Antecipo aqui, por razões de viagem, o texto completo de meu ensaio sobre o historiador-diplomata, aos 200 anos de seu nascimento, ensaio que está sendo publicado em duas partes pelo boletim Mundorama. Parte do texto deve integrar ensaio maior que estou preparando sobre o mesmo tema-título, destinado a um livro coletivo sobre o personagem.
O pensamento estratégico de Francisco Adolfo de
Varnhagen
Paulo Roberto de Almeida
A data de 17 de fevereiro
de 2016 marca o ducentésimo aniversário do nascimento do diplomata, homem
público e patrono da historiografia brasileira Francisco Adolfo de Varnhagen,
nascido nesse dia de 1816 em Sorocaba, SP. Filho de um engenheiro alemão, que
tinha vindo ao Brasil logo após a transferência da corte portuguesa para
iniciar a fundição de ferro no país, ele se formou em Portugal, para onde tinha
ido com oito anos; concluiu o curso de engenharia militar em 1834. Desde cedo,
inclinou-se para os estudos de história; suas pesquisas na Torre do Tombo
permitiram-lhe a identificação de Gabriel Soares de Sousa como o autor do até
então anônimo Roteiro do Brasil, a
primeira descrição dos domínios portugueses nas Américas, o que lhe valeu ser
aceito na Real Academia de Lisboa, em 1838. Dois anos depois decidiu voltar ao
Brasil, tendo sido aceito no recém fundado Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Em 1841, por decreto imperial tornou-se novamente cidadão
brasileiro e, incorporado ao corpo diplomático, foi indicado para levantar
documentos relativos à América portuguesa, nos arquivos coloniais portugueses e
espanhóis.
Varnhagen pode ser considerado
um ideólogo, no bom sentido da palavra, desses que estão sempre pensando nos
problemas do país e propondo respostas aos desafios do momento e também
imaginando reformas que pudessem preparar a nação a enfrentar os problemas do
presente e do futuro, ou seja, os decorrentes de desafios especialmente
complexos e que implicam reformas de maior profundidade. Nessa concepção, pode
ser visto igualmente como um doutrinário, uma vez que ele exibia, desde o
momento em que se tornou brasileiro, por decreto imperial, concepções bem
fundamentadas sobre como deveria orientar-se o Brasil em seu itinerário
“civilizatório”, o que na época significa aproximar-se o mais possível do
modelo europeu. Arno Wehling, o grande especialista contemporâneo na vida e na
obra do historiador-diplomata, e que o designa como publicista e pensador
político, prefere caracterizá-lo como um liberal dotado de um “conservadorismo
reformador” (2013c: 160).
Mas poderia ele ser também
considerado um pensador estratégico? Ou até mesmo um estadista? Tinha ele os
requisitos intelectuais ou as condições institucionais para se exercer como
tal? Em que medida o seu pensamento – que se manifestou nas entrelinhas de
todos os seus escritos históricos, e mais diretamente em seus textos
programáticos – foi, ou era, verdadeiramente estratégico? Que papel lhe coube na
construção da nação desde o início do Segundo Reinado? Influenciou ele
políticas de Estado, ou de governo, imprimiu suas concepções em decisões das
autoridades políticas, na diplomacia ou em outras esferas da vida pública?
Que Varnhagen tenha sido
um “cortesão”, no sentido aproximado da palavra, disso não cabem dúvidas; que
ele tenha sido um áulico é menos seguro, pois que ele passou a maior parte da
sua vida ativa, no exterior, recebendo instruções em lugar de formular ele
mesmo diretivas para determinadas orientações da política exterior, embora
tenha tentado algumas vezes: em determinadas questões do Prata, em especial
quanto ao Paraguai, ou na postura que o Império deveria seguir em relação à
guerra civil americana, por exemplo, ou no tocante ao “império” dos Habsburgos
no México. A maior “fração” de sua influência eventualmente “estratégica” se
deu através de seus poucos escritos programáticos e de sua obra
historiográfica, que permaneceu influente por quase um século, e até hoje
reverenciada no âmbito do IHGB, sem esquecer sua intensíssima e prolífica
correspondência com grandes personagens do Império, a começar pelo próprio
Imperador.
