Consequências
políticas da estagnação econômica no Brasil
Paulo Roberto de Almeida
Não é
difícil reconhecer sinais de decadência, de retrocesso, ou mesmo de simples
estagnação, na vida do país: baixo crescimento econômico, inovação declinante,
dívidas crescendo, desigualdades persistentes ou em expansão, população em
processo de envelhecimento, comportamentos desviantes ou antissociais. O que
pode ter acontecido de errado? O mais provável é que as instituições nacionais
estejam enfrentando um processo de degeneração contínua, o que se traduz em
retrocesso no seu funcionamento e em nítido recuo na sua capacidade de
organizar a vida do país.
E quais
são as instituições que podem estar atravessando esse declínio? Elas são: o governo
representativo, os mercados livres, o Estado de direito e a própria sociedade
civil. Estas são as instituições fundamentais que construíram a prosperidade e
o bem-estar da nação e que podem agora caminhar para um itinerário de
estagnação ou até mesmo de retrocesso. Estou falando do Brasil, certo?
Não
exatamente. Estou lendo a orelha do livro de Niall Ferguson, The Great Degeneration: How Institutions Decay and Economies Die
(New York: Penguin Press, 2013, 176 p; ISBN: 978-1-59420-545-3), que trata
exclusivamente das sociedades avançadas do Ocidente capitalista, Estados Unidos
e Europa ocidental, basicamente. Para o conhecido historiador econômico, é a
degeneração institucional que está por trás da estagnação econômica e do
declínio geopolítico que dela decorrem. O livro analisa as causas dessa
degeneração e suas profundas consequências para o modo de vida, o bem-estar e o
futuro das populações dessas nações avançadas econômica e tecnologicamente e
dispondo, ainda, de níveis de vida invejáveis para todos os demais povos do
planeta. Mas os sinais se acumulam de negligência e de complacência com o lento
declínio, observável a olhos vistos em alguns países, e detectável em diversos
estudos de especialistas econômicos. O Ocidente, para Ferguson, está
desperdiçando a herança institucional que erigiu durante séculos e que foi
responsável pela sua preeminência mundial no último meio milênio. Para reverter
a ruptura dos seus padrões civilizatórios, Ferguson recomenda reformas radicais
e lideranças à altura dos desafios.
Pois bem,
o que isso tem a ver com o Brasil? Em 2002, em plena campanha eleitoral que se
traduziu na mais importante mudança política já ocorrida na história
republicana do Brasil em condições de pleno funcionamento democrático – ou
seja, fora de golpes militares ou de revoltas civis – e que se traduziu pela
vitória do principal partido de oposição ao regime em vigor, eu redigia os
parágrafos finais de um livro que seria publicado no início de 2003, logo em
seguida à posse do novo governo: A Grande
Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil (São
Paulo: Códex, 2003, 200 p.; ; ISBN: 85-7594-005-8). Nele, escrito
antes mesmo dos dois turnos das eleições de outubro daquele ano, eu já previa
com segurança a vitória do candidato opositor e traçava um roteiro do que iria
acontecer e do que se esperava que ocorresse a partir de 2003. Eu tinha
certeza, por exemplo, da ruptura “neoliberal” no terreno econômico – obviamente
em relação ao que recomendavam os economistas “aloprados” do PT, a maior parte
ainda imbuídos daquela rústica esquizofrenia econômica que ainda caracteriza
boa parte da esquerda acadêmica no Brasil – e achava que os novos donos do
poder – aqui sem qualquer ilusão – iriam realmente introduzir um novo estilo de
fazer política no Brasil, não basicamente ético, como proclamava sua propaganda
mistificadora, mas em todo caso diferente, e que tudo isso poderia ser um sinal
promissor de uma grande transformação na vida da nação.
Como vários outros
observadores, fui confirmado, para melhor, nas minhas antecipações econômicas
e, como a maior parte dos analistas honestos, fiquei chocado, num cenário bem
pior do que se poderia imaginar, com as fraudes políticas, o reino de mentiras e
todos os crimes comuns logo cometidos pela nomenklatura que se apossou do poder
naquela conjuntura. Não que eu tenha ficado absolutamente surpreendido com a
possibilidade dessas transgressões, mas todos fomos surpreendidos pela
extensão, amplitude e profundidade das falcatruas cometidas pelo grupo que
pretendia reintroduzir a ética na vida política do Brasil. Ou seja, não foi uma
surpresa total – pelo menos para os que acompanharam a vida política, sindical
e a trajetória da esquerda no país, desde os anos 1960 – mas foi chocante
descobrir quão baixo era possível descer na degeneração moral e nas patifarias
políticas em tão pouco tempo.
Paradoxalmente, esse livro,
que foi o que me deu maior prazer na redação e na reorganização de alguns
materiais que já tinham sido preparados nos meses anteriores ao ano eleitoral, foi,
no entanto, o que menor sucesso de público teve, provavelmente porque eu me
encontrava no exterior no momento de sua publicação; depois, já de volta ao
Brasil, e trabalhando no coração do Estado, não podia defender abertamente
certas teses que foram sendo confirmadas ao longo dos meses e anos seguintes.
