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sexta-feira, 31 de março de 2023

BRICS é um bloco majoritariamente ditatorial - Astrid Prange (Deutsche Welle, via Augusto de Franco)

Da página de Augusto De Franco:

BRICS É UM BLOCO MAJORITARIAMENTE DITATORIAL

Além do Brasil e da África do Sul, compõem o bloco três das maiores autocracias do mundo: Rússia (autocracia eleitoral), Índia (autocracia eleitoral) e China (autocracia fechada). Agora estão tentando incluir nos BRICS, além da Argentina, mais quatro autocracias: Egito (autocracia eleitoral), Irã (autocracia eleitoral), Turquia (autocracia eleitoral) e Arábia Saudita (autocracia fechada). O perigo é que seja o embrião de um bloco de uma segunda grande guerra fria das autocracias contra as democracias liberais.

Vejam o que escreve Astrid Prange, Deutsche Welle (27/03/2023):

A sigla começou como um termo um tanto otimista para descrever quais eram as economias de crescimento mais rápido do mundo na época. Mas agora as nações do BRICS – Brasil , Rússia, Índia, China , África do Sul – estão se estabelecendo como uma alternativa aos fóruns financeiros e políticos internacionais existentes.

"O mito fundador das economias emergentes desapareceu", confirmou Günther Maihold, vice-diretor do Instituto Alemão para Assuntos Internacionais e de Segurança, ou SWP. "Os países do BRICS estão vivendo seu momento geopolítico."

Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul estão tentando se posicionar como representantes do Sul Global, oferecendo “um modelo alternativo ao G7”.

Desde o início da guerra russa na Ucrânia, os países do BRICS só se distanciaram ainda mais do chamado Ocidente. Nem Índia , Brasil, África do Sul ou China estão participando de sanções contra a Rússia. Isso ficou cada vez mais claro com níveis quase históricos de comércio entre Índia e Rússia, ou na dependência do Brasil de fertilizantes russos.

"Diplomaticamente, a guerra na Ucrânia parece ter traçado uma linha divisória rígida entre uma Rússia apoiada pelo leste e o Ocidente", escreveu o cientista político Matthew Bishop, da Universidade de Sheffield, para o Economics Observatory no final do ano passado. "Consequentemente, alguns formuladores de políticas europeus e americanos temem que os BRICS possam se tornar menos um clube econômico de potências emergentes que buscam influenciar o crescimento e o desenvolvimento global e mais um clube político definido por seu nacionalismo autoritário."

domingo, 26 de março de 2023

Depoimento do historiador Timothy Snyder no CSNU sobre as atrocidades cometidas contra russos e ucranianos - Dagobah

 Introdução PRA:

As atrocidades que estão sendo cometidas pelo ESTADO russo na Ucrânia, e também contra o seu próprio povo, na Rússia, ao negar-lhe as verdades sobre a guerra de agressão e seus horrores, a matança dos próprios russos na Ucrânia, seja de soldados convocados para a invasão, seja de russo-ucranianos vivendo no território invadido e em outras localidades, tudo isso, como relatado pelo historiador da Rússia Timothy Snyder, deveria ser ponderado pela DIPLOMACIA BRASILEIRA em seu posicionamentos sobre como o presidente do Brasil deveria se manifestar a respeito dessa guerra terrível que compromete o futuro da Europa e também do mundo. 

Além das atrocidades que estão sendo perpetradas pelas forças russas que atacam continuamente a Ucrânia, existe uma dimensão que não está sendo propriamente considerada na avaliação dos interesses do ESTADO brasileiro e do país como um todo em face desse conflito (que não é um simples conflito militar e sim uma guerra de aniquilação de um Estado e de um povo): essa dimensão, inescapável a qualquer indivíduo que recebe as terríveis notícias que nos chegam da Ucrânia, é a DIMENSÃO MORAL de todo esse assunto.

Pergunto: como se pode ser indiferente em face de todas essas ATROCIDADES?

Onde está a capacidade de ser humano, como se perguntava Primo Levi ao voltar de Auschwitz: SE ISSO É UM HOMEM?

Como se pode ser insensível a tudo isso?

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 26/03/2023


Timothy Snyder: Briefing do Conselho de Segurança das Nações Unidas


Se fazendo de vítima

Testemunho ao Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre o discurso de ódio russo

por Timothy Snyder, Thinking about: Snyder Substack (14/03/2023)

Tradução livre ao português por Zoia Luecht

(Este é o texto do meu briefing do Conselho de Segurança das Nações Unidas esta manhã, 14 de março de 2023, para uma sessão convocada pela Federação Russa para discutir “russofobia”. Se você quiser me citar exatamente como eu falei, talvez queira verificar o vídeo da sessão, que encontra-se disponível no texto original linkado nos comentários.)

Senhoras e senhores, venho diante de vocês como historiador da região, como historiador da Europa Oriental e, especificamente, como historiador de assassinatos em massa e atrocidades políticas. Fico feliz em ser convidado a informá-los sobre o uso do termo “russofobia” por atores estatais russos. Acredito que tal discussão pode esclarecer algo sobre o caráter da guerra de agressão da Rússia na Ucrânia e a ocupação ilegal do território ucraniano pela Rússia. Falarei brevemente e me limitarei a dois pontos.

