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domingo, 30 de abril de 2023

O martírio de Branca Dias em O Santo Inquérito, de Dias Gomes - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (Embargos Culturais, Consultor Jurídico)

 Mais um da imperdível série dos Embargos Culturais de Arnaldo Godoy.

EMBARGOS CULTURAIS

O martírio de Branca Dias em O Santo Inquérito, de Dias Gomes

Por 

Em O Santo Inquérito, Dias Gomes (1922-1999) retomou o martírio de Branca Dias (século XVI) para explorar o assustador tema da violência na política. Agências judiciárias são instrumentalizadas para a perseguição e destruição do inimigo político, o que muitos chamam hoje de "lawfare". O tema é recorrente, porque é da essência de uma concepção realista da vida forense. Não há novidades.

Quanto ao enredo, Branca Dias é uma personagem cuja existência suscitaria algumas dúvidas, inclusive se vivia em Pernambuco ou na Paraíba. Há fortes indícios de que vivera em Olinda, onde encontramos uma simpática casa atribuída a essa proto-heroína.

Para José Joffily (político e historiador paraibano que viveu muitos anos no Paraná) Branca Dias nasceu na Paraíba, em 1734, foi condenada pela Inquisição por ser judia, e teria morrido na fogueira em Lisboa, em 1761. Joffily expôs em seu livro (Nos tempos de Branca Dias) uma foto da rua Branca Dias em João Pessoa. Minha mãe, Leila Moraes Godoy, coordenou e revisou o trabalho.

Arnaldo Nisker, da Academia Brasileira de Letras, também tratou do assunto em Branca Dias, Martírio, em livro muito bem pesquisado, sob uma perspectiva da perseguição ao judaísmo, realisticamente observando que o martírio de Branca Dias, real ou imaginário, marca fortemente a imaginação popular. Niskier é um especialista em temas conexos, como lemos em Padre Antonio Vieira e os Judeus.

Dias Gomes antepõe à peça um texto de importante valor historiográfico, registrando o que sabia e o que pensava sobre os personagens. Supõe que Branca Dias havia de fato existido, e que fora queimada na fogueira, a exemplo de Joana D'Arc. Admitiu que a história não é precisa e que há muita controvérsia em torno do assunto. A introdução fixa precisamente os limites entre história e ficção. O que aconteceu não importa. O que vale é como o autor se apropriou do enredo e do motivo histórico.

O que também encanta nessa peça de Dias Gomes é a problematização da condição da mulher. A sinceridade de Branca Dias, e até certo ponto sua ingenuidade, possibilitam uma chave interpretativa para a tragédia. O Inquisidor, Padre Bernardo, é um crápula. Implacável, pervertido, maldoso, que invertia o sentido da realidade das coisas, alertando que a acusada fingia que era um anjo de candura, e que os julgadores não eram "bestas sanguinárias". Branca Dias, no entanto, chega a afirmar que o Santo Ofício era misericordioso e justo. Quanta ingenuidade.

Há aqui também um problema historiográfico que pode nos colocar numa cilada. A Inquisição era a forma de adjudicação daquele tempo, naquele contexto, e nesse sentido era a forma como se buscava a verdade. Quem viveu à época não entendia (e nem podia entender) de outra forma. O assunto foi tratado por Michel Foucault em uma série de conferências que proferiu no Rio de Janeiro, em 1973, na então Universidade Católica do Rio de Janeiro. As conferências foram organizadas e coordenadas por Affonso Romano de Sant'Anna.

A busca da verdade por meio da racionalidade não era certamente a fórmula que conduzia os processos no ambiente da Inquisição, como lemos nos grandes estudos sobre o assunto, de Anita Novinsky, Giuseppe Marcocci, José Pedro Paiva, Neusa Fernandes, Francisco Bethencourt, Ronaldo Manoel Silva e Antonio Borges Coelho, entre tantos outros. Indico a leitura imperdível das Confissões da Bahia, organizadas por Ronaldo Vainfas. O assunto (Inquisição) é substancialmente atual, especialmente à luz de delações premiadas, acordos de leniência e de não persecução penal. No núcleo, a disputa em torno do monopólio da verdade. Vale também a leitura de O Queijo e os Vermes, de Carlo Ginsburg.

Na peça, ironicamente, Branca Dias havia salvado a vida do religioso que a acusa, que quase morrera afogado. O padre reconhece que Branca Dias lhe havia estendido a mão uma vez, que lhe salvara a vida, e que agora era sua vez de retribuir com o mesmo gesto. Ela a mandou para a fogueira, na conclusão de um processo que não poderia terminar de outra forma. Retribuiu. Um canalha.

Branca Dias tinha posições firmes. Afirmou (na peça) que "se um texto da Sagrada Escritura pode ter duas interpretações opostas, então o que não estará nesse mundo sujeito a interpretações diferentes?". É essa dúvida (de algum modo cartesiana) que forneceu à Inquisição o material para condenar a ré. A acusação consistia na heresia e na prática de atos contra a moralidade, a exemplo de nadar nua no rio, numa noite de muito calor. Branca Dias não confessou o que não podia confessar, não mentiria, "nem mesmo em troca do sol".

Na sentença, o tribunal concluiu: "Procedemos a um longo e minucioso inquérito, em que todas as acusações foram examinadas à luz da verdade, da justiça e do direito canônico. À acusada foram oferecidas todas as oportunidades de defesa e arrependimento. Dia após dia, noite após noite, estivemos aqui lutando para arrancar essa pobre alma às garras do Demônio. Mas fomos derrotados. Desgraçadamente". Na execução (fogueira) o padre, o canalha a que me referi acima, "a vê, angustiado, contorcer-se entre as chamas (...) contorce-se também, como se sentisse na própria carne".

A Inquisição queimava os corpos para salvar as almas.


 é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

Revista Consultor Jurídico, 30 de abril de 2023, 8h00

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Gelson Fonseca e o definitivo A Equidade como Fonte do Direito - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (Embargos Culturais, Conjur)

 Do sempre arguto Arnaldo Godoy, em sua série milenar (ou seja, mais de mil embargos) dedicada a livros com alguma, muito ou mesmo nenhuma, inclinação para o Direito.

Embargos Culturais

Gelson Fonseca e o definitivo A Equidade como Fonte do Direito

Por 

O tema das fontes é central no estudo do direito. Um estudo sério de direito comparado consiste, necessariamente, na avaliação das fontes que se pretende compreender e comparar. Por exemplo, mais importante do que atentarmos para um determinado comando do direito de tradição islâmica seria entendermos o substrato da regra, cuja origem desconhecemos. Quem a determina? Quais poderes detém quem tem força para fazê-la valer? De igual modo, uma compreensão de enciclopédia jurídica é na prática uma projeção operacional dos vários sistemas que identificam as fontes do direito. A pergunta fundamental que a experiência jurídica nos põe é essa: de onde vem a força impositiva de um determinado comando? É o fascinante assunto das fontes do direito.

É o tema mais apaixonante dos antigos manuais de introdução ao estudo do direito e de introdução ao direito civil. Esses livros são importantes na formação do jurista. Não sei se ainda são estudados. Muito já se escreveu sobre a lei, sobre a doutrina, sobre os costumes, sobre os princípios gerais do direito, sobre a jurisprudência. Esta última, enquanto fonte, parece-nos hoje justificativa de um superlativo hebraico: a jurisprudência se tornou a fonte das fontes. A jurisprudência hoje tudo fixa, tudo altera, tudo comanda. Pior. A jurisprudência engole a si mesma, o que pode se inferir em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, no rumorosíssimo caso da anulação de decisão tributária definitiva sem modulação de efeitos (Temas 881 e 885).

No contexto do estudo das fontes do direito há um tema hoje esquecido. Refiro-me à equidade. A equidade é um conceito derivado da filosofia de Aristóteles. No Livro V da Ética a Nicômaco, o estagirita mencionou uma régua que havia na Ilha de Lesbos e que media superfícies que não eram planas. Desse modo, metaforicamente, a aferição de uma dada medida levava em conta as características específicas do que se metrificava. Ao contrário das réguas convencionais, que medem apenas superfícies planas, e que, portanto, desprezam características específicas do que se está medindo, a régua de Lesbos permitia uma aferição completa. Era o indicativo de uma medida justa. 