Aliás, chama-lo de “pai da
historiografia brasileira” é apenas parcialmente correto, se entendermos por
historiografia uma atividade de reflexão sobre como os historiadores descrevem
o passado, em contraste com a própria descrição desse passado. Varnhagen
certamente procedeu à crítica dos historiadores de sua época – poucos
nacionais, vários estrangeiros – mas o que ele fez, verdadeiramente, foi
escrever sobre esse passado histórico a partir de documentos primários, que ele
compulsou de maneira pioneira, como poucos antes ou depois dele. Varnhagen foi
básica e essencialmente um historiador, um construtor de relatos históricos
sobre o Brasil colonial, até a conquista da independência, e apenas
secundariamente um analista crítico de outros historiadores (como Rocha Pita,
por exemplo), tanto porque, antes dele, quase não havia historiadores
brasileiros ou do Brasil. O récit
historique, o racconto storico, chez Varnhagen, sobrepuja, em muito, a
crítica da historiografia de sua época, até então dominada pelos cronistas dos événements courants e por alguns poucos
estrangeiros: os britânicos Southey e Armitage, o francês Ferdinand Dénis e o
alemão Handelman, por exemplo. Ele incorpora a suas obras observações
pertinentes sobre os próprios personagens históricos, que aliás ele se permite
corrigir em vários pontos de detalhe, seja de geografia, seja de relato mesmo.
Ele citava abundantemente todos os cronistas seus antecessores, assim como os
muitos pasquins do Primeiro Reinado, ao reconstituir rigorosamente os
movimentos políticos – os da maçonaria, por exemplo – que acabaram redundando
na independência do Brasil.
O trabalho historiográfico
e de historiador de Varnhagen está suficientemente coberto por inúmeras teses
universitárias, no terreno dessa mesma disciplina (ou até no da filosofia da
História), bem como, principalmente, por diversos historiadores de renome,
desde Capistrano e Oliveira Lima, até Nilo Odália e Arno Wehling, este o grande
intérprete e examinador do homem e da obra. Seu pensamento estratégico se situa
na linha de José Bonifácio e de Hipólito José da Costa, ainda que Varnhagen se
enquadraria mais exatamente na categoria de historiador dotado de visão
estratégica, mesmo reconhecendo que sua influência direta nas políticas de
Estado, ou nas ações de outros estadistas do Império, foi reduzida ou
relativamente limitada; ele teve um papel bem mais preeminente no próprio
pensamento histórico e historiográfico das décadas seguintes à publicação de
suas principais obras, até praticamente as grandes revisões intelectuais que
começaram a serem feitas nas humanidades a partir do entre-guerras.
Varnhagen impactou o
pensamento historiográfico nacional durante mais de meio século, e todos os
homens de Estado, parlamentares, magistrados, diplomatas, acadêmicos e os
membros cultos da sociedade, ou seja, praticamente a integralidade da elite
brasileira, passou a oferecer um relato da história do Brasil com base no seu magnum opus de pesquisa historiográfica.
