Liderança presidencial no Mercosul: desentendimentos
Brasil-Argentina
Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo: respostas a consulta de
jornalista; finalidade: Infobae-Argentina]
Consulta recebida de jornalista argentino me leva a discutir novamente a questão do bloco, para atender a demandas específicas sobre o relacionamento presidencial no processo de integração do
Mercosul. Reproduzo as perguntas e coloco minhas respostas em português.
1) Por primera vez desde la creación
del Mercosur habrá en Argentina y Brasil presidentes con orientaciones
políticas y económicas totalmente opuestas. ¿Cuáles pueden ser las
consecuencias de este cambio sobre el futuro del bloque?
PRA: As consequências podem ser extraordinariamente danosas. Por
características próprias dos processos de integração bilateral
Brasil-Argentina, e quadrilateral no âmbito do Mercosul, as negociações e avanços
– ou retrocessos – sempre guardaram uma grande dependência do bom entendimento
entre os mandatários dos países nas iniciativas tomadas desde a redemocratização
de meados dos anos 1980. O processo de integração bilateral entre o Brasil e a
Argentina tem início ainda na primeira metade dos anos 1980, quando o
presidente argentino Raul Alfonsin convidou o Brasil, ainda vivendo sob o
regime militar, a iniciar uma aproximação econômica. O processo começou de verdade
imediatamente após a retomada democrática no Brasil, com o presidente José
Sarney, em 1985, com visitas recíprocas e a assinatura, no ano seguinte, do
PICE, o processo de integração e cooperação econômica, ainda bilateral, mas já
avançando para um Tratado de Integração, em 1988, prevendo a constituição de um
mercado comum bilateral em dez anos, já chamado de Mercosul. Isso era ainda
feito em bases estritamente de reciprocidade, formalizado em protocolos
setoriais – num modelo dirigista e mercantilista – prevendo uma integração gradual,
equilibrada, estritamente regulada pelos respectivos governos.
O processo deu um salto a partir dos presidentes Carlos Saul Menem e
Fernando Collor, quando se decide adotar um processo automático – rebaixa calendarizada
das tarifas aduaneiras, prevendo chegar a zero em quatro anos – e generalizado
a todos os setores da economia, não mais dirigista ou limitado. Ou seja, se
decidia, pela Ata de Buenos Aires – julho de 1990 –, chegar ao Mercosul na metade
do tempo previsto no tratado de 1988. Os presidente dos países vizinhos
demandaram adesão ao processo e, com exceção do Chile – que já estava mais
avançado nos processos de abertura econômica e liberalização comercial –, se
chega ao Tratado de Assunção, de março de 1991, que nada mais é do que a Ata de
Buenos Aires do ano anterior, mas quadrilateralizada ao Paraguai e ao Uruguai.
O empenho dos presidentes foi fundamental para sucesso do empreendimento.
O Mercosul avançou bastante bem na fase de integração e até na confirmação,
em 1994, pelo Protocolo de Ouro Preto, de sua estrutura institucional, que contava
com a presença dos presidentes a cada reunião do Conselho do bloco, a cada seis
meses. Mesmo quando a Argentina começou a enfrentar problemas com a Lei de
Conversibilidade (Plano Cavallo, de 1991), o bom relacionamento entre os
presidentes Menem e Fernando Henrique Cardoso permitiu superar temporariamente as
dificuldades, mediante a criação de um Grupo de Trabalho sobre a Coordenação de
Políticas Macroeconômicas, uma tentativa de criação de um “mini-Maastricht” no
Mercosul. A despeito da derrocada do regime cambial argentino, e a crise que o
país enfrentou entre os anos 2001 e 2002, o Brasil sempre procurou ajudar nos
processos de ajuste e de acordos junto ao FMI.
