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terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Stefan Zweig e o Brasil: exílio e integração, Kristina Michahelles - livro da Casa Stefan Zweig, 2020


 

Stefan Zweig e o Brasil: exílio e integração

Livro da Casa Stefan Zweig, 2020

A Casa Stefan Zweig recebe o apoio da KAS para publicar a cartilha Stefan Zweig e o Brasil: exílio e integração. A publicação apresenta e estimula o debate sobre várias das questões mais em evidência na atualidade, como migração, refúgio e exílio. A obra é dedicada a um amplo público, incluindo jovens, alunos de nível médio e estudantes universitários.

Coordenação editorial: 

Kristina Michahelles

Projeto gráfico: Ruth Freihof, Passaredo Design


Sumário: 


Apresentação, 6 

O viajante, de Luiz Aquila, 8

Artigo: Exílios - Renato Lessa, 11

Exposição | Legado do exílio, 15

Livro: Dicionário dos refugiados do nazifascismo no Brasil, 28

Perfil: Lore Koch, única discípula de Volpi, 35

Grupo de Estudos: Stefan Zweig no país do futuro, 40

Download: 

https://www.kas.de/documents/265553/265602/Stefan+Zweig+-+Ex%C3%ADlio+e+Integra%C3%A7%C3%A3o.pdf/69c28c71-5df3-efd1-cb7f-f2a08d3d9a6f?version=1.1&t=1607529230018


Grupo de estudos

Stefan Zweig no país do futuro


O Grupo de Estudos Stefan Zweig foi criado em junho de 2020 com o objetivo de ampliar a rede de especialistas na obra e a vida do autor austríaco nas universidades brasileiras. Coordenado por Kristina Michahelles, o encontro inicial contou com a presença de Larissa Fumis, Marina de Brito e Carlos Eduardo do Prado. 

Mariana Holms acaba de se juntar ao grupo.

Larissa Fumis é de São José do Rio Preto, SP. Fez mestrado em Literatura com uma tese dissertação sobre Stefan Zweig e seu livro Brasil, um país do futuroNo doutorado, fará uma análise contrapondo o mesmo livro ao Romanceiro Brasileiro, do também exilado Ulrich Becher. 

Marina Brito mora em Viena. Em sua tese de mestrado, fez um estudo comparativo das traduções para o português - em um intervalo de sete décadas - das duas obras icônicas de Zweig, Brasil, um país do futuro e a autobiografia O mundo de ontem.

Carlos Eduardo do Prado é professor de francês da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e se doutorou em Estudos de Literatura – Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense com um estudo comparativo entre as biografias de Balzac e Zweig, com base na obra Balzac, eine Biographiede Zweig.

Mariana Holms é doutoranda em Língua e Literatura Alemã pela Universidade de São Paulo. Depois de focar em Stefan Zweig no mestrado, atualmente concentra sua atenção na vida e obra da escritora e pintora austríaca Paula Ludwig, exilada no Brasil entre 1940 e 1953. 

As reuniões serão trimestrais. O site da CSZ (www.casastefanzweig.org) criou uma nova seção para abrigar trabalhos acadêmicos sobre Stefan Zweig no Brasil. 




quinta-feira, 31 de outubro de 2019

O Brasil tem futuro? Uma releitura de Stefan Zweig

Procurando um texto antigo acabei caindo numa velha resenha de livros que, registro agora, praticamente não teve difusão adequada, não tanto pela minha resenha, mas mais exatamente pelo livro do grande autor austríaco, que mereceria, talvez, uma releitura atual.
Creio que vou incluí-lo na minha lista de "Clássicos Revisitados" – dos quais já fiz o Manifesto Comunista, de Marx-Engels, O Príncipe, de Maquiavel, e alguns outros autores, como Sun Tzu, Tocqueville, Benjamin Constant e alguns outros –, ainda que eu não considere que esse livro de Zweig seja um clássico, pois é uma de suas piores obras. Mas vale pela reflexão sobre o Brasil.
Eis a resenha: 
1714. “Futuro preterido? Zweig e um projeto para o Brasil”, Brasília, 26 janeiro 2007, 2 p. Resenha de João Paulo dos Reis Velloso e Roberto Cavalcanti de Albuquerque (coords.): Brasil, um país do futuro? (Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, 154 p.; R$ 31,00) e Projeto de Brasil: opções de país, opções de desenvolvimento (idem, 222 p., R$ 38,00). Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA-PNUD, ano 4, n. 31, fevereiro 2007, p. 62-63). Relação de Publicados n. 751bis.

Futuro preterido? Zweig e um projeto para o Brasil

João Paulo dos Reis Velloso e Roberto Cavalcanti de Albuquerque (coords.):
Brasil, um país do futuro? (Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, 154 p.; R$ 31,00);
Projeto de Brasil: opções de país, opções de desenvolvimento (idem, 222 p., R$ 38,00).

