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sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Camões e Os Lusíadas - José Paulo Cavalcanti Filho (Chumbo Gordo)

 

Camões e Os Lusíadas. Por José Paulo Cavalcanti Filho

… Há uma razão para falar em Camões agora, amigo leitor, É que, nesta quarta, o Gabinete Português de Literatura me distinguiu com o “Colar do Mérito Luiz Vaz de Camões”. Como complemento, “Em reconhecimento à sua destacada contribuição à cultura e à língua portuguesa”…

Camões

Luís Vaz de Camões veio da pequena nobreza – assim se dizia, na época, dos nobres sem casas nem títulos em Portugal. Desde jovem, passava dias e noites pelas ruas entre pedintes, arruaceiros, prostitutas, desvalidos. Ou nas tabernas. E escrevendo versos por puro prazer, quando possível e, às vezes, em troca de gorjeta. Ou comida.

Era conhecido, pelas incontáveis rixas em que se metia, como Trinca-Fortes. Em uma delas, na noite da procissão de Corpus-Christi, golpeou com espada o pescoço de Gonçalo Borges, cárrego (responsável) dos arreios do rei. Acabou preso no tronco. Libertado por Carta Régia de Perdão, em 7 de março de 1553, teve que pagar quatro mil réis para caridade e foi obrigado a ir servir na Índia. Seria mudança definitiva, em sua vida. Um destino jamais sonhado por seus pais – Simão Vaz de Camões, capitão de nau; e Ana de Sá, dos Macedo de Santarém, doméstica.

Em torno dele, quase tudo é incerto. Sabe-se, dos serviços que prestou na armada portuguesa, que nasceu em Lisboa – ou Coimbra, ou Santarém, ou Alenquer. Talvez em 1523 ou, mais provavelmente, em 1524 (havendo ainda quem sugira começos de 1525). Tendo a lei portuguesa 1540, de 02/02/1924, definido que teria sido em 05.02.1524. Estudou em Coimbra, entre 1542 e 1545, com o tio dom Bento de Camões, prior do Convento de Santa Cruz. Até que voltou para Lisboa. Mas a carreira das armas, logo percebeu, era mesmo das poucas opções que lhe restavam.

Para cumprir aquela sentença de perdão embarcou pouco dias depois, em 24 de março, na poderosa armada do capitão-mor Fernão Álvares Cabral, filho de um Pedro que conhecemos bem. Para Goa (Índia). Ali, naquele mundo para ele novo, sofreu todas as agruras. Numa expedição a Ceuta, perdeu o olho direito em batalha. Mais tarde, em 1558, naufragou na foz do rio Mekong – costa do Sião (hoje, Tailândia). Salvou-se despido, como todos os demais sobreviventes, tendo em uma das mãos os primeiros versos de seu Os Lusíadas.

Nesse episódio teria morrido uma chinesa, a quem Camões deu o nome poético de Dinamene, para quem depois escreveria uma série de poemas. Entre eles o famoso Soneto 48, que todos conhecem, começando assim:

“Alma minha gentil, que te partiste

Tão cedo desta vida, descontente,

Repousa lá no Céu eternamente

E viva eu cá na terra sempre triste”.

Foi Provedor dos defuntos nas partes da China. Desempenhando suas funções com não muita lisura, é de justiça reconhecer. E, vez por outra, frequentaria prisões. Por dívidas. Ou rixas.  Como dizia o próprio Camões, “Erros meus, má fortuna, amor ardente/ Em minha perdição se conjuraram”. Mas, sobretudo, nunca parou de escrever.