Depois de mudanças importantes nos dois países, com Lula no Brasil e
Nestor Kirchner na Argentina, a partir de 2003, se podia supor que a adoção de
políticas econômicas relativamente similares nos dois países – flexibilidade cambial,
responsabilidade fiscal – poderia representar, para o Mercosul, o ingresso numa
fase de coordenação real de políticas macroeconômicas e setoriais, em direção
da eliminação de entraves ainda existentes, seja na zona de livre comércio,
seja na própria união aduaneira, e a grande abertura que se necessitava fazer
em busca de novos acordos no processo de interdependência global. Em razão,
precisamente, de desentendimentos entre os dois presidentes, que pareciam
competir pelo prestígio na região, os dois países tomaram caminhos totalmente
diferentes: Lula preferiu politizar indevidamente o Mercosul – criando novos
organismos que não tinham nada a ver com a vocação original do acordo comercial
de integração –, e Kirchner embarcou numa nova onda nacionalista e
protecionista, visando industrializar novamente a Argentina, mesmo à custa dos
compromissos adotados no âmbito do Mercosul: introduziu assim salvaguardas
abusivas no comércio intrarregional, medidas que contrariavam não só o espírito
e a letra do Tratado de Assunção e das regras existentes no bloco, mas também o
próprio acordo de salvaguardas no âmbito do Gatt-OMC. O bloco deixou assim de
servir ao seu objetivo maior de ser uma plataforma para a inserção mundial das
economias dos países membros no capitalismo global e se tornou um mercado autocentrado,
quase um avestruz.
Com o advento de dois presidentes, Fernández e Bolsonaro, que parecem se
situar nas antípodas do pensamento político, e do posicionamento partidário, não
existem condições para um diálogo direto entre os dois presidentes sobre os problemas
bilaterais – inclusive de cooperação em terrenos não necessariamente econômico-comerciais
– e sobre os desafios que o Mercosul deve enfrentar para se qualificar como um
bloco confiável em novos acordos externos, que possam representar compromissos promissores
em termos de investimentos e criação de novas cadeias de valor.
A liderança dos presidentes é algo imprescindível num bloco cuja
institucionalidade é bastante precária, não só pela ausência de qualquer supranacionalidade,
mas também porque mesmo os regulamentos decididos no plano intergovernamental
carecem muitas vezes de internalização e aplicação prática em cada um dos países
membros.
2) El gobierno de Bolsonaro viene insistiendo en la
necesidad de abrir el Mercosur y firmar tratados de libre comercio, mirados con
mucha desconfianza por el futuro gobierno argentino. ¿Es posible que Brasil
decida abandonar el Mercosur? Sin llegar a ese extremo, ¿qué decisiones podría
tomar para debilitarlo?
PRA: Vejo como muito difícil alguma decisão do Brasil abandonar o
Mercosul, apenas por que alguns dirigentes políticos, como o ministro da Economia,
e mesmo o seu presidente, possam ter prevenções contra o bloco. O grau de
interpenetração das duas economias, junto com as dos dois países menores, já
avançou bastante, e para ser derrubada por um simples gesto de antipatia pessoal.
O Mercosul, atualmente, pode não ser estrategicamente relevante para o Brasil
no plano macroeconômico, mas ele segue sendo extremamente relevante, no plano
microeconômico, para dezenas, centenas, milhares de empresas de todos os
portes, dimensões e especializações, assim como para o agronegócio de maneira
geral, uma vez que gera alguns bilhões de dólares de comércio intrarregional e é
responsável por centenas de milhares de empregos em todas as cadeias produtivas.
O primeiro teste para ambos os países é, obviamente, honrar os
compromissos firmados com os europeus no âmbito do acordo birregional com a EU,
e depois partir para negociar com outros países ou blocos de países, como a
Aliança do Pacífico, por exemplo. Assim, uma decisão de paralisar o Mercosul,
ou mesmo de retrocedê-lo a uma simples zona de livre comércio, pode ser
desastrosa para uma enorme diversidade de interesses nacionais, em todo o
espaço econômico intra e extra-regional. Em outros termos, o Mercosul tem uma
agenda de tarefas inconclusas, muitas delas afetando grandes interesses em cada
um dos países membros, o que inevitavelmente depende não só de uma grande
capacidade de liderança interna dos presidentes respectivos, pois muita coisa
depende de reformas nas respectivas legislações nacionais, mas igualmente de
uma visão de estadista, que cada um deles possa ter, ao desafiar lobbies
poderosos com tendências protecionistas, e ao desenhar, juntos com seus
ministros e seus contrapartes, em cada um dos países sócios, as reformas do
bloco e sua futura conformação institucional.
Se ambos presidentes ouvirem seus diplomatas, seus conselheiros econômicos
mais sensatos, logo desistirão da insana ideia de enfraquecer um projeto de
grande aliança econômica entre as grandes parceiros do Cone Sul latino-americano,
e passarão a encontrar maneiras de renovar o diálogo bilateral, mesmo que seja
apenas restrito ao terreno econômico-comercial. As empresas, os trabalhadores
dos dois países precisam de um bom entendimento Brasil-Argentina. Retornando a
Roca: nada nos separa, tudo nos une.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4 de dezembro de 2019