“Em 200 anos, fizemos um trabalho muito insatisfatório”
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Texto: Juliana Alves, Jornal da USP
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O Bicentenário da Independência do Brasil, que se comemora este ano, é mais do que uma efeméride — é um momento propício para se refletir acerca do caminhos (e descaminhos) que o País trilhou nesses últimos 200 anos e quais têm sido seus principais desafios. Para colaborar nessa reflexão, a Revista USP — editada pela Superintendência de Comunicação Social (SCS) — vai publicar quatro números especiais, totalmente dedicados ao bicentenário, que ajudarão a entender como o Brasil se estruturou (ou não) como nação. Esta primeira edição trata da economia brasileira, tanto no período logo subsequente à Independência como também nas décadas posteriores e foi coordenada pelo professor Hélio Nogueira da Cruz, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP (FEA-USP). As próximas edições da revista trarão dossiês sobre cultura e sociedade (coordenado pela professora Maria Arminda do Nascimento Arruda, da FFLCH e vice-reitora da USP), política (coordenado pelo professor José Álvaro Moisés, da FFLCH) e ciência e tecnologia (coordenado pelo professor Glauco Arbix, da FFLCH e coordenador do Observatório de Inovação do Instituto de Estudos Avançados – IEA da USP).
Ao longo do dossiê Bicentenário da Independência: Economia, pode-se entender como o Brasil, dois séculos depois, ainda mantém “certos laços históricos profundos que ainda hoje nos aproximam do período da Independência, tais como a péssima distribuição de renda, o racismo, o patriarcalismo, o patrimonialismo e a baixa prioridade à educação e à saúde pública”, como afirma a apresentação da revista, assinada por Hélio Nogueira e também pelos professores Flávio Azevedo Marques Saes e Guilherme Grandi, também da FEA. O dossiê Bicentenário da Independência: Economia está disponível neste link.
Em entrevista ao Jornal da USP (veja vídeo abaixo), o professor Hélio Nogueira falou sobre o dossiê e refletiu sobre esses 200 anos de economia no Brasil. Segundo ele, “nos baseamos em um modelo estático do passado”. “Apesar de conseguirmos fazer um modelo ambicioso, com avanços importantes, a indústria brasileira não está acompanhando as indústrias dos países de porte”, afirma Nogueira.
Escravidão, Revolução Industrial e bancos
O primeiro artigo do dossiê, Dinâmica da Atividade Agrícola Até Meados do Século XIX, escrito pelos professores Francisco Vidal Luna, da USP, e Herbert S. Klein, da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, aborda diferentes aspectos da agricultura, tanto no que se refere à grande lavoura exportadora como no que diz respeito à agropecuária voltada ao abastecimento do mercado interno. Os autores afirmam que os efeitos das atividades não exportadoras são essenciais para explicar a história, ocupação e povoamento do território brasileiro, mesmo que o mercado internacional fosse o elemento dinâmico. Eles analisam a atividade agrícola durante o século 19, período de consolidação da cafeicultura, que alterou profundamente a estrutura produtiva nacional e a infraestrutura econômica, em particular o sistema de transportes.
Já A Escravidão Brasileira à Época da Independência, de José Flávio Motta, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em História Econômica Hermes & Clio, também da FEA, traz estimativas do “estoque” e do “fluxo” de pessoas escravizadas no Brasil na primeira metade do século 19, enfatizando a intensificação da entrada de cativos naquele período.
Em seguida, o autor investiga os impactos desses números nas características da escravidão brasileira na época da Independência. Ele analisa o padrão da distribuição da posse de cativos e evidencia a relação de vulnerabilidade e resiliência das famílias escravas no enfrentamento dos rigores e castigos do cativeiro. O professor também descreve a eventual participação direta das pessoas escravizadas no processo de emancipação política. Nas considerações finais, Motta destaca aspectos da trajetória da escravidão até sua abolição, apontando as cicatrizes profundas por ela deixadas, nitidamente visíveis até hoje.
Comércio Interno e Manufaturas nos Tempos da Independência do Brasil é o título do artigo de Maria Alice Rosa Ribeiro, professora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e pesquisadora colaboradora do Centro de Memória da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em seu texto, ela analisa o tráfico de escravizados, distinguindo os negociantes do comércio atlântico daqueles que atuavam na distribuição de escravizados no mercado interno. Além disso, Maria Alice aborda o comércio de alimentos e de manufaturados comuns transacionados pelos tropeiros e o comércio de manufaturados importados mais sofisticados. Em seguida, a autora muda o foco para a produção manufatureira, a indústria artesanal doméstica, como algodão, alimentos e bebidas, cerâmica e olaria (fabricação de tijolos, telhas e vasilhames de barro). No fim do artigo, Maria Alice ainda reflete sobre uma das mais importantes atividades industriais, a siderurgia.