O Fórum Nacional do ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso sempre organiza, ademais dos encontros anuais, foros especiais dedicados a temas específicos. Em 2006 foram organizados dois, conectados pelo tema comum de se lograr um “projeto de Brasil”, suas opções de país e de desenvolvimento. Estes dois livros resultam desse esforço de diagnóstico e de proposição. 
Stefan Zweig teria gostado de assistir ao seminário que lhe foi dedicado, em setembro de 2006, por ocasião do 125º aniversário de seu nascimento e dos 65 anos da publicação do seu livro tão famoso, quanto desconhecido (hoje), terminado poucos meses antes do suicídio do autor, no carnaval de 1942, em Petrópolis. Ele concordaria com o artigo indefinido e talvez até com o ponto de interrogação. A primeira edição brasileira modificou o título original, agora restabelecido – Brasilien, ein land der Zukunft, não der land – e o colóquio agregou a condicionalidade, refletindo o ceticismo dos examinadores quanto à utopia não realizada. No essencial, Zweig provavelmente se alinharia aos argumentos dos seus revisores contemporâneos.
Alberto Dines, autor de uma biografia que pode considerar-se completa do escritor austríaco – Morte no Paraíso: a tragédia de Stefan Zweig (3ª ed.; Rocco, 2004) –, considera que Zweig, depois de assinar mais de quarenta biografias de personalidades mundiais, fez a biografia de uma nação, no “inferno do Estado Novo”. Como ele diz, essa obra “tornou-se a crônica mais conhecida e a menos discutida, a mais celebrada e mais negligenciada” do Brasil. Ela foi um dos primeiros lançamentos simultâneos da história editorial mundial: oito edições em seis línguas diferentes. Em vista dos percalços recentes no processo de crescimento, parece difícil concordar com Zweig em que, “quem conhece o Brasil de hoje, lançou um olhar sobre o futuro”.
Bolívar Lamounier e Regis Bonelli examinam, respectivamente, os avanços políticos e econômicos obtidos pelo Brasil desde que Zweig traçou seu diagnóstico sobre o Brasil do início dos anos 1940. Para Lamounier, o Brasil é um país de “muitos futuros”, mas ele critica as utopias institucionais que frequentemente pretendem revolucionar a participação e as formas de se fazer política no país: a romântico-participativa da democracia direta,  a do parlamentarismo clássico que ressurge sempre em momentos de crise e a utopia barroca do presidencialismo plebiscitário. Já Bonelli opera uma “volta para o futuro” ao examinar os elementos de continuidade e de mudança na esfera econômica: o Brasil certamente mudou muito, nesse terreno, mas a propensão a esperar tudo do Estado permanece, assim como uma certa desconfiança dos mercados externos. Algumas mudanças foram na direção errada, como o aumento na tributação, outras permanências são irritantes, como a péssima distribuição de renda e as incertezas jurídicas. Finalmente, o “fantasma do estrangulamento externo” estaria, de fato, superado?
Boris e Sérgio Fausto acrescentam um ponto de interrogação ao título de Zweig, temperando o otimismo do autor com certa dose de pessimismo. Não se trata do niilismo da esquerda, que vê na “dominação imperialista” a razão do nosso atraso. O duplo nó gordio da carga tributária e do gasto público limita hoje as possibilidades de crescimento. João Luís Fragoso analisa a “equação” de Zweig para o Brasil: concentração de poder + tolerância. Três comentários finais tratam das promessas não cumpridas de um olhar estrangeiro, do futuro que já chegou sob a forma da votação eletrônica e das dificuldades para a retomada de taxas razoáveis e sustentáveis de crescimento. No conjunto, o livro oferece uma boa visita ao que se poderia chamar de “futuro do pretérito”. 
O segundo livro, Projeto de Brasil, é na verdade uma tripla obra. A segunda parte apresenta dois estudos de especialistas acadêmicos sobre emprego e inclusão digital. A terceira parte consiste, tão simplesmente, na transcrição (talvez dispensável, em retrospecto) da visão de Brasil defendida pelos quatro principais candidatos nas eleições presidenciais de 2006: Lula, Alckmin e Heloisa Helena, pelos respectivos coordenadores de campanha, e Cristovam Buarque, pelo próprio. Digo dispensável porque qualquer um deles, se eleito, dificilmente seguiria as pomposas recomendações dos respectivos programas, que a rigor não possuíam nenhuma importância substantiva. A primeira e mais importante parte constitui uma síntese, por João Paulo dos Reis Velloso, de propostas para uma agenda nacional, com base em todas as idéias de modernização do Brasil formuladas desde o surgimento do Fórum por ele presidido, em 1988. Ele consegue resumir claramente os principais obstáculos ao desenvolvimento do país, mostrando-o como um “Prometeu acorrentado”, que vive hoje uma crise de “auto-estima”, em uma “era de expectativas limitadas” (apud Paul Krugman). 
As opções de país que ele propõe são, nominalmente: o desenvolvimento como valor social, prioridade máxima à segurança, reforma política para construir um sistema político moderno, um Estado “inteligente” (com legislativo e judiciário modernos), a revolução do império da lei, da eqüidade, da tolerância e dos valores humanistas e a opção por uma sociedade moderna. Quanto às opções de desenvolvimento, elas consistem em três conjuntos de tarefas: a criação de bases para um crescimento sem dogmatismos, uma estratégia de desenvolvimento baseada na inovação e na sociedade do conhecimento e o progresso com inclusão social e portas de saída para os pobres. Ele conclui dizendo que subdesenvolvimento não é destino, é apenas o reflexo de opções equivocadas. Oxalá o Prometeu pudesse tomar consciência de quais são elas, exatamente. Aparentemente, além das correntes estatais, ele está com um pouco de cera nos ouvidos e ainda usa viseiras conceituais.

Paulo Roberto de Almeida (pralmeida@mac.comwww.pralmeida.org)

terça-feira, 16 de abril de 2019

Personagens obscuros que ocupam a linha de frente da História: Joseph Fouché, por Stefan Zweig

De vez em quando, personagens perfeitamente obscuros, que jamais deveriam ter saído dos bastidores (ou das catacumbas) da História, conseguem a ocupar posições de relevo em determinadas circunstâncias e em momentos excepcionais de processos dramáticos de transformação social e política de uma nação, como foi o caso, por exemplo, da Revolução francesa e dos momentosos episódios que se lhe seguiram: Assembleia Constituinte, Convenção, Diretório, Comitê de Salvação Pública no Termidor, consulado, primeiro cônsul, Império, Waterloo, Cem Dias (êpa!), Restauração, fracasso dos Bourbons, nova realeza (e depois a monarquia burguesa, antes de 1848 e sua segunda República, logo substituída por um novo Império).
Tal foi o caso de Fouché, que atravessou pelo menos cinco regimes políticos franceses, entre o Ancien Régime e a monarquia medíocre dos Bourbons – aqueles que, como disse Talleyrand, "nada esqueceram, nada aprenderam" –, e a todos eles serviu de forma subserviente, como muito bem descrito na genial biografia de Stefan Zweig sobre um dos mais execráveis personagens da história da França moderna e contemporânea. A genialidade de Zweig consiste justamente nisso: ter focado num personagem obscuro – que só tinha sido reconhecido como relevante pelo outro genial escritor que foi Balzac – e, através dele, seguir toda a trajetória da França do Antigo Regime até a Restauração. A sua biografia tem validade universal, pois podemos também encontrar na história do Brasil, até recente, personagens tão medíocres, traiçoeiros e nefastos, ainda que menos relevantes, quanto Fouché. Vocês sabem de quem estou falando (mas ele não é chefe da Polícia, ainda bem).
Leiam o Prefácio de Zweig à biografia de um dos maiores personagens menosprezados da história da França, texto que recolhi no site da Casa Stefan Zweig de Petrópolis, que visitei numa rápida estada na cidade serrana do Rio de Janeiro.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 de abril de 2019


Prefácio de Joseph Fouché – retrato de um homem político

Stefan Zweig

Joseph Fouché, um dos homens mais poderosos de sua época, um dos mais notáveis de todos os tempos, encontrou pouca simpatia entre os contemporâneos e ainda menos justiça na posteridade. Napoleão em Santa Helena, Robespierre entre os jacobinos, Carnot, Barras, Talleyrand em suas Memórias, a pena de todos os historiadores franceses, sejam monarquistas, republicanos ou bonapartistas, enche-se de fel quando escreve seu nome. Traidor nato, intrigante miserável, réptil escorregadio, desertor profissional, alma pequena de policial, amoralista deplorável, não lhe poupam nenhum insulto, e nem Lamartine, nem Michelet ou Louis Blanc tentam seriamente desvendar seu caráter, ou melhor, sua admiravelmente obstinada falta de caráter. Seu retrato em contornos reais aparece pela primeira vez naquela monumental biografia de Louis Madelin, ao qual o presente estudo, como qualquer outro, deve a maior parte do material factual. Com esta exceção, a história empurrou silenciosamente para a última fileira dos figurantes insignificantes um homem que, numa guinada da história, liderou todos os partidos e foi o único a sobreviver a eles, que no duelo psicológico venceu um Napoleão e um Robespierre. Vez por outra, seu espectro ainda ronda numa peça de teatro ou numa opereta sobre Napoleão, porém geralmente como a caricatura gasta de um chefe de polícia astuto, de um Sherlock Holmes anterior à sua época, pois uma caracterização pouco profunda sempre relega a um papel secundário um ator que está em segundo plano, mas é essencial. 

