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domingo, 17 de fevereiro de 2019
Monteiro Lobato e a reforma do mundo: novas edições
'A Reforma da Natureza' antecipa debates sobre Monteiro Lobato
Personagens do Sítio são convidados para uma conferência mundial da paz em livro que ganha nova edição
Antonio Gonçalves Filho
O Estado de S.Paulo, 16 Fevereiro 2019
Sexto livro da série de obras de Monteiro Lobato voltada para colecionadores, que a Biblioteca Azul acaba de publicar, A Reforma da Natureza vem ao encontro das advertências inseridas no texto de J. Roberto Whitaker Penteado,
sobre os perigos de “reescrever” Lobato agora que as obras do escritor
caíram em domínio público. Num mundo submetido à uniformização cultural,
A Reforma da Natureza é um manifesto contra gente autoritária
que defende a cartilha da homogeneização. Lobato, no entanto, nunca foi
homem de se curvar. Certo ou errado – e ele foi, por exemplo, injusto
com a pintora modernista Anita Malfatti –, sempre disse o que pensava
sobre o Brasil e o mundo, os políticos e os educadores. Principalmente,
foi um crítico severo de nossa mania reformista.
O escritor brasileiro Monteiro Lobato
Foto: Wikimedia Commons
A propósito, o livro trata também de ditadura. A Reforma da Natureza
começa justamente quando Dona Benta e Tia Nastácia, as duas matronas do
Sítio do Picapau Amarelo, e o Visconde de Sabugosa, são convidados para
uma conferência mundial da paz, representando a humanidade e o bom
senso contra ditadores que arrasaram a Europa na última grande guerra.
Vão todos, menos a boneca Emília, que pretende aproveitar a ausência
deles para fazer suas experiências malucas com a natureza – que, de
forma involuntária, remetem, na segunda parte do livro, quando a turma
do Sítio volta da Europa, aos perversos experimentos genéticos do doutor
Mengele. Com a ajuda do visconde de Sabugosa, que conheceu “diversos
cientistas notabilíssimos” no continente europeu, Emília monta um
laboratório e transforma em monstros pantagruélicos inocentes minhocas,
grilos e centopeias.
Porém, é a primeira parte de A Reforma da Natureza que
confronta o discurso politicamente correto. A retórica de Lobato é
considerada pouco didática aos olhos contemporâneos, a começar pelo
personagem da fábula do reformador da natureza contada por dona Benta e
que inspirou Emília a fazer suas trapalhadas: Américo Pisca-Pisca, cujo
nome define uma possível vítima de blefaroespasmo. Referência de Emília,
que critica seu hábito de piscar, mas não o de reformar, Américo bota
defeito em tudo e quer “corrigir” a natureza, a começar por colocar
abóboras em jabuticabeiras. Conclusão: seria ele a primeira vítima de
sua reforma. Ao dormir à sombra de uma jabuticabeira, desperta com um
jabuticaba caindo sobre o próprio nariz – e abandona, definitivamente, a
reforma, o que serve como advertência para futuros “revisores” de
Monteiro Lobato.
Nessa jornada reformista contra a natureza, a
inconformada Emília submete também a amiga Rã (inspirada numa garota
carioca, Maria de Lurdes) aos seus caprichos. Sente certa identificação
com a menina porque ela também é “emilíssima”, uma verdadeira
representante da turma “do contra”. Emília, ao encontrar a amiga,
confirma que, entre outras atividades, pretende também reformar as
palavras, antecipando os “revisores” inconformados com a obsessão
supremacista de Lobato no tratamento de tia Nastácia, além de insinuar
que dona Benta, a “democracia em pessoa”, volta da Europa com jeito de
ditadora, ao rejeitar a maioria das reformas que a boneca fez na
natureza – ela ordena, e não pede, que Emília desfaça o que fez,
colocando as jabuticabas de novo nas árvores e a abóboras no chão.
Segundo
conclusão de estudiosos que analisaram a reação de alunos à leitura de A
Reforma da Natureza, a obra despertou nas crianças um notável interesse
por questões ambientais. A irreverência de Lobato no trato de questões
científicas tornaram o uso da literatura infantil do escritor comum nas
aulas de ciências, embora existam professores que considerem inadequada
ou ultrapassada a visão de ciência do escritor para fins didáticos. E o
que dizer da insistência de Lobato se referir à Nastácia como “negra”?
Lobato, de fato, apresenta Nastácia como supersticiosa e inimiga da
ciência – ela chama de feitiçaria a invenção da panela que apita por
Emília.
Lobato, que se correspondia com defensores da eugenia, escreveu uma pioneira obra de ficção, O Presidente Negro,
que, de certa maneira, antecipou em décadas a chegada de Obama à
presidência. Só que Lobato não acreditava em democracia racial. No
livro, os negros são submetidos a alisamento de cabelo com raios que
esterilizam os afrodescendentes. Nada edificante, claro, mas sua
linguagem deve ser analisada considerando o contexto, o discurso
eugenista e as discussões sobre diferenças entre raças típicas dos anos
1920 e 1930. Nada indica que seus revisores levem em conta essa e outras
questões no futuro. O “sítio” de Lobato, é provável, vai passar por uma
reforma daquelas por ter caído em domínio público. Vamos ver se o
alicerce do edifício suporta o peso dessas mudanças.
Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial. A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.
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