Poesia à Mesa : Primeira edição de "Os Lusíadas"Em 1570, afinal, estava novamente de volta a Lisboa. Com as carências financeiras de sempre. Segundo se conta, sobreviveu durante algum tempo graças ao fiel Jau, trazido das Molucas. Esse escravo esmolava, de noite, pedindo pão para seu mestre. Importante é que Os Lusíadas avançava. Sob o patrocínio de dom Manuel de Portugal, devotou-se então à sagração de seu país – naquela que é considerada, consensualmente, a mais bela epopéia do século XVI.

edição princeps – assim se diz das primeiras edições de um livro – foi impressa na tipografia de António Gonçalves, em Lisboa, no ano de 1572. Com privilégio real de impressão por 10 anos e publicada com um benévolo (e corajoso) parecer censório de frei Bartolomeu Ferreira, sem data. Terá tido também licença da Mesa Inquisitorial – que, todavia, não consta da impressão.

Tem aparato paratextual simples, 8.816 versos e 1.102 estrofes divididas em 10 cantos. Utilizando a divisão da divina Comédia, de Dante – que assim tem, como cantos, seus 100 livros. Há, hoje, cerca de 25 exemplares ainda existentes, em bibliotecas ou nas mãos de colecionadores, talvez menos que 10 completos.

Até fins do século XIX, se acreditava ter havido duas edições princeps, um mito devido a Manuel Faria e Souza – que (em 1639), ao comentar Os Lusíadas, confrontou dois volumes daquele mesmo ano em que o livro foi lançado, 1572; e verificou haver, neles, pequenas diferenças. Depois se comprovando terem sido bem mais que duas. Restando hoje assente que assim ocorreu pelo desejo de Camões, ou seu editor, em corrigir pequenas incorreções das impressões anteriores.

Dando-se que, em alguns casos, foram sendo aproveitados conjuntos de páginas já impressas, antes, e não utilizadas. Fazendo-se, as correções, nas novas páginas impressas. Uma explicação que só se pode compreender pelos rudimentares sistemas de impressão daquela época.

Apesar de numerosos indicativos dessa edição princeps na comparação com as demais, e curiosamente, o que a identifica é um pelicano, à primeira página, com o bico virado para a esquerda do leitor. Além do pelicano, também um detalhe no terceiro verso da primeira estrofe, que começa por “E entre”; enquanto nas versões posteriores, já corrigidas, começa por “Entre” apenas. Essas edições de 1572 tornaram-se conhecidas, por isso, como “Ee” e “E”.

Camões tinha com ele, ao morrer, aquela que acabou tida como a primeira edição autêntica, deixada ao frei Joseph Índio, que o acompanhou num hospital de Lisboa. Esse volume é conhecido como Holland House – por ter estado em casa do general Lord Holland, em Londres, a partir de 1812 e por mais de cem anos.

Outra edição famosa, em Portugal, é a segunda ‒ conhecida como dos piscos. Surgida, em 1584, dois anos após o fim do prazo do alvará que protegia a primeira (de 1572). Impressa pela tipografia Manuel de Lira (em Lisboa), e com licença do mesmo frei Bartolomeu Ferreira, responsável pela autorização da edição princeps. O nome jocoso dado à edição vem de uma citação, nos Lusíadas (Canto III, 65), sobre a “piscosa Cizimbra”.

Sezimbra é uma vila portuguesa no distrito de Setúbal. Abundante em peixes, bom lembrar. Trata-se da primeira edição comentada de Os Lusíadas. Explicando a citação, o comentador, como referência aos pássaros que ali se juntam em passagem para a África, provavelmente se referindo ao Pisco-de-peito-ruivo (Erithacus Rubecula).

Camões segue a trilha de outras epopéias do passado.  Sobretudo a Eneida, de Virgílio; o que se vê até na comparação dos versos iniciais dos poemas: Canto as armas e o varão, Virgílio; e As armas e os Barões assinalados, Camões. Também a Ilíada e a Odisseia, de Homero. Bem como a divina Comédia, de Dante.

Além de numerosas epopéias surgidas em Portugal, no mesmo século XVI de Os Lusíadas, mas antes dele – como as de André de Resende, Manuel da Costa ou José de Anchieta; e manuscritos que circularam, também antes de 1572, como os de António Ferreira e Jerónimo Corte-Real.