Um único homem vislumbrou a dimensão desta figura ímpar do alto de sua própria grandeza: Balzac. Este espírito elevado e ao mesmo tempo perscrutador, que não observava apenas a cena da época, mas espiava também sempre atrás dos bastidores, reconheceu Fouché sem reservas como a personalidade psicologicamente mais interessante de seu século. Habituado, na sua química dos sentimentos, a contemplar todas as paixões, não só as chamadas heróicas como as consideradas baixas,como elementos de igual valor, habituado a admirar da mesma forma um criminoso perfeito como Vautrin e um gênio como Louis Lambert, sem jamais distinguir entre moral e falta de moral, mas sempre medindo apenas a energia de uma pessoa e a intensidade de suas emoções, Balzac fez sair de sua penumbra intencional este homem que está entre os mais desprezados e difamados da Revolução e do Império. "O único ministro que Napoleão teve", diz ele sobre este "gênio singular", depois “la plus forte tête que je connaisse" [a cabeça mais forte que conheci] e, em outro trecho, "um daqueles personagens com tanta profundidade sob a superfície, que no momento em que agem permanecem impenetráveis e só depois podem ser compreendidos".

Eis uma interpretação bem diferente das ofensas dos moralistas! E no seu romance Une ténébreuse affaire dedica uma página especial a esse"espírito sombrio, profundo e extraordinário, tão pouco conhecido": "Seu gênio particular", escreve ele, "que suscitou uma espécie de temor em Napoleão, não se revelou de uma vez. Este obscuro membro da Convenção, um dos homens mais extraordinários e ao mesmo tempo mais erroneamente julgados de seu tempo, cresceu em meio às crises. No Diretório, alcançou uma altura de onde homens profundos conseguem divisar o futuro por saberem julgar corretamente o passado. Depois, de repente dava mostras de seu talento durante o 18 Brumário, assim como certos atores medíocres que, iluminados por uma súbita inspiração, tornam-se excelentes. Este homem de semblante pálido, educado na disciplina monacal, conhecia todos os segredos da Montanha, facção à qual pertenceu inicialmente, como os dos monarquistas, por cima dos quais finalmente passou. Este homem estudou gradual e silenciosamente as pessoas, as coisas e as práticas do cenário político; descobriu os segredos de Bonaparte, deu-lhe conselhos úteis e informações preciosas (... ) nem os novos nem os antigos colegas suspeitavam então da extensão de seu gênio, que era essencialmente um gênio de governo: exato em todas as previsões e de uma argúcia inacreditável."

Assim escreveu Balzac. Tal homenagem chamou minha atenção para Fouché, e há anos que me interesso por esse homem de quem Balzac dizia ter "mais poder sobre as pessoas do que o próprio Napoleão". Mas, tanto em vida quanto na história, Fouché sempre conseguiu permanecer nos bastidores: não gostava que lhe vissem o rosto ou as cartas. Quase sempre estava no meio dos acontecimentos, no seio dos partidos, invisivelmente ativo e escondido atrás do véu anônimo de suas funções como o mecanismo de um relógio. Raramente consegue-se fisgar-lhe a silhueta fugidia no tumulto dos acontecimentos e nas curvas mais fechadas de sua trajetória. E o que é mais estranho: à primeira vista,nenhum dos retratos fugazmente apanhados de Fouché combina com outro. Custa algum esforço imaginar que a mesma pessoa, com a mesma pele e os mesmos cabelos, tenha sido professor eclesiástico em 1790, já em 1792 saqueador de igrejas, em 1793 comunista, cinco anos depois multimilionário e outros dez anos mais tarde duque de Otranto. Porém, quanto mais ousadas suas transformações, mais interessante me pareceu o caráter, ou melhor, a total falta de caráter desse mais perfeito Maquiavel da era moderna, mais atraente se me afigurou sua vida política passada nos bastidores e na clandestinidade, mais singular e demoníaca me pareceu sua figura. Foi assim que, de maneira inesperada, por puro prazer psicológico, comecei a escrever a história de Joseph Fouché como contribuição para um estudo biológico ainda inexistente porém necessário dos diplomatas, esta raça intelectual ainda não totalmente examinada, das mais perigosas do nosso mundo.

Sei que uma tal descrição de um homem sem nenhuma moral, de alguém tão singular e importante como Joseph Fouché, vai de encontro ao desejo evidente de nosso tempo. Nossa época quer e ama biografias heróicas, pois, diante da carência de lideranças politicamente criativas, busca no passado exemplos mais elevados. Não desconheço o poder das biografias heróicas de elevar as almas, intensificar as forças, levantar o espírito. Desde Plutarco, elas são necessárias para cada geração em ascensão, para cada nova juventude. Mas é precisamente no âmbito político que elas correm o risco de falsificar a história, ao levar a crer que – naquela época e sempre – os verdadeiros líderes também determinam o destino do mundo. Sem dúvida, por sua própria existência, uma natureza heróica domina a vida intelectual durante décadas e séculos, mas apenas a intelectual. Na vida real, verdadeira, na esfera do poder político – e isto deve ser frisado como alerta contra toda a credulidade política –, raramente são as figuras superiores, as pessoas das idéias puras que decidem, e sim uma categoria muito inferior, porém mais hábil: os personagens dos bastidores.

Em 1914 e 1918, vimos como as decisões de importância histórica universal sobre guerra e paz foram tomadas não conforme à razão ou à responsabilidade, mas por indivíduos ocultos, de caráter duvidoso e inteligência limitada. A cada dia verificamos que, no jogo ambíguo e muitas vezes pecaminoso da política, ao qual os povos ainda confiam cegamente seus filhos e seu futuro, não são os homens de visão ética e de convicções inabaláveis que vencem, mas sim aqueles aventureiros profissionais que chamamos diplomatas, esses artistas de mãos gatunas, palavras ocas e nervos gélidos. Se, como já disse Napoleão há cem anos, a política realmente se tornou "la fatalité moderne", o novo Destino, tentemos reconhecer, em nossa defesa, os homens que estão por trás do poder e, com isso, o segredo perigoso da sua força. Que esta história da vida de Joseph Fouché seja uma contribuição para a análise do homem político.

