Em entrevista ao blog, o ex-ministro Rubens Ricupero faz uma avaliação completa da nova diplomacia do País e alerta: uma "política externa de destruição" pode levar o Brasil a uma situação de pária internacional.
GENEBRA – "É triste ter de admitir que o Brasil tem hoje um presidente que não é apresentável em quase nenhuma capital, talvez nem mesmo nessas que visitou". O alerta é de Rubens Ricupero, um dos embaixadores mais respeitados do Brasil no exterior e referência da excelência da diplomacia brasileira nos órgãos internacionais.
O embaixador foi ministro do Meio Ambiente e Ministro da Fazenda, ocupou o cargo de embaixador do Brasil nos EUA e foi o secretário-geral da Conferência da ONU para o Desenvolvimento e Comércio.
Em entrevista ao blog, o diplomata faz uma ampla análise dos cem primeiros dias do governo. Mas não esconde a insatisfação e a preocupação com os rumos da política externa do governo Bolsonaro.
"A situação do Brasil hoje em dia, em termos de prestígio diplomático, aproxima-se do seu ponto mais baixo", disse. "Não vai demorar para colhermos as consequências quando tivermos de nos candidatar a algum posto em organismos internacionais ou quando o país começar a ser criticado por causa de violações de direitos humanos e meio ambiente. Vamos descobrir nessa hora que estamos praticamente sozinhos e ninguém virá em nosso auxílio", alertou.
Para ele, "o que estamos vendo é só o começo". Questionado se existia o risco de o Brasil se transformar em uma espécie de pária internacional, ele não afastou tal possibilidade. "Estaremos em marcha batida nessa direção se continuarmos na linha de levar às últimas consequências a atitude deste governo de enfraquecimento e erosão progressiva dos direitos humanos, do meio ambiente, da proteção dos povos indígenas", disse.
"Hoje em dia, o que caracteriza um governo admirado, merecedor de prestígio internacional, é seu comportamento nos domínios que integram o conjunto de aspirações da humanidade: direitos humanos, meio ambiente, promoção de igualdade entre mulheres e homens, tolerância e respeito pelas minorias, combate à desigualdade social e racial. Cada sociedade será julgada em última instância pela maneira como trata seus membros mais frágeis e vulneráveis", disse.
Ricúpero ainda qualifica o chanceler Ernesto Araújo de "uma figura menor que, de repente, se viu alçado a essa posição, graças a ligações que tem com Eduardo Bolsonaro, com o ideário esdrúxulo e excêntrico do presidente". "Cabe a ele muita responsabilidade na desmoralização e perda de poder do Itamaraty", disse.
O embaixador tampouco poupa a aproximação do Brasil ao EUA. "Bolsonaro e o chanceler Araújo atribuem a Trump um papel de defensor dos valores cristãos que nem o próprio presidente americano se atribui a si mesmo. É preciso ser cego pela ideologia ou ter muita ingenuidade para crer que um homem sem valores morais ou princípios ético como Trump possa ser o defensor de valores que viola a cada momento", disse.
Eis os principais trechos da entrevista, feita em colaboração com Yara Solenthaler:
Como o sr. avalia os primeiros cem dias da política externa brasileira sob o governo de Bolsonaro?
Ricupero – A política externa é inseparável do conjunto da obra, da política interna e da política econômica, social e cultural. Tudo faz uma unidade. Eu não acredito na possibilidade de isolar um setor e dizer: olha esse setor se salva e o resto é uma banda podre. Na verdade os governos são uma unidade. Por isso que eu acho que quando se avalia a política externa, é bom nunca perder de vista o que está acontecendo no resto. Esse início de governo, sem dúvidas nenhuma, é um dos piores de que se tem memória em toda história da república, talvez o pior em termos de confusões, de escolhas inadequadas, de dificuldade de articulação.
Tanto assim, que eu vejo sintomas já de deterioração do poder que são graves. Ao meu ver, tanto aquela decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o inquérito e a justiça eleitoral, e mais recentemente essa manifestação, que eles mesmos promoveram, de desagravo ao Supremo de um lado, como de um outro lado a súbita aprovação na Câmara e no Senado daquela emenda sobre o Orçamento, são sinais claros de que os dois outros grandes poderes, o Judiciário e o Legislativo, sentiram que o centro, quer dizer o poder, está se esvaindo. E isso é grave porque esse tipo de fenômeno pode acontecer quando um governo já está muito desgastado, quando passam anos de percalços, mas que eu saiba nunca aconteceu na história num governo que mal completou três meses. Então é um sinal muito grave porque este tipo de coisa está no ar. Você capta no ar. Eu acho, pessoalmente, de difícil reversão.
Por quê?
