sexta-feira, 21 de abril de 2017

A politica externa e a diplomacia brasileira no seculo XXI -Paulo Roberto de Almeida

Um texto preparado como suporte de ideias -- não para ser lido -- a palestra sobre a diplomacia brasileira (se é que ela foi brasileira) nos últimos anos, mas com uma visita igualmente a outras épocas. Preliminar, como seria de se esperar, foi preparado em duas etapas, em março, e ontem.
Paulo Roberto de Almeida 



Paulo Roberto de Almeida
[Texto de apoio para palestra, em 24 de abril de 2017]


Sumário:
1. Continuidade ou ruptura em política externa: ambiguidade de situações
2. O continuísmo diplomático pelo staff profissional do Itamaraty
3. Quais são as grandes linhas da diplomacia e da política externa desde 1985?
4. Uma diplomacia conservadora para uma política externa idem?
5. A grande ruptura e o Grande Desastre: o lulopetismo diplomático
6. Recuperando o recuperável: o que fazer do legado de compromissos?
7. Conclusões provisórias: que floresçam as cem flores?


Antes de formular qualquer observação sobre a política externa e a diplomacia brasileira (são duas coisas diferentes, como já comentei diversas vezes, ainda que elas possuam certa imbricação), cabe refletir sobre os rótulos eventualmente usados para definir uma ou outra: parece que se trata de uma mania de diplomatas sequiosos de passar à história com alguma inovação conceitual. Desde a chamada “Política Externa Independente”, no início dos anos 1960, tivemos vários slogans para definir as supostamente diferentes orientações externas dos governos sucessivos do regime militar, até voltarmos à normalidade de uma diplomacia sem rótulos, a atual, a despeito de fugazes tentativas nesse sentido.
Com efeito, da ditadura à redemocratização, este foram os rótulos escolhidos:
(a) uma “diplomacia dos círculos concêntricos” (1964-67), baseada nas teses do coronel Golbery do Couto e Silva sobre a ancoragem do Brasil no chamado Ocidente, liderado, então como hoje, pelos Estados Unidos, agora bem menos do que no passado;
(b) a “diplomacia da prosperidade” (1967-69), dos governos Costa e Silva e Médici, que se desdobrou no projeto militar do “Brasil Grande Potência” (1969-74);
(c) as novas orientações diplomáticas dadas pela dupla Geisel-Azeredo da Silveira ao que se chamou de “pragmatismo responsável e ecumênico” (1974-79);
(d) o “universalismo” (1979-85) de Saraiva Guerreiro, nada muito original.

