O legado da Constituição de Cádiz na Constituinte de 1823
Paulo Roberto de Almeida, sociólogo, diplomata e professor.
Notas para exposição oral no quadro do seminário comemorativo dos 200 anos da Assembleia Constituinte de 1823: Assembleia Constituinte de 1823: Antecedentes e Consequências; Mesa 4: “O ideário Jurídico da Constituinte de 1823”; Câmara dos Deputados, dia 9/11/2023, 9:00hs.
São inúmeros os afluentes doutrinais e conceituais que vão conjugar-se, entre o final do século 18 e o início do 19, na formação do grande rio jurídico que desemboca nos trabalhos da brevíssima primeira Constituinte brasileira, chamada apropriadamente de “Constituinte Interrompida”, segundo o título do livro publicado para o seu bicentenário pelo assessor da Câmara dos Deputados, o historiador José Theodoro Mascarenhas Menck. Ela começou seus debates em meados de 1823, discutindo os fundamentos daquela que deveria ser a Carta inaugural do Império do Brasil, contando com a experiência de representantes escolhidos dentre as melhores inteligências do Reino Unido do Brasil, tornado independente como Império do Brasil poucos meses antes, mas terminou brutalmente cerceada na “noite de agonia” em novembro desse mesmo ano, sem poder concluir seu mandato por édito do imperador, mas também dos inimigos dos Andradas, as principais cabeças pensantes do novo Estado e da sua primeira Assembleia Constituinte.
Os afluentes doutrinais, no campo do constitucionalismo, podem ser listados, dentre várias outras influências políticas e filosóficas, num itinerário de aprofundamento do constitucionalismo escrito – à diferença do direito costumeiro da tradição anglo-saxã – até as Cartas que foram sendo elaboradas sucessivamente no hemisfério americano e mesmo em alguns reinos europeus. As etapas mais relevantes desse percurso podem ser elencadas cronologicamente: elas partem da Declaração da independência das trezes colônias americanas, passam pela Constituição da Filadélfia, de 1787, pela Revolução francesa de julho de 1789 e sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de agosto do mesmo ano e, sobretudo, pelo grande monumento do constitucionalismo liberal representado pela Constituição de Cádiz, de 1812.
Essa notável e solitária representante do constitucionalismo ibérico teve uma influência direta na Revolução do Porto de 1820, assim como nos trabalhos das Cortes de Lisboa de 1821-22, servindo inclusive de suporte constitucional provisório para Portugal e para o próprio Brasil, assim como nos trabalhos incipientes do nosso primeiro exercício soberano de elaboração constitucional. Todos esses afluentes experimentais, complementados pelas elaborações doutrinais de um Benjamin Constant, vão enriquecer e desembocar no caudaloso rio que marca, justamente, o ideário Jurídico da Constituinte de 1823. Essa história está refletida em muitos ensaios e estudos de diversos especialistas em história constitucional, brasileira, hemisférica e continental europeia, mas a Constituição de Cádiz permaneceu numa espécie de limbo historiográfico, cuja importância merece ser ressaltada.
No plano conceitual, por outro lado, sobressaem, no enriquecimento do debate político em torno da construção progressiva des regimes de monarquia constitucional na Europa e na América portuguesa, os aportes extremamente ricos do jornalista Hipólito da Costa, que seguiu atentamente, nas páginas do seu “armazém literário”, todos os processos revolucionários e de construção jurídica que partiram do tsunami constitucional registrado na França da Convenção, do Diretório, etapas da grande revolução francesa, que ele seguiu atentamente desde o Consulado e o Império napoleônico, até a Restauração. Muitos dos seus artigos e comentários eram escritos de circunstância, mas também são publicadas, nas páginas do Correio Braziliense, análises mais detidas, que incidem, justamente sobre as revoluções constitucionais ibéricas e mesmo a de Nápoles, com destaque para a Constituição de Cádiz de 1812, não particularmente apreciada por Hipólito.