Não são fenômenos isolados. Eles têm que ser tomados em conjunto com outros fenômenos, como a queda muito brusca da popularidade dele em alguns setores, por exemplo da população que ganha até cinco salários mínimos, que foi no final decisivo na eleição, ele chegou a cair 18%. Então eu acho que isso, e sobretudo o quadro de fundo de uma economia que não mostra sinais de reação, ao contrário do que se esperava desde o ano passado, que ela ia começar a mostrar um vigor crescente neste ano, isso não está sucedendo.
O primeiro trimestre foi muito ruim, e inclusive o primeiro trimestre já manifesta os primeiros sinais de deterioração na única área que era mais saudável da economia brasileira que era a área externa.
As exportações estão caindo e o comércio internacional também está crescendo muito menos do que se imaginava. A própria OMC previu só 2,6% de expansão este ano. Então eu acho que se você tomar tudo isso em conjunto, é um quadro complicado. E não se pode abstrair a política externa desse quadro.
Mas o sr. considera que a diplomacia brasileira está agindo para corrigir essa queda internacional do comércio?
Eu acho que a política externa agrava o quadro do comércio exterior porque ela tem as prioridades erradas, ela antagoniza os países que deveriam ser prioritários em matéria de exportação, então ela tanto afeta no sentido de crescente deterioração do quadro, como ela também é influenciada por todos esses fatores: perda de apoio interno e o crescente sentimento de que o governo não está dando certo.
Em termos de política externa, qual a marca que o sr. considera como sendo a principal neste início de governo?
Me impressionou muito que na viagem a Washington, naquele jantar na embaixada, quando o presidente disse uma frase muito impressionante, que aliás se coaduna com tudo o que ele tem feito antes e depois de eleito. Ele disse: "o Brasil não é um terreno livre onde nós podemos construir alguma coisa em benefício do povo brasileiro. O Brasil é um terreno em que nós precisamos desconstruir muita coisa." Eu vejo nessa frase um grande poder explicativo do que ele representa.
Ele não tem ideias, não tem projetos. E ele vê o papel dele mais como um papel de destruir o que outros, na opinião dele, erroneamente fizeram. Então você vê, isso se aplica a tudo e em particularmente na política externa.
Eu acho que a política externa do Bolsonaro poderia ter até como epígrafe essa frase, porque é uma política externa em que não há nenhum discurso construtivo. Se você procurar, por exemplo os outros governos, em geral o discurso de posse do presidente, que era no Congresso, já tinha um capítulo grande sobre a política externa. Ele fez uns discursos inexpressivos. Na mensagem ao Congresso, só há uma apresentação inicial dele de algumas páginas, e nessa apresentação aparece a frase que "o Brasil há décadas vêm sofrendo o efeito da destruição dos valores da civilização judaica-cristã". Ele usa essa expressão "décadas e décadas", porque inclui nisso o Fernando Henrique Cardoso, não é só o PT, é tudo que se fez antes, a social-democracia. Esse tipo de coisa, ao meu ver, explica muito a política externa, porque é uma política externa de desconstrução, de destruição.
De que forma?
É uma política externa de ruptura com o que vinha se fazendo antes, porque, apesar das diferenças que havia, compreensíveis, entre Lula e Fernando Henrique, a política externa brasileira era, no fundo, sempre a busca de autonomia. Busca de autonomia por participação, o PT de uma maneira mais ideológica, mas todos os governos não queriam mais voltar àqueles períodos do passado em que o Brasil se via como um caudatário, um aliado dos Estados Unidos. Um aliado menor, secundário, sem importância. Agora existe, de fato, uma ruptura, surge claramente um novo paradigma. Esse novo paradigma aparece com muita clareza em dois aspectos: nas ações e nas omissões. Tanto naquilo que o novo governo fez, como naquilo que nem mencionou ou então naqueles projetos que anunciou e depois não levou avante.
Em cem dias, o que foi feito em diplomacia e o que deixou de ser feito?
Começo por aquilo que Bolsonaro anunciou e depois não fez. Em primeiro lugar a notícia surpreendente, de que o Brasil ia oferecer bases militares aos Estados Unidos, logo depois do encontro do Bolsonaro com John Bolton. Isso é um absurdo total. Tanto assim que os militares reagiram e a ideia morreu. Nunca mais se falou nisso. Base militar, em duzentos anos de história, o Brasil só concedeu na Segunda Guerra Mundial, como aliado na guerra contra a Alemanha nazista. Nunca mais, nem antes, nem depois. Então já é um absurdo, sinalizando uma coisa muito grave.
