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domingo, 14 de abril de 2019

Fernao de Magalhaes: o primeiro globalizador - Stefan Zweig (introducao ao livro)

Introdução de Fernão de Magalhães – o homem e a sua façanha

Stefan Zweig

A origem de um livro pode estar nos sentimentos mais diversos. Há quem escreva livros movido por entusiasmo ou estimulado por um sentimento de gratidão, mas a paixão intelectual também pode ser acesa da mesma forma pela irritação, a ira ou o desgosto. Às vezes, a curiosidade serve de motor, o prazer psicológico de entender, escrevendo, os homens ou os fatos; outras vezes – muito freqüentemente – são motivos mais censuráveis, como a vaidade, a cobiça, o prazer em se ver retratado, que levam alguém a produzir. Eis por que a cada livro o autor deveria fazer uma espécie de prestação de contas interior para tentar descobrir os sentimentos ou a necessidade pessoal que o levaram a escolher um determinado assunto. No caso deste livro, tenho total clareza sobre o seu motivo interior. Ele nasceu de um sentimento algo insólito mas muito intenso: a vergonha.

Foi assim. Ano passado, tive pela primeira vez a oportunidade longamente desejada de fazer uma viagem à América do Sul. Sabia que me esperavam, no Brasil, algumas das paisagens mais lindas do mundo, e, na Argentina, um reencontro inigualável com velhos amigos. Só este pressentimento já tornou a travessia maravilhosa, e a ele se somou tudo de bom que se pode imaginar: mar tranqüilo, o relaxamento total no navio veloz e amplo, liberação de todos os compromissos e aborrecimentos diários. Saboreei infinitamente os dias paradisíacos dessa travessia. Mas de repente, no sétimo ou no oitavo dia, flagrei em mim uma impaciência irritante. Sempre este céu azul, sempre este mar azul e tranqüilo! Nesses súbitos acessos, as horas de viagem me pareciam excessivamente lentas. Ansiava chegar logo ao porto de destino, alegrava-me que os ponteiros do relógio avançassem inexoravelmente, e deprimia-me aquele gozo indolente e frouxo do nada. Cansavam-me os mesmos rostos, e a monotonia da vida a bordo me enervava precisamente pela tranqüilidade de sua pulsação regular. Adiante, adiante, mais rápido, mais depressa! De repente, aquele belo e confortável vapor parecia mover-se com excessivamorosidade.

Foi talvez naquele segundo que me dei conta de meu estado de impaciência, e logo me envergonhei. Estás viajando – disse a mim mesmo – no barco mais seguro, na viagem mais linda possível, com todo o luxo à disposição. Se, à noite, sentes frio no camarote, basta girar um botão com dois dedos e o ar já se aquece. Sentes muito calor, à hora do sol a pino no Equador, basta dar um passo rumo ao salão com os ventiladores refrescantes ou mais dez passos até uma piscina à tua espera. À mesa, podes escolher qualquer prato e qualquer bebida neste que é o mais completo de todos os hotéis, e tudo chegará num passe de mágica, trazido por anjos, em abundância. Podes escolher entre ficar sozinho e ler livros ou participar de jogos a bordo com música e companhia, o quanto quiseres. Sabes para onde estás viajando, conheces exatamente a hora da chegada e sabes que estás sendo aguardado com simpatia. Da mesma forma, sabe-se a qualquer momento em Londres, Paris, Buenos Aires e Nova York em que ponto do universo o navio se encontra. Basta galgar os vinte degraus de uma pequena escada e uma centelha obediente saltará do aparelho da telegrafia sem fio, levando a tua pergunta, a tua saudação, para qualquer lugar da Terra, e em apenas uma hora receberás a resposta. Lembra-te, impaciente, lembrate, imodesto, do passado! Compara, por um instante, esta viagem com as de outrora, sobretudo com as daqueles intrépidos homens que descobriram para nós estes mares imensos e o mundo, e tem vergonha! Tenta imaginar como partiam em seus diminutos veleiros rumo ao desconhecido, sem noção do caminho, perdidos no infinito, incessantemente expostos ao perigo, à mercê de todas as inclemências do tempo, de todo o martírio da privação. Sem luz que os iluminasse à noite, nada para beber senão a água salobra e morna das talhas ou da chuva recolhida, nada para comer senão torradas velhas e toucinho salgado e rançoso, e ainda privados, às vezes, deste alimento escasso durante dias e dias. Sem cama nem espaço para descansar, sob calor infernal, sob um frio inclemente e, além de tudo, a consciência de estar só, absolutamente só, neste inclemente deserto de água. Durante meses, anos, ninguém sabia em seus lares onde estavam, nem eles próprios sabiam para onde iam. Acompanhava-os a necessidade, a morte rondava em mil formas no mar e na terra, o perigo os aguardava na forma de pessoas e elementos, e durante meses, anos, a solidão os acompanhava em suas embarcações miseráveis. Ninguém, eles sabiam, poderia ajudá-los, durante meses e meses não cruzariam com nenhum veleiro nestas águas intransitadas, ninguém poderia salvá-los do perigo e da miséria, ninguém relataria sua morte e seu naufrágio. E bastava que eu começasse a imaginar essas primeiras viagens dos conquistadores dos mares para sentirme profundamente envergonhado de minha impaciência.

Uma vez despertado, este sentimento de vergonha não me abandonaria mais durante toda a viagem, e a idéia destes heróis sem nome não me largou mais nem um instante. Experimentei o desejo de saber mais a respeito daqueles que foram os primeiros a ousar a luta contra os elementos, sobre as primeiras viagens nos oceanos desconhecidos, cuja descrição já em menino excitara a minha imaginação. Fui à biblioteca do navio e escolhi ao acaso alguns volumes. E de todas as figuras e viagens, vim a admirar principalmente a façanha daquele homem que, a meu ver, realizou a proeza mais grandiosa da história dos descobrimentos: Fernão de Magalhães, que partiu de Sevilha em cinco minúsculos barcos pesqueiros para dar a volta ao mundo, no que talvez tenha sido a odisséia mais maravilhosa da história da humanidade, aquela partida de duzentos e sessenta e cinco homens decididos, dos quais só regressaram dezoito num galeão em frangalhos, mas tendo içada ao mastro a bandeira da maior vitória. Naqueles livros não havia muitos relatos sobre ele, pelo menos o que li não me bastou. Por isso, ao regressar, li e pesquisei mais, espantado com o quão pouco se disse sobre esse feito heróico até agora. E, como já aconteceu algumas vezes antes, vi que a melhor e mais fértil possibilidade de entender algo inexplicável é tentar recriálo também para outras pessoas. Assim nasceu este livro, e, posso dizer sinceramente, para a minha própria surpresa. Pois ao tentar descrever, com a maior fidelidade possível, esta odisséia de acordo com os documentos disponíveis, tive o tempo todo a sensação de estar contando uma ficção, um sonho, um daqueles contos de fada sagrados da humanidade. Mas não há nada melhor do que uma verdade que parece inverossímil! Por se elevarem tão acima da média terrestre, todos os feitos heróicos da humanidade têm algo de inconcebível; mas sempre é aquilo que há de incrível em suas realizações que faz os homens voltarem a ter fé em si mesmos.

in Fernão de Magalhães – o homem e a sua façanha. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999. Tradução de Kristina Michahelles. (publicado com expressa autorização da editora)

Fonte: Site da Casa Stefan Zweig: http://www.casastefanzweig.org/sec_texto_view.php?id=21

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