O episódio envolvendo a operação que trouxe clandestinamente ao Brasil o senador boliviano Roger Pinto Molina, articulada pelo ex-encarregado de negócios da missão brasileira na Bolívia, Eduardo Saboia, não foi um incidente isolado e tampouco o fruto de um rompante de insubordinação de um diplomata. Justamente em sentido contrário, tratou-se de “um episódio altamente simbólico”que ilustra um processo complexo de “derrocada institucional” do Itamaraty, agravado ainda pelo contexto de um Executivo sem agenda para a política externa e refratário à experiência e competência técnica de suas missões no exterior. Este é o pensamento de fontes do Ministério das Relações Exteriores, em Brasília, ouvidas ao longo dos meses de agosto e setembro pela revistaConsultor Jurídico.
Esse fenômeno de “opacidade institucional” pode elucidar as questões por trás da atitude de Saboia, garantem diplomatas. O vácuo de liderança e estratégia que levou o ex-encarregado de negócios a uma atitude severa tem origens profundas e envolvem uma gama distinta de fatores. O primeiro aspecto dessa crise está relacionado ao próprio Itamaraty, instituição que encontra dificuldades de se inserir na estrutura administrativa de Estado desde a promulgação da Constituição de 1988. “A instituição não se atualizou”, como foi dito à ConJur.
O outro fator diz respeito à posição da Bolívia no quadro da política externa brasileira. O país reflete, em particular, a falta de consistência da estratégia diplomática do Brasil para toda a América Latina. Trata-se, na visão de especialistas, de uma nação profundamente dividida culturalmente, com dificuldades de consolidação de uma identidade nacional. Como agravante, o comportamento imprevisível do governo do presidente Evo Morales e a tolerância do Executivo brasileiro com o governo boliviano por questões referentes meramente à conveniência política têm deixado o Itamaraty no vácuo provocado pela ausência de autonomia e autoridade. Sem espaço para tomar decisões, a diplomacia brasileira tem dificuldade de exercer seu papel em situações como a que envolvem, por exemplo, as empresas do Brasil na Bolívia.
O caso das empresas brasileiras naquele país é elucidativo. Independente de questões próprias à esfera da disputa comercial e dos erros que as companhias brasileiras possam vir a cometer, o fato é que as empresas do Brasil com presença na Bolívia têm sido constrangidas, postas à prova e, não raro, se encontram em situação de completa vulnerabilidade frente aos desmandos das autoridades bolivianas e à instabilidade institucional do país vizinho. O quadro parece não sensibilizar o Planalto. Alheio à realidade daquele país, o ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, sob o pretexto de sugerir que o Brasil deveria repensar seu modelo de desenvolvimento nacional, chegou a afirmar que as empresas transnacionais brasileiras têm um “comportamento subimperialista”.
A despeito das evidências, prevalecem os “desígnios imprevisíveis do Planalto”, como foi qualificado à ConJur. “É a burocracia de Estado tentando preservar as aparências”, disse.
A exemplo de cada vez mais setores da vida pública e privada no Brasil, o cerne dessa crise, tudo indica, deverá ser atraído para o Judiciário. É o que sugere, de um lado, a impetração de pedido de Habeas Corpus em favor do senador Roger Pinto Molina no Supremo Tribunal Federal. De outro lado, talvez caiba à Justiça manifestar-se sobre um conflito interno da política externa brasileira. “Não é só perda de credibilidade, mas do direito de estabelecer sua própria agenda. Em outros tempos, seria absurdo conceber que um diplomata tivesse que ir à Justiça para resolver uma questão que é de foro da estratégia da política diplomática”, foi dito à reportagem da ConJur em Brasília.
Centralismo
O centralismo no planejamento da política externa, com decisões desenhadas essencialmente com um fundo político e frequentemente alheias às preocupações de Estado, compromete a atuação da diplomacia como um todo, mas, no caso de vizinhos “complicados”, o prejuízo é patente. “A Bolívia não perdoa a indiferença”, diz uma fonte, sobre a lacuna de consistência e o descaso do governo brasileiro em relação ao intricado contexto do país vizinho.
Some-se também a prevalência de posturas ideologizadas e mesmo de uma visão romântica da Bolívia por políticos e autoridades do alto escalão, apesar do apelo do corpo diplomático brasileiro naquele país para que o Executivo estabeleça uma política clara e estrategicamente coerente para lidar com um vizinho tão complexo. A situação repete-se não só com as nações de fronteira, mas com toda a América Latina.
Posturas ideologizadas não se traduzem necessariamente em liderança, como se viu na chamada guerra das papeleiras, o conflito diplomático entre Argentina e Uruguai em virtude da instalação de duas fábricas de papel e celulose de origem finlandesa na margem oriental do Rio Uruguai. A Argentina acabou por rejeitar a intermediação do Brasil, proposta pelo então presidente Lula, sob a justificativa de que aquele era uma questão bilateral e também pela ausência de diretrizes estabelecidas pelo Mercosul para lidar com conflitos do tipo. O caso é considerado por alguns diplomatas e especialistas como uma das razões para a “implosão” do bloco regional.