A segunda ação anunciada foi que nós íamos sair do Acordo de Paris sobre o clima. Baseado em razões falsas, que o Brasil não podia cumprir as metas quando, naquele mesmo momento, em dezembro do ano passado, o ministro do meio-ambiente do Temer estava anunciando que o Brasil já tinha se antecipado, já tinha cumprido as metas com a redução do desmatamento. Aí Bolsonaro voltou atrás e disse que não ia sair por enquanto. Você sabe que esse "por enquanto" é ambíguo porque, no momento atual, pelas regras do Acordo do Clima, nenhum país pode notificar que vai sair três anos depois do acordo entrar em vigor e esses três anos só se cumprem no dia 4 de novembro deste ano. Então não sei se ele de fato vai sair ou não.
E o terceiro anúncio era o da transferência da embaixada para Jerusalém, que o governo anunciou e depois voltou atrás. Encontrou-se finalmente um meio termo que não agradou nem a uns nem a outros.
Ou seja, retificações ocorreram já nesses cem dias?
Em três meses o governo já retificou certas coisas. Por exemplo, o presidente decidiu ir à China. O chanceler Ernesto Araújo continuou falando, em entrevistas e aulas, que a China é uma ameaça. Continua naquela linha que a extrema direita americana segue. Mas o presidente já disse que iria à China, portanto já é uma retificação.
Uma outra retificação, essa ainda mais recente, desses últimos dias, é o anúncio de que se está preparando uma visita do presidente a um país árabe, é mais um sinal. Essas coisas todas mostram que a resistência e a crítica estão tendo um certo resultado. Não que eu acredite que eles sejam sensíveis a crítica dos de fora, mas são sensíveis aos militares e ao agronegócio. Quando os militares e o agronegócio se movimentam, aí é diferente, porque fazem parte do mesmo sistema de forças que apoia o governo.
Como estão reagindo os exportadores brasileiros do setor agrícola?
O agronegócio está alarmado. Até agora tem procurado mais canalizar a inquietação diretamente falando com pessoas do governo. Mas quando se conversa com os líderes do agronegócio, vê-se que estão alarmados porque estão vendo que esse governo em pouco tempo hostilizou verbalmente todos os grandes mercados. China, países árabes e Irã, que hoje importa do Brasil em carnes tanto quanto a União Europeia inteira, 7% da importação de carnes. Nós no ano passado, só de milho, vendemos um bilhão de dólares para o Irã. É um mercado importantíssimo.
Nesses cem dias, porém, Bolsonaro fez viagens importantes.
O que há de comum entre Estados Unidos, Chile e Israel? Aparentemente nada, a não ser o caráter de direita, ou de extrema direita, dos três governos. Podem se encontrar pistas nesse sentido no discurso de posse do Araújo. Há também nesse discurso muita bobagem, o que ele diz em tupi, em grego, tolices desse tipo. Nas poucas coisas que são mais pertinentes, há lá um parágrafo em que ele fala dos países que o governo admira. Esses países são significativos porque é uma lista curiosíssima. Inclui os Estados Unidos de Trump, Israel de Benjamin Netanyahu, a chamada "nova" Itália do Matteo Salvini, a Hungria de Viktor Orban e a Polônia. É uma salada russa, sem nada em comum, aparentemente, algo meio absurdo.
Esses cinco governos representam no mundo de hoje a tendência das denominadas democracias antiliberais ou iliberais, fenômeno que vem sendo muito estudado nos Estados Unidos. Democracia porque esses governos chegaram ao poder não por golpe militar, mas por eleição, embora tenham uma orientação antiliberal, sobretudo em política. São todos xenófobos, hostis à ideia da igualdade de gênero, avessos às modernas tendências de tolerância em relação a diferenças sexuais, são governos hostis às políticas de defesa do meio-ambiente. O que eles têm em comum, em resumo, é essa ideologia iliberal e de extrema direita.
O sr. considera que existiram omissões importantes nesse início do governo em relação à política externa?
Sim. Ele não fala da Argentina, nem do Mercosul. Queira ou não, por mais dificuldades que surjam, a Argentina será sempre o vizinho principal do Brasil. Por causa da recessão da Argentina, as exportações brasileiras de automóveis e manufaturas em geral despencaram em quase 40%. Não cita o Mercosul como prioridade, nem o México, o outro grande país latino-americano. Não cita a Aliança do Pacífico. Não cita a UE, a não ser indiretamente para criticar o que diz ser um vazio cultural, países que perderam as crenças. Além disso, Bolsonaro tem criticado explicitamente a França, na entrevista à Fox News, por exemplo, hostilizando um dos principais líderes europeus, e um presidente (Macron) que exerce uma influência muito grande, internacional, gratuitamente. Sem os franceses terem feito nada contra o Brasil ou o presidente. Uma coisa assim gratuita, absurda.