Nele temos o passado, com a exaltação das conquistas em que o povo português foi muito além do Mar Tenebroso. O presente, com o lamento pelo abandono das terras africanas por Portugal – de Safim a Azanos, de Azila a Alcácer Cequer. Sem contar a ameaça turca, conjurada só na batalha naval de Lepanto, em 7 de outubro de 1571.

Mas é, sobretudo, a antevisão de um futuro grandioso, na linha da Utopia do Quinto Império. E ninguém cantou Portugal como Camões. Ver  Canto X, 155,

“Pera servir-vos, braço às armas feito,

Pera cantar-vos, mente às Musas dada;

Só me falece ser a vós aceito,

De quem virtude deve ser prezada.

Se me insto o Céu concede, e o vosso peito

Dima empresa tomar de ser cantada,

Como a pressaga mente vaticina

Olhando a vossa inclinação divina”.

 Pouco antes, em Desenganos, escreveu “Nascemos para morrer/ Morremos para ter vida/ Em ti morrendo”. Assim foi. Luís Vaz de Camões morreria só em 10 de junho de 1580, pouco depois do desastre de Alcácer Quibir – em que desapareceu dom Sebastião, o Desejado, e Portugal passou a ter um rei espanhol.

Foi enterrado na igreja de Santa Ana e seus restos acabaram transferidos, em 1894, ao mosteiro dos Jerônimos, onde repousam num túmulo esculpido em mármore bem na entrada. Consta que disse, ao morrer, “Ao menos morro com a pátria”.

                                                                                                                                    ***********************************************

Há uma razão para falar em Camões agora, amigo leitor, É que, nesta quarta, o Gabinete Português de Literatura me distinguiu com o “Colar do Mérito Luiz Vaz de Camões”. Como complemento, “Em reconhecimento à sua destacada contribuição à cultura e à língua portuguesa”. Homenagem enorme, da qual nem me sinto merecedor. Deve ser por conta da idade…
O Gabinete (com 80 mil livros) está celebrando, agora, seus 175 anos. Um marco importante na história literária e intelectual de nosso estado. Por tudo, pois, grato a seu presidente, o eminente Celso Stamford; e a seu vice-presidente, o caro Alexandre Reis de Melo.
Agradeço, também, ao conselheiro da Embaixada de Portugal no Brasil, o Excelentíssimo senhor doutor Francisco Duarte de Azevedo. E logo encareço permitam uma observação pessoal. Para dizer que se trata de alguém que cultua a exatidão. Por exemplo lembro que foi ao Shopping Center Recife para comprar meias. A balconista desejou ter informações complementares, para melhor atender seu pedido. Reconhecendo aquele cliente como português, e forçando um sotaque lusitano,
‒ Diga mais.
E ele, preciso em tudo,
‒ Mais.
Muito grato a todos. E viva pelos seus méritos, por todos reconhecidos, o Gabinete Português de Leitura.
  • ________________________________________________JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO

    José Paulo Cavalcanti Filho – É advogado, escritor,  e um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa. Ex-Ministro da Justiça. Integrou a Comissão da Verdade. Vive no Recife. Eleito para a Academia Brasileira de Letras, cadeira 39.


quarta-feira, 16 de março de 2022

Os Lusíadas: épico português, completa 450 anos de publicação - BBC News Brasil

 'OS LUSÍADAS': A OBRA QUE 'FUNDOU' A LÍNGUA PORTUGUESA HÁ 450 ANOS!


BBC News Brasil, 12/03/2022 

"As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo reino, que tanto sublimaram."

Assim começa a obra que pode ser considerada a certidão de nascimento da língua portuguesa. Publicada em 12 de março de 1572, há 450 anos, a célebre criação do poeta Luís Vaz de Camões (nascido provavelmente no ano de 1524 e morto provavelmente em 1580) é formada por dez cantos, 1.102 estrofes e 8.816 versos, todos em oitavas decassilábicas, sempre arranjados em um esquema rímico fixo.