Salzburgo, outono de 1929

in Joseph Fouché, retrato de um homem político. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999. Tradução de Kristina Michahelles. (publicado com expressa autorização da editora)

Fonte: Site da Casa Stefan Zweig de Petrópolis; link: http://www.casastefanzweig.org/sec_texto_view.php?id=22

domingo, 14 de abril de 2019

Fernao de Magalhaes: o primeiro globalizador - Stefan Zweig (introducao ao livro)

Introdução de Fernão de Magalhães – o homem e a sua façanha

Stefan Zweig

A origem de um livro pode estar nos sentimentos mais diversos. Há quem escreva livros movido por entusiasmo ou estimulado por um sentimento de gratidão, mas a paixão intelectual também pode ser acesa da mesma forma pela irritação, a ira ou o desgosto. Às vezes, a curiosidade serve de motor, o prazer psicológico de entender, escrevendo, os homens ou os fatos; outras vezes – muito freqüentemente – são motivos mais censuráveis, como a vaidade, a cobiça, o prazer em se ver retratado, que levam alguém a produzir. Eis por que a cada livro o autor deveria fazer uma espécie de prestação de contas interior para tentar descobrir os sentimentos ou a necessidade pessoal que o levaram a escolher um determinado assunto. No caso deste livro, tenho total clareza sobre o seu motivo interior. Ele nasceu de um sentimento algo insólito mas muito intenso: a vergonha.

Foi assim. Ano passado, tive pela primeira vez a oportunidade longamente desejada de fazer uma viagem à América do Sul. Sabia que me esperavam, no Brasil, algumas das paisagens mais lindas do mundo, e, na Argentina, um reencontro inigualável com velhos amigos. Só este pressentimento já tornou a travessia maravilhosa, e a ele se somou tudo de bom que se pode imaginar: mar tranqüilo, o relaxamento total no navio veloz e amplo, liberação de todos os compromissos e aborrecimentos diários. Saboreei infinitamente os dias paradisíacos dessa travessia. Mas de repente, no sétimo ou no oitavo dia, flagrei em mim uma impaciência irritante. Sempre este céu azul, sempre este mar azul e tranqüilo! Nesses súbitos acessos, as horas de viagem me pareciam excessivamente lentas. Ansiava chegar logo ao porto de destino, alegrava-me que os ponteiros do relógio avançassem inexoravelmente, e deprimia-me aquele gozo indolente e frouxo do nada. Cansavam-me os mesmos rostos, e a monotonia da vida a bordo me enervava precisamente pela tranqüilidade de sua pulsação regular. Adiante, adiante, mais rápido, mais depressa! De repente, aquele belo e confortável vapor parecia mover-se com excessivamorosidade.

Foi talvez naquele segundo que me dei conta de meu estado de impaciência, e logo me envergonhei. Estás viajando – disse a mim mesmo – no barco mais seguro, na viagem mais linda possível, com todo o luxo à disposição. Se, à noite, sentes frio no camarote, basta girar um botão com dois dedos e o ar já se aquece. Sentes muito calor, à hora do sol a pino no Equador, basta dar um passo rumo ao salão com os ventiladores refrescantes ou mais dez passos até uma piscina à tua espera. À mesa, podes escolher qualquer prato e qualquer bebida neste que é o mais completo de todos os hotéis, e tudo chegará num passe de mágica, trazido por anjos, em abundância. Podes escolher entre ficar sozinho e ler livros ou participar de jogos a bordo com música e companhia, o quanto quiseres. Sabes para onde estás viajando, conheces exatamente a hora da chegada e sabes que estás sendo aguardado com simpatia. Da mesma forma, sabe-se a qualquer momento em Londres, Paris, Buenos Aires e Nova York em que ponto do universo o navio se encontra. Basta galgar os vinte degraus de uma pequena escada e uma centelha obediente saltará do aparelho da telegrafia sem fio, levando a tua pergunta, a tua saudação, para qualquer lugar da Terra, e em apenas uma hora receberás a resposta. Lembra-te, impaciente, lembrate, imodesto, do passado! Compara, por um instante, esta viagem com as de outrora, sobretudo com as daqueles intrépidos homens que descobriram para nós estes mares imensos e o mundo, e tem vergonha! Tenta imaginar como partiam em seus diminutos veleiros rumo ao desconhecido, sem noção do caminho, perdidos no infinito, incessantemente expostos ao perigo, à mercê de todas as inclemências do tempo, de todo o martírio da privação. Sem luz que os iluminasse à noite, nada para beber senão a água salobra e morna das talhas ou da chuva recolhida, nada para comer senão torradas velhas e toucinho salgado e rançoso, e ainda privados, às vezes, deste alimento escasso durante dias e dias. Sem cama nem espaço para descansar, sob calor infernal, sob um frio inclemente e, além de tudo, a consciência de estar só, absolutamente só, neste inclemente deserto de água. Durante meses, anos, ninguém sabia em seus lares onde estavam, nem eles próprios sabiam para onde iam. Acompanhava-os a necessidade, a morte rondava em mil formas no mar e na terra, o perigo os aguardava na forma de pessoas e elementos, e durante meses, anos, a solidão os acompanhava em suas embarcações miseráveis. Ninguém, eles sabiam, poderia ajudá-los, durante meses e meses não cruzariam com nenhum veleiro nestas águas intransitadas, ninguém poderia salvá-los do perigo e da miséria, ninguém relataria sua morte e seu naufrágio. E bastava que eu começasse a imaginar essas primeiras viagens dos conquistadores dos mares para sentirme profundamente envergonhado de minha impaciência.