Depois disso, esses rótulos de conveniência praticamente desapareceram da política externa brasileira, a despeito de uma fugaz “diplomacia de resultados” (1985) atribuída ao breve chanceler da redemocratização, Olavo Setúbal, sem que se possa identificar, nos governos seguintes, uma preocupação terminológica especial. Foi apenas nos dois primeiros mandatos do regime lulopetista – e eu o chamo de regime em função de suas características especiais, que estão explicitadas em meu livro Nunca Antes na Diplomacia: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Editora Appris, 2014) – que se volta à necessidade, aparentemente psicológica, de atribuir um rótulo à política externa que se pretendia uma espécie de retorno à Política Externa Independente.
Ela passou a ser chamada, então, de “diplomacia ativa e altiva” (2003-2010), por vezes acrescida da palavra mágica “soberana”, como para demarcar as grandes diferenças entre essa política externa e as dos governos anteriores. Estes teriam supostamente sofrido do pecado político de serem não ativos e sobretudo não altivos, ou seja, acusados de serem submissos e conformados a um fantasmagórico Consenso de Washington, que o novo governo logo procurou substituir por um ainda mais fantasmagórico “Consenso de Buenos Aires” (2003), febrilmente oferecido aos demais países latino-americanos pela dupla Lula-Kirchner para ser soberbamente ignorado por eles e por toda a comunidade internacional (também já escrevi sobre esse patético exercício em 2003: “‘Una sombra pronto seras…’: Idealpolitik e o Consenso de Buenos Aires”, blog Diplomatizzando em 9/01/2015; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/01/brasil-argentina-e-o-consenso-de-buenos.html).
Esses rótulos antecipatórios, ou slogans supostamente definidores de uma política externa que se pretende implementar, não têm muita importância, em si mesmos, ou seja, como reveladores da política externa efetivamente seguida, no âmbito do governo que os escolhe, mas são reveladores de certa psicologia de seus autores, ou proponentes, inclusive no que se refere à necessidade pressentida de apresentar algum tipo de justificativa em vista das mudanças propostas, que podem representar uma espécie de inflexão, ou ruptura, ao que vinha sendo seguido anteriormente. Assim foi com a chamada PEI, que supostamente representaria uma saída do “alinhamento incondicional” com as posturas internacionais dos EUA, em direção (mas de forma moderada) do chamado não-alinhamento, neutralismo ou “terceira posição”). Os dois rótulos de maior “sucesso conceitual” durante esse longo período foram, não por acaso, aqueles que efetivamente corresponderam aos dois momentos de maiores mudanças nas orientações de política externa e de ativismo diplomático, que foram, respectivamente, o “pragmatismo responsável e ecumênico”, da dupla Ernesto Geisel e Antonio Azeredo da Silveira, e a “diplomacia ativa e altiva” da dupla Lula-Amorim.
Não é o caso de examinar, aqui e agora, as características de cada uma dessas políticas respectivas, relativamente inovadoras, em relação ao que havia antes e ao que veio depois – uma vez que já existem muitos trabalhos, acadêmicos e de diplomatas, que se dedicaram a essa tarefa, inclusive o meu livro acima citado, Nunca Antes na Diplomacia – mas cabe, sim, registrar que ambas buscam estabelecer princípios e valores de suas próprias legitimidades políticas, ou seja, tentam atender à necessidade psicológica de se resguardar atrás de um belo slogan. Vamos, em todo caso, resumir um pouco dos itinerários recentes na política externa brasileira, que têm a ver justamente com a questão maior da continuidade ou da ruptura nas principais orientações diplomáticas em cada período, tal como definidas na defesa que delas fizeram seus respectivos proponentes, num caso o presidente Geisel e seu chanceler Azeredo da Silveira, noutro caso, o presidente Lula e os principais assessores em política externa, respectivamente, e pela ordem, os diplomatas Samuel Pinheiro Guimarães e Celso Amorim e o apparatchik Marco Aurélio Garcia, o homem de um suspeitíssimo Foro de São Paulo, que nada mais constitui senão um instrumento dos comunistas cubanos para controlar e orientar os partidos de esquerda da América Latina.