Em vida, ele publicou apenas duas edições da História Geral do Brasil antes de sua separação e Independência de
Portugal (Madri, 1854-1857; 1877), mas já a terceira vinha anotada por
ninguém menos do que o célebre Capistrano de Abreu, que corrigiu, em 1906,
pontos de detalhe do relato de Varnhagen, mas manteve intata a estrutura da
obra. Ela já tinha passado também pelas mãos de Paranhos Jr., que anotou
pessoalmente a primeira edição, depois conservada no acervo do Ministério das
Relações Exteriores. Vinte anos depois Rodolfo Garcia, ultimou essa terceira
edição e a publicou com as notas de Capistrano e as suas próprias. Cinco
edições integrais (seis do primeiro tomo da obra), em cinco volumes, foram
editadas até meados dos anos 1950, sob os cuidados da Companhia Melhoramentos
de São Paulo. Um sexto volume, com as muitas notas de Rio Branco, as de uma
comissão do IHGB, e do novo editor, o historiador Hélio Vianna, tratando
exclusivamente da História da
Independência do Brasil, que Varnhagen estava preparando até o final de sua
vida, foi finalmente publicado em 1916, aos cuidados do IHGB, no tomo LXXXIX,
vol. 133, de sua Revista. Hélio Vianna, ele mesmo um grande didático da
história do Brasil, encarregou-se de preparar novas edições pela Melhoramentos,
que continuaram sendo publicadas até os anos 1960 e mesmo até o início dos 1980,
quando o pensamento historiográfico já se tinha consideravelmente afastado dos
cânones sob os quais ele trabalhava. Mas foram essas obras que impregnaram a
mentalidade das elites brasileiras durante várias gerações, cujos argumentos são
refletidos no discurso e na ação dos estadistas brasileiros do Segundo Império
e das primeiras fases da República.
Mas antes mesmo de
concluir a obra que o consagrou definitivamente, História Geral, Varnhagen compôs e publicou, em 1849, na capital
espanhola, um opúsculo não assinado, “dado à luz por um amante do Brasil”,
pomposamente intitulado “Memorial orgânico que à consideração das assembleias
Geral e provinciais do Império apresenta um brasileiro”. Inserida no contexto
intelectual da efervescência política das revoluções de 1848 (inclusive em
Pernambuco) e das grandes reformas que estavam sendo empreendidas no Brasil em
torno do tráfico escravo, dos novos códigos regulatórios nos terrenos comercial
e fundiário e dos grandes debates sobre a organização política e administrativa
do país, essa obra de um “polígrafo persistente” e de um “conservador
reformista e liberal” – como o classifica o presidente do IHGB, Arno Wehling
(2013c) – apresenta um enfoque diferente dos demais livros que o identificaram
como o grande historiador da nacionalidade e da identidade do Brasil. Mas ela
apresenta uma mesma visão do mundo: um entranhado patriotismo, um engajamento
no processo de reformas tendentes a “civilizar” o Brasil, e a consciência – a
despeito de ser um liberal e propugnador da iniciativa privada na área
econômica – de que o Estado tinha um papel a cumprir como promotor de grandes
obras de organização nacional, nomeadamente no terreno da infraestrutura e da
defesa.
Foi nesse contexto que ele
propôs, a partir da identificação dos grandes problemas brasileiros de sua época,
um conjunto de reformas de cunho estrutural, entre elas a transposição da
capital do Império para o planalto central, sugestão que já tinha sido
formulada por pensadores e estadistas do porte de Hipólito da Costa e José
Bonifácio. Esta é, no entanto, apenas uma dentre as seis “soluções estratégicas”
aos problemas que Varnhagen identificou no Brasil do início do Segundo Império,
e que ele pretendia “corrigir”, sempre no sentido de “civilizar o Brasil”
segundo um modelo europeu de organização política e administrativa. Por que
Varnhagen o fez? Pela simples constatação, evidenciada numa dissertação de
mestrado defendida em 2009 na PUC-Rio, de que, passado um quarto de século
depois da independência, o Brasil permanecia numa situação praticamente
colonial, ou seja, um mero exportador de matérias primas, sem qualquer
desenvolvimento aparente: “Varnhagen está alertando que o Brasil encontra-se
estacionado no tempo...” (Janke, 2009: 28). O historiador Arno Wehling, que
preparou uma edição anotada e atualizada ortograficamente do Memorial, resume as propostas de
Varnhagen numa tabela de seu ensaio:
Memorial Orgânico,
de Francisco Adolfo de Varnhagen (1849)
|
Problemas
|
Motivos
|
Solução
|
Limites por definir com nove países
|
Indefinição das fronteiras
|
Negociações bilaterais
|
Capital litorânea
|
Deslocada em relação ao país, sem boas
fortificações
|
Capital no interior do país
|
Escassez de comunicações e de mercado
interno
|
Insuficiente ação provincial e
inexistência de ação nacional
|
Articulação de comunicações e rotas
comerciais (ferrovias)
|
Divisão de províncias do Império
|
Desigualdades regionais, ênfase no
litoral, sem desenvolvimento nas províncias do interior, tributação
irracional
|
Redivisão territorial, com critérios de
equilíbrio e equivalência (departamentos)
|
Fragilidade da defesa do país
|
Ausência de pensamento estratégico para a
defesa
|
Maior alocação de recursos, identificação
de pontos cruciais, territórios militares
|
Heterogeneidade da população
|
Extensão da escravidão africana, forte
contingente de índios não aculturados
|
Colonização indígena e europeia, proteção
no cruzamento de raças
|
Fonte: Wehling, 2013c: 174.