Do ponto de vista da hermenêutica jurídica, a aplicação da equidade resulta na mitigação dos inconvenientes que resultam da aplicação estrita dos textos, que não leva em conta peculiaridades e aspectos muito específicos de um dado problema. Não se confunde com o conceito de equidade do common law, que é uma das variáveis da estrutura jurídica desse modelo. A equidade é instrumento de oposição à aplicação irrestrita de um texto jurídico que resulte em injustiça objetiva, e que a tradição do direito romano identifica no brocardo summum jus, summa injuria, isto é, o máximo de direito, o máximo da injustiça.

Há muitos anos tive notícia de um livro que tratava monograficamente do assunto, e que não conseguia localizar. Em recente evento no Liberty Fund, em São Paulo, conheci o filho do autor do livro. Refiro-me ao livro A Equidade como Fonte do Direito, de Gelson Fonseca, importantíssimo e competentíssimo advogado militante no Rio de Janeiro, nos anos de 1950 e 1960. O livro, que é texto definitivo sobre a equidade, é uma tese para o concurso de livre-docente da disciplina de Instituições de Direito, junto à antiga Faculdade de Ciências Econômicas do Estado da Guanabara. O livro é de 1968.

Eu já conhecia e admirava o filho de Gelson Fonseca. Trata-se do embaixador Gelson Fonseca Júnior, que se destacou como diplomata de carreira entre 1968 a 2016, quando se aposentou. O embaixador Gelson, entre outros postos, foi representante permanente junto à ONU, embaixador no Chile, cônsul-geral em Madrid e no Porto. Em São Paulo, conversamos sobre a trajetória do pai, advogado militante, e sobre o livro. Constatei que havia um único exemplar à venda, na Estante Virtual. A generosidade do embaixador resultou no encaminhamento do exemplar raro, que li numa sentada. Aprendi muito.

O autor trata da equidade primeiramente sob uma perspectiva histórica. É o ponto de partida para o postulado básico da tese: a equidade encontra-se em todos os sistemas de direito. Na primeira parte do livro o autor expõe as linhas gerais da equidade na tradição judaico-cristã. Nesse sentido, explora a equidade no Antigo Testamento (com a aparente iniquidade do julgamento de Deus) e em seguida a equidade no Novo Testamento, cujo sentido é o amor. Essa comparação é também encontrada em Hans Kelsen, em interessante livro sobre a ideia de justiça nas Sagradas Escrituras.

O autor também trata do conteúdo da equidade na tradição grega e refere-se, entre outros, ao tema do direito natural, como aparece no teatro (Antígona). Nesse ponto, Gelson Fonseca (pai) concebe a equidade como uma parte efetiva do direito não escrito. O estudo da equidade na tradição romana é o ponto alto do livro. Não nos esqueçamos que os pretores decidiam por equidade, o que também afasta a premissa equivocada de que a tradição do common law seria refratária às estruturas conceituais e práticas do direito romano, em qualquer uma de suas fases.

Quanto ao direito inglês propriamente dito a equidade tem um papel determinante, quanto à função do rei de distribuir justiça, o que se desdobra ao longo da unificação de seu poder. Após 1066, explica-nos Gelson Fonseca (pai) a fixação do direito era da autoridade local. Cuida-se de um traço peculiar do feudalismo (enquanto um tipo ideal), o que se reflete na construção da topografia e das peças do jogo de xadrez. 

Na parte final o autor estuda a equidade entre os autores nacionais, a exemplo de Pontes de Miranda, Vicente Rao, Carlos Maximiliano, Caio Mário, Serpa Lopes e Washington de Barros Monteiro. Com vários exemplos tomados do direito positivo então vigente (o livro é de 1968), o autor concluiu que a equidade é fonte formal do direito, especialmente na sociedade moderna, "em que a lei é concebida sob o império da razão, como norma técnica do governo, em que ela disciplina relações sociais".

Pelo que entendi, o concurso não teria prosperado, por razões de formalidades e de procedimento. Ficou o livro: 150 páginas da mais exuberante forma de doutrina, hoje tão rara e tão macunaímica. 

 é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).


segunda-feira, 25 de julho de 2022

"As razões do iluminismo", de Sergio Paulo Rouanet, por Arnaldo Godoy (Conjur, Embargos Culturais)

 Rouanet, como Merquior, colegas de Itamaraty, levaram um combate extremo contra o irracionalismo, e em defesa da razão, no Brasil em geral, na educação em particular, e na diplomacia, enquanto puderam. Mas exerceram a diplomacia, na maior parte de suas vidas ativas durante a ditadura militar, que acreditava num outro tipo de racionalismo, mais instrumental do que propriamente iluminista.

Paulo Roberto de Almeida

Embargos culturais

Sobre a obra "As razões do iluminismo", de Sergio Paulo Rouanet

Por 

Sérgio Paulo Rouanet (1934-2022) acreditava na força da razão e no poder de crescimento e realização dos ideais do ser humano. Denunciou o irracionalismo. Trata-se de tema central de “As razões do iluminismo”, um de seus livros mais significativos para os dias de hoje.

O iluminismo, escreveu Rouanet, havia liberado forças sociais que nos permitiram organizar nossas vidas. Libertamo-nos das sanções religiosas, do peso da autoridade escolástica, ainda que tenha o iluminismo também liberado forças que nos tornaram dependentes da técnica e do funcionalismo das relações. Rouanet propôs um resgate crítico do conceito de razão, do projeto de modernidade e do legado da ilustração.

Foi pensador da crise da razão, defensor de um racionalismo novo, fundado numa nova razão. A razão iluminista pretendia-se no centro das atenções. Para Rouanet, no entanto, a razão talvez não pudesse tudo, mas era o único bem com o qual contávamos.

Rouanet participou dos debates ligados ao pós-modernismo, que se revelava como atitude cética para com a racionalidade construída pelo pensamento iluminista. Aqueles que se identificavam como pós-modernos (uma expressão que já quis significar tanta coisa e que talvez por isso não nos diga mais nada hoje), opunham-se às promessas de um certo modelo moderno, que acenou com a objetividade, a neutralidade e o progresso ilimitado de uma ciência que nos salvaria.

Pós-modernismo, modernismo, modernização, pós-modernidade e modernidade manifestavam-se como expressões convergentes que paradoxalmente explicitam antagonismos conceituais. O pós-modernismo originariamente indicava movimento das culturas capitalistas mais avançadas, especialmente nas artes e, nesse sentido, estaria para a pós-modernidade na medida em que o modernismo estaria para a modernidade. Propunha-se a dissolução de todas as formas culturais e sociais associadas com à modernidade. Segundo Perry Anderson, o termo foi pela primeira vez utilizado por Arnold Toynbee.

“As razões do iluminismo”, foi publicado pela Companhia das Letras em 1987. É um livro de época. Rouanet afirmou que assistíamos em todo o mundo (em meados dos anos 80) tendências que previam um novo irracionalismo. Para Rouanet esse novo irracionalismo era “mais perturbador do que o antigo, porque não está [estava] mais associado a posições políticas de direita”.

Passados um pouco mais de 30 anos dessa afirmação verificamos que o irracionalismo (que constatamos no terraplanismo e em várias outras formas de negacionismo) radica, justamente, nas posições políticas de direita. A constatação, no entanto, não anula o postulado. O repúdio à razão, escreveu Rouanet, não decorria da negativa sistemática das realidades transcendentes (pátria, religião, família, Estado). Derivava do compromisso da razão com o poder.

Rouanet já anunciava um novo irracionalismo brasileiro. É que, escreveu, muitos egressos de um sistema educacional deficitário transformavam “seu não saber em norma de vida, e em modelo de uma nova forma de organização das relações humanas”. O não-saber tornou-se uma forma muita estranha e irracionalmente prestigiada de saber. O aluno de notas baixas, desinteressado, tornou-se o protagonista central do lugar comum e das banalidades. Passou a ter voz com prestígio midiático.