Trata-se do poema épico Os Lusíadas, que narra a descoberta, pelo navegador português Vasco da Gama (1469-1524), da rota marítima para a Índia — um marco nas relações comerciais e exploratórias do século 15 e, de certa forma, a consolidação de um momento historicamente relevante para Portugal.

Ao longo de seu texto, o poeta, que se dirige ao rei Sebastião I (1554-1578), evoca episódios da história lusitana de forma épica, sempre buscando glorificar o povo português.

Mas a grandeza de Os Lusíadas não se resume ao engenhoso e esmerado formato adotado por Camões, nem pelo grande número de versos, tampouco pelas próprias histórias de heroísmo ali narradas.

Os Lusíadas se tornou um marco pelo uso da língua portuguesa — na época chamada apenas de "linguagem", quase como de modo pejorativo quando comparada ao jeito culto de se expressar por escrito, ou seja, o latim.

E, protagonista e fruto de um momento histórico de valorização de tais identidades, a obra é reconhecida como uma espécie de literatura fundadora do idioma hoje oficialmente praticado em Portugal e em outros oito países, inclusive o Brasil.

Doutor em estudos literários pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e criador do canal no YouTube Elite da Língua, o professor Emerson Calil Rossetti situa Os Lusíadas como "a maioridade e a identidade poética da língua portuguesa".

"Constituem de fato uma referência para e sobre a língua portuguesa. Não somente por ser uma obra-prima, o que é hoje consensual, mas por ser a primeira produção do idioma que alcança prestígio para além das fronteiras de Portugal ou dos países lusófonos", argumenta ele.

"Camões captou com precisão o espírito da Renascença, tomando como base as epopeias antigas e construindo seu longo poema com soluções estéticas típicas da perfeição formal da época mas a partir das possibilidades expressivas da nossa língua, como jamais se havia visto", analisa Rossetti.

"É o caso, por exemplo, do ritmo bem marcado e regular dos decassílabos heroicos e, num universo repleto de alusões históricas, mitológicas e cristãs, as combinações de rimas que caracterizarão, igualmente, as 1102 estrofes da epopeia."

Professora livre-docente da Universidade de São Paulo (USP), onde é pesquisadora do Departamento de Línguas Clássicas e Vernáculas, a linguista Marcia Maria de Arruda Franco contextualiza a obra como parte de um momento de "dignificação da língua portuguesa como língua de cultura".

"Até o século 16, era muito raro que um autor em Portugal escrevesse em português. E mesmo ao longo do século 16, as línguas de cultura preferidas dos letrados, tanto os humanistas puros que usavam o latim, como os impuros que usavam as línguas vulgares, era o castelhano em vez do português", esclarece ela.

Arruda lembra que esse movimento vinha sendo experimentado por alguns escritores, como é o caso de Sá de Miranda (1481-1558), "que ousavam essa aventura de descobrir o valor letrado da língua portuguesa, de trabalhar sobre sua elocução, de escrever em português".

"Ao longo do século 16, vários vão levar a cabo essa tarefa de escolher a língua portuguesa como língua de cultura. Não só no discurso poético, mas também no discurso histórico. [O idioma está presente] nos cronistas que escrevem sobre as grandes descobertas, quando a língua portuguesa é a preferida", conta ela.

Vale ressaltar que já desde o reinado de Manuel I (1469-1521), médicos portugueses eram obrigados a efetuar suas prescrições em língua portuguesa. "Em 'linguagem', como eles diziam. Naquela língua falada, que todo mundo entendia", comenta a professora.

Era um período de ebulição acadêmica, na qual os linguistas se propunham a entender e explicar a organização daquilo que se falava. "Começa a surgir a filologia portuguesa, uma série de gramáticas em defesa da língua portuguesa como língua de cultura, e não mais apenas como 'linguagem'", contextualiza Arruda. "'Os Lusíadas' culminam esse processo, fazem com que esse processo se consolide."

"Porque 'Os Lusíadas' são escritos em gênero épico, sublime. Relaciona-se às épicas da cultura clássica ocidental, da cultura antiga, que era modelizada pelos renascentistas. 'Os Lusíadas' estão em linha direta com outras épicas, de Homero [da Grécia Antiga] e de Virgilio [da Roma Antiga]", diz a linguista.

