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segunda-feira, 28 de agosto de 2023

’A economia de mercado está sob ataque no mundo’, diz ex-presidente do Banco do Brics - entrevista Marcos Troyjo (Estadão)

 ’A economia de mercado está sob ataque no mundo’, diz ex-presidente do Banco do Brics

Para Marcos Troyjo, o aumento do protecionismo deverá levar a um ‘subdesempenho’ da economia global nos próximos anos, mas a nova fase da globalização oferece ao Brasil a oportunidade de se tornar ‘a Arábia Saudita dos alimentos’ 

Entrevista com Marcos Troyjo

Ex-presidente do Banco do Brics e ex-secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia

O Estado de S. Paulo28/08/2023 | 14h30

Por José Fucs

Desde que deixou a presidência do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), mais conhecido como Banco do Brics, em março, o economista, sociólogo e diplomata Marcos Troyjo, de 57 anos, tem rodado o Brasil e o mundo, para falar sobre a economia do País e o futuro da globalização, a convite de instituições financeiras, entidades empresariais, escolas de negócios e organizações não governamentais.

Com uma trajetória acadêmica e profissional notável, Troyjo – que participou da equipe de Paulo Guedes no Ministério da Economia, como secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais, antes de assumir o comando do NBD, em julho de 2020 – tem atraído a atenção de uma audiência especializada, interessada em conhecer melhor sua visão sobre os acontecimentos e o que deve vir pela frente. Só nos últimos cinco meses, ele conta que deu palestras e aulas na Inglaterra, na França, na Suíça, na Itália, nos Estados Unidos, em Cingapura, nos Emirados Árabes Unidos, em Israel e em várias cidades do País.

Ex-professor da Universidade Columbia, em Nova York, onde criou o BricLab, em 2011, dedicado ao estudo do grupo composto inicialmente por Brasil, Rússia, Índia e China e depois também pela África do Sul, ele deverá retornar à academia de forma regular agora em setembro. Vai iniciar um período de um ano como acadêmico visitante na área de liderança transformacional na Blavatnik School of Governament, ligada à Universidade de Oxford, na Inglaterra, em paralelo com as atividades que deverá exercer em posto semelhante no Hoffmann Global Institute for Business and Society, vinculado ao Insead, sediado em Fontainebleau, na França. Sua intenção é passar duas semanas por mês no exterior, uma em cada escola, e ficar as outras duas em São Paulo, onde está morando com a família.

Nesta entrevista ao Estadão, ele analisa a “desglobalização” e o aumento do protecionismo no mundo. Segundo ele, a multiplicação das restrições comerciais deve levar ao “subdesempenho” da economia global nos próximos anos. “A economia de mercado está sob ataque”, diz. “Os Estados Unidos, que sempre foram um grande proponente da liberalização econômica, também passaram a ser uma economia muito restritiva e isso acaba tendo um efeito multiplicador em todo o mundo.”

Troyjo fala também na entrevista sobre as consequências da desaceleração da China e o protagonismo que caberá nas próximas décadas aos sete países emergentes de maior contingente populacional, que ele chama de E7, em contraposição ao G7 (grupo dos países mais desenvolvidos), além de abordar as incertezas dos investidores estrangeiros em relação ao governo Lula e as novas oportunidades existentes para o Brasil na produção de alimentos e nos campos da transição energética e da economia verde.

_Como o sr. avalia o atual momento da economia global, em meio à guerra na Ucrânia e ao acirramento da disputa comercial e geopolítica entre Estados Unidos e China? Como isso está moldando a economia mundial no momento?