O pai da imprensa livre brasileira formulou críticas à Carta dos liberais espanhóis, em função de sua extrema restrição aos poderes do monarca, um diminuto artigo da Carta, em confronto com o imenso rol de atribuições do Parlamento, muitos deles elaborados justamente para controlar a tradição autocrática dos soberanos espanhóis. Afastada na assunção de Fernando VII ao trono espanhol, a Carta de Cádiz é a principal responsável pela revolta militar do início de 1820, que resultará no breve triênio liberal de 1820-23, refletindo-se ainda em outros impulsos liberais na península e mais além.
A Fênix de Cádiz serviu, em especial, de inspiração ao Sinédrio português, que protagonizou a Revolução do Porto de 1820; ela viu-se adotada temporariamente em Portugal, pelas Cortes de Lisboa, mas também no Brasil, em 1821, na ausência de textos próprios que pudessem preencher o vácuo deixado pelo antigo regime absolutista. A despeito de ter sido depois naturalmente suplantada pelas Cartas Magnas de 1822, em Portugal, e pela de 1824 no Brasil, outorgada pelo imperador a partir de um texto de comissão, ela serviu de inspiração aos constituintes da Constituinte de 1823, em especial ao deputado Antonio Carlos de Andrada, cujas propostas no curso dos breves trabalhos de nosso primeiro exercício constituinte guardam muitas conexões com o texto de Cádiz. O deputado Lafayette de Andrada, presidente da Comissão do Bicentenário da Câmara dos deputados, ao prefaciar o livro de José Theodoro Mascarenhas Menck, 1823, a Constituinte Interrompida, destaca quais eram esses elementos constitucionais:
O projeto de Constituição de Antonio Carlos trazia conceitos modernos para a época e até hoje consagrados. Consignava a liberdade de expressão, a presunção de inocência, o tribunal do júri, a liberdade de pensamento e de credo religioso, a individualidade das penas, a penalização do abuso de autoridade, a proibição da prisão arbitrária, a prisão somente após condenação, o direito de propriedade, a propriedade intelectual, a inamovibilidade dos juízes; enfim, era um texto bastante moderno para a época.
Aquele texto serviu de base, de espinha dorsal, para a Constituição do Império de 1824, outorgada por D. Pedro I, que nela acrescentou o Poder Moderador e fez algumas adaptações. No conjunto, a Constituição de 1824, a mais longeva de nossa história, muito se assemelhava à Carta elaborada por Antonio Carlos que vinha sendo discutida na Constituinte de 1823 quando houve a dissolução. (prefácio de Lafayette de Andrada, in: Menck, 2023, p. 20)
Uma conferência conceitual e comparações textuais entre o tronco exacerbadamente parlamentarista da Carta original de Cádiz e o projeto de Antonio Carlos na Constituinte de 1823, assim como com vários dispositivos constitucionais da Carta outorgada em 1824, revelam essa aproximação e esse legado de Cádiz, embora obscurecido pelas diferenças de itinerários políticos e por um contraste mais significativo, que é o do poder moderador, o sustentáculo oportunista de certa preeminência do monarca sobre as tendências nitidamente parlamentaristas – ao estilo inglês de 1688, “o rei reina, mas não governa” – de quase todos os exercícios de elaboração constitucional aqui referidos.
Cabe, portanto, relembrar, que o texto de Cádiz chegou a ser temporariamente adotado como base constitucional provisória por ocasião das Cortes de Lisboa, em 1821, e pela própria regência de D. Pedro no Brasil, inspirando as bases para a constituição da monarquia portuguesa, as primeiras eleições gerais no Brasil, assim como o trabalho dos brasileiros nas Cortes Portuguesas e o daqueles que se seguiram em 1823 na Assembleia Constituinte do Rio de Janeiro, em 1823, com diversos reflexos sobre a própria Constituição outorgada em 1824.