Para o escritor Ênio César Moraes, professor de língua portuguesa e assessor pedagógico do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília, a importância de Os Lusíadas pode ser dividida entre os aspectos literário e histórico.

No primeiro quesito, o mérito recai sobre "o fato de se tratar de uma epopeia, obra épica que, no plano artístico-literária, põe Portugal ao lado de nações como Grécia e Roma". Moraes observa que, não à toa, o próprio narrador do poema "afirma, altaneiro": "Cessa tudo o que a Musa antiga canta/ Que outro valor mais alto se alevanta". "[Está] enaltecendo a temática da obra, em comparação às produções grega e romana", interpreta.

Já o segundo ponto está no fato de que o texto de Camões é a "narrativa de grandes feitos do povo português, na pessoa de Vasco da Gama, à época das grandes navegações".

"Virgílio [o poeta romano] é o grande interlocutor de Camões. E com esse trabalho ['Os Lusíadas'], ele engrandeceu o português e o consolidou como língua de cultura. Fez isso graças ao seu trabalho de escrever com tropos, figuras, imagens, um todo. Realizou um trabalho sobre a prosódia dos versos, escolhendo os decassílabos, a oitava para urdir o seu poema, sua épica… Trabalhou a elocução da língua portuguesa", complementa Arruda.

A obra garantiu a Camões o mesmo lugar na língua portuguesa ocupado por William Shakespeare (1564-1616) no inglês, Dante Alighieri (1265-1321) no italiano, François Rabelais (1494-1553) no francês, e France Prešeren (1800-1849) no esloveno. Em suma, cada língua considerada moderna tem no trabalho de um grande escritor a consolidação de suas bases e a matriz de suas normas.

"Camões representou esse movimento de defesa e ilustração das línguas ditas vulgares, faladas no dia a dia. Que foi geral na Europa, quando todas as línguas nacionais dos reinos passaram a ser utilizadas também na língua de cultura, em detrimento do latim", diz a linguista Arruda.

"Em Portugal, havia a opção entre duas línguas vulgares: o castelhano e o português. Mas cada vez mais os letrados preferiram escrever em português", acrescenta ela.

Camões mesmo já havia escrito poemas em espanhol. Decidiu utilizar o português para Os Lusíadas e, logo em seguida, sua obra também foi traduzida — ainda no século 16, ganhou três traduções para o castelhano e pelo menos uma publicação em latim, conforme pesquisas de Arruda.

"Do ponto de vista da história da evolução da língua, o português atinge seu estágio moderno exatamente no século 16", ensina Rossetti. "É quando o idioma se uniformiza e adquire as características básicas que ainda hoje se reconhecem nas nossas gramáticas."

"A obra de Camões assimila essa nova feição e legitima as potencialidades da nossa língua como expressão poética de temas universais e aspectos atemporais acerca da condição humana. Por meio dos recursos fônicos, morfológicos e sintáticos, o escritor confirma o potencial também inventivo: a natureza literária do idioma. Nesse sentido, a língua portuguesa torna-se, pela sua pena, uma herança cultural, modelo de possibilidades de exploração criativa", diz ainda o professor. "Por isso, Camões é patrimônio, como também Shakespeare e Dante."

Rossetti lembra que a partir das letras de Camões abriu-se um "espaço para outros gênios do pensamento ocidental" em língua portuguesa. "É um novelo de muita linha, e a primeira ponta desse fio se chama Camões", resume.

Professor Moraes ressalta que a época em que o poeta viveu, o Renascimento, foi marcada por efervescência científica e artístico-cultural. Assim, com Os Lusíadas, ele "deu visibilidade ao povo português, ao ressaltar feitos grandiosos do presente, as grandes navegações" e também garantiu "importante referência para os estudos filológicos e linguísticos promovidos nos séculos seguintes".