Uma vez despertado, este sentimento de vergonha não me abandonaria mais durante toda a viagem, e a idéia destes heróis sem nome não me largou mais nem um instante. Experimentei o desejo de saber mais a respeito daqueles que foram os primeiros a ousar a luta contra os elementos, sobre as primeiras viagens nos oceanos desconhecidos, cuja descrição já em menino excitara a minha imaginação. Fui à biblioteca do navio e escolhi ao acaso alguns volumes. E de todas as figuras e viagens, vim a admirar principalmente a façanha daquele homem que, a meu ver, realizou a proeza mais grandiosa da história dos descobrimentos: Fernão de Magalhães, que partiu de Sevilha em cinco minúsculos barcos pesqueiros para dar a volta ao mundo, no que talvez tenha sido a odisséia mais maravilhosa da história da humanidade, aquela partida de duzentos e sessenta e cinco homens decididos, dos quais só regressaram dezoito num galeão em frangalhos, mas tendo içada ao mastro a bandeira da maior vitória. Naqueles livros não havia muitos relatos sobre ele, pelo menos o que li não me bastou. Por isso, ao regressar, li e pesquisei mais, espantado com o quão pouco se disse sobre esse feito heróico até agora. E, como já aconteceu algumas vezes antes, vi que a melhor e mais fértil possibilidade de entender algo inexplicável é tentar recriálo também para outras pessoas. Assim nasceu este livro, e, posso dizer sinceramente, para a minha própria surpresa. Pois ao tentar descrever, com a maior fidelidade possível, esta odisséia de acordo com os documentos disponíveis, tive o tempo todo a sensação de estar contando uma ficção, um sonho, um daqueles contos de fada sagrados da humanidade. Mas não há nada melhor do que uma verdade que parece inverossímil! Por se elevarem tão acima da média terrestre, todos os feitos heróicos da humanidade têm algo de inconcebível; mas sempre é aquilo que há de incrível em suas realizações que faz os homens voltarem a ter fé em si mesmos.

in Fernão de Magalhães – o homem e a sua façanha. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999. Tradução de Kristina Michahelles. (publicado com expressa autorização da editora)

Fonte: Site da Casa Stefan Zweig: http://www.casastefanzweig.org/sec_texto_view.php?id=21

sábado, 12 de janeiro de 2019

Fernão de Magalhães: livros sobre a primeira viagem de circunavegação


Projeto Fernão de Magalhães - leituras

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: mini-resenhas; finalidade: preparar projeto]
  
Leitura de alguns livros sobre Fernão de Magalhães, com notas sintéticas.

Resumo sobre o custo da primeira viagem de circunavegação: pode-se calcular que o custo total da viagem de Fernão de Magalhães foi, em preços atualizados de hoje (um ducado espanhol do início do século XVI equivalente aproximadamente a US 150), de 3 milhões e setecentos mil dólares.


1) José Maria Latino Coelho: Fernão de Magalhães, com um prefácio de Júlio Dantas; 4a ed.; Lisboa: Empresa Literária Fluminense, 1921
 “Pour écrire en prose, il faut avoir quelque chose à dire.” – Maupassant.
“Designado Fernão de Magalhães por capitão-mor da expedição entrou a governar a Trinidad, que ia por capitania. A segunda caravela Santo Antonio capitaneava João de Cartagena. A terceira, por nome Concepción, mandava Gaspar de Quesada, e fazia nela o ofício de piloto o celebrado Elcano, que mais particularmente partilhou com Magalhães as glórias desta longa navegação e descobrimento. A quarta, cuja invocação era Victoria, comandava Luiz de Mendonça. Na caravela Santiago embarcou de capitão João Serrano, que era ao mesmo tempo piloto-mor de toda a frota. Tripulavam ao todo as cinco embarcações duzentos e trinta e sete homens...” (152-3).
“Fernão de Magalhães foi a Burgos, onde estava  imperador e lhe beijou a mão, e o imperador lhe deu mil cruzados de acostamento para gasto de sua mulher enquanto fosse sua viagem...” (p. 154, Gaspar Corrêa, Lendas da Índia, tomo II, parte II, p. 627).
“Largou de Sevilha a armada em 1 de agosto de 1519, e aos 27 de setembro desaferrou do porto de San Lucar, aproando ao rumo das Canárias. Tomando terra em Tenerife para refrescar, e aperceber-se de vitualhas, passando na volta de Cabo-Verde e endireitando para a América, surgiram na baia de Santa Luzia, de onde saíram a 27 de dezembro. Chegando ao rio da Prata, foi a nau Santiago pelo rio acima, até 25 léguas de sua foz, e veio trazendo nova de que o rio se alargava para o norte.” (p. 156)
Citação de Gaspar Corrêa: “Partiu-se de Canarias de Tenerife e foi demandar Cabo-Verde, donde atravessou à costa do Brasil, e foi entrar num rio que se chama Janeiro... E daqui foram navegando até chegarem ao cabo de Santa Maria, que João de Lisboa descobrira no ano de 1514...” (p. 159)
Revolta de João de Cartagena e outros: “Usou Fernão de Magalhães de extrema severidade para com os capitães que se haviam alevantado contra ele e andavam apostados para o matar. Foi sumaríssimo o processo, com que os sentenciou à pena capital,... e fez neles justiça crudelíssima.”(p. 161) “Veio depois Fernão de Magalhães junto da caravela de João de Cartagena, e por ardil de que usou para evitar um rencontro, onde poderia derramar-se muito sangue, entrou na embarcação e ao Cartagena prendeu e mandou esquartejar com pregão de traidor...” (p. 162; cita Gaspar Corrêa, Lendas da Índia, tomo II, parte II, p. 629).
“Não era apenas a vida que o lustre português havia de perder, se chegasse a vingar a sedição dos espanhóis. Era a própria empresa em que se empenhava, e a glória que já sonhara para si, e os louros imortais de ousado aventureiro e de feliz descobridor. (p. 163-4).
“A 24 de agosto de 1520 se fizeram de novo ao mar as caravelas.
“Pouco depois naufragou, na violência de uma borrasca, a nau Santiago, em que ia o piloto-mor João Serrano, sem que houvesse que lastimar a perda da tripulação e da fazenda.” (p. 165) “Navegaram as quatro caravelas que ainda restavam, até darem fundo num rio a que deram o nome de Santa Cruz, e guarnecendo-se ali contra os temporais, e fazendo aguada e provisão do que a terra podia ministrar, a 18 de outubro se aventuraram de novo ao Oceano.” (p. 165-6).
Fugiu uma nau [Santo Antonio, de Mesquita] de volta à Espanha. Sobraram Concepción, Victoria e Trinidad, que engolfaram-se pelo estreito, e “saiu afinal no Mar do Sul, a 27 de novembro de 1520, depois de ter gastado vinte e dois dias nesta derrota.” (p. 168-9).
“Navegando sempre a noroeste passou Fernão de Magalhães a 13 de fevereiro de 1521 o equador, e chegando aos 13o de latitude boreal, descobriu um arquipélago, a que chamou de ilha dos Ladrões, por lhe parecer que os índios seus habitadores eram mui inclinados à rapina.” (p. 172) Morte de Magalhães.
De volta à Espanha, Sebastian de Elcano recebeu de Carlos V o galardão de alta façanha, e por divisa de seu brazão o moto Primus circumdedisti me. (p. 192-3)