Por enquanto, pouco tem se falado de uma estratégia para a Ásia.
Claro. Esse é um enorme absurdo. O jornal Financial Times, baseado até em dados da UNCTAD, mostrou recentemente que em 2020 começa o século asiático. Será o primeiro ano em que as economias asiáticas vão ser maiores que o resto do mundo somado. Metade dos consumidores do mundo, 4 bilhões de consumidores, estão na Ásia. A Ásia tem 21 das 30 cidades maiores do mundo.
Para um país como o nosso, que não tem inimigos, que não tem problemas – ao contrário dos Estados Unidos com seus problemas com a China e com a Rússia, com o Irã -, a prioridade para nós deve ser o crescimento econômico. Os mercados prioritários tinham que ser os da Ásia, não só a China, mas também a Índia, o Japão, a Coreia do Sul, os demais asiáticos. Este governo omite por completo a Ásia. A Ásia não existe. Na véspera de entrarmos no século asiático, se você ler os documentos oficiais, a Ásia brilha pela ausência. A omissão é até mais eloquente do que as escolhas.
Como o sr. avaliou o resultado das viagens internacionais?
As escolhas dos primeiros países a serem visitados impressionam, porque o critério evidente foi o da ideologia, o de serem todos, sem exceção, de direita. O porta-voz da presidência, Rêgo Barros, escreveu um artigo dizendo que o governo Bolsonaro definiu como prioridade na agenda externa reforçar a relação com os países que, por suas potencialidades, podem contribuir para a melhoria das condições de vida do povo brasileiro. No entanto, quando se olha a lista dos três países visitados, pode de saída, eliminar pelo critério das potencialidades o Chile e Israel, países de mercados modestos. Além do mais, com o Chile já dispomos de acordo que estabeleceu o livre-comércio em praticamente a totalidade dos produtos. O que faltava foi assinado pelo governo Temer, não faltava nada no caso do Chile. E o Chile tem um potencial limitado, é um país de 20 milhões de habitantes. Israel, nem preciso falar, é um país pequeno, sem expressão comercial, com um potencial concentrado na tecnologia, mas sem nada de especial em outros aspectos econômicos.
Mas a situação não seria diferente com os americanos?
No lado político e ideológico da visita a Washington, o primeiro aspecto que ressalta da visita é que parece até uma peregrinação religiosa às fontes da doutrina de extrema direita, porque o primeiro ato da viagem foi justamente o jantar em homenagem ao Olavo de Carvalho. Os participantes do jantar representavam a visão mais extremada da direita americana e no caso de Olavo, da brasileira. Foi o primeiro ato, um ato simbólico. O segundo gesto simbólico, feito quase às escondidas, foi a visita de Bolsonaro à sede da CIA. Servi nos Estados Unidos muitos anos como conselheiro, nos anos 70 e depois fui embaixador nos anos 90.
Nunca vi na minha experiência nenhum dignitário estrangeiro, seja chefe de estado, seja primeiro ministro, que tenha visitado a sede da CIA. A sede da CIA é a da agência de espionagem e de operações clandestinas, inclusive assassinatos.
É a mesma coisa que ir a Moscou e visitar a KGB, ou ir a Berlim na época de Hitler e pedir para incluir no programa uma visita a Gestapo. É uma coisa inimaginável. Não conheço ninguém, nenhum estadista, que pensasse em uma coisa dessas, o que se deve fazer é visitar o Congresso americano, a Corte Suprema, o Banco Mundial, jamais a CIA.
E quanto aos pontos positivos dessa viagem?
Houve o acordo sobre o uso da base espacial, que é um acordo positivo que se justifica pelo interesse recíproco. Mas esse acordo não representa nenhum favor ao Brasil, não é nenhuma concessão a nós.
Um aspecto muito negativo do qual o governo se vangloriou foi a concessão por Trump ao Brasil da categoria de um dos 17 aliados principais dos Estados Unidos fora da OTAN. Procura-se minimizar o significado da decisão, afirmando que a categoria apenas permite acesso a tecnologias militares, mas trata-se de questão muito mais séria em termos de implicações para a política externa de autonomia que o Brasil vinha seguindo até agora. Um país considerado aliado dos Estados Unidos deve se alinhar às prioridades da agenda americana de segurança. E essas prioridades não correspondem ao interesse brasileiro.
Qual é a agenda de segurança internacional dos Estados Unidos que poderia ser problemática para o Brasil?
