A briga entre cientistas e produtores de soja que gerou racha no agronegócio e foi parar no STF
- Camilla Veras Mota - @cavmota
- Da BBC Brasil em São Paulo
Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
A briga entre cientistas e produtores de soja que gerou racha no agronegócio e foi parar no STF
O Brasil tem várias pequenas-grandes tragédias em seu processo de desenvolvimento econômico-social, ao longo de séculos, estendendo-se até a atualidade. A primeira, permanente e ainda atual, foi e é o “modo escravocrata de produção”, mantido durante todo o período colonial e imperial, consubstanciado na recusa sistemática por parte das elites dominantes e dirigentes de cessar o tráfico e de abolir o regime de trabalho escravo. Ele persiste até hoje nas mentalidades e comportamentos escravocratas, um legado terrível em nossa história.
A segunda tragédia, parcialmente revertida atualmente, mas causando outras deformações, foi a ausência de energias adequadas para sustentar nossa incorporação a métodos mais eficientes de impulsionar os motores das grandes revoluções industriais em cada conjuntura histórica de transformação das bases produtivas da sociedade: a falta de carvão mineral durante a primeira revolução industrial (parcialmente substituída pela madeira e pelo carvão vegetal durante largo tempo, talvez até hoje); a falta de petróleo por ocasião da segunda revolução industrial, o que só veio a ocorrer tardiamente, agravada pelo monopólio estatal de todo o ciclo do combustível fóssil (e outras deformações dessa commodity, entre elas a maldição do petróleo e a corrupção de agentes públicos).
A terceira (mas existem outras) foi a decisão inteiramente política e nacional de estrangular o transporte ferroviário (e multimodal, incorporando hidrovias) e de privilegiar o transporte rodoviário, o que matou inclusive a navegação de cabotagem e a fluvial.
As tragédias especificamente políticas e sociais são muito maiores, mas estas são enormes no plano puramente laboral e material. Erros estruturais de nossa história econômica e social, dos quais ainda não nos redimimos, sobretudo o modo escravocrata de produção e a deformação das redes de transporte.
Vai demorar mais um pouco, pois esses erros impregnaram as políticas públicas e sobretudo as mentalidades.
Como eu sempre digo, nosso atraso material é visivel, mas contornável, mas o nosso atraso mental, produzido por elites ignorantes e medíocres é persistente, invisível e indetectável, mais difícil de superar.
Paulo Roberto de Almeida
História de um declínio planejado. Predominante até a década de 1950, rede de estradas de ferro foi golpeada pela emergência do automóvel. Poderia integrar o país. Hoje, subutilizada, serve apenas ao agronegócio e à mineração
Por Camilla Veras Mota, na BBC Brasil
Lançada em 1975, a canção Ponta de Areia, composta por Milton Nascimento e Fernando Brant, é um lamento do fim da Estrada de Ferro Bahia Minas, que ligava os 582 km entre Araçuaí (MG) e o distrito de Ponta de Areia (BA).
Em 15 anos, o Brasil tinha perdido 8 mil km de ferrovias, que se estendiam naquele momento por cerca de 30 mil km do território nacional.
Desde então, o tamanho da malha ferroviária patina no mesmo patamar. Atualmente, de acordo com o os dados do Anuário Estatístico de Transportes, tem 29,8 mil km.
A BBC News Brasil perguntou a especialistas em história e engenharia ferroviária o porquê – sintetizado, a seguir, em quatro momentos.
O café é elemento central nos primeiros capítulos da história das ferrovias no Brasil – tanto na ascensão quanto na decadência, como explica Eduardo Romero de Oliveira, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
É a razão para a construção das primeiras estradas de ferro no século 19: a primeira delas, a Estrada de Ferro Mauá, que começou a operar em 1854, levava em suas locomotivas a vapor a commodity do Vale do Paraíba ao porto de Magé, na baixada fluminense, que, de lá, seguia de barco até a cidade do Rio. Nessa época, o café representava quase 50% das exportações brasileiras.
A malha ferroviária foi aumentando com a expansão da atividade cafeeira e passou a deslocar também passageiros, que até então só conseguiam viajar longas distâncias com transportes movidos por tração animal, como as charretes puxadas por cavalos.
“Durante muito tempo, as ferrovias foram praticamente a única via de transporte de cargas e pessoas no país”, destaca Oliveira, um dos pesquisadores do projeto Memória Ferroviária.