|
A proposta relativa ao
deslocamento da capital do Império para o interior do país e sua localização na
confluência das três bacias hidrográficas que possuem nascentes naquela região
foi ainda retomada, anos mais tarde, e depois de uma penosa viagem a cavalo em
direção das paragens do planalto central que ele julgava mais adequadas à
instalação da nova cidade, num livreto de 32 páginas intitulado A questão da capital: marítima ou interior
(Viena, 1877), no qual Varnhagen reuniu todas as informações coletadas e os
argumentos de que necessitava para reforçar seus pontos de vista. Sua visão
pragmática foi a de um pioneiro absoluto, traçando a rationale para a interiorização do país e para a criação da nova
capital que seria seguida um século depois por esse outro grande estadista que
foi Juscelino Kubitschek. Mas Varnhagen foi muito mais do que um visionário;
ele foi um intelectual-estadista que traçou, em seu Memorial um verdadeiro programa nacional de desenvolvimento.
Tomando como ponto de
partida esse “planejamento estratégico”, concebido por Varnhagen com apenas 34
anos de idade, num texto que permaneceu relativamente obscuro após 1851 (quando
finalmente foi publicado sob o seu nome), é possível traçar um novo Memorial
para a reforma da nação, com base na mesma metodologia que Varnhagen
desenvolveu entre 1849 e 1850, qual seja, uma primeira parte de “enunciados” dos
problemas, uma segunda de “justificativas” dos problemas detectados, e uma
terceira de propostas de soluções ou “remédios”.
Memorial
Pragmático de Reforma da Nação (2016)
|
Problemas
|
Motivos
|
Solução
|
Retrocesso econômico, desorganização
produtiva
|
Desindustrialização, exportações de commodities
|
Esforço concentrado em ganhos de
produtividade
|
Descolamento dos mercados internacionais
|
Perda de competitividade por excesso de
tributação
|
Reforma tributária, redução da carga
fiscal, globalização
|
Deficiências de infraestrutura
|
Inexistência de ação estatal por inépcia
e falta de recursos
|
Privatização extensiva em todas as áreas
de logística
|
Desigualdades regionais persistentes
|
Políticas de “desenvolvimento regional”
baseadas em induções equivocadas
|
Atendimento das vantagens comparativas
ricardianas nas especializações regionais
|
Fragilidade da defesa do país
|
Inadequações do pensamento estratégico
para a defesa; autonomia sem base no PIB
|
Maior alocação de recursos, mas busca de
sinergias na cooperação com aliados
|
Heterogeneidade da população em termos de
capacitação profissional
|
Deficiências graves na qualidade da
educação de base; professores ineptos
|
Reforma radical do ensino público;
acolhimento de imigrantes
|
Fonte: Paulo Roberto de Almeida, inspirado no Memorial Orgânico de Varnhagen.
|
Aparentemente, os problemas atuais do Brasil são quase os
mesmos de 165 anos atrás; as soluções também muito se parecem. Faltam, porém. os
estadistas...
Referências bibliográficas:
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(Brasiliana n. 117).
Varnhagen, Francisco Adolfo (1849). Memorial
Organico que a consideraçam das assembleas Geral e provinciaes do Imperio
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Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 17 de fevereiro de 2016
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