Em “As razões do iluminismo” há também passagens antológicas de criticismo cultural. Rouanet afirmou que muitos combatiam a cultura de massa norte-americana por que era americana, e não porque era uma cultura de massas. Inversamente, escreveu “a cultura de massas brasileira é apoiada pelo mero fato de ser brasileira, por mais alienante que seja”. Esse trocadilho inteligentíssimo lembra-nos um outro intelectual do Itamaraty, Roberto Campos, que denunciava o “fetichismo do umbigo”: brasileiros preferíamos andar de charretes de acionistas de Paracatu do que andarmos de Mercedes de acionistas de Frankfurt.

No contexto do irracionalismo brasileiro Rouanet anunciava também um crescente antielitismo, cujo objetivo consistia na tentativa de se desqualificar a cultura superior. Os profetas do não-saber voltaram-se contra velhos estereótipos da cultura aristocrática. Rouanet percebeu um “mandarinato da era eletrônica”, que “cumpre competentemente sua missão de sacralizar a cultura de massas”. Estão no Tik Tok.

Não desprezemos a cultura, parece ser a grande lição de Rouanet. Exemplifiquemos. Para esse importante ensaísta, qualquer língua culta é superior a qualquer língua natural: o dicionário de Antônio Houaiss registra cerca de 400 mil palavras, enquanto nenhuma língua natural vai além de três ou quatro mil palavras”.

Essa perspectiva vale para a música, para a literatura, para as artes plásticas, para o direito, e para todas as formas de representação de emoções e alegrias e dramas e problemas humanos.

Em 1987 Rouanet escreveu que “os fatos sociais só mudam com outros fatos sociais, e o irracionalismo brasileiro é hoje um fato social. Mas a razão, convertida em força histórica, pode criar um fato social oposto, fazendo recuar a onda irracionalista que ameaça submergir o país”. Essa passagem faz do pensador que perdemos semana passada um vidente, ainda que o fato social oposto pareça, ainda, um dado flutuante num espaço inexistente. 


1 Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.


segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Embargos Culturais: Os vários legados de Victor Nunes Leal - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (Conjur)

O grande mestre cassado pela ditadura resolveu o enigma do nosso fracasso como país, como nação, como Estado: a subalternidade do município como foco central da vida da nação. Ninguém vive na União, ninguém vive nos estados, todos vivemos num município, daí a importância fulcral da funcionalidade e da centralidade administrativa do município para a vida de cada um de nós. No entanto, o município foi sempre esquecido nos arranjos constitucionais e colocado apenas a serviço das oligarquias, os coroneis (e existem até hoje, sob formas aparentemente modernas). Daí também a grande diferença, entre termos de desenvolvimento, entre, de um lado, as formações políticas anglo-saxãs, cuja democracia, cuja vida, cujo funcionamento parte da aldeia, do village, no máximo do county, do condado, para depois se projetar em esferas mais amplas, e de outro lado, nossos municípios que praticamente não têm vida própria, nem finanças próprias, tudo dependendo do estado ou da União. Vai ser preciso refundar a nação. 

Paulo Roberto de Almeida

Embargos Culturais

Os vários legados de Victor Nunes Leal

Por 

Victor Nunes Leal (1914-1985) foi infatigável estudioso, de quem se dizia acordar às duas horas da madrugada para preparar suas aulas de Direito Constitucional. Doutor em Ciências Sociais, Victor Nunes Leal desenvolveu multifacetária atividade. Foi advogado, jornalista, ministro do Supremo Tribunal Federal, consultor-geral da República, chefe da Casa Civil (no Governo Juscelino). Era um mestre, no sentido mais puro da expressão. Afastado do STF pelo Ato Institucional em 1969, permaneceu na vida pública, advogando, orientando, ensinando, combatendo o autoritarismo e o centralismo. 

O insuperável Roberto Rosas, em "Perfis do Mundo Jurídico"[1] sintetizou as inúmeras habilidades de Nunes Leal. O tema das súmulas, hoje central na expressão prática da vida jurídica, que Roberto Rosas também tratou em livro fundamental[2], radica, objetivamente, em legado de Nunes Leal, mineiro da Carangola. Metódico, Nunes Leal reunia e resumia em cadernos (que já vi expostos na biblioteca do STF) pontos convergentes entre temas discutidos e as várias decisões proferidas. Sintetizava uma linha de pensamento, que reduzia em fórmula rápida e direta. 

Emendou-se o Regimento do STF, concebendo-se um "enunciado de súmula", decidido pelo Plenário, proposto por uma então criada Comissão de Jurisprudência, ou por qualquer dos ministros, nesse caso, com parecer da Comissão. Nesse tema, há interessante estudo de Marcus Gil Barbosa Dias, que foi assessor de Sepúlveda Pertence e que mapeou a luta de Nunes Leal contra o desconhecimento que o STF tinha, em relação às próprias decisões[3]

Nunes Leal batiza a biblioteca do STF e o centro de estudos da AGU. Era vice-presidente do STF quando foi compulsoriamente aposentado pelo governo militar. As emblemáticas decisões de Nunes Leal foram comentadas por Fernando Menezes de Almeida, autor de preciocíssimo Memorial Jurisprudencial desse combativo juiz e advogado[4]

Esse estudo inicia-se com comentários ao decidido no Recurso Extraordinário 54.190; segundo Fernando Menezes de Almeida, "trata-se de acórdão cujo interesse diz respeito não à questão de fundo debatida, mas à invocação de determinada Súmula, o que, no caso, deu ensejo a amplos debates sobre o modo de se aplicarem as Súmulas e, em especial, de se as interpretar"[5]. Essa decisão, penso, é a certidão de batismo das súmulas, em sua dimensão operacional. É o antepassado mais vivo do inciso IV do art. 927 do atual Código de Processo Civil.

O municipalismo é outro tema central em Nunes Leal. Chamo a atenção para O Município e o Regime Representativo no Brasil — Contribuição ao Estudo do Coronelismo, publicado em livro importante para compreensão da realidade brasileira, Coronelismo, Enxada e Voto[6]. No núcleo do pensamento de Nunes Leal, o estigma da centralização, que tem marcado nossa experiência política. O fracasso do modelo dos donatários (criado em 1532) determinou a criação do sistema do governador-geral (com sede em Salvador). Salvo pouquíssimas manifestações nativistas (Emboabas, Mascates), quase nada se fez, em termos de autonomia municipal. 

A experiência joanina (1808-1821) deu muita importância para o Rio de Janeiro, em detrimento dos demais lugares do país. O texto constitucional de 1824 desconhecia a vida da vila, circunstância mantida pelo Ato Adicional de 1834, em que pese pregações descentralizadoras do Padre Diogo Antônio Feijó. O texto republicano de 1891 (reformado em 1926) possibilitou o controle do município pelo poder central, no contexto da política do café-com-leite e do coronelismo, ambiente político e eleitoral pesquisado por Nunes Leal, que estudou também a estrutura normativa da carta de 1946, quando ao município já se outorgavam poderes, competências, características, ainda diminuídos por mentalidade que tudo outorga ao federal, substantivo que usamos muitas vezes como adjetivo.

Para Nunes Leal a propriedade da terra é fator de liderança política local, de onde a relação entre poder e política. É que tal propriedade é historicamente concentrada, determinando dicotomia na composição das classes na sociedade rural. O chefe construía poder a partir do meio agrícola, exercendo-o no meio urbano, que controla à distância, seja da propriedade ou da capital, estadual ou federal.

É no município, no entanto, que se desenvolve a vida real. É no ambiente cotidiano que se aferem serviços públicos, pelo que elenco de competências identificadas em textos normativos apenas contemplam realidade fática. Emperrada pela política tradicional da República Velha, a vida municipal encalacrou-se entre valores como moralização e eficiência, nos primeiros dias do golpe de 1930. Porém o municipalismo foi sufocado com a carta de 1937, que consagrou as orientações de Francisco Campos, suprimindo o princípio da eletividade dos prefeitos. Ao não mencionar o município, o modelo republicano de 1891 promoveu um silêncio enigmático, esfíngico, que possibilitou consolidação normativa, que ensejou o esvaziamento do poder local. 