1. Continuidade ou ruptura em política externa: ambiguidade de situações
Em política externa, o normal é a continuidade, sendo mais raras as fases de ruptura, inclusive por causa dos compromissos externos que não podem ser rompidos facilmente, e porque também existe um corpo consolidado de posições que reflete um determinado modo de inserção no sistema de relações internacionais – nas suas diferentes vertentes, bilateral, regional, multilateral – e um staff especializado, de caráter permanente, que tende a ser conservador nos hábitos e no pensamento. Os diplomatas são, em geral, continuístas, legitimistas (no sentido em que sempre vão defender o governo do momento), burocráticos, cautelosos ao extremo e, portanto, tendentes ao continuísmo em política externa e na política nacional, de modo amplo.
Isso não impede o acolhimento de novas ideias, quando elas correspondem ao Zeitgeist, ou os ares do momento, como podem ter sido, em suas respectivas épocas, o desenvolvimentismo cepaliano e de JK, a Política Externa Independente, de Quadros e Arinos, preservada na administração Goulart-San Tiago Dantas, e até o último chanceler do regime de 1946, João Augusto de Araújo Castro, um dos raros diplomatas não burocratas, e tido por muitos como intelectual. Aquilo que se pode chamar de ideologia do desenvolvimento é a ideologia oficial do Itamaraty, e é também a ideologia nacional brasileira desde a era Vargas, e especialmente desde os últimos anos da república de 1946. Existe, portanto, uma grande continuidade nas ideias e princípios que movem a diplomacia brasileira desde longos anos, o que eu já examinei em dois textos de 1986, “A ideologia da política externa: sete teses idealistas” e “A economia da política externa: do primário ao terciário”, inseridas como capítulos V e VII na primeira edição de meu livro Relações Internacionais e Política Externa do Brasil (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998), não mais reproduzidos nas duas edições posteriores (2004 e 2012) desse livro. Nesses dois capítulos, eu trato basicamente de ideias e conceitos, e pode-se registrar uma grande continuidade “filosófica” entre a diplomacia do final dos anos 1950 e início dos 60, a que foi implementada pela dupla Geisel-Silveira nos anos 1970, a “diplomacia do pragmatismo responsável”, e que seria retomada, em termos modificados mas de certa forma coincidentes, na “diplomacia ativa e altiva” dos companheiros, que eu chamo de diplomacia lulopetista (mas que deve muito pouco ao seu chefe político, e bem mais aos seus conselheiros diplomáticos já citados).
Não existe propriamente novidade em registrar que o presidente Lula era um grande admirador do presidente Geisel, o mais autoritário, concentrador, estatizante e intervencionista dos presidentes militares, assim como a dupla Samuel-Amorim era admiradora confessa da Política Externa Independente e ambos não relutavam em admitir que estavam resgatando tudo aquilo que tinha sido defendido nos anos de suposto não-alinhamento com a potência imperial e de compromissos com os objetivos desenvolvimentista daquela época. Ainda que Lula não exibisse, nem de longe, qualquer uma das supostas “qualidades” do presidente Geisel, de certa forma um “tecnocrata” exemplar do regime militar, ele tinha grande apreço, mesmo de forma inconsciente e totalmente instintiva, pela via “prussiana” do desenvolvimento brasileiro, ou seja, pelo alto, feita de um exagerado intervencionismo estatal, um protecionismo igualmente míope e todo aquele impulso megalomaníaco de fazer do Brasil uma grande potência, respeitada nos cenários regional e internacional.
A dupla Samuel-Amorim se encarregou de fazer exatamente isso, secundada pela assessoria caninamente “cubana” do apparatchik do PT na presidência da República, várias vezes ironicamente chamado, pelo jornalismo setorial, de “chanceler para a América do Sul”, em vista das limitadas capacidades que ele exibia para a política externa como um todo. O importante a destacar, até aqui, é o fracionamento do processo decisório da diplomacia brasileira entre várias “cabeças”, e o uso de algumas ferramentas “informais” (contatos diretos entre os partidos de esquerda, por exemplo), com o quê a tomada de decisão acaba sendo o resultado de injunções puramente partidárias e até de forma secreta, sem a utilização dos canais diplomáticos formais.