Meu primeiro ponto é que os danos aos russos e o dano à cultura russa são, principalmente, resultado das políticas empregadas na Federação Russa. Se, realmente, estamos preocupados com os danos aos russos e à cultura russa, então devemos nos preocupar com as políticas empregadas pelo estado russo.

Meu segundo ponto: Será que o termo “russofobia”, que estamos discutindo hoje, foi explorado durante esta guerra como uma forma de propaganda imperial na qual o agressor afirma ser a vítima? Serviu no ano passado como justificativa para os crimes de guerra cometidos pelos russos na Ucrânia.

Deixe-me começar do primeiro ponto. A premissa, quando discutimos “russofobia”, é que estamos preocupados com os danos aos russos. Essa é uma premissa que eu certamente compartilho. Eu compartilho da preocupação com os russos. Eu compartilho da preocupação com a cultura russa. Lembremos, então, as ações do ano passado que causaram os maiores danos aos russos e à cultura russa. Citarei brevemente dez.

1. Forçando os russos mais criativos e produtivos a emigrar. A invasão russa na Ucrânia fez com que cerca de 750.000 russos deixassem a Rússia, incluindo algumas das pessoas mais criativas e produtivas. Este é um dano irreparável à cultura russa, e é o resultado da política russa.

2. A destruição do jornalismo russo independente para que os russos não possam conhecer o mundo ao seu redor. Isso também é política russa e causa danos irreparáveis à cultura russa.

3. Censura geral e repressão à liberdade de expressão na Rússia. Na Ucrânia, você pode dizer o que gosta em russo ou ucraniano. Na Rússia, você não pode.

Se você estiver na Rússia com uma placa dizendo “não à guerra”, você será preso e muito provavelmente preso. Se você estiver na Ucrânia com um sinal que diz “não à guerra”, independentemente do idioma em que esteja expressado, nada acontecerá com você. A Rússia é um país de apenas um idioma importante com o qual você pode dizer pouco. A Ucrânia é um país com dois idiomas onde você pode dizer o que quiser.

Quando visito a Ucrânia, as pessoas me relatam sobre os crimes de guerra dos russos usam um dos dois idiomas, seja o ucraniano ou seja o russo, como preferirem.

4. O ataque à cultura russa por meio da censura de livros escolares, enfraquecendo as instituições culturais russas em casa e a destruição de museus e organizações não governamentais dedicadas à história russa. Todas essas coisas são obras da política russa.

5. A perversão da memória da Guerra da Grande Pátria, travou uma guerra de agressão em 2014 e 2022, privando assim todas as gerações futuras de russos dessa herança. Essa é a política russa. Isso causou grande dano à cultura russa.

6. O rebaixamento da cultura russa em todo o mundo e o fim do que costumava ser chamado de “russkiy mir”, o mundo russo no exterior.

Costumava ser o caso de haver muitas pessoas que se sentiam amigáveis com a Rússia e a cultura russa na Ucrânia. Isso terminou por duas invasões russas. Essas invasões eram políticas do estado russo.

7. O assassinato em massa de falantes de russo na Ucrânia. A guerra de agressão russa na Ucrânia matou mais falantes de russo do que qualquer outra ação de longe.

8. A invasão da Ucrânia pela Rússia levou à morte em massa de cidadãos russos que lutavam como soldados em sua guerra de agressão. Cerca de 200.000 russos estão mortos ou mutilados. Esta é, e é claro, simplesmente a política russa. É política russa enviar jovens russos para que morram na Ucrânia.

9. Crimes de guerra, trauma e culpa. Esta guerra significa que uma geração de jovens russos, aqueles que sobrevirem, estarão envolvidos em crimes de guerra e estarão envolvidos em traumas e culpas pelo resto de suas vidas. Isso é um grande dano à cultura russa.

Todo esse dano aos russos e à cultura russa foi alcançado pelo próprio governo russo, principalmente no decorrer do último ano. Então, se estivéssemos sinceramente preocupados com os danos aos russos, essas são algumas das coisas em que pensaríamos. Mas talvez a pior política russa em relação aos russos seja a última, a décima.

10. O treinamento sustentado ou a educação dos russos para acreditar que o genocídio é normal. Vemos isso nas repetidas alegações do presidente da Rússia de que a Ucrânia não existe. Vemos isso em fantasias genocidas na mídia estatal russa. Vemos isso em um ano de televisão estatal atingindo milhões ou dezenas de milhões de cidadãos russos todos os dias. Vemos isso quando a televisão estatal russa apresenta os ucranianos como porcos. Vemos isso quando a televisão estatal russa apresenta os ucranianos como parasitas. Vemos isso quando a televisão estatal russa apresenta os ucranianos como vermes. Vemos isso quando a televisão estatal russa apresenta os ucranianos como satanistas ou como canibais. Vemos isso quando a televisão estatal russa proclama que as crianças ucranianas devem ser afogadas. Vemos isso quando a televisão estatal russa proclama que as casas ucranianas devem ser queimadas com as pessoas dentro. Vemos isso quando as pessoas aparecem na televisão estatal russa e dizem: “Eles não deveriam existir. Devemos executá-los por pelotão de fuzilamento.” Vemos isso quando alguém aparece na televisão estatal russa e diz “vamos matar 1 milhão, vamos matar 5 milhões, podemos exterminar todos vocês”, ou seja, todos os ucranianos.