Um esquema interpretativo sobre esse legado gaditano pode ser conferido, no plano jurídico-doutrinal, com a ajuda de uma dissertação de mestrado em Direito, defendida em 2013 na Universidade do Rio Grande do Sul, nomeadamente a de Wagner Silveira Feloniuk – A Constituição de Cádiz e sua influência no Brasil –, que mereceria ser editada e publicada em formato de livro, talvez por iniciativa de uma das duas casas do Congresso brasileiro. No plano político-constitucional, a referência incontornável e obrigatória são os muitos textos analíticos, que permeiam os registros puramente factuais e documentais, do Correio Braziliense, de Hipólito da Costa, cujos exemplos mais eloquentes foram reunidos por Sergio Goes de Paula, a partir da transcrição seletiva desses verdadeiros ensaios de direito constitucional que foram elaborados pelo grande pioneiro do jornalismo brasileiro independente, relativos aos anos cruciais de 1820 a 1822, culminando pela própria proposta de Constituição para o reino do Brasil que ele elaborou quase ao término de sua grande aventura de pensador do Brasil como Estado nação.
Referências bibliográficas:
Costa, Hipólito José da (2002-2003). Correio Braziliense, ou, Armazém Literário. reedição fac-similar; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Correio Braziliense; coordenação de Alberto Dines e Isabel Lustosa (disponível Biblioteca Mindlin-USP: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm-ext/1303).
Feloniuk, Wagner Silveira (2013). A Constituição de Cádiz e sua influência no Brasil. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Direito, Programa de Pós-Graduação em Direito; orientador: Professor Doutor Cezar Saldanha Souza Júnior (disponível: https://bdtd.ibict.br/vufind/Record/URGS_0a056903b81ce0108c93cfe5b717fd54).
Goes de Paula, Sergio (org., introdução) (2001). Hipólito José da Costa. São Paulo: Editora 34; coleção Formadores do Brasil.
Menck, José Theodoro Mascarenhas (2023). 1823, A Constituinte Interrompida: obra comemorativa dos 200 anos da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil – a primeira experiência parlamentar nacional. Prefácio de Lafayette de Andrada. 1ª. edição; Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2023; disponível em formatos eletrônico e impresso.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4488, 8 outubro 2023, 3 p.; revisão: 8/11/2023, 4 p.
Participantes da mesa 4, “O ideário Jurídico da Constituinte de 1823”:
José Bonifácio de Andrada - Subprocurador-Geral do Ministério Federal-MPF e Vice-Presidente do Conselho do MPF.
Paulo Roberto de Almeida - Diplomata e escritor
Gilmar Mendes - Ministro do Supremo Tribunal Federal
Presidente da mesa: Dep. Arlindo Chinaglia
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4488. “O legado da Constituição de Cádiz na Constituinte de 1823”, Brasília, 8 outubro 2023, 4 p. Notas para exposição oral no quadro do seminário comemorativo dos 200 anos da Assembleia Constituinte de 1823: Assembleia Constituinte de 1823: Antecedentes e Consequências; Mesa 4: “O ideário Jurídico da Constituinte de 1823”; Câmara dos Deputados, dia 9/11/2023, 9:00hs. Deve preceder a estudo mais detalhado dessas influências de Cádiz sobre os processos constituintes português e brasileiro, de 1821 a 1824. Postado no blog Diplomatizzando (2/11/2023; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2023/11/o-legado-da-constituicao-de-cadiz-na.html). Revisão ampliada em 8/11/2023, para refletir o livro de José Theodoro Mascarenhas Menck, 1823, A Constituinte Interrompida: obra comemorativa dos 200 anos da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil – a primeira experiência parlamentar nacional. Prefácio de Lafayette de Andrada. 1ª. edição; Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2023; disponível em formatos eletrônico e impresso. Novamente disponível no blog Diplomatizzando (8/11/2023; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2023/11/o-legado-da-constituicao-de-cadiz-na_8.html).
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