Não precisamos de outro manicômio fiscal, diz Kleber Pacheco de Castro
Roberto Campos foi 1 ‘visionário’
O IVA, porém, é muito importante
Marcos Cintra ignora outros países
Leia artigo de Kleber Pacheco de Castro
22.nov.2018 (quinta-feira) - 5h50
atualizado: 22.nov.2018 (quinta-feira) - 7h26
atualizado: 22.nov.2018 (quinta-feira) - 7h26
Em 1999, Roberto Campos, escreveu 1 artigo para a Folha de S.Paulo intitulado “Como sair do manicômio fiscal” no qual, sucintamente, criticava o projeto de reforma tributária do deputado Mussa Demes e enaltecia 1 projeto alternativo, do deputado Marcos Cintra.
Resumidamente, Campos destacava que 1 tributo do tipo IVA (Imposto sobre o Valor Acrescentado) –objeto da principal proposta de reforma tributária– estava em desuso frente à realidade da “sociedade eletrônica” e que o melhor caminho seria se fundar em 1 tributo de fácil recolhimento e baixo potencial de arrecadação, como 1 tributo sobre as transações financeiras –objeto da proposta alternativa de reforma tributária.
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Pode-se afirmar que, do ponto de vista tributário, pouca coisa mudou no Brasil nesses quase 20 anos entre o referido artigo e os dias atuais. A despeito de alguns pequenos ajustes, o sistema tributário brasileiro, pouco mudou.
As competências federativas são as mesmas, as bases de incidência dos tributos pouco mudaram, a burocracia tampouco regrediu… e, além disso, mais uma vez “disputam a corrida” da reforma tributária dois modelos: o IVA e o imposto sobre transações financeiras.
Fora alguns deméritos, como classificar o IR (Imposto de Renda) de “safadeza socialista” e afirmar que a cumulatividade da CPMF é uma “cascata benigna”, o artigo de Roberto Campos lança mão de uma ideia importante e que hoje está muito em voga: os sistemas tributários “clássicos” precisam se reinventar frente às transformações (digitais) pelas quais a sociedade e a economia vêm passando. Neste aspecto, Roberto Campos foi 1 visionário.
Entre a visão e a prática, porém, há uma diferença. Tomemos os países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) como referência: do fim da década de 1990 até 2015, o IVA não apenas não encolheu sua participação da carga tributária média desses países, como se expandiu ligeiramente (de 18% do total para 20% do total).
Ou seja, a visão de Campos –tomada como certa por grande parte dos analistas de tributação– ainda não se concretizou. Em outras palavras, o IVA, com todos os seus defeitos, continua sendo 1 tributo muito importante para os principais sistemas tributários do mundo.
Por que foi necessária tanta digressão para trazer uma informação tão simples?
Na “guerra” dos modelos de reforma tributária brasileira, há uma celeuma de opiniões, por vezes, sem respaldo técnico, em torno do IVA. Notavelmente, o economista Marcos Cintra – o autor daquele projeto da década de 1990, defendido por Roberto Campos – tem sido o “bastião” de representações contra o IVA.
Para ficar limitado apenas aos últimos meses, cito 3 artigos de ataques diretos ao IVA, sem grandes fundamentos acadêmicos: “O ultrapassado IVA, piora o que é ruim”, “IVA é incompatível com o mundo digital”, “IVA será desastroso”. Para o autor, todos os problemas do IVA seriam solucionados rapidamente substituindo-o por 1 tributo sobre transações financeiras –algo semelhante à antiga CPMF.
Em outro artigo, no qual o IVA não é citado explicitamente, Marcos Cintra chega a apontar uma boa referência para respaldar suas críticas, indicando 1 dos relatórios recentes da OCDE sobre a erosão da base fiscal na era da economia digital. Ele esquece, porém, de dizer que o relatório respalda apenas suas críticas e não a sua solução.
Ao contrário do que faz parecer em seus textos, os países envolvidos nas discussões do BEPS (Base Erosion and Profit Shifting) –das quais mais de 80 têm participado ativamente– não abandonaram o IVA em favor de uma “revolução” via transações financeiras, mas têm buscado soluções para corrigir o próprio IVA, como, por exemplo, a partir da adoção do princípio do destino nas operações internacionais do tipo B2C (business to consumer).
Ainda que os relatórios do BEPS reconheçam que os sistemas tributários têm 1 desafio mais “sistêmico” frente às mudanças da economia digital, não propõem aventuras/experimentos como possível solução.
Podemos ainda identificar outros movimentos internacionais de reação aos novos paradigmas econômicos.
Um bom exemplo foi a proposta de criação de 2 tributos “digitais” pela Comissão Europeia em março desse ano: 1) 1 tributo sobre rendas e lucros de empresas que não estão fisicamente sediadas nos países da União Europeia, mas atuam naquele território de forma virtual; e 2) 1 tributo sobre os serviços digitais, incidente sobre receitas de atividades que atualmente não compõem a legislação tributária europeia (ex: venda de dados de usuários de plataformas digitais e venda de espaço publicitários on-line).
Também nesse caso, não há menções ou movimentos em direção a uma solução mais heterodoxa, como a proposta por Cintra.
Em uma busca rápida pelo Google, verifica-se que nenhum país intenciona apostar na tributação sobre transações financeiras como respostas para o iminente estrangulamento fiscal proporcionado pela economia digital. Isso pode soar pouco relevante para 1 autor que simplesmente ignora o que outros países estão fazendo, como ele mesmo destaca em seu livro de 2009.
Ainda assim, 1 esforço foi empreendido para buscar alguma ideia que se aproxime das ideias de Cintra. Foi identificada uma proposta de reforma tributária feita na Índia no ano passado –não como solução para a economia digital, mas como solução para a complexidade do sistema indiano– mas que foi prontamente descartada.
Um estudo mostrou que, entre outros problemas, o referido tributo: 1) necessitaria de uma alíquota muito elevada para dar o mesmo resultado fiscal; 2) incentivaria a desintermediação financeira; 3) teria incidência em cascata (cumulatividade); e 4) não permitiria ao governo extrair outra finalidade do sistema tributário, que não o aumento da arrecadação.
Em suma, todas as críticas que já foram feitas ao projeto nacional de Marcos Cintra, com o bônus de não descartarem a possibilidade de sonegação fiscal, que é provavelmente a tese mais defendida por Cintra.
Em 1 de seus artigos, Cintra afirma que: “[…] muitos analistas, por desconhecimento ou por preguiçoso apego aos paradigmas convencionais, não reconhecem que os sistemas tributários tradicionais se mostram incapazes de atender às necessidades do mundo virtual e das novas tecnologias de produção, de comercialização e de movimentação de bens e de serviços no mundo digital”.
Muito surpreendente parece, contudo, que o próprio autor, por desconhecimento ou apego a 1 dogma, não reconheça que o imposto sobre transações financeiras não é solução para os problemas do sistema tributário brasileiro (e, aparentemente, para nenhum país do mundo). Corrigir o “IVA brasileiro” não representa o “aperfeiçoamento do obsoleto”.
Se trata, tão somente, de –por mais estranho que isso possa parecer– colocar o país no caminho da obsolescência, haja vista que atualmente sequer temos caminho. Como mostra a Europa, não há solução pronta para os problemas que nos aguardam, sendo o mais prudente, neste caso, se agarrar às melhores práticas convencionais, não tirando do campo de visão as mudanças que serão necessárias no futuro próximo.
Se aventurar na ideia da proposta do imposto sobre transações financeiras seria como entrar em outro manicômio. Sai-se de 1, entra-se em outro. Não precisamos de outro manicômio fiscal.
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