Agora, se estivéssemos sinceramente preocupados com os danos aos russos, estaríamos preocupados com o que a política russa está fazendo aos russos. A alegação de que os ucranianos são “russófobos” é mais um elemento do discurso de ódio russo na televisão estatal russa. Na mídia russa, essas outras alegações sobre os ucranianos estão misturadas com a alegação de que os ucranianos são russofóbicos. Então, por exemplo, na declaração na televisão estatal russa em que o orador propôs que todos os ucranianos fossem exterminados, seu raciocínio era que todos eles deveriam ser exterminados porque exibem a “russofobia”.

A alegação de que os ucranianos têm que ser mortos porque têm uma doença mental conhecida como “russofobia” é ruim para os russos, porque os educa no genocídio. Mas é claro que tal afirmação é muito pior aos ucranianos.

Esta é uma foto que tirei no porão da escola em Yahidne, na região de Chernihiv, na Ucrânia. Em Yahidne, os ocupantes russos mantinham toda a população da aldeia no porão da escola. Algumas pessoas foram executadas, outras morreram de exaustão. O texto nela diz “59 crianças”; eram quantas crianças que estavam entre aquelas pessoas presas em um espaço muito pequeno. No térreo da escola haviam grafites russos repetindo slogans da propaganda de televisão, por exemplo, que os ucranianos são o “diabo”.

Isso me leva ao meu segundo ponto. O termo “russofobia” é uma estratégia retórica que conhecemos das histórias dos imperialismos.

Quando um império ataca, o império afirma que é a vítima. A retórica de que os ucranianos são de alguma forma “rusófobos”, está sendo usada pelo estado russo para justificar uma guerra de agressão. A linguagem é muito importante. Mas é o ambiente em que é usado que mais importa. Este é o cenário: a invasão russa da própria Ucrânia, a destruição de cidades ucranianas inteiras, a execução de líderes ucranianos locais, a deportação forçada de crianças ucranianas, o deslocamento de quase metade da população ucraniana, a destruição de centenas de hospitais e milhares de escolas, o ataque deliberado ao abastecimento de água e calor durante o inverno. Esse é o cenário da invasão russa na Ucrânia. Isso é o que realmente está acontecendo.

O termo “russofobia” vem sendo usado neste cenário afim de promover a alegação de que o poder imperial é que é a vítima, mesmo que o poder imperial, a Rússia, esteja realizando uma guerra de atrocidades. Este é um comportamento historicamente típico. O poder imperial desumaniza a vítima real e afirma ser a vítima. Quando a vítima (neste caso a Ucrânia) se opõe a ser atacada, assassinada, a ser colonizada, o império diz que querer ser deixado em paz é irracional, é uma doença. Isso é uma “fobia”.

Essa alegação de que as vítimas são irracionais, de que são “fóbicas”, de que têm uma “fobia”, destina-se a desviar a atenção da experiência real das vítimas no mundo real, que é uma experiência, e é claro, de agressão de guerra e atrocidade. O termo “russofobia” é uma estratégia imperial destinada a mudar o assunto de uma guerra real de agressão para os sentimentos dos agressores, suprimindo assim a existência e a experiência das pessoas mais prejudicadas. O imperialista diz: “Somos as únicas pessoas aqui. Somos as verdadeiras vítimas. E nossos sentimentos feridos contam mais do que a vida de outras pessoas.”

Agora, os crimes de guerra da Rússia na Ucrânia podem ser e serão avaliados pela lei ucraniana, porque ocorrem em território ucraniano, e pelo direito internacional. A olho nu, podemos ver que há uma guerra de agressão, crimes contra a humanidade e de genocídio.

A aplicação da palavra “russofobia” neste cenário, a alegação de que os ucranianos estão mentalmente doentes em vez de que estão passando por uma atrocidade, é retórica colonial. Serve como parte de uma prática mais ampla no discurso de ódio. É por isso que esta sessão é importante: ela nos ajuda a ver o discurso de ódio genocida da Rússia. A ideia de que os ucranianos têm uma doença chamada “russofobia” é usada como um argumento para destruí-los, juntamente com os argumentos de que são eles os vermes, os parasitas, os satanistas e assim por diante.

Afirmar ser a vítima quando você é de fato o agressor não é uma defesa. Na verdade,a alegação faz parte do crime. O discurso de ódio dirigido contra os ucranianos não faz parte da defesa da Federação Russa ou de seus cidadãos. É um elemento dos crimes que os cidadãos russos estão cometendo em território ucraniano. Nesse sentido, ao convocar esta sessão, o estado russo encontrou uma nova maneira de confessar crimes de guerra. Obrigado pela sua atenção.