Nunes Leal identificou pontos essenciais que informam a trajetória do municipalismo brasileiro. Constatou centralização arbitrária, que faz do município meio e não fim, tornando a vida local espaço de manobra para poder distante. Percebeu que injunções locais eram trianguladas por polos de poder (vinculado à posse da terra), de submissão econômica e de procedimento eleitoral falsificado, o que justificou título de seu livro, Coronelismo, Enxada e Voto

Compreendeu que todas as funções da vida prática se dão no município, que detém fins e por isso carece de deter meios também. Observou que a eletividade é princípio sonegado, em nome de uma moralidade volátil, distante. Sublinhou que o silêncio normativo paralisa o município, tomado por tradição histórica que respeita o macro, o grande, consubstanciado no poder central. Despreza-se o micro, o local, onde se vive cotidiano que tem massacrado os mais carentes, cujos gritos e soluços não provocam ouvidos moucos de sistema centralizado. 

É que forças centralizadoras se oxigenam no município, aos quais retribuem com o esquecimento e atitudes interesseiras, como constatado por Nunes Leal. Coronelismo, Enxada e Voto é um livro clássico, que exige permanente atenção, leitura e releitura. Os tempos mudaram, porém, muitas estruturas ainda nos marcam profundamente. 

De igual modo, as súmulas, que antecedem súmulas vinculantes e precedentes qualificados, e tantas figuras contemporâneas, a exemplo de incidentes de resolução de demandas repetitivas e de incidentes de assunção de competência. Foi Fernando Almeida quem coletou passagem de Aliomar Baleeiro no MS 15.866, que se referiu a Nunes Leal como “a própria jurisprudência viva do Supremo Tribunal Federal andando pelas ruas”. 

 

[1] Roberto Rosas, Perfis do Mundo Jurídico, Ribeirão Preto: Migalhas, 2011. 

[2] Roberto Rosas, Direito Sumular, São Paulo: Malheiros, 2012. Roberto Rosas dedica esse livro de leitura obrigatória entre outros, para Victor Nunes Leal. 

[4] Fernando Menezes de Almeida, Memória Jurisprudencial- Ministro Victor Nunes Leal, Brasília: STF, 2006. 

[5] Fernando Menezes de Almeida, cit., p. 11. 

[6] Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto. São Paulo: Alfa Ômega, 1976.


domingo, 28 de fevereiro de 2021

Ricardo Lobo Torres e o direito ao mínimo existencial (Embargos Culturais) - Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Embargos Culturais

Ricardo Lobo Torres e o direito ao mínimo existencial

Por 

Ricardo Lobo Torres (que faleceu em 2018) deixou-nos extensa bibliografia de Direito Tributário. Sua obra, no entanto, é marcada por aliciantes intervenções filosóficas. Deve-se essa característica, creio, à sua dupla formação: licenciou-se em Filosofia (1962/UERJ), bacharelou-se em Direito (1958/UFF) e compôs tese de doutoramento que aproximou esses dois campos (1990/Gama Filho). No doutorado, escreveu sobre a liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal [1].

Foi um pesquisador interdisciplinar. Aproximou o que de comum havia nas disciplinas que explorava e metodicamente estudava. Entre seus livros, deixou-nos "O Direito ao Mínimo Existencial", publicado em 2009 pela Editora Renovar. Há nesse texto uma concepção humanista da normatividade. Lobo Torres compreendia o Direito como uma técnica a serviço da construção de uma sociedade mais justa. No Direito Tributário, contrapunha-se aos positivistas da tipicidade cerrada, defensores de um formalismo intransigente para com qualquer rompimento interpretativo com a legalidade absoluta. Para Lobo Torres, o Direito deveria se orientar para a plena realização dos ideais de dignidade da pessoa humana. Transcendeu seus pares. Era um visionário.

Em "O Direito ao Mínimo Existencial", Lobo Torres especulou em torno de mecanismos de luta contra a exclusão social, as desigualdades e miséria de um modo geral. O que denominava de mínimo existencial comporia núcleo inegociável no conjunto dos direitos fundamentais. O livro foi estruturado em duas sessões. Trata inicialmente da positivação da teoria do mínimo existencial, explicitando conceito, estrutura normativa, bem como valores e princípios jurídicos que o sustentariam e que justificariam sua plena realização. Na segunda sessão trata-se de sua efetividade, com base na doutrina do status, atribuída a Georg Jellinek (1851-1911), autor alemão cujo trabalho Lobo Torres bem conhecia.

Colocando-se a questão em termos mais simples, e no ambiente da tributação, o mínimo existencial consiste na vedação de qualquer forma de tributação que resulte na impossibilidade de uma pessoa hipossuficiente ter acesso a bens e produtos essenciais para a sobrevivência. É relevante quando pensamos em termos de tributação indireta, que atinge bens e serviços. Trata-se da regressividade fiscal: a tributação acaba pesando mais nos mais pobres.

Lobo Torres realçou do ponto de vista histórico o papel exercido pela Igreja, incumbindo-se do cuidado para com os pobres. Lembrou que essa formulação poderia ter estimulado a mendicância. É o que justifica (acrescento) o fato de que a mendicância fosse enquadrada entre nós como contravenção penal (decreto-lei 3.688-1941), no núcleo das infrações contra os costumes. É o caso de quem pedia esmolas por "ociosidade ou cupidez". Essa disposição vinha desde o Código Criminal de 1890. Foi revogada em 2009. Também do ponto de vista histórico, Lobo Torres predicou a defesa do mínimo existencial em certa tradição europeia que defendia a tributação progressiva, invocando a autoridade de Jeremias Bentham, de David Hume e de Montesquieu. Estava ao lado dos utilitaristas, dos céticos e dos iluministas.

Exemplificou que entre nós há preocupação com o assunto desde a Constituição de 1824, que dispunha sobre garantia de "socorros públicos" (artigo 179, 31). Lobo Torres mapeou essa tradição, caminhando até o dispositivo constitucional atual sobre erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais (artigo 3º, III). Em seguida, motivou o mínimo existencial em padrões de ética, de liberdade, de felicidade, de igualdade e de dignidade. Entendo que há uma fundamentação metafísica, o que revela influencia kantiana exercida sobre o professor fluminense.

Lobo Torres reconheceu que o mínimo existencial é conceito operacional que carece de conteúdo normativo específico. O assunto é pulverizado, do ponto de vista de suposta definição de campos de estudo. Encontra-se nos Direitos Tributário, Financeiro, Previdenciário, Civil, Penal e Internacional. Em passo reducionista, Lobo Torres afirmou que o mínimo existencial ocuparia posição de centralidade, em torno da qual gravitariam o direito ao desenvolvimento humano, à qualidade de vida e à redistribuição de rendas. A teoria do mínimo existencial seria um subsistema da teoria dos direitos fundamentais.

Revela-se uma teoria normativa, na medida em que dirigida à concretização e eficácia de seus valores. Seria também interpretativa, justamente porque implicaria em determinada compreensão dos direitos fundamentais. Essencialmente, a concepção de mínimo existencial seria dogmática também, porquanto somente se realizaria a partir de disposições legais e de intervenções judiciais. Lobo Torres relacionou o mínimo existencial com as teorias da justiça, com especial atenção às críticas formuladas por Hans Kelsen.

Há uma inegável relação do conceito de mínimo existencial com os postulados do Direito natural, criticados por Kelsen. O Direito natural, afirmou Kelsen, não responderia a uma objeção central, que consiste na impossibilidade de formular normas de conduta reta com caráter geral, válidas em todas as circunstâncias. Isto é, a impossibilidade real de um direito natural imutável levou a uma concepção de Direito natural variável. Para Kelsen, não se consegue fixar um parâmetro comum e constante. Lobo Torres contrapõe-se à essa concepção, invocando o caráter absoluto desse Direito, dada sua inegável dimensão valorativa humana.