O primeiro ponto dessa agenda, no momento, é a contenção da China. Tentar, por todos os meios, impedir que a China se torne a primeira superpotência tecnológica. E, ao mesmo tempo, impedir que a China se torne a principal potência econômica, estratégica, militar, que passe a dominar, por exemplo, o Mar do sul da China. Agora por que o Brasil teria que considerar isso uma ameaça a nós? O Brasil nada tem em jogo nessas questões de rivalidade pela supremacia entre os dois gigantes mundiais. Para nós, a China representa boa parte do nosso superávit comercial. Quando um país deixa de lado a autonomia e se torna aliado dos Estados Unidos, significa que esse país vai ter de acompanhar, inclusive nos foros internacionais, a posição americana em relação à China. Ou é isso ou não é aliado. Na nossa posição anterior, conservávamos a liberdade em cada momento para decidir por nós mesmos, sem hostilizar países que constituem o maior potencial de expansão para nossas exportações.
Existem outros riscos para o Brasil ao se aliar aos americanos?
O segundo ponto da agenda americano é o antagonismo a Rússia, por causa da Ucrânia, por causa da Síria. Mais uma vez não vejo porque o Brasil tem que comprar essa briga.
O terceiro é o Irã, grande mercado para o Brasil, como já vimos anteriormente. O Irã tornou-se uma grande potência regional no Oriente Médio, no lado oposto dos aliados americanos na região, Israel e a Arábia Saudita. Nós, contudo, nada temos a ver com essa disputa, que se dá por motivos completamente estranhos aos interesses nacionais brasileiros.
A ideia de ser aliado americano é vendida por aqui como se fosse uma espécie de grande elogio. Esquece-se que foi exatamente isso que os americanos concederam à Argentina, na época das chamadas "relações carnais e abjetas", na época do presidente Carlos Menem. Que diferença fez isso em termos de prestígio da Argentina? Nenhum. Ao contrário, foi motivo justificado de deboche.
Agora, do ponto de vista econômico e comercial, não haveria algum tipo de ganho?
O que se teve nesta viagem foram concessões unilaterais brasileiras. Para começar, o Brasil resolveu ressuscitar uma velha ideia de dar aos Estados Unidos uma cota de trigo. É uma cota anual permanente de 750 mil toneladas, isenta da tarifa de 10%. Essa concessão foi dada de mão beijada, sem nenhuma contrapartida.
Não houve nenhuma consulta à Argentina, com a qual temos um acordo de compra de trigo, aos parceiros do Mercosul, nem aos produtores do Paraná e do Rio Grande do Sul. A única pessoa que tentou levantar a ideia de que era necessário uma contrapartida americana foi a ministra da Agricultura. E, aliás, por causa disso mesmo, recebeu um elogio de Trump, porque ele admira quem sabe negociar. Os americanos desprezam os que são subservientes, os que bajulam. Fora de concessões unilaterais brasileiras, no campo do comércio, não houve mais nada.
Ademais, nós nos comprometemos a abrir o mercado à importação de carne suína americana de acordo com os critérios sanitários deles. Em troca, a única coisa que o lado americano prometeu foi uma visita em junho de uma missão que vai inspecionar os frigoríficos, para verificar se o governo dos EUA se dispõe a abrir a possibilidade de venda de carne bovina in natura do Brasil, prometida no governo Temer e suspensa em seguida.
Não houve nem acenos durante a visita à possibilidade de negociar com o Brasil algo de concreto em matéria de comércio, como seria a redução ou eliminação das barreiras não tarifárias. Tanto quantitativas como é o caso das cotas em açúcar e etanol, como as barreiras fito-sanitárias. Poderia haver um aceno a isso. Mas não houve nada.
O governo, porém, insistiu em comemorar o apoio dos EUA para a adesão do Brasil à OCDE. Isso não é positivo?
A propaganda em torno da adesão à OCDE não passa de uma história para enganar os ingênuos.
Em troca de uma simples promessa de apoio num processo de adesão que dura em geral mais de três anos e depende também dos demais países membros da Organização, o Brasil abriu mão de benefício concreto e tangível, o do tratamento especial e diferenciado na OMC concedido a todos países em desenvolvimento e que se traduz em vantagens de prazos maiores de transição para implementar acordos comerciais, a possibilidade de exportar a mercados de nações desenvolvidas com redução de tarifas, de negociar acordos comerciais em condições mais vantajosas.
Ninguém abre mão disso. Nem a China, nem a Coreia do Sul, o México, o Chile, todos países admitidos à OCDE sem exigência de renunciar ao estatuto especial. Outro país que jamais cogitou renunciar ao estatuto é a Índia, que compete com o Brasil exportando açúcar subsidiado e reivindica proteção especial em manter o mercado fechado a exportações agrícolas com esse argumento. O Brasil abrir mão do tratamento especial é um absurdo. Não tenho nada contra a que o Brasil participe da OCDE. Mas é preciso evitar acreditar no exagero de que esse ingresso é uma espécie de panaceia, que vai permitir aumentar a atração de investimentos, que garante a adoção de políticas econômicas de boa qualidade. Isso pode suceder ou não e depende acima de tudo do esforço interno, não da entrada para a OCDE.