(Eu então falei uma segunda vez, em resposta a uma pergunta do representante russo. Novamente, se você quiser me citar diretamente, talvez queira consultar o vídeo, que está aqui. Como a consulta era sobre fontes, adicionei alguns links, por conveniência. Eles não eram elementos da minha apresentação.)

Obrigado, Sr. Presidente. Foi um prazer estar com você e entre os diplomatas. O representante russo achou por bem me pedir fontes, e estou muito feliz em ajuda-lo.

Se estamos preocupados com fontes de declarações de altos funcionários da Federação Russa, encaminho o representante russo para o site do Presidente da Federação Russa. Lá ele encontrará discursos do presidente da Federação Russa negando que a Ucrânia existe com base no fundamento de que a Ucrânia foi inventada pelos nazistas, negando que a Ucrânia existe com base no fundamento de que foi inventada pelos comunistas e negando que a Ucrânia existe com o fundamento de que um viking foi batizado há mil anos. Eu não comento aqui sobre a validade histórica ou a lógica desses argumentos. Eu simplesmente aponto que esta é uma questão de registro público, que estas são as declarações do Presidente da Federação Russa. Da mesma forma, Dmitri Medvedev, membro do Conselho de Segurança Russo, em seu canal no telegram, oferece repetidamente o tipo de linguagem genocida que foi discutida aqui hoje.

Com relação às fontes na televisão estatal russa. Isso é muito simples. Eu estava citando a televisão estatal russa. A televisão estatal russa é um órgão do estado russo. Como o próprio presidente da Federação Russa disse, a televisão estatal russa representa os interesses nacionais russos. As declarações feitas na televisão estatal russa e em outros meios de comunicação estatais, portanto, são significativas, não apenas como expressões da política russa, mas também como uma marca de motivação genocida à população russa. Isso é verdade a tal ponto que os próprios apresentadores da televisão russa se preocuparam em voz alta com a possibilidade de serem processados por crimes de guerra. Então eu encaminho o representante da Federação Russa para os arquivos de vídeo dos canais de televisão estaduais da Rússia. Para aqueles de vocês que não sabem russo, eu os refiro ao excelente trabalho de Julia Davis. Julia Davis montou um arquivo de material de vídeo russo relevante.

Se as fontes em questão são sobre as atrocidades russas reais na Ucrânia, elassão bem conhecidas e foram abundantemente documentadas. A coisa mais simples para o estado russo fazer seria permitir que jornalistas russos relatassem livre e diretamente da Ucrânia. Para todos os outros, a coisa mais simples a fazer seria visitar a Ucrânia, uma terra que tem um presidente bilíngue, democraticamente eleito, que representa uma minoria nacional e perguntem ao povo da Ucrânia sobre a guerra em ucraniano ou russo. Os ucranianos falam os dois e podem responder em ambos.

O representante da Federação Russa achou por bem atacar minhas qualificações. Eu tomo essa repreensão do estado russo como um distintivo de orgulho, já que é um elemento muito menor em um ataque maior à história e à cultura russas. Meu trabalho tem sido dedicado, entre outras coisas, a narrar o assassinato em massa de russos, inclusive no Cerco de Leningrado. Tenho orgulho ao longo da minha carreira de aprender com historiadores da Ucrânia, Polônia, Europa em geral e também com historiadores da Rússia. É lamentável que os principais historiadores da Rússia e os principais estudiosos da Rússia não tenham permissão para praticar ´livremente’ suas disciplinas em seu próprio país. É lamentável que organizações como o Memorial, que fizeram um trabalho heroico na história russa, agora sejam criminalizadas na Rússia.

Também é lamentável que as leis de memória na Rússia impeçam a discussão aberta da história russa. É lamentável que a palavra Ucrânia tenha sido banida dos livros escolares russos. Como historiador da Rússia, estou ansioso pelo dia em que possa haver uma discussão livre da fascinante história da Rússia.

Falando em história, o representante russo negou que existisse algo como a história da Ucrânia. Eu indicaria ao representante russo excelentes pesquisasfeitas por historiadores que conhecem tanto o ucraniano quanto o russo, como o trabalho recente do meu colega Serhii Plokhii em Harvard. Eu indicaria as pessoas em geral para minha aula abertasobre história ucraniana em Yale, que espero compartilhar o significado da história ucraniana de forma mais eloquente do que posso faze-lo aqui.

Mas fundamentalmente, gostaria de agradecer ao representante russo por me ajudar a fazer o ponto que eu estava tentando inclui-lo no meu briefing. O que tenho tentado dizer é que não é para o representante de um país maior dizer que o país menor não tem história. O que o representante russo acabou de nos dizer é que sempre que os ucranianos, no passado ou no presente, afirmam que existem como sociedade, isso é “ideologia” ou “russofobia”.

O representante russo nos ajudou exemplificando o comportamento que eu estava tentando descrever. Como venho tentando dizer, descartar a história alheia, ou chamá-la de doença, é uma atitude colonial com implicações genocidas. O império não tem o direito de dizer que um país vizinho não tem história. A alegação de que um país não tem passado é discurso de ódio genocida. Ao nos ajudar a fazer a conexão entre palavras e ações russas, esta sessão foi útil. Obrigado.

