Uma esperança argentina
Mario Vargas Llosa
El País, 1/11/2015
Os resultados das eleições de domingo passado na Argentina desmentiram todas as pesquisas de opinião segundo as quais o candidato Daniel Scioli, apoiado pela chefa de Estado Cristina Fernández de Kirchner, ganharia no primeiro turno. E abriram a possibilidade de que o país, que já foi uma espécie de farol da América Latina, saia da decadência econômica e política em que se afundou há mais de meio século e recupere o dinamismo e a criatividade que no passado fizeram dele um país do Primeiro Mundo.
A condição é que no segundo turno eleitoral, em 22 de novembro, Mauricio Macri vença e o eleitorado confirme a rejeição frontal do primeiro turno ao kirchnerismo, um dos mais demagógicos e corruptos ramos dessa quimera indecifrável chamada peronismo, um sistema de poder semelhante ao antigo PRI mexicano, no qual cabem todas as variantes do espectro ideológico, da extrema direita à extrema esquerda, passando por todos os matizes intermediários.
A novidade que Macri encarna não consiste tanto nas ideias modernas e realistas do seu programa, na sua clara vocação democrática, nem na sólida equipe de plano de Governo que reuniu, e sim em que pela primeira vez o eleitorado argentino tem agora a oportunidade de votar por uma efetiva alternativa ao peronismo, o sistema que conduziu ao empobrecimento e ao populismo mais caótico e retardatário o país mais culto e com maiores recursos da América Latina.
Não será fácil, certamente, mas (pela primeira vez em muitas décadas) é de fato possível. A vitória de María Eugenia Vidal, de inequívocos créditos liberais, nas eleições para o Governo provincial de Buenos Aires, tradicional bastião peronista, é um indício claro do desencanto de um vasto setor popular com uma política que, por trás da aparência de medidas de “justiça social”, antiamericanismo e pró-chavismo, fez a inflação disparar, reduziu drasticamente os investimentos estrangeiros, abalou a credibilidade financeira do país em todos os mercados mundiais e deixou a Argentina à beira da recessão.
O sistema que a senhora Kirchner encarna vai se defender com unhas e dentes, como é natural, e já é um indício do que pode vir a acontecer o fato de, no domingo passado, o Governo ter permanecido mudo, sem anunciar os resultados, por mais de seis horas após conhecer o escrutínio, logo depois de ter prometido que o tornaria público imediatamente. A possibilidade de fraude está sempre aí, e a única maneira de esconjurá-la, para a aliança de partidos que apoia Macri, seria garantir a presença em todas as seções eleitorais de fiscais que defendam o voto genuíno e – se houver – denunciem sua manipulação.
Dois fatos notáveis das eleições de 25 de outubro são os seguintes: Macri aumentou seu cabedal eleitoral em quase 1,7 milhão de votos, e o número de eleitores cresceu de maneira espetacular, de 72% dos inscritos na eleição anterior para um pouco mais de 80% nesta. A conclusão é evidente: um setor importante do eleitorado, até agora indiferente ou resignado perante o status quo, desta vez, renunciando ao conformismo, se mobilizou e foi votar, convencido de que seu voto poderia mudar as coisas. E, de fato, assim foi. E discretamente, sem anunciar de antemão, por prudência ou temor a possíveis represálias do regime. Daí o pavoroso tropeço das pesquisas que anunciavam um triunfo categórico de Scioli, o candidato governista, no primeiro turno. Mas em 22 de novembro não ocorrerá o mesmo: o poder kirchnerista conhece os riscos que corre com um triunfo da oposição e acionará todas as alavancas ao seu alcance, que são muitas – a intimidação, o suborno, as falsas promessas, a fraude – para evitar uma derrota. Resta esperar que o setor mais saudável e democrático dos peronistas dissidentes, que contribuíram de maneira decisiva para castigar o kirchnerismo, não se deixe deslumbrar com os chamados à unidade partidária (que não existe há muito tempo) e não desperdice esta oportunidade de corrigir um rumo político que devolveu a Argentina a um subdesenvolvimento terceiro-mundista que ela não merece.
O fenômeno peronista é mais misterioso que o do povo alemão abraçando o nazismo
Não merece pela variedade e quantidade de recursos do seu solo, um dos mais privilegiados do mundo, pelo alto nível de integração da sua sociedade e por sua elevada cultura. Quando eu era criança, meus amigos do bairro de Miraflores, em Lima, sonhavam em se formar profissionalmente não nos Estados Unidos nem na Europa, e sim na Argentina. Esta ainda tinha na época um sistema de educação exemplar, que havia erradicado o analfabetismo – um dos primeiros países a conseguirem isso – e que o mundo inteiro tinha como modelo. A boa literatura e os filmes mais populares da minha infância boliviana e adolescência peruana vinham de editoras e produtoras argentinas, e as companhias de teatro portenhas percorriam todo o continente nos deixando a par das obras de Camus, Sartre, Tennessee Williams, Arthur Miller, Valle Inclán et cetera.
O empobrecimento sistemático do país multiplicou a desigualdade e as fraturas sociais
É verdade que nem sequer os países mais cultos estão imunizados contra as ideologias populistas e totalitárias, como demonstram os casos da Alemanha e Itália. Mas o fenômeno do peronismo é, ao menos para mim, mais misterioso ainda que o do povo alemão abraçando o nazismo, e o italiano, o fascismo. Não há dúvida alguma de que a antiga democracia argentina – a da república oligárquica – era defeituosa e elitista, e que eram necessárias reformas que estendessem as oportunidades e o acesso à riqueza aos setores operários e camponeses. Mas o peronismo não levou a cabo essas reformas, porque sua política estatista e intervencionista paralisou o dinamismo da sua vida econômica e introduziu privilégios e sinecuras partidárias junto com o gigantismo estatal. O empobrecimento sistemático do país multiplicou a desigualdade e as fraturas sociais. O surpreendente é a fidelidade de uma enorme massa de argentinos a um sistema que, claramente, só favorecia uma nomenclatura política e seus aliados do setor econômico, uma pequena oligarquia rentista e privilegiada. Os golpes e as ditaduras militares contribuíram, sem dúvida, para manter viva a ilusão peronista.
Recordo minha surpresa na primeira vez que fui à Argentina, em meados dos anos sessenta, e descobri que em Buenos Aires havia mais teatros que em Paris, onde vivia. Desde então acompanhei sempre, com tanta fascinação quanto pasmo, as vicissitudes de um país que parecia empenhado em ignorar todas as vozes sensatas que queriam reformá-lo e que, em sua vida política, não deixa de perseverar no erro. Talvez por isso, comemorei com entusiasmo juvenil no domingo, dia 25, os resultados deste primeiro turno. E, cruzando os dedos, faço votos para que em 22 de novembro uma maioria inequívoca de eleitores argentinos demonstre a mesma lucidez e valentia, levando ao poder quem representa a verdadeira mudança com liberdade.
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© Mario Vargas Llosa, 2015.
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