2) Visconde de Lagoa: Fernão de Magalhães: a sua vida e a sua viagem. Lisboa: Seara Nova, 1938, 2 vols.
“As cinco naus, adquiridas de segunda mão, importaram em 1.315.750 maravedis, sendo deficientíssimo seu estado de conservação, a julgar pelas longas e dispendiosas reparações que sofreram, e ainda pelas seguintes palavras com que Sebastião Alvares as descreve ao rei de Portugal, ‘sam muy velhos e remêdados... e certifico a vossa alteza que pa Canaria navegaria de maa vontade neles..” (p. 251).
“Sumario de todo el coste que tuve la armada de Magallanes (p. 257)
1519, sem outra data (maravedis)
3.912.241 – coste de las cinco nãos de la armada, con sua aparejos
415.000 – cosas de despensa y cobre, aparejos para pesqueria, cartas...
1.589.551 – viscocho y vino, carne, aceite y pescado, quesos...
1.154.504 – sueldo de cuatro meses para 237 personas (capitanes...)
1.679.769 – ropas de seda y paño para dadivas, mercadorias de rescate...
__________
8.751.125 – Así parece monta en todo el gasto de la dicha armada (p. 258)
8.334.335 – Costo total menos rebate abajo
416.790 – rebate de las cosas que quedaron en la Casa de Contratación (Sevilla)
6.454.209 – fornecido por S.M.
1.880.126 – fornecido por Cristobal de Haro
8.334.335 – Custo total, “equivalentes a pouco mais de 20.000.000 de réis ouro”

 [Problema PRA: qual o valor do reis ouro em 1500?]


“É curioso notar que o custo total da expedição de Cristovão Colombo foi apenas de 1.167.542 maravedis”. (p. 259) [Nota de rodapé a esta informação: “Em 1919, por motivo do 427 aniversário da América, publicaram alguns periódicos americanos um extrato das despesas feitas com a primeira viagem de Colom. Dele extractamos as verbas seguintes: “Seis meses de soldo ao Almirante: 500 pesetas; ao capitão da Pinta, 450; ao da Nina, 400; às tripulações das três caravelas em número de 120 homens, 10.500; equipamento da frota, 14.000; víveres, 2.900; dinheiro adiantado a Colombo, 52.492; ao capitão Alonso Pinzón, 14.000. Total: 65.242 pesetas”. (p. 259).

3) Queiroz Velloso: Fernão de Magalhães: a vida e a viagem. Lisboa: Editorial Império, 1941.
“Em 20 de outubro de 1517, chegou Fernão de Magalhães a Sevilha...” (...) (p. 33: cap. V: A Capitulação ajustada com Carlos I). “Magalhães já casara com a filha do seu hospedeiro, Beatriz Barbosa, que lhe trouxera um dote de seiscentos mil maravedis.” (p. 34-5) “Carlos I desembarcara em 19 de setembro de 1517, num porto das Astërias, e a 18 de novembro chegara a Valladolid. Muito novo, empreendedor, desejoso de engrandecer seus Estados, as circunstâncias era favoráveis à pretensão de Magalhães.” Com rapidez impressionante, a 22 de março de 1518, promulgava o rei a Capitulação com o bacharel Rui Faleiro e Fernão de Magalhães, autorizando a projetada viagem, que não seria feita en la demarcación é limites del Serenísimo Rey de Portugal. Comprometia-se Carlos I a dar-lhes a veyntena dos lucros, com o título de Adelantados (p. 36) é Governadores de todas as terras e ilhas descobertas; a mandar armar cinco navios, com 234 homens, abastecidos de víveres e munições para dois anos; e a transmitir imediatamente a respectiva ordem à Casa da Contratação das Índias. No mesmo dia assinou o monarca três cédulas, uma nomeando Magalhães e Faleiro capitães da armada, com poderes ilimitados, as outras fixando a cada um deles o soldo anual de 50.000 maravedis. De caminho para Saragoça, em Aranda de Duero, por cédulas datadas de 17 de abril, mandou repartir igualmente pelos dois 60.000 maravedis, como ajuda de custo; e aumentou-lhes o soldo com 8.000 maravedis mensais, durante todo o tempo que servissem na armada.” (p. 37)
A Casa de Contratação fez saber ao rei que não havia dinheiro. Atrasou-se o empreendimento. (...)
“Em Barcelona, onde chegara a 15 de fevereiro de 1519, tomou Carlos I uma série de providências, assaz reveladoras do interesse que merecia a empresa. A 30 de março foram publicadas três cartas régias: uma, mandando entregar a João de Cartagena a capitania do terceiro navio – dos dois primeiros eram capitães Fernão de Magalhães e Rui Faleiro – com o soldo anual de 40.000 maravedis; outra, nomeando o mesmo João de Cartagena vedor da armada, com o soldo de 60.000 maravedis: e a última, nomeando tesoureiro Luiz de Mendoza, com vencimento anual igual ao do vedor.” (p. 41-2)
“Em 8 de maio, promulgou Carlos I as instruções que deviam reger a armada, desde a sua partida até a posse das terras a que se destinava. É um diploma excessivamente minucioso, como todos os Regimentos da época. (...) Nas instruções aparece, mais uma vez, a proibição de tocarem nos domínios do rei de Portugal.” (p. 44)
“O anúncio da expedição chamara a Sevilha muitos matalotes de Portugal. Magalhães contratara-os, não como compatriotas, mas por serem os mais hábeis marinheiros do mundo.” (p. 46)
VIII – O Custo da Armada (p. 49-52)
“(...) Segundo a Relación de todo gasto de la armada de cinco nãos que van al decubimiento de la Especeria, o rei dispendeu na compra e reparação dos navios, aparelhos, armamento, munições, mantimentos, mercadorias e adiantamentos de soldo, 6.870.999 maravedis. Deduzidos, porém, 416.790 maravedis, importância das mercadorias, armas e pólvora, que não seguiram na expedição e ficaram armazenadas em Sevilha, monta o gasto do rei a 6.454.209 maravedis, ou 18.600 ducados e 9 marvedis, à razão de 374 maravedis por ducado.” (p. 49-50)
“Cristovão de Haro forneceu à Casa da Contratação, para aquisição de mercadorias, 1.616.781 maravedis; e mais 263.345 maravedis que pagó en las cosas necessárias a la armada... (...) Juntando, (...) podemos fixar o custo total da armada r, 8.546.349 maravedis, ou 24.629 ducados e 86 maravedis.”(p. 50)
IX – A Organização da Armada
“Na quarta-feira, 10 de agosto de 1519, após uma salva de artilharia, saiu a armada de Sevilha para a foz do Guadalquivir.” (p. 54)
Naus: Trinidad (11 toneladas); San Antonio (120 t.); Concepción (90 t.); Victoria (85 t.); Santiago (75 t.). Pigafetta diz que a tripulação se compunha de 237 homens. (p. 55) “Entre eles figuram italianos, franceses, alemães, flamengos, gregos e um inglês. Espanhois, comparativamente, alistaram-se poucos, alegando a insuficiência de soldo e a repugnância de servir um capitão português. Carlos I, afinal, permitira que, além dos pilotos, pudessem seguir mais dez portugueses.” (p. 55-6)
“Aos sobresalientes da Trinidad pertencia também Antonio Pigafetta, alistado sob o nome de Antonio Lombardo... [Nota de rodapé: percebia o soldo mensal de mil maravedis. Antes da partida recebeu quatro meses adiantados. Depois do regresso – pois foi um dos dezoito que voltaram ao porto de saída – cobrou, além da respectiva quintalada, 32.924 maravedis, correspondentes à duração da viagem.] (p. 56)
“A 29 de novembro de 1519, passam ao largo do cabo de Santo Agostinho, na costa do Brasil. A 8 de dezembro avistam terra, e a 13, havendo dobrado o Cabo Frio, fundeiam na baia do Rio de Janeiro. Nesta região paradisíaca permaneceu a armada duas semanas para descanso da tripulação. A 26 ou 27, depois de bem provida de água, peixe, frutas, aves e lenha, continuou a viagem, paralelamente à costa.” (p. 60-1)
Fernão de Magalhães morreu em Cebu, em 27 de abril de 1521. (...) “A morte impediu que Fernão de Magalhães voltasse a Sevilha pelo Cabo da Boa Esperança; e, no entanto, pode-se legitimamente afirmar-se que o grande navegador deu a volta ao mundo. Pelo meridiano de Greenwich, a ilha de Cebu fica situada entre 123o e 124o de Longitude Leste;” (p. 95)
Camões, nos Lusíadas, C. X, est CXL, o coloca nos versos:
            O Magalhães, no feito com verdade
            Português, porém não na lealdade.