Timothy Snyder em 14 de março de 2023

Obrigado por ler.

Este post é público, então sinta-se à vontade para compartilhá-lo.

DAGOBAH, por Augusto de Franco, a quem agradeço por viabilizar o acesso.

(PRA)


sábado, 4 de março de 2023

Putin Has Assembled an Axis of Autocrats Against Ukraine - Justin Daniels (Foreign Policy), Augusto de Franco (Dagobah)

Putin Has Assembled an Axis of Autocrats Against Ukraine

Russia’s war is receiving critical assistance from authoritarian regimes around the world.

By Justin Daniels, assistant editor of the Journal of Democracy.

Justin Daniels, Foreignpolicy (03/03/2023)

https://foreignpolicy.com/2023/03/03/putin-russia-china-iran-ukraine-autocrats/

Via Augusto de Francohttps://dagobah.com.br/putin-has-assembled-an-axis-of-autocrats-against-ukraine/?fbclid=IwAR0jdQ7bcm2N630ZrOsFGtnKLELrfPWvwH8_uIjiF87lEVruW7BSHjPBWAQ


Russian President Vladimir Putin, Pakistani Prime Minister Imran Khan, Chinese President Xi Jinping, Uzbek President Shavkat Mirziyoyev, Iran’s President Hassan Rouhani, Kyrgyz President Sooronbai Jeenbekov walk as they attend a meeting of the Shanghai Cooperation Organisation (SCO) Council of Heads of State in Bishkek on June 14, 2019. VYACHESLAV OSELEDKO/AFP VIA GETTY IMAGES  

Russia isn’t fighting Ukraine alone. Alongside its soldiers are African conscripts, supported by Iranian drones and partly funded by stolen gold and diamonds. They may soon be joined by “lethal support” from China, according to U.S. officials.

For these vital contributions, Russian President Vladimir Putin can thank his fellow autocrats. And he’s returning the favor: Despite the invasion’s heavy toll on Russia, he still sends resources to other embattled dictators. Autocrats, like democrats, are finding that war offers them new opportunities to cooperate. And dictators’ inherent interest in staying in power means that their collaboration will continue regardless of whether Ukraine prevails.

These networks weren’t created overnight but reflect prolonged effortsby Russia, China, and likeminded regimes to make the world safe for autocracy—particularly following the Western response to Putin’s first Ukraine invasion in 2014. Their activities include neutering international civil society, spreading disinformation, and exporting surveillance technology. Today’s war in Ukraine illustrates the power of these networks—coalitions not of the willing but the wanton—to not only sustain authoritarianism where it already exists, but to export it by force.

These networks have impeded Western attempts to isolate the Kremlin and starve its war machine. Within days of the invasion, Western diplomats made Russia the most sanctioned country in the world. At first, these penalties appeared to be working: They erased Russia’s post-Soviet development gains, and more than a thousand international companies left the country. But Russia built new ties. For instance, as oil exports to the West fell in 2022, purchases from China and India—countries that did not condemn the invasion—made up the difference, contributing to Russia’s record $227 billion trade surplus. Russia used these funds to pay for the war and blunt its economic consequences for ordinary Russians. On the diplomatic front, Russia has been heavily courting African nations.

Belarus’s Aleksandr Lukashenko has aided Putin the most, hosting Russia’s troops and allowing missile launches from Belarusian territory, but these authoritarian networks stretch much farther than neighboring countries. Take, for example, Sudan. When sanctions sent the value of Russian rubles plunging to record lows, the Kremlin turned to its gold reserves to prop it up. In order to fill those reserves—which had tripled in size since Russia’s 2014 invasion—the Russians have been colluding with Sudan’s military dictatorship to smuggle billions of dollars’ worth of gold out of the country. One shipment, hidden under boxes of cookies, was scheduled to depart Khartoum just days after the invasion.

Russia’s Sudanese gold-mining front is called Meroe Gold. It began operations in 2017, weeks after the country’s then-dictator, Omar al-Bashir, asked Putin for help staying in power. Russia dispatched advisors from the Wagner Group, the ruthless Kremlin-linked mercenary group fighting in Ukraine and around the world. Wagner’s advice lived up to its reputation: During Sudan’s 2018 protests, its personnel told al-Bashir to execute individual demonstrators to set an example. After pro-democracy protests ousted al-Bashir in 2019, Wagner cozied up to Sudan’s military, which toppled the country’s nascent democratic government in 2021. In return, Wagner was given free rein of the mining industry. It has eliminated the competition by massacring dozens of miners near Sudan’s border with the Central African Republic (CAR).

The Central African story is depressingly similar to Sudan’s. Besieged by rebels, in 2018 the country’s president appealed to the Kremlin for arms and to Wagner to train his troops. Unlike in Sudan, in 2020 Wagner began to fight the insurgents directly. As payment, the government ceded control of the diamond industry. Wagner forces artisanal miners to sell only to its shell company, Diamville, through intimidation and violence. The blood diamonds are then smuggled out of the country and sold unofficially on Facebook and Instagram and officially through dealers in the West in order to fund Wagner’s operations.