Os direitos sociais, concede, estariam sujeitos à reserva do possível, de feição orçamentária. Transpõe-se esse óbice destacando-se o mínimo essencial dessa contingência, de vínculo com os direitos sociais. Discorreu sobre intuições de justiça na tradição filosófica ocidental mais recente, com base em John Rawls, em Robert Alexy e em Jurgen Habermas.

Referiu-se a Rawls a propósito de um quadro protetivo do mínimo social, que visaria a assegurar uma igualdade de oportunidades que seria potencialmente imparcial. Socorre-se também do Tribunal Constitucional Alemão, ao qual imputou, inclusive, a noção mais acabada de reserva do possível. Referiu-se ao julgamento dos alunos aprovados, mas não convocados para a Escola de Medicina. A mera aprovação não garantiria a vaga, por falta de orçamento que garantisse a fruição do curso. Comentou a decisão da Corte Alemã.

Lobo Torres considerou com deferência a obra singular de Ingo Sarlet (a quem prioritariamente dedicou o livro). Ingo, maior autoridade brasileira no assunto, inovou na discussão, apresentando a multidimensionalidade de uma reserva do possível que denominou de "fática". Nesse sentido, há de se considerar aspectos financeiros, orçamentários, de recursos humanos, jurídicos, de competência de entes federados, de direitos conflitantes, de proporcionalidade e de isonomia.

O tipo ideal conceitual reserva do possível sujeita-se a fatos concretos, com implicações diretas na aplicação do mínimo existencial, também estruturado na reserva do possível, em seu contexto prático. Lobo Torres insistia na necessidade de se desvencilhar esses dois núcleos conceituais e operativos. Argumentou que a doutrina brasileira "desinterpretou" o conceito de mínimo existencial. Teríamos perdido o sentido originário desse conceito humanista de direito.

De tal modo, argumentou, a estrutura normativa da "reserva do possível" mostra-se como regra (porque demanda subsunção) e não como valor ou princípio. Transita-se no campo dos "limites dos limites", referente à intervenção do Estado, pautada também pela reserva de lei e pelas destinações orçamentárias, em que não há espaço para qualquer forma de discricionariedade.

Lobo Torres defendia a maximização do mínimo existencial com a consequente otimização dos direitos sociais. No plano fático apontava para a teoria das imunidades tributárias. Cuidou de imunidades implícitas (cestas básicas, disposições da legislação do Imposto de Renda, direito à moradia) bem como de imunidades explícitas (acesso à Justiça e certidões, instituições de educação e de assistência social, entidades de previdência privada). Discorreu sobre a legitimação das imunidades, discussão que permanece em aberto na jurisprudência brasileira. Talvez contraditoriamente percebeu no Sistema Único de Saúde-SUS um modelo utópico de gratuidade nos serviços de saúde.

"O Direito ao Mínimo Existencia

l", de Ricardo Lobo Torres, é livro de defesa do resgate humanitário da função do Direito. É documento literário e jurídico de época, datado. Mas, ao mesmo tempo, é presente e permanentemente inspirador. Dessa inspiração recorrente é que se colhe o legado de um grande mestre, de quem sentimos muita saudade.

 

[1] Dedico esse pequeno ensaio a Agostinho Nascimento Netto, preparadíssimo e estudioso colega na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, com quem comungava imensa admiração e respeito por Ricardo Lobo Torres.



domingo, 13 de dezembro de 2020

Clarice Lispector: “Feliz [?!?!] Aniversário”?!?! - por Arnaldo Godoy

 Mais uma das crônicas literárias — que o Conjur chama de Embargos Culturais — de Arnaldo Godoy, que por acaso me fez lembrar de uma “comédia-tragédia” familiar italiana, Parente Serpente.

EMBARGOS CULTURAIS

A propósito do centenário do nascimento de Clarice Lispector

Por 

Na última quinta-feira (10/12), lembramos o centenário do nascimento de Clarice Lispector, que faleceu em 1977. Nasceu na Ucrânia. Veio muito nova para o Brasil. Seu nome de batismo é Chaya Pinkhasovna Lispector. À clássica biografia de Nádia Battella Gotlib acrescenta-se o trabalho de Benjamin Moser, na belíssima edição da Companhia das Letras. Os livros de Nádia e de Benjamin são afagos que temperam o Natal de leitores sensíveis. Clarice esteve aqui em Brasília em 1976, ganhando o prêmio da Fundação Cultural. Acabara de se separar do marido, o diplomata Maury Gurgel. Pronunciou uma conferência sobre a literatura de vanguarda no Brasil. Trata-se de um registro da atuação de Clarice, em assunto de teoria literária. A conferência está publicada em "Outros Escritos", da Editora Rocco. 

Tímida e ao mesmo tempo ousada (na percepção dela mesma), Clarice legou-nos passagens que se abrem a intermináveis especulações. Necessária uma escolha (ainda que arbitrária) que me dê mote para texto comemorativo. Em "Feliz Aniversário", Clarice explorou dramas da velhice e desencontros familiares. É essa a narrativa que exponho. A propósito do aniversário de uma anciã, Clarice alcançou o cômico e o trágico, fundindo essas duas instâncias da condição humana. O leitor pode se ver com os olhos da senhora, sofrendo as humilhações que lhe são impostas. A aniversariante (com dificuldade) manifesta vontade que lhe foi retirada. É uma história de assustar. Dá medo de envelhecer. Muito medo. Muito medo mesmo. Parece-me que Clarice também nos adverte em relação ao que podemos esperar de nossos parentes. 

A anciã, na narrativa, completa 89 anos. Era grande, magra, morena, imponente e, ao mesmo tempo, oca. Vivia com uma das filhas. A dona da casa organizou a festa como pôde, arrumando a sala, que encheu de balões. Para ganhar tempo, conta-nos Clarice, a filha vestiu a aniversariante logo depois do almoço. A anciã foi logo sentada na ponta da mesa, aguardando os convidados, todos da família, que chegariam bem mais tarde. Clarice nos dá a impressão de que a protagonista da narrativa era um mero adereço no apartamento. 

Um dos filhos não foi à festa. Não queria encontrar os irmãos. Enviou em seu lugar a esposa e os três filhos, ao que consta ainda adolescentes. Era a "turma de Olaria", os suburbanos que se vestiram cuidadosamente porque iriam para Copacabana, onde a festa ocorria. A nora de Olaria deixava claro que não queria ir, e que estava ali obrigada pelo marido ausente. Fazia cara feia. Chega também a nora de Ipanema, esnobe, com dois netos e com uma babá, que Clarice dizia ociosa. O marido chegaria depois. Maridos de madames sempre chegam depois. Têm sempre um compromisso, no escritório, ou na política, ou em qualquer lugar que inventam na hora. As noras não se olhavam, se detestavam. Também veio o filho mais velho, que assumira o lugar de um filho falecido. Compareceu com toda a família. 

Comiam sanduíches de presunto, croquetes, bebiam ponche. Há cheiro de gordura e de fritura no apartamento. Havia na mesa um imenso bolo, com uma vela, junto à qual havia um pedacinho de papel onde se lia: 89. Gritam a idade da avó, cantam parabéns, os netos que estudavam no Colégio Bennet sempre falando em inglês. Conta-nos Clarice que as lembranças e presentes que a aniversariante recebeu de nada serviam. Uma saboneteira, um broche de fantasia, um pequeno vaso de cacto. Nada se aproveitaria. A dona da casa, amargurada, guardava os mimos com certa amargura, nada lhe serviria. Em torno de uma sala apertada circulavam, gritavam, comiam o que havia. O leitor tem a sensação de que os convidados cumpriam ritual, presos em inadiável obrigação. Contavam em ver a velhinha no ano seguinte, quando haveria um outro jantar. O encontro era anual, enquanto a anciã vivesse. 

A anciã olhava. Perplexa. Verdadeiramente desprezava aquelas pessoas. Desprezava os filhos. Carne de seu joelho. Eram seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos. As mulheres eram todas de pernas finas, vaidosas. A aniversariante explodiu! Pediu vinho! E não queria pouco. Que vovozinha de nada, gritava! Que o diabo carregasse a todos: maricas, cornos, vagabundas! Cuspiu no chão! A família assustou-se com o destempero da avó. A avó esperava que após o bolo ainda houvesse comida. Hora de ir. Todos se despedem, combinando retomar as festividades no ano seguinte. A anciã comemoraria (sic) 90 anos. 