2. O continuísmo diplomático pelo staff profissional do Itamaraty
O próprio corpo de servidores do Itamaraty tende a ser mais continuísta, com base naquela “ideologia desenvolvimentista” que já era a sua desde meados dos anos 1950, e que persistiu sob variedades levemente modificadas até os dias que correm. Mas os diplomatas profissionais também são “legitimistas”, no sentido em que podem se adaptar facilmente a mudanças de postura, tais como emanadas da presidência da República. Tal foi o caso da primeira fase do regime militar – o suposto alinhamento do governo Castelo Branco com as teses da potência líder do Ocidente, o que não corresponde à verdade dos fatos – e também das várias mudanças operadas no breve interlúdio de Fernando Collor na presidência (1990-92), quando novas orientações, de abertura econômica e de liberalização comercial, foram impressas naquela conjuntura (revisão metodológica no Mercosul, adoção de ampla reforma tarifária, que correspondeu à Tarifa Externa Comum, aceitação dos novos temas na Rodada Uruguai do Gatt, revisão da política nuclear, início do processo de privatização de companhias estatais, etc.). Foi também o caso da presidência FHC, quando se alterou a política nuclear brasileira, no sentido da aceitação do TNP (1968), e de diversos outros compromissos em geral alinhados com a postura globalizante e progressista do presidente.
Ainda não existem trabalhos suficientemente independentes sobre a postura dos diplomatas profissionais com respeito às muitas “inovações” – em grande medida muito duvidosas – da era Lula-Amorim, inclusive porque a maior parte do corpo de servidores se mantive bastante discreta quanto às iniciativas lançadas pelo lulismo diplomático, apenas cumprindo diligentemente (como sempre acontece) as ordens emanadas de cima em nome da gloriosa “diplomacia ativa e altiva” (bastante bem defendida por seus principais ideólogos diplomatas, o chanceler e seu secretário-geral). Mas existe, sim, uma pletora de trabalhos acadêmicos saudando a tal diplomacia “ativa e altiva” como sendo uma espécie de nec plus ultra do nacionalismo diplomático, do soberanismo elementar, da busca de espaços próprios, não tutelados pelo “império”, nos cenários regional e internacional. Não hesitaria em dizer que 90% da academia (docente e discente) engajada no ambiente de estudos e de pesquisas internacionalistas mostrou-se amplamente satisfeita com o novo estilo diplomático dos lulopetistas, com inúmeros trabalhos tecendo elogios até exagerados à política externa “ativa e altiva” dos companheiros. Não há muita originalidade em constatar tal evidência objetiva.
Se me permitem uma referência pessoal, eu devo ter sido o único diplomata profissional e um dos raros estudiosos acadêmicos – ao lado dos editoriais sempre cáusticos do venerando jornal reacionário, O Estado de S. Paulo, e de algumas matérias críticas da Veja, sobre a “diplomacia megalonanica” – que criticou abertamente as novas orientações da política externa, conhecedor, como sempre fui, dos caminhos do PT e suas vinculações cubanas. Sofri, por isso mesmo, treze anos e meio de ostracismo no Itamaraty, durante os quais não apenas fui vetado para cargos oferecidos em áreas que não tinha diretamente a ver com a política externa “executiva”, como tampouco exerci qualquer cargo na Secretaria de Estado. De fato, durante longos anos estive confinado ao chamado DEC, Departamento de Escadas e Corredores, fazendo da biblioteca o meu escritório de trabalho, e dedicando-me, justamente, à escrita e à publicação de muitos artigos e de alguns livros sobre os descaminhos dessa diplomacia enviesada, o que me era facultado pela completa disponibilidade de tempo nessa interminável travessia do deserto. Por isso, aliás, sou grato a meus algozes: eles me permitiram um volume maior de leituras e escritos que eu nunca teria conseguido acumular se tivesse de rabiscar enfadonhos expedientes burocráticos da diplomacia habitual. Como se diz, há males que veem para o bem...
De certa forma, eu representei uma espécie de continuísmo – o que não é exatamente verdade – quando a maior parte, senão a totalidade do Itamaraty aderia de maneira obediente às invenções pirotécnicas do lulopetismo diplomático. Digo que o continuísmo não figura entre minhas inclinações diplomáticas, porque considero o Itamaraty excessivamente conservador – ou seja, muito pouco inovador – com respeito ao conjunto das ideias e valores que orientam essa “ideologia do desenvolvimento” no velho sentido cepaliano e terceiro-mundista que geralmente constitui a communis opinio dos diplomatas profissionais. Independentemente, portanto, das pretensas inovações da era Lula-Amorim, o fato é que o lulopetismo diplomático, à exceção da pirotecnia megalomaníaca, representou um grande continuísmo com respeito à Política Externa Independente dos anos anteriores ao regime militar e, também, com o “pragmatismo responsável” da era Geisel-Silveira. Em outros termos, as velhas opções diplomáticas – países em desenvolvimento, nacionalismo superficial, multilateralismo instrumental, protecionismo comercial – continuaram a ser promovidas durante todo o período.