In addition to money, Wagner—facing heavy losses in Ukraine—is drawing manpower from the CAR and its neighbors. It has recruitedimprisoned murderers, rapists, and even rebels convicted of killing CAR soldiers (Wagner’s ostensible allies), promising freedom and cash to anyone willing to fight in Ukraine. In March 2022, Libyan National Army commander Khalifa Haftar agreed to send mercenaries to fight for Russia, and Syrians are reportedly joining them.

While deployed in Africa, Wagner personnel have behaved with impunity: pillaging, raping, and trafficking women. Nevertheless, when asked, many Central Africans back Moscow or credit Wagner for bringing peace. Sixteen African nations, including the CAR and Sudan, abstained or voted against the February 2023 United Nations resolution calling on Russia to exit Ukraine. This is a testament not only to public opinion (or indifference) about Ukraine’s plight, but also to the appeal of what the Kremlin offers Africa’s autocrats. Leaders of poor but resource-rich countries are effectively giving Wagner bits of their sovereignty—and ignoring any resulting human rights violations—as payment for keeping them in power. And more are interested: Ghana’s president alleged that Burkina Faso’s leadership requested Wagner’s help, offering a mine in return.

Not every case of support for Russia’s war machine is so brazen or features a private military-mafia straight from a James Bond movie. Take the United Arab Emirates (UAE). Its willingness to look past shady financial transactions has allowed billions of dollars to flow to the Kremlin, as much of Sudan’s gold and the CAR’s diamonds are sold illicitly there. The UAE also bills itself as a haven for sanctioned Russian oligarchs, making it easy for them to come, buy Emirati citizenship, and park their yachts, planes, and ill-gotten gains. Turkey has become an entrepôt for European businesses seeking to continue trading with Russia. Chinese defense companies are supplying the Kremlin with crucial navigation, radio-jamming, and fighter jet components.

Armaments are also a growing part of Russia’s dealings with Iran, another embattled, sanctioned autocracy. Iranian drones have played a “central role” in attacks on Ukrainian civilians. And more are coming: The two countries are planning to build a factory in Russia to produce at least 6,000 of them. Iran, for its part, should receive around 24 Russian fighter jets by March. It also turned to Russia for counsel on defusing the protests sparked by Mahsa Amini’s death, so the Kremlin reportedly dispatched advisors. These actions are leading Moscow and Tehran toward a “full-fledged defense partnership”.

Not all autocrats are moving toward Putin. In principle, Venezuela’s regime consistently supports Russian imperialism: It took Russia’s side against Georgia in 2008, recognized Crimea as Russian, and blamed the West for the Ukraine invasion. And Putin helped Venezuela’s dictator to sell oil as democracies recognized the opposition government-in-exile and imposed crushing sanctions. But now, in practice, relations between Venezuela and the West are normalizing: Maduro wants to sell oil, and the West wants to stop buying it from Russia.

Venezuela shows that these coalitions of the wanton are as easy to make as they are to break, for they are held together only by self-interest. Nevertheless, these ties are bound to proliferate as autocrats turn to each other amid crisis. The Kremlin in particular views these networks as fundamental to maintaining power at home and waging a perceived existential struggle against the West. In other words, autocrats already see their struggles against democracy—whether in Iran, Sudan, or Ukraine—as interconnected and act accordingly. Democracies must learn to do the same.

Justin Daniels is assistant editor of the Journal of Democracy. Twitter: @JustinMDaniels

Imagem da capa. Russian President Vladimir Putin, Pakistani Prime Minister Imran Khan, Chinese President Xi Jinping, Uzbek President Shavkat Mirziyoyev, Iran’s President Hassan Rouhani, Kyrgyz President Sooronbai Jeenbekov walk as they attend a meeting of the Shanghai Cooperation Organisation (SCO) Council of Heads of State in Bishkek on June 14, 2019. VYACHESLAV OSELEDKO/AFP VIA GETTY IMAGES


domingo, 27 de novembro de 2022

Onde se esconderam os democratas liberais? - Augusto de Franco (Antagonista)

Uma primeira "crônica" de Augusto de Franco como novo Antagonista:  

Onde se esconderam os democratas liberais?

Se não houver pluralidade de forças, a política se resumirá ao perde-ganha bipolar, com mais características de guerra do que de política
Onde se esconderam os democratas liberais?
Montagem

Sempre que se usa a palavra liberal é necessário advertir que isso não tem nada a ver com as doutrinas do liberalismo-econômico ou com chamado neoliberalismo. Para todos os efeitos práticos, liberal – no sentido político do termo – significa hoje apenas uma coisa: não-populista. No primeiro turno de 2022 muitos estavam convencidos de que seria preciso construir um centro democrático liberal (quer dizer, não-populista) no Brasil. A candidatura de Simone Tebet, de certo modo, expressou esse desejo.