— A economia global ainda está impactada pela covid-19, que foi o maior desafio relacionado à saúde pública desde a gripe espanhola. Está impactada também por aquele que é o maior risco geopolitico no coração da Europa desde o fim da 2ª Guerra Mundial, que é o conflito na Ucrânia. E está impactada por uma política monetária e fiscal que foi a mais expansiva desde os anos 1970, como resultado do combate aos efeitos da covid, que gerou um passivo importante até agora não revertido. Neste ano, no Fórum Econômico Mundial, em Davos, falou-se muito no termo “policrises”. Agora, além dessas questões conjunturais, a economia global está impactada por questões mais estruturais. A primeira delas vem dos países emergentes e de grande contingente populacional, que eu chamo de E7. A gente tem o G7, que abriga os países mais desenvolvidos, e o E7, que reúne China, Índia, Brasil, Indonésia, Turquia, México e Arábia Saudita. Hoje, do ponto de vista do PIB (Produto Interno Bruto) medido pela paridade do poder de compra, o E7 já é maior do que o G7. Isso tem uma implicação para países como o Brasil, porque realça as características do País como produtor de alimentos, como fornecedor de energia e como protagonista da economia verde. Outra grande questão é a mudança no DNA da economia da China, que deixou de ser um país de baixo custo.

Em sua avaliação, como essa mudança no DNA da China está afetando a economia global?

— Além dos efeitos geopolíticos e da diversificação das fontes de suprimento que estavam alocadas na China, você tem uma espécie de diáspora dos ativos manufatureiros para outros países. Muitos países estão aproveitando essa onda para desenvolver suas próprias estratégias industriais. Veja o caso do Vietnã. O Vietnã tem hoje uma empresa de carros elétricos, a VietFast, que tem um valor de mercado maior que o da GM e o da Ford. Há cerca de oito anos, a Índia elaborou uma das estratégias industriais mais inteligentes que eu conheço, com a administração do primeiro-ministro Narendra Modri, que é o projeto “make in India”. Não é “made in India”, é “make in India”. O objetivo é absorver capitais que estão saindo da China com a criação de condições especiais para a produção manufatureira na Índia. Então, como resultado da desindustrialização da China, o que está ocorrendo é um redesenho das redes globais de valor e uma reindustrialização potencial -- ou uma neoindustrialização, como eu gosto de dizer – em outros lugares. Usa-se muito hoje o termo friend shoring, que é a realocação da produção que estava baseada na China em um país considerado mais amistoso.

O que o sr. quer dizer exatamente quando fala em “país mais amistoso”?

— No limite, para o investimento privado, isso significa oferecer condições de alcançar um balanço patrimonial saudável. E um balanço patrimonial saudável é resultado de muitas coisas, entre elas a facilidade para fazer negócios, com segurança jurídica e regimes de propriedade intelectual e de remessas de lucro que sejam atraentes para os investidores internacionais.

Fala-se muito hoje nesse processo de ‘desindustrialização’ da China. Como isso está ocorrendo na prática? Que processo de “desindustrialização” é esse?

— Nós nos acostumamos a uma maneira de classificar a atividade econômica, talvez até de uma forma superada, que inclui o setor primário, formado pela agricultura e pela mineração, o secundário, que é indústria, e o setor terciário, que são os serviços. O termo desindustrialização, que eu mencionei em relação à China, diz respeito a esse tipo de classificação, à diminuição progressiva do peso relativo da manufatura no PIB chinês e à multiplicação de valor agregado por diferentes setores da economia, inclusive aqueles intensivos em tecnologia. Outra coisa muito interessante que está acontecendo na China é que a participação do comércio exterior no PIB passou de 65% em 2006 para 37% hoje. Isso não significa que o comércio exterior da China está diminuindo nominalmente. Continua a crescer. A China é a principal potência comerciante do mundo. Mas, como percentual do PIB, sua fatia diminuiu. A participação do setor manufatureiro no PIB chinês também era muito maior vinte anos atrás do que é hoje.

Agora, com a pandemia, houve um aumento do protecionismo no mundo e um questionamento da globalização, que vinha crescendo de forma contínua até então. Muita gente fala até em “desglobalização”. Como o sr. analisa esse movimento, essa reconfiguração da economia mundial? De que maneira isso deverá influenciar o comércio e as relações econômicas globais nos próximos anos?