3. Quais são as grandes linhas da diplomacia e da política externa desde 1985?
O período final do regime militar já não exibia mais aquelas preocupações exageradas com a segurança – ou seja, o anticomunismo oficial – que tinham caracterizado o seu início. Já não se falava mais em “Brasil Grande Potência”, inclusive porque foram anos e anos de crises contínuas (o segundo choque do petróleo, em 1979, a crise da dívida externa, a partir de 1982, e que ocupou o Brasil e a sua diplomacia pela década e meia seguinte), e sim em esforços de desenvolvimento no quadro das grandes mudanças trazidas pelo “aggiornamento” nos regimes comunistas, inauguradas pelo reformismo da era Deng Xiaoping na China, e logo seguidas pelo “glasnost” e pela “perestroika” do breve período Gorbatchev na União Soviética.
A diplomacia brasileira continuou a ser conservadoramente desenvolvimentista, e bastante relutante em aceitar novos compromissos de abertura econômica ou de liberalização comercial, embarcado na integração bilateral com a Argentina, processo que foi quadrilateralizado no início dos anos 1990, com a constituição do Mercosul. A diplomacia de FHC foi basicamente profissional, ou seja, itamaratiana, com as já mencionadas inovações na área da política nuclear e da aceitação cautelosa de novos compromissos em matéria de acordos comerciais (multilaterais e hemisféricos). Os companheiros inventaram iniciativas mentirosamente “inéditas” que se conformassem ao seu desejo de se enquadrar na fábula do “nunca antes”.
A prioridade para a América do Sul, por exemplo, já estava dada desde o início da era FHC, e mesmo antes, sob a gestão de Itamar Franco, quando se tentou contrapor às iniciativas americanas – a de Bush pai e a de Clinton – de um amplo acordo hemisférico de livre comércio a proposta de um superficialmente formulado projeto de Alcsa, uma área de livre comércio sul-americana (jamais realizada formalmente, senão por uma miríade de acordos parciais na Aladi). A abertura e o relacionamento com grandes parceiros do chamado Sul Global (uma invenção geográfica sem qualquer sentido econômico ou mesmo diplomático) já estava posta desde muito antes igualmente, inclusive porque o Itamaraty sempre foi adepto dessas alianças terceiro-mundistas. O projeto de FHC de integrar fisicamente a América do Sul foi despudoradamente roubado, reinventado sob outro nome e, como várias outras iniciativas companheiras nessa área, permaneceu não implementado, por falta de competência para levá-lo adiante, sem as parcerias anteriormente previstas no projeto original.

4. Uma diplomacia conservadora para uma política externa idem?
As grandes linhas da diplomacia brasileira, historicamente, sempre foram as mesmas, ao longo de vários governos e mesmo regimes: aproveitar as oportunidades oferecidas pelo sistema internacional – em termos de comércio, investimentos, transferência de tecnologia, acordos de cooperação, etc. – para impulsionar o processo de desenvolvimento do Brasil; encontrar e definir os melhores parceiros para ajudar, no plano bilateral, esse grandioso propósito, o que significava, obviamente, os países mais avançados do bloco ocidental (embora isso não descurasse o relacionamento econômico mesmo com os países do bloco soviético, objeto de cuidados especiais durante todo o período da Guerra Fria); manter um relacionamento estreito com os vizinhos da região, em especial no Cone Sul; explorar canais de inserção nos mecanismos decisórios no plano multilateral, o que implica um grande ativismo nos órgãos setoriais da ONU, como na própria instituição-mãe, com o sempre acalentado desejo de lograr a reforma da Carta para uma ampliação do seu Conselho de Segurança, avançando a disposição para obter uma cadeira permanente em caso de eleição ou escolha nessa linha; exercer papel preeminente nas coalizões de países em desenvolvimento para reforçar demandas em favor de uma nova ordem econômica internacional, mais favorável aos interesses desses países, em prol de mudanças na estrutura do comércio internacional e nos projetos de industrialização substitutiva; atribuir relevo principal, na agenda política e econômica mundial, para os objetivos de desenvolvimento, em lugar dos gastos com segurança e defesa, insistindo nas metas de desarmamento, sobretudo nuclear; cuidado extremo com a preservação da soberania brasileira em todas as vertentes de trabalho.
Esses sempre foram, entre muitos outros, os objetivos constantes e recorrentes da diplomacia brasileira na implementação da política externa de cada presidente, com pequenas variações de forma entre um mandato e outro, praticamente desde a Segunda Guerra Mundial até os nossos dias. Isso equivale a dizer que o Itamaraty é relativamente conservador na definição das metas de trabalho – mas sempre em consonância com os grandes objetivos nacionais, e preservando um estilo que não diferiu muito ao longo de décadas – como sempre foram conservadoras as relações mantidas com os principais parceiros, desenvolvidos ou em desenvolvimento. Nas poucas vezes em que tentou ser inovador, nas últimas décadas, como por exemplo a proposta de se criar um grande espaço econômico unificado na América do Sul, pela via de acordos comerciais, ou os projetos de integração física no mesmo continente, os resultados foram muito modestos, para não dizer marginais ou nulos. Mesmo na grande decisão de reduzir sua própria soberania estatal em favor de um projeto ambicioso de integração, como no caso do Mercosul, os resultados também ficaram muito aquém do esperado: em lugar do mercado comum, uma colcha de retalhos sob a aparência de união aduaneira, com várias exceções nacionais, e uma zona de livre comércio com muitas perfurações, dada a indisposição dos países membros (entre eles o próprio Brasil), para uma real abertura econômica recíproca e uma efetiva liberalização comercial.