Com o afunilamento da disputa entre o populismo-autoritário bolsonarista e o neopopulismo lulopetista, esse desejo parece ter se esfumado. Ficou a impressão de que a (incorretamente) chamada terceira via (outra designação para o centro democrático) não passava de marketing eleitoral. Muitos que queriam apostar numa alternativa a Bolsonaro e a Lula ficaram pendurados na broxa quando várias lideranças, após declararem – corretamente – apoio a Lula no segundo turno, começaram a costear o alambrado para aderir ao novo governo. Como se dissessem: “Agora a conjuntura mudou: a gente entra no novo governo e só volta com esse papo de centro democrático (ou de terceira via) em 2026”.

Apoiar Lula no segundo turno foi a opção democrática correta, de vez que era a única maneira de impedir a reeleição de Bolsonaro – que só não aconteceu, aliás, por um triz. Mas aderir ao governismo não é a consequência necessária de ter removido eleitoralmente Bolsonaro. Ou um centro democrático – no sentido de centro de gravidade da política e não de posição geometricamente equidistante dos polos ditos de direita ou extrema-direita e de esquerda – é necessário para o bom funcionamento da democracia, ou não é.

Já que Lula foi eleito, isso não é mais necessário? Pelo contrário. Continua sendo necessário um centro de gravidade democrático liberal ou não-populista. Mas se todos os que viam essa necessidade vão embarcar no novo governo, quem articulará tal alternativa (não em 2026, mas em 2023, 2024, 2025)? Se os democratas liberais se esconderem da política, imaginando que o país vai ficar parado até o próximo pleito, então de nada valeram seus esforços e promessas no primeiro turno.


sábado, 25 de dezembro de 2021

Sistemas políticos liberais e i-liberais, segundo Augusto de Franco

 Uma abordagem inteligente dos sistemas e atores liberais ou i-liberais, a partir do modelo Variedades de Democracia da Universidade de Gotemburgo, aperfeiçoado e exemplificado por Augusto de Franco.

Paulo Roberto de Almeida 


Classificando as forças políticas sem usar as noções de esquerda e direita

Ensaiemos uma nova classificação dos atores políticos (inspirada na classificação do V-Dem dos quatro tipos de regimes políticos: democracia liberal, democracia eleitoral, autocracia eleitoral e autocracia fechada ou não-eleitoral). Claro que isso pode ser apenas uma inspiração: os critérios (ou indicadores) de democracia que permitem a classificação do V-Dem nos quatro tipos acima não se aplicam a atores políticos (ou forças políticas). Podemos ter autocratas eleitorais no governo (como Trump) em democracias liberais (como os EUA). Podemos ter autocratas eleitorais fora do governo (como Farage, Salvini e Le Pen) em democracias liberais (como Reino Unido, Itália e França). Podemos ter autocratas eleitorais no governo (como Bolsonaro e Duda) em democracias eleitorais (como Brasil e Polônia).

Feita a ressalva, vamos à classificação proposta:

Como mostra o diagrama acima, os democratas podem ser classificados em dois tipos: liberais e eleitorais.

Os autocratas também podem ser classificados em dois tipos: os eleitorais e os não-eleitorais.

Os democratas liberais, por sua vez, podem ser classificados em dois tipos: os radicais e os formais.

Exemplos de democratas eleitorais radicais: Efialtes, Péricles, Aspásia, Protágoras, Spinoza, Dewey, Arendt…

Exemplos de democratas liberais formais: Merkel e Scholz (na Alemanha), Quesada (na Costa Rica), Kishida (no Japão), Jacinda Ardern (na Nova Zelândia), Gahr Store (na Noruega).

Os democratas eleitorais podem, igualmente, ser classificados em dois tipos: os formais (ou não-populistas) e os neopopulistas.

Exemplos de democratas eleitorais formais: Antonio Costa (em Portugal), Milanovic (na Croácia), Saied (na Tunísia), Piñera (no Chile), Lacalle Pou (no Uruguai).

Exemplos de democratas eleitorais neopopulistas: Evo e Arce (na Bolívia), Correa (no Equador), Lugo (no Paraguai), Funes (em El Salvador), Lula (no Brasil), Castillo (no Peru) e Zelaya em famiglia (em Honduras).

Os autocratas eleitorais podem ser classificados em dois tipos: os neopopulistas e os populistas-autoritários (ou nacional-populistas).

Exemplos de autocratas eleitorais neopopulistas: Maduro (na Venezuela), Ortega (na Nicarágua), Lourenço (em Angola).

Exemplos de autocratas eleitorais populistas-autoritários: Orbán (na Hungria), Erdogan (na Turquia), Jarosław e Lech Kaczyński e Duda (na Polônia), Salvini (na Itália), Le Pen (na França), Farage (no Reino Unido), Trump (nos EUA), Modi (na Índia), Duterte (nas Filipinas), Bolsonaro (no Brasil).

Os autocratas não-eleitorais são os velhos ditadores já conhecidos (remanescentes do século 20).

Exemplos de autocratas não-eleitorais: Dias-Canel (em Cuba), Xi-Jinping (na China), Bin Salman (na Arábia Saudita), Bashar al-Assad (na Síria), Omar al-Bashir (no Sudão).

Os campos hachurados em cinza claro no diagrama são i-liberais.