Paralelo à frouxidão da política externa com a própria vizinhança, o Brasil, nos últimos anos, ensaiou movimentos ousados entre os chamados “grandes interlocutores globais”, como nos casos da negociação por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e a estratégia brasileira de se aproximar do Irã ainda no segundo mandato do governo Lula. Para fontes consultadas pela ConJur, enquanto que, na superfície, o que se tinha era uma política externa voltada para o “terceiro mundo”, que não se pautava pelos grandes agentes globais, no fundo, prevaleciam critérios arbitrários em prejuízo da tradição diplomática brasileira que sempre se impôs pelo preparo de seus diplomatas e o cunho estratégico. Ou seja, perdia-se, cada vez mais, a perspectiva de uma política externa que tinha como base se projetar, primeiramente, da relação estratégica com os vizinhos para, então, junto aos “grandes interlocutores globais”. No caso da Bolívia, em que a política externa precisa definir a estratégia para administrar os "interesses conflitantes" entre ambos os países, o quadro tornou-se insustentável frente a irresponsabilidade do governo na condução do episódio.
Direitos humanos
Ao passo em que as bandeiras do governo de Evo Morales iam “caindo uma a uma” — o indigenismo, o ambientalismo e, por fim, os direitos humanos — a diplomacia brasileira na Bolívia passou a lidar com o diálogo surdo entre ambos os chefes de Estado, com promessas vagas e evasivas desconsideradas de lado a lado, tão logo se encerravam as visitas oficiais. Nesse limbo, é que ocorriam involuções como o caso do senador de oposição boliviano Roger Pinto Molina, que, desde 8 de junho de 2012, vivia, em condição de asilado e em estado de cerco, na embaixada brasileira em La Paz.
O governo boliviano alega que o parlamentar pediu asilo para não ter que responder na Justiça do seu país por crimes financeiros calculados em pelo menos US$ 1,7 milhões. Apesar das condições de alojamento precárias, problemas de saúde do deputado e provocações de autoridades policiais bolivianas, Brasília não quis interferir, mesmo com a resistência do governo boliviano em proceder com o salvo-conduto, com fins de avançar com o asilo territorial.
Outro ponto que ilustra as contradições e a debilidade da relação Brasil-Bolívia foi a resposta do governo brasileiro ao ser informado da entrada de Molina no Brasil. Sucederam às ameaças informais de suspensão de asilo e extradição, a transferência do chanceler Antonio Patriota, a remoção do embaixador Marcel Biato e de Eduardo Saboia e a abertura de uma sindicância para avaliar o caso.
Porém, em paralelo, ocorriam falhas no nível burocrático mais elementar, como, por exemplo, o governo não se manifestar oficialmente sobre a presença do senador boliviano em território nacional. Além de colocar em dúvida o próprio cumprimento da decisão do asilo, o governo brasileiro não fez qualquer declaração oficial sobre a chegada e a presença Molina no país. Coube ao próprio político ter de ir ao cartório, há algumas semanas, para, enfim, fazer uma declaração juramentada, com a finalidade de obter alguma garantia, uma documentação sobre sua condição de asilado.
O documento será usado, assim, como elemento da defesa de Saboia no processo administrativo. O diplomata é representando pelos advogados Pedro Paulo de Medeiros e Ophir Cavalcante Júnior. O constitucionalista Ives Gandra e o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Velloso chegaram a se oferecer para representar Eduardo Saboia, por simpatia pela causa do diplomata.
O mito do Rio Branco
Quanto ao referido quadro de desgaste institucional do Itamaraty, o período correspondente a promulgação da Carta de 1988 é apontado como a época em que o Ministério das Relações Exteriores começou a enfrentar as dificuldades de se inserir no modelo de padronização do Poder Público brasileiro pós-1970. A instituição não fez, nas palavras de uma das fontes consultadas, a "transição" para o novo modelo de Estado, pautado pela transparência e a diálogo com uma opinião pública cada vez mais atenta à agenda internacional e seu impacto doméstico.
Como "não houve decisões" do próprio órgão em relação a esse novo contexto institucional, uma série de questões sobre a natureza da carreira não foi enfrentada. O resultado, apontam, vai além do despreparo do Itamaraty para lidar com a opinião pública, mas envolve a própria transformação do perfil do diplomata brasileiro. Se antes se orgulhavam de ser "generalistas" preparados com excelência, uma referência para a diplomacia de outros países, a complexidade da agenda externa de uma potência emergente como é o Brasil hoje, exige conhecimentos especializados e, sobretudo, descentralização e celeridade dos processos decisórios.
Trata-se de uma mudança mais profunda no próprio perfil da carreira, que vai de encontro ao chamado mito do Rio Branco, do diplomata que saí em missão como sacerdotes faziam, "como um estratega e intérprete da vontade do Estado". A carreira mudou. Não são só mais diplomatas, são também diplomatas que permanecem mais tempo na carreira e uma geração com uma formação distinta, já que mudou até mesmo o perfil de treinamento do Instituto Rio Branco.
Nas palavras de uma fonte consultada pela ConJur, o Itamaraty corre o risco de se tornar um "funcionalismo de 2° escalão", onde são raros os casos de diplomatas que ascendem aos cargos de direção e projeção política na carreira. "A expressão acabada disso é que abdicamos pouco a pouco de nossa tarefa mais nobre e fundamental, a de intérprete", avaliou.
Conjur / Portal do Holanda
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