A prova é que a qualidade de integrante desde sempre da OCDE não evitou que a Grécia se convertesse até pouco tempo atrás no exemplo acabado do país falido. O México é membro da OCDE há mais de dez anos e nem por isso conseguiu atrair mais investimentos que o Brasil ou crescer mais que nós. Precisamos também lembrar que a adesão tem de ser aprovada por todos os demais integrantes, inclusive pela França, país-sede da Organização e que o governo Bolsonaro vem ofendendo gratuitamente. Com a tendência no Brasil de retrocesso, em meio ambiente, em direitos humanos, em proteção aos direitos dos indígenas, na apologia de regimes de ditadura militar, o Brasil corre o risco de ser vetado pela França, ou outro país qualquer. Trocamos, portanto, uma coisa concreta, um benefício econômico tangível por um pouco de vento, por um ar vazio.
Além do mais, toda a visita foi marcada por uma atitude de bajulação e subserviência.
Para um megalômano como Trump, essa atitude acaricia o ego, mas lhe desperta ao mesmo tempo menosprezo, não o respeito que ele revela pelos que se mostram firmes na defesa de seus respectivos interesses, como é o caso da China ou da Rússia. Se mudar o governo nos Estados Unidos, vamos ficar pendurados na brocha, porque Bolsonaro até se comprometeu publicamente numa previsão de que Trump vai ganhar a eleição.
O sr. considera que houve algum resultado concreto da visita ao Chile?
Fundou-se o Prosul, algo sem maior importância, expressão da mania de cada governo de querer dar um carimbo de nome diferente ao que já existia, no caso a Unisul. Em relação à repercussão da visita de Bolsonaro ao Chile, ele não só foi repudiado pelos presidentes da Câmara e do Senado chilenos, que se recusaram comparecer ao banquete oficial em protesto pelos elogios de Bolsonaro a Pinochet e à ditadura militar. O próprio presidente Piñera teve publicamente que tomar distância das declarações de Bolsonaro em apologia a Pinochet. Criou embaraços ao próprio governo chileno. É triste ter de admitir que o Brasil tem hoje um presidente que não é apresentável em quase nenhuma capital, talvez nem mesmo nessas que visitou.
Diante dessa avaliação que o sr. faz, não corremos o risco de estarmos construindo inimigos?
A visão do governo brasileiro atual distorce a realidade do Brasil e do mundo. Nessa visão fantasista e conspiratória de uma suposta ofensiva sinistra contra a "civilização judaico-cristã", Bolsonaro e o chanceler Araújo atribuem a Trump um papel de defensor dos valores cristãos que nem o próprio presidente americano se atribui a si mesmo. É preciso ser cego pela ideologia ou ter muita ingenuidade para crer que um homem sem valores morais ou princípios ético como Trump possa ser o defensor de valores que viola a cada momento. Aliás, pode-se dizer em favor de Trump que ele mesmo nunca se apresenta como defensor da civilização cristã, mas sim, como afirma claramente, que defende acima de tudo o princípio do "America first". Nós, em lugar de seguirmos o conselho de Trump de defendermos os interesses brasileiros, nos alinhamos automaticamente contra os adversários não nossos, mas do governo americano: China, Rússia, Irã, palestinos, muçulmanos em geral, aos quais antagonizamos sem motivo.
O prejuízo que podemos sofrer por isso não é apenas o de retaliações, como a decisão do governo do Egito de suspender a visita do ministro de indústria e comércio do governo Temer, logo depois das declarações de Bolsonaro sobre a mudança da embaixada. Ou a decisão da Arábia Saudita de descredenciar alguns frigoríficos brasileiros da lista de exportadores de carne de frango. É claro que isso também se deve ao fato de que a Arábia Saudita quer estimular a produção de frangos no próprio reino. Mas na hora de escolher qual o país que vai retirar do seu mercado, ela vai escolher quem? Um país que é amigo dos árabes ou aquele que hostiliza a crença dos árabes e muçulmanos sobre o caráter sagrado de Jerusalém?
Estamos fechando para nossas exportações o potencial comercial de boa parte do mundo e da parte mais dinâmica, ao invés de abrir. E além, dos mercados, também sacrificamos a boa vontade, a simpatia política. Na ONU, no Conselho dos Direitos Humanos de Genebra, voltamos a votar como votávamos no auge do governo militar, isolados na companhia de governos párias, como eram então a África do Sul do Apartheid, o Portugal salazarista, Israel e Estados Unidos.