Clarice Lispector opôs familiares remediados e familiares não remediados; era a turma de Ipanema contra a turma de Olaria, que se encontravam em Copacabana. Fixou o irmão que rejeita toda a família, mas que obriga que a mulher o represente, talvez para que se lembrem de sua bravata. Uma protagonista central é a irmã a quem cabe cuidar da mãezinha, como um subpreço pelo fato de que não constituiu família própria. Todos estão reunidos e, ao mesmo tempo, muito distantes, na celebração de ritual que mais parecia prece de morte.

"Feliz aniversário" é reflexão muito séria sobre a velhice, que nos faz lembrar uma passagem emblemática de um autor romano (Ovídio): "Pensai, desde agora, na velhice que virá; assim o tempo não passará em vão para vós. Diverti-vos, enquanto é possível, enquanto vos encontrais nos verdes anos; os anos passam como a água que escoa: nem a água que corre voltará para trás, nem as horas poderão voltar. O tempo tem de ser aproveitado: ele foge com passo veloz e por melhor que seja não é tão bom como o que o antecedeu". A anciã, cujo nome não se lê no texto, é desprovida de vontade, de vigor, de voz de ordem. Talvez por isso nem mesmo nome tenha. Está ali, mas, ao mesmo tempo, não está. Está viva, mas já não tem mais vida. É um fator residual de união que talvez nunca tenha existido, ou que se desfez ao longo da vida. "Feliz aniversário" é também uma narrativa sobre o tempo, devorador de pessoas e de coisas, que nos faz pensar sobre a eternidade de Clarice, e de seus textos, e do modo como falava com a alma, nos termos em que compartilhei essas reflexões com uma alma gêmea.


domingo, 26 de julho de 2020

Arnaldo Godoy "liquida" o Conselheiro, na sua segunda postagem sobre Canudos

EMBARGOS CULTURAIS

Euclides da Cunha e a Troia de taipa dos jagunços


Em 1883 um pensador alemão dissertou sobre as diferenças nos métodos utilizados nas ciências naturais e nas ciências do espírito. Para esse pensador, William Dilthey (1833-1911), as ciências naturais são causais, centradas nas categorias dos antecedentes, enquanto que a história, que é uma ciência do espírito, seria compreensiva, focada na apreensão dos vários significados da ação humana. Euclides da Cunha, de algum modo, desafiou essa linha divisória. Era sobretudo um cético. Mas era também um cientista que escrevia com arte. E era um artista que escrevia com base na ciência ou, melhor, no que reputava científico.
Em carta a José Veríssimo, datada de 1902, Euclides defendia-se de uma crítica feita aos Sertões, observando que “o escritor do futuro será forçosamente um polígrafo; e qualquer trabalho literário se distinguirá dos estritamente científicos, apenas, por uma síntese mais delicada, excluída apenas a aridez característica das análises e das experiências”. Euclides agregou à formação de engenheiro uma densa formação literária. Formalmente, segundo o sempre lembrado Roberto Ventura, Euclides estudou álgebra, geometria analítica, cálculo diferencial e integral, física experimental, química, desenho topográfico, tática, estratégia, história militar, fortificações, noções de balística, direito militar, desenho e análise da Constituição do Império. Não se pode exagerar a aderência de Euclides aos esquisitos do positivismo1. Euclides, em carta ao pai, criticou Benjamin Constant, um dos grandes nomes do positivismo entre nós, a quem então reputou como seu “antigo ídolo”. A carta é de 14 de junho de 1890. Euclides distanciou-se do positivismo que conheceu no Exército.
A leitura dos vários textos de Euclides (“Os Sertões”, “À margem a História”, “Contrastes e Confrontos”) revela a inexistência de fronteiras epistemológicas nesse importante autor nacional. Euclides pretendia-se múltiplo, transdisciplinar. Era criminólogo, sociólogo, antropólogo, historiador, historiador militar, botânico, jornalista, geólogo, a par, naturalmente, de estilista incomparável. Segundo Walnice Nogueira Galvão, na minha opinião a mais abalizada intérprete de Euclides da Cunha, o escritor sabia “quase tudo pela rama, coisas que tinha aprendido nos bancos escolares da Escola Militar e que costumava citar de ouvido, deturpando-as”. Essa a razão pela qual há muita informação inconsistente nas seções mais científicas desse grande livro.
Uma tentativa de estação em alguns desses atributos de Euclides é o tema da presente intervenção. É preciso estudar os autores brasileiros. Comecemos com o criminólogo. Canudos, escreveu Euclides, “era o homizio de famigerados facínoras”. A lei era o arbítrio do chefe, Antonio Conselheiro. A justiça era o conjunto de suas “decisões irrevogáveis”. Na cadeia, que os sertanejos chamavam de “poeira”, “viam-se, diariamente, presos pelos que haviam cometido a leve falta de alguns homicídios os que haviam perpetrado o crime abominável de faltar às rezas”. O homicídio, naquele interior que assustou Euclides, o delito religioso (falta às rezas) era objeto de maior reprimenda do delito maior, em todas as culturas, isto é, o homicídio: uma constatação criminológica vazada sob a forma de ironia.
De acordo com o narrador dos Sertões a justiça no reduto do conselheiro era “inexorável para as pequenas culpas, nulíssima para os grandes atentados”. Buscava-se a punição de uma certa delinquência, especialíssima, pelo que em Canudos ocorria “uma inversão completa do conceito de crime”. Proibia-se o alcoolismo, que o preciosismo semântico de Euclides denominava de “dipsomania”. As penas para quem usasse da aguardente eram severas: “ai daquele que rompesse o interdito imposto”.
Euclides era também um sociólogo, provocação de Antonio Candido, em conferência na semana euclidiana, já no distante ano de 1947. Segundo Antonio Candido, “para Euclides, a população sertaneja é um bloco étnico e cultural; uma sociedade insulada em cujo corpo não se processou a divisão intensa do trabalho social, diferenciador e enriquecedor”. Euclides pormenorizou a organização de Canudos, “o lugar sagrado, cingido de montanhas, onde não penetraria a ação do governo maldito”. Era a “urbs monstruosa, de barro”, a “civitas sinistra do erro”, um povoado novo, que em algumas semanas já era um lugar velho, um punhado de ruínas.
