The Drunkeynesian, quarta-feira, 2 de julho de 2014
"As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender" (Paulinho da Viola em Coisas do mundo, minha nêga)
Nessa pausa da Copa, aproveite o tempo para ler este paper de Peter Temin (professor emérito do MIT), uma revisão, em linguagem simples e acessível, da evolução da "Nova História Econômica" (que também atende pelo nome de cliometria.) A cliometria é produto tanto da quantificação da economia, cujo marco inicial foi a publicação do The Foundations of Economic Analysis, de Paul Samuelson, em 1947 (Samuelson tinha 32 anos, mortais—e é uma das celebridades que compartilham o dia de aniversário com este que vos escreve, como Raí e os gêmeos De Boer), quanto da evolução das técnicas econométricas, da disponibilidade de dados e do poder dos computadores para processá-los.
Temin destaca a pesquisa recente de Robert C. Allen, Hans-Joachim Voth e Nico Voigtländer (os dois últimos são coautores), que tenta responder a pergunta mais clássica de história econômica: por que a Revolução Industrial ocorreu na Inglaterra no século XVIII? A narrativa que emerge desses trabalhos é fascinante. Vou tentar resumir em um parágrafo (já me perdoem pela heresia):
A Peste Negra, no século XIV, foi a mãe de todos os choques exógenos: surgiu inesperadamente e, em pouco tempo, reduziu drasticamente a oferta de mão de obra na Europa. Como consequências, para cultivar plantações cujo tamanho não mudou: i) salários subiram, ii) aumentaram os incentivos para adoção de novas tecnologias, iii) mulheres passaram a fazer parte da força de trabalho (tanto pela demanda por trabalhadores quanto pela adoção de tecnologias que diminuíram a necessidade de força física para o trabalho agrícola.) Com isso, mulheres passaram a se casar mais tarde e a ter menos filhos. A população passou a crescer mais lentamente, o que manteve a oferta de mão de obra restrita e os salários mais altos. Começava a se romper a "armadilha malthusiana": as famílias, menores, passaram a dispor de mais renda e puderam incrementar a alimentação (comer mais proteína animal), que, por sua vez, seguiu alterando o padrão da agricultura. A Revolução Industrial surge como uma tentativa de produtores reduzirem custos (já que empregar gente ficou permanentemente mais caro), alimentada pela criatividade de pequenos empreendedores que passaram a ter renda acima do nível de subsistência e tempo livre para experimentar (falta a peça do quebra-cabeça que explica o porquê da Inglaterra e não outro país europeu: energia barata, segundo Allen.)
Temin liga a história do desenvolvimento da Europa (depois replicada para outros continentes) aos problemas atuais de economia do desenvolvimento. A diferença entre a Europa pobre, pré-Revolução Industrial e a Europa rica que veio depois é similar à diferença corrente entre países pobres e países ricos: estes pagam salários maiores e usam tecnologia mais avançada. Ambos os fatores são, claro, interligados: salários mais altos justificam o investimento em tecnologia, e o aumento de produtividade sustenta níveis de renda maiores. A dificuldade está na transição: como fazê-la em (muito) menos que 400 anos e sem depender de um enorme choque exógeno. Se buscarmos respostas na história de sucesso da Europa, um bom começo passa por inclusão de mais mulheres na força de trabalho e redução da taxa de fertilidade.
Corta para o Brasil de hoje: um dos fatores mais importantes e menos alardeados da história econômica do país desde a redemocratização é uma profunda transição demográfica, que segue surpreendendo nós, pobres economistas. A taxa de fertilidade caiu muito rápido: lembro de um texto de Roberto Campos, acho que do início dos anos 1980 (estou sem o livro aqui, é um dos primeiros do Ensaios Imprudentes, salvo engano) que a listava como "o" principal problema do país. Tal problema desapareceu em pouco mais de uma geração: em 1980 esperava-se que cada mulher tivesse 4 filhos durante sua vida; hoje, menos de 2. Em mais uma geração, a população total do país deve começar a declinar, a partir de um pico de 220 milhões. A surpresa mais recente, e que ajuda a explicar porque o desemprego segue baixo mesmo após anos de atividade econômica fraca e salários subindo, é o baixo crescimento da população economicamente ativa (está bem explicado neste artigo do Marcelo Muinhos). Não só a população total cresce pouco como também, aparentemente, demora-se mais para entrar no mercado de trabalho, já que o aumento da renda das famílias permite financiar mais anos de educação e diminui a pressão para que jovens comecem a trabalhar o quanto antes.
