionista do “separate but equal”. A segregação
apenas foi superada décadas após, no contexto do movimento pacifista que teve
ponto culminante no célebre discurso de Martin Luther King Jr., proferido
quando da marcha a Washington, em 28 de agosto de 1963. Alguns anos antes, em
1954, a Suprema Corte americana, ao decidir o caso Brown v. Board
of Education, superou o entendimento firmado no caso Plessy v. Ferguson.
Porém, ainda seria necessário o Civil Rights Act, de 1964 (a
propósito: WALDRON, Jeremy, The core of the case against judicial
review in The Yale Law Journal, n. 115, 2006, p. 1405). Assim como
Lincoln, King também deu a própria vida pela causa. Justamente por isso, a
revista Time, de 26 de agosto de 2013, alusiva aos cinquenta
anos da marcha de Washington, dedica sua capa a King, elevando-o à emblemática
condição de founding father: “Vivemos em um mundo que King
ajudou a criar. Ainda não vivemos no mundo que ele nos ajudou a sonhar.” (One
man in Time de 26 de agosto de 2013, p. 31).
São dois casos que mostram como as instituições políticas
constantes do texto constitucional podem e devem se amoldar ao
constitucionalismo democrático, aquele que vem do povo. Para tanto, concorrem
não apenas a Suprema Corte e — mais que ela — os demais poderes, mas, também,
sobretudo, a própria sociedade, o povo. Antes de um modelo especificamente
americano, esse é um modelo respeitoso ao regime democrático.
É por isso que uma boa interpretação constitucional, por mais
“nova” que seja (e sempre haverá uma “nova hermenêutica”), não pode estar
apoiada em uma única técnica de interpretação. Cass Sunstein, em obra tão
lúcida quanto importante, cujo título já é bastante expressivo no ponto — A
Constitution of many minds — toma em consideração três aproximações da
Constituição: i) a tradicionalista, ou seja, a consideração de práticas de
longa data como produto de muitas mentes, pois a Constituição não é um texto
“congelado”; ii) a popular, porque os juízes — em atitude de humildade — devem
tomar em consideração a opinião pública; e iii) a cosmopolita, pois convém a
uma Suprema Corte conhecer como tribunais análogos de outros países lidam com
as mesmas questões constitucionais. Sunstein reconhece a intensa controvérsia
sobre se a Suprema Corte americana deve prestar atenção à compreensão
estrangeira sobre interpretação constitucional (SUNSTEIN, Cass. A
Constitution of many minds: Why the founding document doens’t mean what it
meant before, Princenton: Princenton University Press, 2009, p. 15).
Talvez precisamente por isso, entre outros fatores, o “we the people” americano
venha perdendo apelo junto ao “people around the world”, para usar interessante
jogo de palavras constante do título de resenha de Adam Liptak acerca de
pesquisa acadêmica relativa ao declínio da influência da Constituição americana
sobre outros países (“We the People” loses appeal with people around the
world in The New York Times de 6 de fevereiro de
2012).
Em sentido diametralmente oposto ao da frase do Chief
Justice Hughes, vale citar conclusão de Larry Kramer (Constitucionalismo
popular e controle de constitucionalidade, Madrid: Marcial Pons, 2011,
p. 302): “(...) para controlar a Suprema Corte, necessitamos primeiro reclamar
a Constituição para nós mesmos. Isso significa repudiar publicamente os juízes
da Corte que dizem que eles, e não nós, possuem a máxima autoridade para dizer
o que significa a Constituição.”
É por isso mesmo que está corretíssimo o ministro Luís Roberto
Barroso quando, em 2 de setembro de 2013, ao reconhecer haver periculum
in mora para deferir liminar nos autos do Mandado de Segurança
32.326/DF, também tomou em consideração “a indignação cívica”.
Quando, em uma democracia, a Constituição é retirada do povo,
sonegada ao povo, como se ela não fosse dele (povo), só resta a nós, cidadãos
destituídos da nossa Constituição, fazer análise (constitucional) para, talvez,
convencermo-nos do impensável: a Constituição não é nossa, mas de alguns poucos
em quem sequer votamos. O perigo é alguém acabar convencido da inexistência do
parágrafo único do artigo 1o da Constituição ou de que
dele não consta a fórmula “representantes eleitos”.
José
Levi Mello do Amaral Júnior é professor de Direito Constitucional e doutor
em Direito do Estado pela USP, e procurador da Fazenda Nacional.
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