Até que ponto essas ações podem ter um impacto para o prestígio do país no exterior?
A situação do Brasil hoje em dia, em termos de prestígio diplomático, aproxima-se do seu ponto mais baixo. Não vai demorar para colhermos as consequências quando tivermos de nos candidatar a algum posto em organismos internacionais ou quando o país começar a ser criticado por causa de violações de direitos humanos e meio ambiente. Vamos descobrir nessa hora que estamos praticamente sozinhos e ninguém virá em nosso auxílio.
O que estamos vendo é só o começo. Ao contrário da maioria que se agarra no autoengano de que a votação da eventual reforma da previdência justifica tolerar o intolerável neste governo, não tenho nenhuma ilusão sobre o desastre que se aproxima. Depois da eleição, muita gente achava que as coisas iam logo voltar ao normal, que ia se desfazer aquele espírito de confronto, de discórdia, de polêmica. E ia aparecer o lado melhor do Bolsonaro. Como Cora Rónai escreveu dias atrás, o problema é que não existe o lado melhor do governo Bolsonaro, só existe o lado pior. Em direitos humanos, em meio ambiente, na questão das terras indígenas, na violenta rejeição da promoção da igualdade de gêneros, em todas as causas que encarnam o avanço da consciência moral da humanidade, o governo é realmente de uma grande coerência no retrocesso e no extremismo de direita. De minha parte, receio que em algum momento haja novamente uma explosão de algum setor social como foi o movimento de protestos de 2013 ou a greve dos caminhoneiros. A economia devagar, quase parando, a desesperança de mais de 13 milhões de desempregados criam clima propício para algum desafio que virá de onde menos se espera. Nesse momento é que o presidente e seu entorno serão testados. Pelo que se viu até agora, receio que não vão se sair bem dessa prova.
Como o sr. avalia o comportamento do governo na crise da Venezuela?
Foi um tema que ajudou Ernesto Araújo a compensar o choque de escândalo provocado pelo absurdo discurso de posse. Esse efeito da crise venezuelana se deve a seu caráter de um caso extremo de catástrofe humanitária que obriga quase o mundo inteiro a agir para colocar um fim ao sofrimento do povo daquele país. Nessa questão, acho que alguns dos críticos à política externa, como meu colega, Celso Amorim e outras pessoas pisam em falso quando tentam defender ou minimizar a responsabilidade do regime de Maduro.
Não há dúvida de que Maduro é um ditador, de que ele fraudou o processo democrático, não há dúvida de que, pela incompetência levada ao extremo, levou a Venezuela a uma situação de calamidade humanitária.
Mas a Venezuela não é um exemplo de uma crise que mereceria uma solução regional, e não importada dos EUA?
A crítica que se pode fazer ao governo atual do Brasil não é quanto à essência do julgamento que devemos fazer sobre a ditadura venezuelana. Desse ponto de vista, penso que todos temos que ter a honestidade de dizer que Maduro deve deixar o governo. É preciso restabelecer condições para uma eleição democrática com governo de transição, organizada sob fiscalização das Nações Unidas. O Brasil teria tido todas as condições para liderar um movimento genuinamente organizado na América Latina para isso.
E não seguir meramente a diretriz do governo Trump, que somente se interessou pelo destino da Venezuela movido por interesses eleitorais e pressionado pelos cubanos exilados na Florida como senador Marco Rubio. Que o Brasil coincida nesse esforço com os Estados Unidos é perfeito, não tenho nada contra isso. Agora, o Brasil deveria ter liderado este movimento, como um movimento autenticamente latino americano, pressionando por uma saída por meio das Nações Unidas. O que o Brasil fez de equivocado, não foi ter participado da pressão, mas de ter seguido de maneira automática a liderança americana nesta matéria.
Reconhecer Juan Guaidó foi uma decisão acertada?
Não sou favorável ao reconhecimento de Juan Guaidó como presidente, o que me parece uma obra de ficção política, de tomar o desejo por realidade. Uma coisa é querer remover a ditadura, outra coisa é o instituto de reconhecimento . O reconhecimento diplomático tem como primeira condição o controle efetivo do território. Deve-se lidar com o governo que existe e não com o governo que gostaríamos que existisse.
Pode-se até imaginar que um líder corajoso como Guaidó teria condições para ser o presidente da transição. Daí, porém, a supor que ele possui alguma parcela de poder efetivo é uma fantasia. Tanto assim que está ameaçado de ser preso, não é verdade? A essência do poder, como se dizia no Brasil antigamente, é a capacidade de mandar prender e mandar soltar. Ora, o Guaidó pode a qualquer hora ser preso, suspenderam a imunidade dele.