Na descrição de Euclides em Canudos não se distinguiam as ruas. Havia becos estreitíssimos, “mal separando o baralhamento caótico dos casebres feitos ao acaso”. Descreveu um desconforto permanente, uma pobreza repugnante, “traduzindo de certo modo, mais do que a miséria do homem, a decrepitude da raça”. Adiantando-se na apresentação de um tipo próximo ao Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, Euclides tratava de “cômodos exíguos” nos quais havia “trastes raros e grosseiros: um bando tosco, dois ou três banquinhos com a forma de escabelos; igual número de caixas de cedro, ou canastras; um jirau pendido do teto; e as redes (...) era toda a mobília”.
Euclides apresentava uma população que “jugulada pelo seu prestígio” contava com “todas as condições de estádio social inferior”. Era o mundo de um sertanejo simples que “transmudava-se, penetrando-o, no fanático destemeroso e bruto”. Não havia apego à propriedade, vingando uma “forma exagerada do coletivismo tribal dos beduínos; apropriação pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas”.
Euclides também se revela um antropólogo. É o que lemos na descrição pormenorizada que fez de Antonio Conselheiro, na segunda parte de seu livro sobre a campanha de Canudos. O Conselheiro, segundo Euclides, somente poderia ser entendido no contexto psicológico da sociedade que o criou. Era um psicótico, perdido na turba dos neuróticos vulgares. Para Euclides, o Conselheiro não apresentava necessariamente uma moléstia grave, era o aspecto de um mal social gravíssimo. Em excerto de efeito, observava que o Conselheiro foi para a história do mesmo modo que poderia ter ido para um hospício.
O Conselheiro representava um misticismo feroz e extravagante, calcado em crenças ingênuas, em um fetichismo bárbaro, em aberrações de católicos fanáticos, em “tendências compulsivas de raças inferiores”, bem como na indisciplina geral da vida sertaneja. Para Euclides, “a vida resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida em sociedade”. O autor dos Sertões acreditava que o Conselheiro era documento vivo de atavismo; era “uma regressão ao estádio mental dos tipos ancestrais da espécie”. Entendia que o Conselheiro receberia diferentes análises de um médico e de um antropólogo: para o médico seria um caso de delírio sistematizado, para o antropólogo um “fenômeno de incompatibilidade com as exigências superiores da civilização”. O Conselheiro, segundo Euclides, entendia-se como protagonista-delegado de uma vontade dos céus, com função de apontar os pecados e prescrever o caminho para a salvação.
O Conselheiro, prossegue Euclides, significava-se em uma zona indefinida. Estava no limbo que separa facínoras de heróis, reformadores brilhantes e aleijões tacanhos, gênios e degenerados. O Conselheiro fora traído pela esposa, circunstância peculiar que o ligava a Euclides, como se sabe da tragédia que levou o escritor à morte prematura. A mulher do Conselheiro havia fugido com um policial, que supostamente a raptara. A mulher de Euclides, Ana, apaixonara-se por um jovem militar, Dilermando de Assis. Comentarei o caso em intervenção próxima futura, sob um prisma jurídico, e não passional. Não me sinto autorizado a perscrutar a intimidade sentimental das pessoas, vivas ou mortas. E nem tenho interesse.
Euclides descreve a trajetória do Conselheiro, sua origem no ambiente de famílias inimigas (Macieis e Araújos), um mundo de tocaias, emboscadas, vingança, amor e ódio. A descrição do Conselheiro é a que toca nosso imaginário nacional: “cabelos crescidos até os ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão, em que se apoia o passo tardo dos peregrinos”. Era um homem estranho, que andou muito tempo sem rumo certo. Euclides conta que o Conselheiro era indiferente à vida e aos perigos, alimentava-se “mal e ocasionalmente, “dormindo ao relento e à beira dos caminhos, numa penitência desnuda e rude”. Vivia de esmolas, mas não aceitava excessos. Um homem sofrido, que “anestesiara-se com a própria dor”. Carregava a indiferença superior de um estoico.
Euclides mostrou-se também como um constitucionalista. Analisou a relação dos canudenses com a República, no contexto do tema então espinhoso do casamento civil. A Constituição de 1891 era uma transposição de algum modo descarada dos arranjos institucionais norte-americanos, e que sabemos hoje predicada na influência de Rui Barbosa. Adiantou-se na teoria da transposição, de grande prestígio nos estudos de direito constitucional comparado.
Em “À margem da história”, ao comentar em excurso histórico a Constituição de 1824, Euclides observou que “uma constituição, sendo uma resultante histórica de componentes seculares, acumuladas no revolver das ideias e dos costumes, é sempre um passo para o futuro garantido pela energia conservadora do passado”. O legislador constitucional de 1824, segundo Euclides, elaborava um trabalho todo subjetivo, um “capricho de minoria erudita discorrendo dedutivamente sobre alguns preceitos abstratos, alheia ao modo de ser da maioria”. Tratava-se de um “projeto constitucional, quase abortício ou temporão, precipitado nas votações atropeladas, ou tangidas pelos ultrarradicais”. O projeto não avançou. Sabemos que D. Pedro I interveio e que da intervenção resultou o texto constitucional de 1824. Trata-se de um bem concebido texto político, para os limites conceituais da época, sobressaindo-se a possibilidade de alteração constitucional por legislação ordinária, se o objeto da reforma não fosse matéria substancialmente constitucional. Já se dividia empiricamente o texto constitucional temas formais e materiais.
Euclides, talvez mais do que tudo, foi também um historiador militar, como assinalado, entre outros, por Umberto Peregrino2. As descrições das batalhas são precisas (acredita-se) e isentas de qualquer forma de sectarismo. No entanto, ao fim da empreitada, percebe-se a revolta de Euclides para com o massacre que se desatava. O fecho dos Sertões é antológico: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”.
Euclides era um cético. Com o socorro de Sérgio Milliet posso me lembrar, a propósito de Euclides, que o ceticismo não exclui a paixão, que a dúvida não quer dizer incapacidade de amar, porque quanto maior o amor, maior pode ser a dúvida. O ceticismo, especialmente em Euclides, era um método de trabalho, muito mais do que uma filosofia. É o que percebo no estudo descritivo e compreensivo da Troia de taipa dos jagunços.