Para que serve essa classificação?

Em primeiro lugar para escapar da categorização vazia, elaborada a partir da posição relativa no espectro político ou político-ideológico (levando em conta o conteúdo das ideias esposadas ou apresentadas): extrema-esquerda, esquerda, centro-esquerda, centro-direita, direita, extrema-direita – adotando agora como critério o comportamento político. Se alguém se perde nessas categorizações “tomográficas” descritivas das forças políticas não leva em conta as categorias analíticas capazes de explicar comportamentos políticos.

O problema não é se você pronuncia ou escreve as palavras ‘esquerda’ e ‘direita’ e sim se você usa essas categorias equívocas para analisar comportamentos políticos. Por exemplo, podemos encontrar comportamento político populista na esquerda e na direita: o peruano Castillo (de esquerda) e o americano Trump (de direita) são populistas. Outro exemplo: Antonio Costa em Portugal é considerado mais de esquerda e Sebastião Piñera no Chile é considerado de direita (ver imagem que ilustra este artigo), mas ambos são democratas eleitorais formais (não-populistas) e é isso que é fundamental para analisar o funcionamento dos regimes onde governam.

Voltando à inspiração da classificação do V-Dem. O que é relevante para a análise é se uma força política é democrático-liberal (radical ou formal), democrático-eleitoral (não-populista ou neopopulista), autocrático-eleitoral (neopopulista ou populista-autoritária) ou autocrático-fechada (não-eleitoral).

Todas as classificações que partem de uma posição relativa no espectro são equívocas: dependendo da configuração do ambiente político, alguém que é de direita pode ser encarado como extrema-direita, alguém que é de extrema-esquerda pode ser só de esquerda, alguém que é de esquerda pode ser tomado como de centro-esquerda… e por aí vai. Alguém achará uma direita e uma esquerda até no Vaticano e um democrata-liberal formal no PSTU será considerado como “de direita”. Isso não esclarece, confunde.

Caímos nesse “método” de interpretação da realidade a partir da revolução francesa, que não reinventou a democracia na época moderna, mas em compensação inventou de dividir o mundo em esquerda e direita. Na verdade, inventou a esquerda. E aí a esquerda inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita. São conceitos de guerra, não de política. É sempre uma demarcação de campos para orientar ações de conquista ou destruição. Mas vá-se lá dizer-lhes!

Em segundo lugar, a classificação aqui proposta serve para revelar que o comportamento político é função dos graus de liberalismo político (que vai, numa escala descendente, dos democratas liberais radicais aos autocratas não-eleitorais). Há uma mancha i-liberal cobrindo parte dos democratas e todos os autocratas. A ​presente classificação serve para mostrar que democratas eleitorais podem ser i-liberais (bastando, para tanto, que sejam populistas, no caso, neopopulistas – e a palavra ‘neopopulista’ é usada aqui para estabelecer uma diferença entre os velhos populismos, associados à demagogia, ao assistencialismo e clientelismo e à irresponsabilidade fiscal, e os novos populismos florescentes no século 21).

Em terceiro lugar a classificação serve para mostrar que, mesmo entre os democratas liberais, há uma distinção entre os radicais (ou inovadores – quer dizer dizer, entre os que apostam na continuidade do processo de democratização para alcançar as democracias que queremos) e os formais (que dão ênfase à manutenção do Estado democrático de direito ou à defesa da democracia que temos).

Quatro notas de rodapé para encerrar (ou começar):

1 – Na distinção entre democratas liberais radicais e formais, deve ficar claro que a defesa da democracia que temos é condição necessária para alcançarmos as democracias que queremos.

2 – A palavra ‘radical’ aqui não significa sectário, estreito ou extremista e sim, no seu sentido literal, ir à raiz da concepção democrática originária e aponta para uma conexão (ou fusão) entre o liberalismo antigo (dos democratas atenienses que tomavam a liberdade como sentido da política) e o liberalismo político dos modernos. É o imaginário lugar do pensamento onde Locke, Montesquieu, Tocqueville, Constant e Stuart Mill podem se encontrar com Clístenes, Efialtes, Péricles, Aspásia, Antífon, Crátilo, Górgias, Hípias, Pródigos, Protágoras, Trasímaco, talvez Alcídamas, Licofronte e o Anônimo Jâmblico. Ou seja, o sentido da política não é a ordem, ainda quando seja uma nova ordem mais justa – e sim a liberdade.

3 – Democracias liberais também podem ser parasitadas por populismos, embora isso seja mais difícil de ocorrer do que numa democracia (apenas) eleitoral. As democracias liberais metabolizam as forças políticas populistas (sejam democráticas ou autocráticas) confinando-as mais facilmente nas margens do espectro político (ou impedindo que elas ocupem o centro de gravidade em torno do qual a política institucional vai orbitar). As democracias (apenas) eleitorais estão sempre em risco de decaírem para autocracias eleitorais e não têm proteção tão eficaz contra os populismos.

4 – Faltaram exemplos recentes de democratas liberais radicais? Pois é… No fundo, no fundo, foi isso que inspirou este artigo.