Os americanos e Araújo acharam que, ao reconhecer Guaidó, Maduro iria cair em 24 horas. Repetiram o erro ao julgar que a entrega forçada de alimentos e remédios levaria os militares a retirarem o apoio ao governo. Cometeram um erro de juízo ao esquecer que o Maduro não é um ditador latino-americano tradicional, clássico, como era Stroessner, como era Somoza na Nicarágua. Porque Maduro é um velho quadro bolchevista que preferiu ser treinado em Cuba do que estudar engenharia quando jovem. Os cubanos podem ter todos os defeitos do mundo, mas são experts em sobrevivência. Faz 60 anos que estão aí, sobrevivendo. Kennedy morreu, Fidel Castro morreu e eles estão aí. Sobreviveram a tudo. O bolchevista não é um tipo de pessoa que larga o poder no grito, ele larga o poder quando muda a correlação de forças.
Quem é que define hoje a política externa brasileira?
Uma das dificuldades que a gente tem é de identificar onde está o processo decisório de política externa. Não está no Itamaraty. Creio que o principal do processo decisório está nas mãos de Eduardo Bolsonaro, do próprio presidente e seu assessor (Filipe Martins), e, em relativo contrapeso, os militares, o vice general Mourão, que tentam moderar as posições mais extremas sobre a China, a Venezuela, a base militar aos EUA, Jerusalém etc.
O que esse grupo se esforça em fazer é reduzir o prejuízo, efetuar algum controle de danos. O poder menor no processo decisório se situa no Itamaraty.
Pela primeira vez em décadas, se ve um chanceler que é alvo de piadas. Até que ponto isso reflete essa força reduzida do Itamaraty?
É isso mesmo, a maneira mais eficaz de destruir o adversário é rindo dele. Pelo ridículo. Não conheço o Araújo, nunca o vi, pelo que me consta, ele nunca foi considerado do time A ou do time B do Itamaraty. É uma figura menor que, de repente, se viu alçado a essa posição, graças a ligações que tem com Eduardo Bolsonaro, com o ideário esdrúxulo e excêntrico do presidente. Cabe a ele muita responsabilidade na desmoralização e perda de poder do Itamaraty.
Durante o período de transição, foi feita uma reforma açodada, mal pensada do Itamaraty com participação de gente de fora. Subverteram a hierarquia e nomearam como subsecretários gente que pode até ter valor, mas carece de experiência, da prática de chefia de missões no exterior. Nessa profissão, a experiência faz uma diferença grande. A experiência efetiva de chefia no exterior é o que permite adquirir em geral a capacidade de lidar com crises delicadas. Em razão de todos esses erros, infelizmente o Itamaraty se diminuiu e perdeu muito espaço.
Existe o risco de o Brasil caminhar na direção de ser um estado pária?
Estaremos em marcha batida nessa direção se continuarmos na linha de levar às últimas consequências a atitude deste governo de enfraquecimento e erosão progressiva dos direitos humanos, do meio ambiente, da proteção dos povos indígenas. Em algum momento haverá um massacre, um desses episódios lamentáveis que tivemos no passado e passaremos então a ser vistos como párias em relação aos avanços da consciência moral da humanidade.
Hoje em dia, o que caracteriza um governo admirado, merecedor de prestígio internacional, é seu comportamento nos domínios que integram o conjunto de aspirações da humanidade: direitos humanos, meio ambiente, promoção de igualdade entre mulheres e homens, tolerância e respeito pelas minorias, combate à desigualdade social e racial. Cada sociedade será julgada em última instância pela maneira como trata seus membros mais frágeis e vulneráveis. Foi a percepção de que agia para melhorar a sorte dos pobres que valeu a Lula o grande prestígio de que desfrutava internacionalmente. Em contraste, este governo transmite a ideia de que é insensível à luta contra a desigualdade, a pobreza extrema, a miséria. A supressão do Ministério do Trabalho, por exemplo, é um gesto de simbolismo poderoso. Apesar de todos os defeitos desse ministério, dos abusos que nele ocorreram, ele simbolizava o esforço de corrigir pelo poder do Estado a desigualdade estrutural entre capital e trabalho. Debilitar os sindicatos, suprimir o ministério do Trabalho é criar um vácuo perigoso de ausência de mediadores, de instâncias intermediárias em momentos de aguda crise social.
A não ser que se consiga deter em tempo o franco retrocesso do Brasil em relação à essas questões, corremos o sério risco de sermos percebidos como são hoje vistos alguns dos governos que Bolsonaro e Araújo admiram, expressão do populismo e do obscurantismo de extrema direita.
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