“O Chile considera-se descoberto pelo navegador; em 1920 comemorou, com grande solenidade, o 4o centenário da travessia do Estreito. Para assistir a essas festas convidou todas as nações da América e três da Europa: Espanha, Portugal e Inglaterra. As festas terminaram com a inauguração, em 16 de dezembro , da estátua de Fernão de Magalhães, erigida na cidade de Punta Arenas, situada sobre o Estreito e capital do território de Magallanes. ” (nota p. 98)
A nau Victoria foi a única que retornou a Sevilha: a 6 de setembro de 1522 ancorava em San Lucar de Barrameda; e a 8 fundeava em Sevilha, com dezoito tripulantes europeus, e quatro indígenas malaios. O valor da carga – só o cravo foi estimado em 7.888. 684 maravedis – excedeu consideravelmente todas as despesas da expedição. (p. 105)

4) Stefan Zweig: Fernão de Magalhães: história da primeira circunavegação. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, s.d.; tradução de Elias Davidovich.


Lista das despesas feitas com a frota de Magalhaes, p. 281-92; extraído do 4 volume da “Coleccion de los viajes y descubimientos” de D. Martin Hernandez de Navarrete, Madrid, 1837.
Resulta dessas despesas a soma de 8.751.125 maravedis, a deduzir 416.790, dos bens que ficaram em Sevilha; importância exata das despesas: 8.334.335; adiantado por S. Majestade: 6.454.209; adiantado por Christopher de Haro: 1.880.126. (p. 292)

Ver postagem realizada no blog Diplomatizzando em 9/04/2018: 



O livro contém, em apêndice, o contrato concluído entre o rei espanhol Carlos I (depois Carlos V, ao realizar-se a união com os Habsburgos, da Áustria) e os dois navegadores encarregados de montar o empreendimento: Rui Faleiro e Fernão de Magalhães, feito na cidade de Valladolid, em 22 de março de 1518, segundo registro feito no quarto volume da “Colección de los viajes y descubrimientos”, de D. Martin Hernandez de Navarrete (Madrid: 1837). 
Pelas descobertas e serviços a serem prestados ao rei, assim como pelos perigos em que incorreriam, eles teriam direito a 20%, ou seja, um quinto, dos rendimentos e lucros em todas as ilhas e terras que descobrissem, além do título de governador dessas terras, para eles e para seus herdeiros, por todos os tempos. Eles também teriam licença para mandar dessas terras e ilhas o valor de mil ducados anualmente, assim como poderiam vender ou adquirir o que desejassem, bastando pagar o vigésimo como contribuição, à isenção de qualquer outro imposto, anterior ou posterior. Isso, porém, só seria válido quando do regresso da primeira viagem, e não antes. Para dar mais uma recompensa, eles poderiam reter para si, depois de escolhidas seis para o rei, duas ilhas para seu próprio usufruto (mas pagando a quinta parte nos rendimentos e lucros). 
Entrando nos detalhes de sua prestação, o rei prometia, para levar a cabo as promessas de volta ao mundo, aprestar cinco navios: dois de 130 toneladas, dois de 90 e um de 60 toneladas, equipados com tripulação, canhões e víveres para dois anos, para 234 pessoas, incluindo capitães, marinheiros e grumetes para a condução da armada. 

Quanto custou o afretamento da primeira viagem ao redor do mundo?
Mas, quanto custou tudo isso? Stefan Zweig relaciona, em um outro apêndice, a lista das despesas com a frota de Fernão de Magalhães, conforme consta do mesmo 4o. volume da “coleção de viagens e descobrimentos”, de Navarrete, de 1837. Todos os valores estão expressos em maravedis, a unidade de conta usada na Espanha entre os séculos XI e XIX, primeiro sob a forma de moedas de ouro cunhadas pelos ocupantes Almorávidas, depois sob diversas formas metálicas pelos reis católicos da Reconquista e seus descendentes, várias vezes desvalorizadas em relação à sua cunhagem original (de ouro para prata, depois vários tipos de metais, entre eles cobre). A lista resumida a seguir indica os valores dos navios e de diversas outras despesas com a frota, como segue:  
1) Navio “Concepción”, de 90 toneladas: 228.750 maravedis;
2) Navio “Victoria” (o único que retornou), de 95 toneladas: 300.000 maravedis;
3) Navio “San Antonio”, de 120 toneladas: 330.000 maravedis;
4) Navio “Trinidad”, de 110 toneladas: 270.000 maravedis;
5) Navio “Santiago”, de 75 toneladas: 187.500 maravedis.