1 Devo essa expressão “esquisitos do positivismo”, bem como o alerta da posição de Euclides em relação aos positivistas a Bruno de Cerqueira, historiador, filólogo, etimólogo e antropólogo que vive em Brasília, atualmente trabalhando na Funai. Bruno é autor de várias obras que tratam da monarquia no Brasil, um dos campos de sua vasta erudição.
2 Devo essa percepção a Roberto Rosas, cultíssimo advogado militante em Brasília, que foi Ministro do TSE, historiador do direito, e que gentilmente me encaminhou textos raríssimos sobre Euclides da Cunha, com especial referência ao próprio Umberto Peregrino e a estudos sobre a passagem de Euclides no Itamaraty, redigido por Renato Almeida.
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 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

Revista Consultor Jurídico, 26 de julho de 2020, 8h00

domingo, 19 de julho de 2020

Euclides da Cunha e a história como testemunha da brutalidade - Arnaldo Godoy

EMBARGOS CULTURAIS

Euclides da Cunha e a história como testemunha da brutalidade


Consultor Juridico, 19 de julho de 2020
É preciso estudar os autores brasileiros. Euclides da Cunha (1866-1909) revela-nos a violência cometida contra os sertanejos do interior da Bahia (Canudos, mais especialmente), a par da desolação dos seringueiros e da Amazônia. Euclides da Cunha é uma figura contraditória. Estudioso meticuloso e dedicado, trabalhador incansável, hipocondríaco, republicano que se irritou com a república, positivista que refutou Floriano Peixoto, pai carinhoso nas cartas, marido traído que foi assassinado pelo amante da esposa, em horrível duelo, no qual o amante agiu inegavelmente em legítima defesa. Uma vida marcada pela tragédia e pelo heroísmo. Nada singular. Euclides é a história em forma de denúncia da brutalidade.
Euclides foi salvo, por um triz, da pena de enforcamento, prevista no Código Militar, que poderia lhe ser aplicada após o comentadíssimo episódio do sabre. Conta-se que os cadetes da Escola Militar pretendiam deixar a caserna para saudar o republicano Lopes Trovão, que passava pelo Rio de Janeiro. O Império vivia seus últimos momentos, e era latente um confronto entre os militares e o Imperador. O general comandante da escola proibiu a saída dos alunos, sob o pretexto de que o Ministro da Guerra faria uma inspeção na tropa. À hora em que estavam formados para a revista o cadete Euclides (então com 22 anos) adiantou-se, tentou quebrar o sabre, jogando-o aos pés do Ministro. Foi detido, e por intervenção de seu pai junto ao Imperador teve a pena comutada para afastamento do Exército. Escapou da forca. Entrou para a história. Júlio de Mesquita, dono e editor da Província de São Paulo (hoje o Estadão) interessou-se pelo rapaz, que passou a assinar uma coluna de política nesse importante jornal. Era o ano de 1888. Começa o trilema que marcará a vida de Euclides: exército, política e literatura, em forma de jornalismo.
Alguns anos depois do episódio do sabre, em carta dirigida a seu sogro, General Sólon Ribeiro, datada de 12 de agosto de 1897, Euclides relatou que fora convidado para estudar a região de Canudos, na Bahia. Traçaria os pontos principais da campanha. Confirma que havia aceitado. Dizia que o assunto era importante, e que “estava em jogo a felicidade geral da República”. Já em Canudos, em carta ao advogado Reinaldo Porchat, seu amigo, relatava que no sertão da guerra a vida era insípida e lúgubre, e que a distração consistia em “assistir à chegada de feridos, assistir à partida das tropas”. As informações que Euclides colheu no interior da Bahia constituem a base do livro “Os Sertões”; a primeira edição é de 1902. As edições posteriores, revistas pelo autor ainda em vida, revelam uma guinada na forma de escrever. Euclides abrasileirou sua escrita, adotando prosódia e ortoépica que distintas das formas castiças de Portugal, que tanto conhecia. Abandonou as ênclises.
Há no Brasil uma fortíssima linha de pesquisa em torno de Euclides da Cunha, sobressaindo-se Walnice Nogueira Galvão, a quem, entre outros importantes trabalhos, se deve a publicação das cartas de Euclides (ao lado de Oswaldo Galloti), bem como dos autos do processo referente a seu trágico fim. Há também a inestimável obra biográfica de autoria de Roberto Ventura, precocemente falecido, em acidente de automóvel. Toda a inteligência brasileira já opinou sobre Euclides: Miguel Reale, Gilberto Freyre, Fernando Henrique Cardoso, José Guilherme Merquior. À época de Euclides, há José Veríssimo e Araripe Júnior. Brito Broca também deixou passagens memoráveis sobre Euclides.
Euclides da Cunha nasceu na Fazenda Saudade, em Cantagalo, no Rio de Janeiro. Estudou engenharia, formando-se na Escola Militar, na Praia Vermelha, na cidade do Rio de Janeiro, depois de readmitido ao Exército, já na era republicana. Era o mais avançado centro de estudos que havia no Brasil. Pontificavam as ideias positivistas e cientificistas. Euclides foi aluno de Benjamin Constant. Bem além das ciências exatas, estudava-se com profundidade a filosofia, com foco no inglês Herbert Spencer e na concepção de que os mais aptos triunfam. Também foi preponderante a influência de Charles Darwin. Euclides estudou Auguste Comte, e só não foi um positivista mais extremado provavelmente porque resistia aos fundamentos quase religiosos dessa escola. A concepção de herói em Thomas Carlyle também influenciou Euclides, na visão de mundo e no estilo.
“Os Sertões” é vigorosa denúncia às atrocidades cometidas contra uma população esquecida do interior brasileiro. Vale como uma primeira tomada de consciência para com um problema complexo na construção da identidade nacional. O problema persiste, ainda que sob outras perspectivas. Euclides é cartesiano. O livro se divide em três partes: a terra, o homem e a luta. Euclides é ambicioso, escreve sobre vários assuntos: geologia, botânica, sociologia, antropologia, política, mineralogia, hidrologia, frenologia, história. Especialistas apontam que há muitos erros e premissas mal fundamentadas.
“Os Sertões” tem muitos méritos, especialmente, na medida em que Euclides provoca olhares sobre uma gente explorada. O livro foi um sucesso. A primeira edição esgotou-se rapidamente. O estilo de Euclides é difícil. Abundam adjetivos, superlativos e oximoros. Tem-se a figura do “pleonasmo euclidiano”. Barroco, e ao mesmo tempo esforçado para o alcance de uma precisão científica, há muito leitor que desiste logo no primeiro capítulo. Vale uma leitura que principie com a descrição do nativo, que Euclides define como o jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo, o caipira simplório.
Euclides denunciou a campanha de Canudos, que definiu como um crime, “na significação integral da palavra”. É um libelo contra a campanha militar, uma acusação direta contra o governo. Euclides já não estava no Exército. Denunciou os soldados como “mercenários inconscientes”. Segundo Euclides, os agressores viviam pacificamente à beira do Atlântico, nos parâmetros de princípios civilizados elaborados na Europa, bem armados pela indústria alemã.
“Os Sertões” principia com uma “nota preliminar”. Euclides observa que o livro foi escrito “nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigante”. A maior parte foi redigida em São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo, onde trabalhava como engenheiro. Pretende apresentar um estudo sobre as “sub-raças sertanejas”. A visão de Euclides é presa ao paradigma dominante da época. E nem poderia ser de outra forma. Somos filhos e produtos de nosso tempo. Não se pode julgá-lo sem o benefício do retrospecto. Predominava um determinismo que vinculava o homem ao meio. É o que justifica, metodologicamente, a descrição inicial da região inóspita, onde os fatos ocorreram.
Euclides recria o ambiente. A descrição da seca é assustadora. Logo no início do livro Euclides trata de um “higrômetro inesperado e bizarro”. Descreve um soldado morto, cujo corpo a seca manteve intacto, como se fosse uma múmia. Cito: “braços largamente abertos, face volvida para os céus – um soldado descansava. Descansava... havia três meses. Morrera no assalto de 18 de julho (...)”. O autor imagina a morte e a sorte (falta de) do soldado mumificado: “sucumbira corpo a corpo com um adversário possante”; não fora percebido, e por isso não fora enterrado com os demais mortos. Estava intacto; murchara apenas: “braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sois ardentes, para os lugares claros, para as estrelas fulgurantes”. Cena de horror: “mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de lutador cansado, retemperando-se em tranquilo sono, à sobra daquela árvore benfazeja”. Com aquela estranha e inesperada imagem, Euclides enfatizava a secura extrema dos ares. Por perto, ainda, havia cavalos mortos, semelhantes às “espécies empalhadas, de museus”. As lufadas moviam as crinas dos cavalos tombados.
A descrição do homem, ainda que hoje saibamos imprecisa e cheia de generalizações, é uma peça especial de literatura e de antropologia. É o perfeito relato de um paradigma. Euclides trata da complexidade do problema etnológico no Brasil. Faz digressões em torno do vulto do jagunço. Explicita a corporatura do sertanejo. Expõe a figura de Antonio Conselheiro, disserta sobre os habitantes de Canudos.
Para Euclides, a gênese das raças mestiças no Brasil era um problema a desvendar. Duvidava que pudéssemos um dia ter uma unidade de raça. Duvidava de que poderia haver um tipo antropológico brasileiro. Acreditava na hipótese do autoctonismo, isto é, o nativo brasileiro não era o resultado de uma migração que se perdia nos tempos. Assim, afirmava que “os selvícolas, com seus frisantes caracteres antropológicos, podem ser considerados tipos evanescentes das velhas raças autóctones da terra”. Euclides contrastava o interior com o litoral. Entendia que “estávamos condenados à civilização”. Acrescentava que “ou progredimos, ou desaparecemos”. Ao contrário de Gilberto Freyre, Euclides dedicou apenas três linhas ao português.
Elogia Nina Rodrigues, então na moda, a quem reverenciava como um “investigador tenaz”. Euclides era um darwinista convicto; a seleção natural, escreveu, “mais que quaisquer outras, se faz pelo uso intensivo da ferocidade e da força”. Nesse sentido, darwinista, percebia o mestiço como um intruso, perdido na “concorrência admirável dos povos, evolvendo todos em luta sem tréguas, na qual a seleção capitaliza atributos que a hereditariedade conserva”.
Euclides entendia o mestiço como portador de um desequilíbrio nervoso incurável. O mestiço seria, na visão de Euclides, um desequilibrado. A mestiçagem, prossegue Euclides, um retrocesso. Era obcecado com concepções eugênicas de raça superior, que matizavam o paradigma da época, escrevendo que “todo homem é antes de tudo uma integração de esforços da raça a que pertence e o seu cérebro é uma herança”. Aproximava o mestiço do mulato, raça dominada, “(...) a besta de carga adstrita aos trabalhos sem folga”.
Na leitura dos Sertões, percebe-se, no entanto, que Euclides vai se afeiçoando ao mestiço, em quem descobre um injustiçado ser humano que a política convencional satanizou, com apoio da imprensa, num dos maiores crimes de preconceito vividos na história do Brasil. Euclides era o tipo de homem que somente retrocedia quando o passo para frente fosse o suicídio. Tratarei, nas próximas intervenções, das cartas de Euclides, da guerra de Canudos, das impressões que Euclides colheu na Amazônia, e dos autos do processo de seu trágico fim. É preciso, mais do que nunca, estudarmos os autores brasileiros.


 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.


Revista Consultor Jurídico, 19 de julho de 2020, 8h00