A tragédia do Brasil recente é a produtividade, que é frequentemente ligada à adoção de tecnologia. Além dos dados, anedotas não faltam: os ônibus nas grandes cidades ainda empregam cobradores, o enorme contingente de empregadas domésticas, manobristas, garçons, frentistas, recepcionistas, porteiros... Claro que não se trata de simplesmente extinguir esse tipo de trabalho, mas criar condições para que os que se empregam nele consigam trabalhos melhores e sejam substituídos por tecnologia e processos mais avançados (exemplo: grandes prefeituras poderiam aproveitar o mercado de trabalho aquecido e criar projetos para acabar com cobradores de ônibus em poucos anos, oferecendo um pacote de alguns meses de salário e cursos de qualificação. Há, claro, uma briga necesária a ser comprada com sindicatos e afins.) É preciso criar um círculo virtuoso onde empregadores concluam que só conseguirão ser competitivos se diminuírem o uso de mão de obra, invistam em tecnologia e a mão de obra dispensada, suficientemente qualificada, consiga outros empregos, criados por novos investimentos visando um mercado consumidor maior e com mais poder aquisitivo. Mais fácil falar do que fazer, evidentemente, mas boa parte das condições de uma "revolução industrial contemporânea" estão dadas pela transição demográfica descrita acima. Essas condições precisam ser aproveitadas antes que prevaleça a história do "país que envelheceu antes de ficar rico."
A grande conquista dos governos no PT (muito ajudados por um grande choque de termos de troca entre 2002 e 2012, é sempre bom reconhecer), e que, na minha visão, é totalmente coerente com a história do partido, foi o aumento consistente dos salários reais. Como isso ocorreu com produtividade em queda, dependeu de uma grande redistribuição que está culminando, acredito, em taxas de lucro das empresas que não justificam novos investimentos (além da inflação persistentemente alta.) Se isso está correto, a política econômica dos próximos anos deve ser fortemente voltada para o lado da oferta, assumindo que, corretamente, as conquistas recentes em salários não podem retroceder e serão naturalmente defendidas pelos enormes grupos de interesse que se criaram em torno delas (a obviedade aparente do suicídio eleitoral que seria defender a desindexação do salário mínimo é um bom indicador da força dessa defesa.) Acho que, dentro da conjuntura, há pouco espaço para mais "trabalhismo" e muito para um "desenvolvimentismo" que tem pouco a ver com o significado que tem se dado à palavra. Criá-lo vai requerer muita criatividade e esforço de economistas e políticos que, por enquanto, ainda precisam gastar tempo e energia discutindo e pensando em questões como controle da inflação e disciplina fiscal.
Outros links:
—O paper de Voth e Voigtländer;
—Um resumo da pesquisa de Robert C. Allen;
—Se não conseguirem acessar o Temin no NBER, uma alternativa.
Nessa pausa da Copa, aproveite o tempo para ler este paper de Peter Temin (professor emérito do MIT), uma revisão, em linguagem simples e acessível, da evolução da "Nova História Econômica" (que também atende pelo nome de cliometria.) A cliometria é produto tanto da quantificação da economia, cujo marco inicial foi a publicação do The Foundations of Economic Analysis, de Paul Samuelson, em 1947 (Samuelson tinha 32 anos, mortais—e é uma das celebridades que compartilham o dia de aniversário com este que vos escreve, como Raí e os gêmeos De Boer), quanto da evolução das técnicas econométricas, da disponibilidade de dados e do poder dos computadores para processá-los.
Temin destaca a pesquisa recente de Robert C. Allen, Hans-Joachim Voth e Nico Voigtländer (os dois últimos são coautores), que tenta responder a pergunta mais clássica de história econômica: por que a Revolução Industrial ocorreu na Inglaterra no século XVIII? A narrativa que emerge desses trabalhos é fascinante. Vou tentar resumir em um parágrafo (já me perdoem pela heresia):
A Peste Negra, no século XIV, foi a mãe de todos os choques exógenos: surgiu inesperadamente e, em pouco tempo, reduziu drasticamente a oferta de mão de obra na Europa. Como consequências, para cultivar plantações cujo tamanho não mudou: i) salários subiram, ii) aumentaram os incentivos para adoção de novas tecnologias, iii) mulheres passaram a fazer parte da força de trabalho (tanto pela demanda por trabalhadores quanto pela adoção de tecnologias que diminuíram a necessidade de força física para o trabalho agrícola.) Com isso, mulheres passaram a se casar mais tarde e a ter menos filhos. A população passou a crescer mais lentamente, o que manteve a oferta de mão de obra restrita e os salários mais altos. Começava a se romper a "armadilha malthusiana": as famílias, menores, passaram a dispor de mais renda e puderam incrementar a alimentação (comer mais proteína animal), que, por sua vez, seguiu alterando o padrão da agricultura. A Revolução Industrial surge como uma tentativa de produtores reduzirem custos (já que empregar gente ficou permanentemente mais caro), alimentada pela criatividade de pequenos empreendedores que passaram a ter renda acima do nível de subsistência e tempo livre para experimentar (falta a peça do quebra-cabeça que explica o porquê da Inglaterra e não outro país europeu: energia barata, segundo Allen.)