O valor total dos navios era, portanto, de 1.316.250 maravedis. Com todos os seus equipamentos, canhões, pólvora, armaduras e lanças, o custo total da frota ascendeu a 3.912.241 maravedis. Os víveres (bolacha, vinho, azeite, peixe, carne seca, queijo e legumes, barris e garrafas para vinho e água) representaram 1.589.551 maravedis. Por sua vez, o soldo a ser pago durante 4 meses a 237 pessoas, incluindo os capitães e oficiais, requeria 1.154.504 maravedis. Mais 2 milhões de maravedis foram empregados em objetos diversos, além de mercadorias para permutas e presentes, entre eles sedas e panos. A importância total das despesas feitas com a armação completa dos cinco navios correspondia a 8.334.335 maravedis, dos quais 6.454.209 foram adiantadas pelo rei Carlos I e outros 1.880.126 maravedis por um “capitalista”: Christofer de Haro. 

Como avaliar esses valores? Seria possível atualizar o valor das despesas?
Caberia, agora, verificar o valor desses maravedis do início do século XVI, quando a Espanha começa a conhecer a grande inflação provocada pelos carregamentos de ouro e prata trazidos do Novo Mundo, e traduzir esses totais em valores correntes de nossos tempos. Segundo leio numa informação sobre as moedas usadas na Espanha em torno desse período, o maravedi passou a ser usada mais como unidade de conta do que como moeda efetiva para as transações, desde a introdução de uma nova moeda, o real, pelo rei Pedro I, de Castilla, em meados do século XIV, por um valor de 3 maravedis (Wikipedia: “Spanish real”; link: https://en.wikipedia.org/wiki/Spanish_real). A taxa de câmbio aumentou até 1497, quando o real, doravante emitido sobre a base de um composto de prata, foi fixado num valor de 34 maravedis. Segundo essa nota, o famoso “peça de oito” (peso de a ocho), também conhecido como dólar espanhol, foi emitido no mesmo ano como moeda de intercâmbio. Em 1566, o escudo cunhado em ouro passou a ser emitido, num valor de 16 reais de “prata”. Um século depois, dois reais de “meia prata” valiam 1 real de prata pura. O maravedi estava então cotado a esse real de “meia prata” à razão de 68 maravedis por cada unidade da moeda. Teoricamente, portanto, cada real de prata forte seria equivalente a 136 maravedis, e o escudo de ouro poderia valer 2.176 maravedis. 
Talvez se possa aproximar os valores expressos contabilmente em maravedis dos reais de prata, o que representaria mais ou menos o seguinte: o total da expedição teria custado 245.127 reais de prata, ou 15.320 mil escudos de ouro. Não posso, no entanto, no estado atual de meus conhecimentos, traduzir o valor real das despesas da frota de Fernão de Magalhães em cifras precisas suscetíveis de atualização. Caberia, a partir daí, tentar representar esses valores em pesetas do século XIX, com base nas frequentes desvalorizações dos antigos reais de prata, e trazer esses valores para cifras próximas dos dólares do século XX. O site Measuring Worth(http://eh.net/howmuchisthat/), da rede de história econômica à qual recorro frequentemente, promete para um breve futuro índices para conversão da peseta espanhola do século XIX (a partir de 1850), mas o site ainda não está pronto (https://www.measuringworth.com/spaincompare/coming-soon.php). Vamos aguardar, ou pedir a historiadores econômicos espanhóis, que um cálculo mais preciso seja feito.

Comentários recebidos em 10 de janeiro de 2019 do economista Leonidas Zelmanovitz, Senior Felow do Liberty Fund (Indiana, USA):

“Vou ter que ficar lhe devendo uma conversão precisa dos Maravedis.
A conversão que eu fiz em uma ocasião, foi a do Ducado, moeda usada por Carlos V para fazer o controle das receitas e despesas do seu reino. 
Em 1537, por exemplo, um Ducado, com 91,7% de ouro, tinha um peso equivalente a 10% de uma onça de ouro.
Considerando que hoje em dia uma onça de ouro equivale a aproximadamente mil e trezentos dólares, o conteúdo de ouro de um Ducado equivaleria a aproximadamente 130 dólares e com uma margem para seigniorage, eu diria, que o valor aproximado de um Ducado seria de 150 dólares hoje em dia.
Como o Maravedi era uma moeda de cobre, cuja cunhagem foi muito abusada, a "taxa de câmbio" entre o Maravedi e o Ducado variava consideravelmente. 
Eu diria que para essa primeira metade do século 16 uma boa média dessa equivalencia seria de uns 300 maravedis para um ducado, ou de 50 centavos de dolar por Maravedi.
As fontes que eu trabalhei em 2012 foram James D. Tracy "Emperor Charles V, Impresario of War," e Thobar Carande "Carlos V y sus Banqueros", mas eu encontrei a referência abaixo, que pode lhe ajudar.
Leonidas  

Source: Fiat Money in 17th Century Castile, by François R. Velde, Federal Reserve Bank of Chicago, and Warren E. Weber, Federal Reserve Bank of Minneapolis and University of Minnesota.

Footnote 1 states:
The ducat disappeared as a coin in 1537 but remained as a unit of account, representing 375 maravedis.
Table 2 Castilian monetary system, ca. 1590 (before the onset of vellón inflation) lists the following in the column "Purchasing Power":
·       maravedis -- 1/2 lb bread
·       15 maravedis -- 1 bottle wine
·       50 maravedis -- 1 spring chicken
·       80 maravedis -- 1 day skilled labor
·       200 maravedis -- 1 ga. olive oil
·       350 maravedis -- 1 bushel wheat
·       1450 maravedis -- minimum weekly middle class income

So 1 ducat was the rough equivalent of 1/4 the minimum weekly middle class income. It would have bought you four and a half days of skilled labor. Or 7 (live!) chickens, a bottle of wine and a pound of bread. ¡Buen provecho! "

==========
Addendum para novos cálculos:
Com base nos cálculos acima de Leonidas Zelmanovitz e nas informações coincidentes, pois originárias da mesma fonte, constantes dos livros de Queiroz Velloso e de Stefan Zweig, pode-se calcular que o custo total da viagem de Fernão de Magalhães foi, em preços atualizados de hoje (um ducado espanhol do início do século XVI equivalente aproximadamente a US 150), de 3 milhões e setecentos mil dólares.
Se aceitarmos que o valor da carga que trouxe o Victoria era de 7.888. 684 maravedis, e que essa moeda poderia equivaler a 50 centavos de dólar por maravedi, teríamos então um retorno de US$ 3.994.342,00, ou, seja, um “lucro” aparente de 250 mil dólares. Não estamos computando, obviamente a perda dos homens e dos navios, pois dos cinco navios apenas um retornou, e dos 240 homens partidos apenas 18 retornaram a Sevilha. Uma empresa de seguros poderia fazer o cálculo do valor humano da primeira viagem de volta ao mundo? Os navios ficam pela amortização em 3 anos...

Vale!


Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 12 de janeiro de 2019