5. A grande ruptura e o Grande Desastre: o lulopetismo diplomático
Os três grandes objetivos do lulopetismo diplomático eram, tal como expresso diversas vezes pelos seus dirigentes máximos: (a) o reforço e a extensão do Mercosul na América do Sul; (b) a conclusão exitosa das negociações comerciais multilaterais da Rodada Doha; (c) a conquista de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança, via reforma da Carta das Nações Unidas. Parece evidente que, não só esses objetivos deixaram de ser alcançados, mas que seu atingimento ficou ainda pior ao longo de três gestões completas do lulopetismo diplomático e não parecem próximos de serem alcançados no futuro previsível. Esse insucesso clamoroso não pode ser inteiramente debitado à incompetência dos gestores dessa política externa, ainda que o terceiro objetivo era claramente irrealista e tentou se realizado de uma maneira totalmente ineficiente: colocando a pretensão do Brasil no quadro de um agrupamento, o G-4 (com outros candidatos, como Índia, Alemanha e Japão), cujos membros tinham suas arestas regionais que acabaram inviabilizando os objetivos do quatro membros.
O primeiro objetivo era perfeitamente realizável se o lulopetismo mantivesse uma política comercial compatível com os objetivos originais do Mercosul e alinhada com as novas demandas surgidas no continente a partir dos projetos americanos de um grande acordo hemisférico de livre comércio. Em lugar disso, os companheiros, como inimigos ideológicos do “império”, se empenharam em sabotar a Alca, como se todos os demais fossem se unir em torno de vagas propostas brasileiras de um bloco comercial excessivamente limitado para atrair os grandes parceiros da região (que de resto sempre cobiçaram os mercados e os investimentos americanos). Eles foram, junto com os dois outros aliados no empreendimento, a Argentina de Nestor Kirchner e a Venezuela de Hugo Chávez, totalmente bem sucedidos na implosão do projeto americano da Alca, apenas para se virem isolados na sequência dos acordos parciais concluídos pelos EUA com cada país ou grupos de países interessados no esquema por eles oferecido. Quanto ao Mercosul, ele foi desviado de seus objetivos comercialistas, para converter num palco de retórica política e de iniciativas sociais, totalmente inócuas do ponto de vista da integração econômica prometida em seu tratado constitutivo.
As negociações comerciais multilaterais tampouco avançaram como esperado pelos companheiros, inclusive porque os companheiros dos companheiros, países como Argentina, Índia, China e outros em desenvolvimento, mantinham uma disposição muito débil para a abertura econômica e o desarme tarifário industrial, ao mesmo tempo em que os grandes parceiros desenvolvidos tampouco estavam dispostos a desmantelar o arsenal subvencionista e protecionista no setor agrícola. De forma geral, a política comercial dos companheiros foi totalmente irrealista e inadequada às necessidades dos setores competitivos da economia nacional, inclusive em virtude de preconceitos de tipo ideológico mantidos pelos principais formuladores dessa política enviesada.
Assim, o que era para ser uma ruptura com o “neoliberalismo” do ancien régime tucanês acabou revelando-se um grande fiasco substantivo, até no plano puramente formal das táticas diplomáticas. O que dizer, então, da suposta liderança na América do Sul e do desejo pouco secreto de ser o grande irmão generoso para vizinhos menores ou supostamente dependentes? Quais foram os sucessos alcançados com a Argentina dos Kirchner, da Bolívia de Evo Morales, do Equador de Ruben Correa, ou da Venezuela de Chávez? Ainda não se contabilizou devidamente a soma total dos imensos negócios paralelos que foram feitos em benefício de capitalistas promíscuos e dos companheiros engajados nesses canais paralelos à diplomacia oficial do Itamaraty, com gigantescos empréstimos e investimentos públicos brasileiros em projetos obscuros ou claramente clandestinos, abrindo espaço, ao que parece, para tenebrosas transações feitas à margem e no desconhecimento da pátria mãe tão distraída.
Além dos fiascos acumulados ao longo do regime companheiro, não se pode deixar de apontar como as instituições públicas – o BNDES, por exemplo – foram usadas e abusadas para projetos propriamente criminosos, tanto mais grandiosos quanto mais ditatoriais ou autocráticos eram os parceiros envolvidos em transações altamente suspeitas. Apenas um trecho de um livro publicado sobre esse tipo de projeção pouco edificante permite desvendar o tipo de arranjo a que os companheiros se dedicaram externamente desde que pegaram o jeito de fazer negócios para eles mesmos:
Em dezembro de 2016, um documento devastador do Departamento de Justiça americano revelava: ‘Entre 2006 e 2013, a Odebrecht realizou mais de US$ 50 milhões em pagamentos para autoridades do governo em Angola para assegurar contratos de obras públicas.’
Fábio Zanini: Euforia e Fracasso do Brasil Grande: política externa e multinacionais brasileiras na era Lula. São Paulo: Contexto, 2017, p. 82.