E foi nesse contexto que a malha chegou a quase 30 mil km de extensão na década de 1920, quando veio o baque da crise de 29. O crash da bolsa nos Estados Unidos, na época o maior comprador de café brasileiro, e a grande depressão que se seguiu tiveram impacto direto sobre o Brasil.
Em um curto espaço de tempo, as exportações da mercadoria despencaram, assim como os preços. As ferrovias, que eram administradas pelo setor privado sob regime de concessão, passaram a transportar cada vez menos carga e viram sua rentabilidade despencar.
Tem início, nesse momento, um período lento de decadência que culminaria na estatização das estradas de ferro mais de duas décadas depois.
Antes, contudo, outros dois fatores importantes entram em cena: o crescimento das cidades e a popularização do automóvel.
O país vive uma grande transformação depois de 1940. Até então baseada quase exclusivamente na agricultura, a economia brasileira se volta cada vez mais para a indústria. A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Vale do Rio Doce, então empresas estatais, são fundadas nessa época, em 1940 e 1942, respectivamente, no último período do governo de Getúlio Vargas, a ditadura do Estado Novo.
Essa mudança na matriz de crescimento, por sua vez, catalisa um processo de migração das populações de áreas rurais para as cidades. As capitais ganham uma nova escala, vão inchando, um processo que tem como efeito colateral a diminuição da demanda por trens de passageiros em alguns trechos menores, entre cidades próximas.
“As fábricas estão nas cidades”, pontua Oliveira.
A política de industrialização continua com o presidente Juscelino Kubitschek, que assume em 1956 e elege a indústria automobilística como catalisador de seu plano de desenvolvimento.
O Plano de Metas de JK, que ganhou o slogan “50 anos em 5”, é frequentemente apontado como o início do chamado “rodoviarismo” no Brasil. Um movimento cheio de nuanças e explicado por uma combinação de fatores, diz o professor de Engenharia de Transportes da Coppe/UFRJ Hostílio Xavier Ratton Neto.
Um deles é a própria natureza da indústria automotiva, que tem uma cadeia de produção longa, com efeito multiplicador na economia, e emprega uma mão de obra qualificada que até então não existia no país.
“É nessa época que se cria a classe do operário especializado, com maior poder aquisitivo”, afirma.
Em paralelo, a construção das rodovias era menos custosa que as estradas de ferro e o petróleo usado para produzir combustível ainda era muito barato.
No pano de fundo, a Guerra Fria estreitava as relações entre Brasil e Estados Unidos. Na tentativa de barrar a expansão da influência da União Soviética no continente, os americanos firmaram acordos de cooperação técnica e de financiamento para investimentos com diversos países da América Latina.
Assim, ainda em 1956 foi criado o Grupo Executivo da Indústria Automobilística (GEIA), sob o comando do Capitão de Mar e Guerra Lúcio Meira.
O Brasil, que até então só montava veículos, passaria a fabricar carros, caminhões e jipes, tendo como principal polo a região do ABC paulista. São desse período dois modelos que fizeram história no país: o Fusca e a Kombi, ambos da linha de montagem da Volkswagen em São Bernardo do Campo.
Com a produção de veículos nacionais, multiplicaram-se os quilômetros de rodovias. Só nos cinco anos de gestão JK, a malha rodoviária federal pavimentada foi multiplicada por três, de 2,9 mil km para 9,5 mil km.
As ferrovias, por sua vez, entravam os anos 1950 sucateadas.
Além da redução da demanda de carga e passageiros, um outro fator contribuiu para o “estado bastante acentuado de degradação física das estradas de ferro”: “Muitas concessões já estavam no final, próximo da devolução, e não havia cláusula nos contratos que obrigassem as concessionárias a fazer investimentos ou devolver as ferrovias no estado em que as pegaram”, diz Ratton Neto, que tem larga experiência no planejamento, construção, operação e gestão de sistemas de transporte metroviário e ferroviário.
É nesse contexto que, em 1957, surge a Rede Ferroviária Federal (RFFSA), estatal que passou a administrar as ferrovias que até então estavam nas mãos de diferentes empresas privadas.
Inicialmente, diz o historiador Welber Luiz dos Santos, do Núcleo de Estudos Oeste de Minas da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária, a intenção não era “destruir” as ferrovias.
“Os primeiros relatórios da empresa demonstram que o projeto era de modernização e unificação administrativa para facilitar a integração entre os diferentes meios de transporte”, afirma o pesquisador.
“Os investimentos rodoviários do Plano de Metas de JK não eram uma ameaça ao sistema ferroviário”, avalia.