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A fim de analisar o legado tributário colonial e as primeiras ações do Brasil como nação independente na reestruturação de seu sistema fiscal, na separação das rendas e na definição das competências tributárias, Luciana Suarez Galvão, professora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, e Anne Gerard Hanley, professora da Northern Illinois University, nos Estados Unidos, escrevem o artigo Fiscalidade no Brasil Império: a Manutenção de Privilégios e o Legado da Desigualdade. Nele, as professoras defendem que a retórica do liberalismo e a falta de planejamento levaram ao estabelecimento de um sistema tributário que manteve os privilégios da elite política e econômica, com base no recolhimento de impostos indiretos sobre toda uma população de forma desigual. A mesma falta de planejamento acabou por deixar províncias, e em especial municípios, com grande parte da responsabilidade sobre a organização de bens públicos, mas de maneira inadequada. Segundo as autoras, o conjunto desses aspectos comprometeu de maneira significativa o desenvolvimento econômico de longo prazo, agravando ainda mais a disparidade social.
Sobre o contexto histórico da Independência do Brasil, que foi marcado por inúmeros desafios, dentre eles o estabelecimento de uma rede de vias de comunicação que integrasse o território e, assim, auxiliasse a unidade do Império brasileiro, Guilherme Grandi, professor do Departamento de Economia da FEA, escreve o artigo Transportes e Planos de Viação no Brasil Imperial. O objetivo do texto, de acordo com o autor, é examinar aspectos gerais sobre os transportes terrestre e fluvial ao longo do Primeiro Reinado (1822-1831) e da Regência (1831-1840). Grandi ainda analisa as propostas de alguns dos principais planos de viação que surgiram ao longo do período de 1869 a 1882.
O professor da Universidade Federal de Alfenas (Unifal), em Minas Gerais, Thiago Fontelas Rosado Gambi, no artigo A Independência e o Banco, Brasil 1821-1829, tem a intenção de avaliar, por meio de relatórios do Ministério da Fazenda, a atuação do Banco do Brasil como fornecedor de crédito ao governo desde a Independência até sua extinção, em 1829. O autor investiga a repercussão da imprensa da corte sobre os negócios bancários no contexto da emancipação política. A pesquisa mostrou que, embora os bancos não tenham sido protagonistas na expansão do mercado de crédito no País, o Banco do Brasil cumpriu uma importante função no financiamento do gasto público e na consolidação da Independência. Desse modo, o artigo contribui para esclarecer o papel do banco no financiamento dos gastos públicos depois da Independência e captar, pela imprensa, o efeito de seus desdobramentos políticos sobre a confiança na instituição.
O artigo O Mealheiro Oculto: Dinâmicas Econômicas entre o Norte e o Sul do Brasil no Tempo da Independência, do professor da Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará (UFPA) Daniel Souza Barroso, tem como objetivo analisar a economia da Amazônia, do Nordeste e do Sul do Brasil no período da Independência. Para isso, Barroso examina as exportações e a força de trabalho escravizada dessas regiões.
No final, o professor propõe a hipótese de que – direta ou indiretamente – as dinâmicas econômicas entre o Norte e o Sul do Brasil produziram riqueza à margem do Centro-Sul, ao responderem por grande parte das exportações e da população do País naquele contexto.
Alexandre Macchione Saes, professor do Departamento de Economia da FEA, e Ivan Colangelo Salomão, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), discutem a difusão das ideias da economia política clássica no artigo Pensamento Econômico no Brasil na Época da Independência. Os autores estudam três eventos históricos, entre os séculos 18 e 19, que marcam um período de transições: as independências americanas, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial inglesa. No confronto entre essas ideias e a prática da economia colonial, a assimilação da economia política no Brasil realizada pela geração de d. Rodrigo de Sousa Coutinho, José da Silva Lisboa e José Bonifácio de Andrada e Silva implicou tendência contraditória de difícil conciliação entre interesses metropolitanos e coloniais e a manutenção de práticas mercantilistas em meio às ideias liberais.
O debate sobre capitalismo e escravidão é o tema central do artigo Revolução Industrial e Circuitos Mercantis Globais: a Crise da Escravidão no Império Britânico, de Tâmis Parron, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Para ele, essa temática ilumina as relações materiais entre Revolução Industrial e crise da escravidão negra no Império britânico a partir das perspectivas da teoria crítica e do mundo.
Para fechar a edição, e ainda na esteira das datas comemorativas, a seção Arte traz um artigo da professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Elza Ajzenberg: A Semana de Arte Moderna de 1922 – Cem Anos Depois. Elza conta a história da organização da Semana de Arte Moderna e os debates em torno da exposição de Anita Malfatti entre 1917 e 1918. Além disso, a professora explica o contexto histórico, as principais ideias políticas e movimentos artísticos que cercaram a Semana e a repercussão na imprensa da época.
O dossiê Bicentenário da Independência: Economia, o primeiro da tetralogia, foi organizado pelos professores Hélio Nogueira da Cruz, Flávio Azevedo Marques Saes e Guilherme Grandi, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, e está disponível neste link.
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