Temin liga a história do desenvolvimento da Europa (depois replicada para outros continentes) aos problemas atuais de economia do desenvolvimento. A diferença entre a Europa pobre, pré-Revolução Industrial e a Europa rica que veio depois é similar à diferença corrente entre países pobres e países ricos: estes pagam salários maiores e usam tecnologia mais avançada. Ambos os fatores são, claro, interligados: salários mais altos justificam o investimento em tecnologia, e o aumento de produtividade sustenta níveis de renda maiores. A dificuldade está na transição: como fazê-la em (muito) menos que 400 anos e sem depender de um enorme choque exógeno. Se buscarmos respostas na história de sucesso da Europa, um bom começo passa por inclusão de mais mulheres na força de trabalho e redução da taxa de fertilidade.
Corta para o Brasil de hoje: um dos fatores mais importantes e menos alardeados da história econômica do país desde a redemocratização é uma profunda transição demográfica, que segue surpreendendo nós, pobres economistas. A taxa de fertilidade caiu muito rápido: lembro de um texto de Roberto Campos, acho que do início dos anos 1980 (estou sem o livro aqui, é um dos primeiros do Ensaios Imprudentes, salvo engano) que a listava como "o" principal problema do país. Tal problema desapareceu em pouco mais de uma geração: em 1980 esperava-se que cada mulher tivesse 4 filhos durante sua vida; hoje, menos de 2. Em mais uma geração, a população total do país deve começar a declinar, a partir de um pico de 220 milhões. A surpresa mais recente, e que ajuda a explicar porque o desemprego segue baixo mesmo após anos de atividade econômica fraca e salários subindo, é o baixo crescimento da população economicamente ativa (está bem explicado neste artigo do Marcelo Muinhos). Não só a população total cresce pouco como também, aparentemente, demora-se mais para entrar no mercado de trabalho, já que o aumento da renda das famílias permite financiar mais anos de educação e diminui a pressão para que jovens comecem a trabalhar o quanto antes.
A tragédia do Brasil recente é a produtividade, que é frequentemente ligada à adoção de tecnologia. Além dos dados, anedotas não faltam: os ônibus nas grandes cidades ainda empregam cobradores, o enorme contingente de empregadas domésticas, manobristas, garçons, frentistas, recepcionistas, porteiros... Claro que não se trata de simplesmente extinguir esse tipo de trabalho, mas criar condições para que os que se empregam nele consigam trabalhos melhores e sejam substituídos por tecnologia e processos mais avançados (exemplo: grandes prefeituras poderiam aproveitar o mercado de trabalho aquecido e criar projetos para acabar com cobradores de ônibus em poucos anos, oferecendo um pacote de alguns meses de salário e cursos de qualificação. Há, claro, uma briga necesária a ser comprada com sindicatos e afins.) É preciso criar um círculo virtuoso onde empregadores concluam que só conseguirão ser competitivos se diminuírem o uso de mão de obra, invistam em tecnologia e a mão de obra dispensada, suficientemente qualificada, consiga outros empregos, criados por novos investimentos visando um mercado consumidor maior e com mais poder aquisitivo. Mais fácil falar do que fazer, evidentemente, mas boa parte das condições de uma "revolução industrial contemporânea" estão dadas pela transição demográfica descrita acima. Essas condições precisam ser aproveitadas antes que prevaleça a história do "país que envelheceu antes de ficar rico."
A grande conquista dos governos no PT (muito ajudados por um grande choque de termos de troca entre 2002 e 2012, é sempre bom reconhecer), e que, na minha visão, é totalmente coerente com a história do partido, foi o aumento consistente dos salários reais. Como isso ocorreu com produtividade em queda, dependeu de uma grande redistribuição que está culminando, acredito, em taxas de lucro das empresas que não justificam novos investimentos (além da inflação persistentemente alta.) Se isso está correto, a política econômica dos próximos anos deve ser fortemente voltada para o lado da oferta, assumindo que, corretamente, as conquistas recentes em salários não podem retroceder e serão naturalmente defendidas pelos enormes grupos de interesse que se criaram em torno delas (a obviedade aparente do suicídio eleitoral que seria defender a desindexação do salário mínimo é um bom indicador da força dessa defesa.) Acho que, dentro da conjuntura, há pouco espaço para mais "trabalhismo" e muito para um "desenvolvimentismo" que tem pouco a ver com o significado que tem se dado à palavra. Criá-lo vai requerer muita criatividade e esforço de economistas e políticos que, por enquanto, ainda precisam gastar tempo e energia discutindo e pensando em questões como controle da inflação e disciplina fiscal.
Outros links:
—O paper de Voth e Voigtländer;
—Um resumo da pesquisa de Robert C. Allen;
—Se não conseguirem acessar o Temin no NBER, uma alternativa.
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