As demais histórias do livro também são devastadoras, não exatamente para a reputação do PT, uma vez que todos sabem que esse agrupamento heteróclito de neobolcheviques sem doutrina é uma organização criminosa desde muito tempo, mas basicamente para a reputação do Brasil e sua política externa, ao conformar um padrão que rompe todos os compromissos anticorrupção assinados pelo Brasil desde os anos 1990. Como revela ainda esse autor, “entre 2003 e 2015, o BNDES liberou US$ 14 bilhões para 575 projetos no exterior, em 11 países da África e da América Latina.”
Os companheiros conspurcaram a imagem do Brasil, sem que na verdade se tenha conhecimento de uma infinidade de outros casos não documentados, uma vez que outro dos crimes cometidos contra o Estado foi, sistematicamente, a condução de certos negócios por vias paralelas, clandestinas, deliberadamente subtraídas a qualquer escrutínio governamental, e até mesmo dos registros do Itamaraty. As mesmas práticas criminosas testadas externamente foram amplamente repetidas no próprio Brasil, onde a máquina de um ministério chave como a Fazenda foi usada para fabricar medidas especialmente talhadas para beneficiar essas mesmas empresas promíscuas, desde que um jorro de “doações legais” aportasse nas contas do partido delinquente.

6. Recuperando o recuperável: o que fazer do legado de compromissos?
Talvez seja ainda muito cedo para fazer um balanço completo das imensas perdas, algumas irreparáveis, trazidas pelo assalto ao poder da tropa de meliantes que congrega inocentes militantes dirigidos por uma quadrilha de mafiosos. A corrupção das instituições e o retrocesso econômico – provocando a maior crise da história econômica do Brasil, a que eu chamei de Grande Desastre – podem ser eventualmente reparados no plano interno, mas assumir a liderança pouco desejável de ser um país indutor de corrupção no plano externo constitui, obviamente, um galardão que não honra as tradições diplomáticas brasileiras.
Mas, existe um outro aspecto que não tem merecido a devida atenção dos observadores, uma vez que se considera que iniciativas diplomáticas tomadas numa determinada administração, por engajar a palavra do Brasil externamente, precisam ser honradas e preservadas, quaisquer que tenham sido as motivações originais. Estão neste caso certo número de novas organizações criadas unicamente para afastar o fantasma do império da América do Sul e algumas outras, ultrapassando essas fronteiras e que unem o Brasil a regimes pouco frequentáveis em condições normais, obrigando o Brasil a desvios de conduta em termos do direito internacional, ou de princípios democráticos. A avaliação isenta do legado de compromissos criados com objetivos altamente duvidosos pela diplomacia lulopetista ainda está para ser feita, em algum momento de um governo futuro. Assim como se descobre que os casos do vasto empreendimento de corrupção revelados no plano interno constituem tão somente a ponta de um gigantesco iceberg, provavelmente vai se identificar, por meio do exame acurado dos arquivos nacionais e estrangeiros, que a megalomania diplomática do chefe de quadrilha está deixando um passivo imenso na frente externa.