"Como sabemos, a língua é um dos principais elementos de identidade nacional, e o excelso caráter nacionalista da sua narrativa exalta, para além do conteúdo, a língua portuguesa. Não é à toa que, até hoje, o poeta português figura como um dos maiores nomes da literatura lusófona", pontua ele.

Quatrocentos e cinquenta anos depois, por que vale a pena ler Os Lusíadas ainda hoje? Para os especialistas, não se trata apenas de uma obra "para o vestibular" — o livro pode e deve ser lido como cultura geral, principalmente por pessoas lusófonas.

"[Seus versos] são uma aula de retórica. Quem quiser aprender retórica que leia 'Os Lusíadas', entenda toda aquela estrutura persuasiva", defende Arruda.

"Sua estrutura persuasiva, ele [o poeta-narrador] quer convencer o rei [português] de alguma coisa, convencê-lo a continuar essa aventura, essa luta dos portugueses para manter seu império", explica a linguista.

"Bem, os clássicos são os clássicos. E isso responderia à questão [sobre as razões para se ler Camões hoje] de forma simplista mas eficiente", acrescenta Rossetti. "Para ser, então, mais exato e pontual, diria que obras como 'Os Lusíadas' têm a ver com a nossa história: a cultura, as crenças, as reflexões, os valores, a memória."

Para o professor, "não se pode construir um projeto futuro sem o conhecimento e a devida compreensão do passado, sobretudo quando ele ainda faz tanto sentido nos dias de hoje". "Afinal, continuamos seres desbravadores, vibramos com as conquistas que ampliam os limites da geografia e do conhecimento, sentimos emoção diante das histórias de amor ainda que com cores trágicas", analisa.

Além disso, ele ressalta a questão da lusofonia. "Principalmente, falamos a mesma língua e precisamos, provavelmente mais que no século 16, de exemplos inteligentes, admiráveis e sensíveis: necessitamos sempre de boa poesia, de qualquer período, visto que os clássicos não envelhecem", conclui.

Moraes defende que "ter contato com os clássicos" é fundamental para a "construção do repertório artístico-cultural do indivíduo". "Nenhuma obra se torna um clássico por mero trabalho de marketing", argumenta.

"No caso das epopeias, ainda mais", compara. "Como se não bastasse a magnitude da forma, tem-se a maravilha do conteúdo, que nos conduz 'por mares nunca dantes navegados'. Ademais, propicia o estudo do passado histórico, sob a perspectiva poética. Inclusive, pode proporcionar um interessante trabalho comparativo entre os ofícios do historiador e do escritor-artista."

Problematizações contemporâneas também são possíveis, é claro. E, se compreendidas dentro de cada contexto histórico, podem gerar reflexões sem cair em anacronismos. Arruda frisa que não se pode esquecer que, em seu conteúdo, Os Lusíadas "sublinham essa coisa que a gente considera horrível: a ideologia imperialista, cruzadista".

"É um monumento ao poder e não deixa de ser um pouco chocante para nossos ouvidos, por exemplo, o modo preconceituoso como os mouros são apresentados na obra", exemplifica. "Isso não é do poeta. É do gênero [épico] e é da época. Por isso que a crítica contemporânea brasileira apresenta uma leitura de 'Os Lusíadas' que salienta sua contradição, justamente o elogio e o questionamento da posição invicta e hegemônica portuguesa."

Por outro lado, também é importante ressaltar que a obra é um retrato daquilo que pode ser considerada a primeira globalização. "Essas 'descobertas' dos navegadores se tornaram importantes como a primeira ligação planetária da Terra, a primeira vez que todas as culturas entram em contato e se tem essa visão do globo. Isso vai ser sempre importante", diz Arruda.

"Podemos dizer que são questionáveis, já que no encontro de culturas a diversidade acabou esquecida e apagada, reprimida pelo eurocentrismo que doutrina o mundo… Mas 'Os Lusíadas' vão sempre ter a importância de relatar esse primeiro contato entre culturas, ainda que em confronto de poder entre o europeu hegemônico e os outros povos subjugados."