Estruturado em três partes, ele tratava, em primeiro lugar, de uma nova forma
de fazer política no Brasil – mas eu estava apenas imaginando, e sugerindo medidas
de correção de nossos principais defeitos, se eu mesmo fosse presidente – e,
numa segunda parte, se ocupava da economia: nela eu já previa, em quatro
capítulos revisionistas, a orientação abertamente “neoliberal” da gestão
econômica, tese que me rendeu muitos apupos em seminários acadêmicos de que
participei, para desgosto de certa esquerda alienada (como, por exemplo, no
encontro de ciências sociais da Anpocs, em outubro de 2003). Numa terceira
parte, eu tratava de temas internacionais, num sentido amplo: o fim do
socialismo e suas consequências para o Brasil, a globalização e as negociações
econômicas internacionais e regionais, com algum destaque para a malfadada Alca
(que pronto seria implodida pelos novos governantes).
Não pretendo, obviamente, mais
de dez anos depois de redigido aquele livrinho polêmico, retomar suas teses
principais para confirmar ou corrigir meus argumentos em torno da economia, da
política ou das relações internacionais do Brasil. Mas, na onda de euforia
continuada – e bastante reforçada por doses maciças de propaganda enganosa – com
o “sucesso” do governo em vigor, minha intenção é a de examinar, com minha lupa
impiedosa e meu bisturi iconoclasta, o que eu considero ser, de fato, um
retrocesso institucional, um dos mais profundos em nossa história republicana,
e que não tem a ver, apenas, com o baixo crescimento e a perda de dinamismo da
economia nacional, e sim com fatores políticos alimentados e reforçados pelo
partido no poder. Meu objetivo é puramente analítico, uma vez que não pertenço,
nem nunca pertencerei, a qualquer partido ou agrupamento político, incapaz que
sou de me submeter à disciplina de qualquer programa que possa ser elaborado
por algum movimento determinado, de qualquer orientação política ou ideológica
que seja. Sou por demais libertário para me dobrar às conveniências eleitorais
de qualquer liderança política, pretendendo, ao contrário, manter minha
independência de pensamento seja qual for o partido ou a coalizão que ocupar o
poder, agora em 2o14 ou mais adiante.
O que tenciono fazer, nos
meses de campanha eleitoral, é justamente me libertar da ditadura dos eventos
correntes e das pesquisas de opinião para refletir sobre o que é o Brasil
atualmente, como ele chegou ao estado atual de retrocesso institucional, e como
ele poderia avançar, no terreno econômico, político e educacional, com base em
análises totalmente descompromissadas com as plataformas eleitorais e
resolutamente orientadas para uma crítica radical da atual situação de erosão
moral e decadência política em nosso país. Para isso, não necessito do modelo
analítico de Niall Ferguson para poder examinar o caso do Brasil; mas acredito,
sim, que a clara decadência do governo representativo, o retrocesso visível em
relação às reformas econômicas que vínhamos experimentando desde os anos 1990,
a perda do sentido do respeito à lei e a deformação completa da noção de
sociedade civil, sob a nova hegemonia dos “companheiros”, são elementos
importantes do que chamei de grande retrocesso no Brasil. A esses quatro
grandes fatores podemos acrescentar diversos outros, entre eles aquilo que eu
também já chamei de “mediocrização” do estabelecimento universitário no Brasil,
que na verdade percorre toda a cadeia do ensino, do primário ao pós-doutorado,
em especial nas ciências sociais e humanidades (mas a que não estão imunes
outras vertentes da pesquisa especializada. Ela é obra, em grande medida, das
“saúvas freireanas”, ou seja aquela classe de pedagogos deformados, inspirados
na obra de um dos nossos grandes idiotas, Paulo Freire, e que o elevaram à
condição de “patrono da educação brasileira”.
O Brasil
tem, por certo, muitas outras causas que explicam sua atual decadência
institucional e seu renitente retrocesso econômico, que poderão ser examinadas
com maior ou menor grau de detalhe. O importante seria destacar, neste momento,
meu compromisso com uma análise empiricamente embasada, meu engajamento com um
trabalho intelectual voltado para a busca de soluções factíveis, não utópicas
(como em geral a esquerda costuma fazer), para os problemas do Brasil, e a
irrenunciável postura de independência em relação a quaisquer forças ou
movimentos voltados para a luta político-partidária e a conquista do poder.
Sequer aspiro à condição de “conselheiro do príncipe”, pois sou um péssimo
conselheiro – devido a minha brutal sinceridade – e não pretendo servir a nenhuma
liderança política. Minha vocação está unicamente voltada para o estudo e a compreensão
dos problemas brasileiros e a aplicação das soluções mais racionais, do ponto
de vista da eficiência econômica e da justiça social, para os desafios
detectados. Não tenho nenhuma ilusão de que quaisquer propostas que eu possa
ter venham a ser implementadas, não que elas sejam exatamente utópicas, mas
porque o Brasil carece de estadistas que possam liderar um processo de reformas
que julgo necessário e até indispensável se quisermos inverter a nossa trajetória
atual de decadência e de retrocesso.
Os dados
estão lançados em face de um cenário ainda altamente incerto em seus
desdobramentos eleitorais, e o meu roteiro de navegação ainda está sendo
traçado. Em mais alguns meses veremos se o diário de bordo traz algumas
propostas inteligentes. Ao trabalho, daqui para a frente.
Hartford, 14 de Dezembro de 2013.
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