7. Conclusões provisórias: que floresçam as cem flores?
O Brasil possui agora uma janela de oportunidade para repassar todos os atos lícitos, mas equivocados, e principalmente os todos os atos ilícitos perpetrados pelos companheiros na primeira década e meia do século XXI, começando ainda antes da assunção ao poder – pelos plebiscitos contra a dívida externa, por exemplo, ou a ação contra a Alca – e se estendendo ainda no momento atual. Como revelado nas atuais investigações da Lava Jato, mas ainda não nas possíveis, futuras, “descobertas” no âmbito do BNDES (e possivelmente em várias outras agências públicas), o potencial de “crimes econômicos” (que também são crimes comuns) é enorme, com um verdadeiro iceberg de roubos e falcatruas que ultrapassam nossa capacidade de calcular.
A conjuntura histórica de corrupção e equívocos fabricados por inépcia ou ação deliberada pelos companheiros não encontra paralelo em nenhum outro momento de nossa história, o que não parece ter sido ainda compreendido pela comunidade acadêmica em toda a sua dimensão propriamente criminosa. Existe uma tolerância implícita com a delinquência diplomática dos lulopetistas, uma vez que a versão por eles propagada busca fazer acreditar a tese totalmente equivocada da “autonomia” nacional, quando do que se trata, verdadeiramente, é de uma colusão com pelo menos um poder estrangeiro que controlou, por meios diversos, os dirigentes de uma associação feita para delinquir, justamente. Não há sequer certeza de que algum dia venhamos a conhecer toda a extensão da atividade criminosa, de caráter mafioso, da tropa que assaltou o poder no Brasil, uma vez que muitas iniciativas e ações tomadas por eles permanecem sem o devido registro documental (et pour cause...).
O debate aberto, franco, e desprovido de a prioris propagandísticos, sobre os tempos não convencionais da diplomacia lulopetista ainda precisa ser feito, embora o registro documental sobre um volume significativo de ações paralelas careça, como já dito, de provas cabais sobre aquilo que Ranke chamava de wie es eigentlich gewesen, ou seja, aquilo que realmente se passou. No que depender de mim, estou pronto para proclamar, como na fábula, a nudez do soberano e denunciar uma década e meia de equívocos monumentais. Em breve talvez tenhamos o verdadeiro responsável pelas falcatruas internas e externas na cadeia, que parece ser o lugar mais apropriado para a maior fraude da história política brasileira.
Um exercício saudável de revisionismo pode agora começar, uma vez que o novo responsável pela política externa já aventou o exemplo maoísta das cem flores, ou seja, a expressão de opiniões diversas sobre a diplomacia. Esperemos apenas que não termine como no precedente chinês...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 24 de março; 20 de abril de 2017

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