— Eu publiquei um livro em 2016 chamado ‘Desglobalização’ e a minha hipótese é que, quando houve aquele fenômeno gêmeo da queda do Muro de Berlim em 1989, e do fim da União Soviética em 1991, teve início um processo de globalização profunda, que foi mais ou menos até a quebra do (banco de investimento americano) Lehman Brothers em 2008, com a crise no mercado de hipotecas dos Estados Unidos. Aí, veio um período de transição, entre 2008 e 2011, e depois uma nova fase, que eu chamo de desglobalização. Mas o termo desglobalização aqui deve ser entendido como desaceleração. Um veículo que está desacelerando não significa que ele parou. Significa apenas que a progressão dele passou a se dar num ritmo menor. Houve uma diminuição da liberalização econômica e comercial em várias praças. Agora, é curioso que, ao mesmo tempo, novas geometrias de comércio e investimento estão surgindo. Houve uma proliferação dos centros internacionais de irradiação de investimentos. Isso significa também uma outra globalização. Por isso, acredito que a gente está começando uma fase de neoglobalização. Agora, dito isso, o que está acontecendo hoje no mundo é que a economia de mercado no mundo está sob ataque. Os princípios da economia de mercado estão sob ataque. O mundo está caminhando para uma economia dirigista. Acho isso muito preocupante.

O que o leva a dizer que a economia de mercado está sob ataque?

— Ao analisar os discursos do Jake Sullivan, que é o conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, o que a gente vê é a defesa do protecionismo comercial, com o alastramento dos subsídios por muitos setores da economia, e de uma legislação que permite expandir o conceito de conteúdo nacional. Ou seja, é uma combinação de características que, em vários países do mundo, não deu certo. Quando isso ocorre com a economia americana, quando você tem princípios de economia dirigista tão fortes nos Estados Unidos, isso gera efeitos multiplicadores em todo o mundo. Os europeus, os japoneses e os chineses acabam fazendo a mesma coisa e isso se transforma numa bola de neve. É um fenômeno que o Robert Zoellick, que foi presidente do Banco Mundial, está chamando de Washington Oriented Economy, que quer dizer uma economia dirigida por Washington, em vez de ser dirigida pelos grandes atores privados, que fizeram a grandeza da economia dos Estados Unidos. Recentemente, eles aprovaram uma legislação lá que restringe a participação de investimentos americanos em certos mercados, entre eles o chinês, o que acaba levando à criação de atravessadores. Como os americanos não podem mais investir na China ou comprar da China, eles vão comprar do Vietnã. Só que, como os vietnamitas compram dos chineses, o que ocorre é o número de atravessadores acaba aumentando. É algo que a gente conhece muito bem na América Latina e que não deu certo.

Que efeito esse aumento do protecionismo deve provocar na economia global?

— Subdesempenho. Toda a importantíssima expansão econômica do mundo emergente que nós testemunhamos nos últimos trinta anos está muito associada a uma economia mais aberta do que fechada. O período de maior expansão da economia chinesa foi quando ela esteve mais aberta do que fechada. Nós temos a experiência concreta do Brasil, que já teve o maior parque industrial do hemisfério sul, permaneceu com uma economia fechada e não conseguiu alcançar o desempenho que se esperava. Na América Latina, nós temos muitas experiências de nacional-desenvolvimentismo que levaram ao protecionismo e a economias ineficientes. A Índia foi assim durante muito tempo. O Egito também. A China foi assim de 1949 até 1978 e a performance econômica chinesa não foi nada impressionante. De 1978 para cá, quando a China começou a se abrir, é que as coisas mudaram. Agora, os Estados Unidos, que sempre foram um grande proponente de liberalização econômica, passaram a ser uma economia também muito restritiva. E isso provoca um efeito multiplicador, com a propagação da ineficiência. Nos oito anos de governo Clinton e nos oito anos de governo Obama, que também eram do Partido Democrata, como o presidente Joe Biden, foram períodos de negociação de grandes acordos internacionais e de maior responsabilidade fiscal. Não é o momento que a gente está vivendo agora, em que o governo pode tudo, pode fazer o que quiser do ponto de vista fiscal, pode fazer o que quiser com a moeda.

Como o sr. vê as perspectivas do Brasil nos próximos anos nesse cenário de ataque à economia de mercado?

— O Brasil tem atrativos e características que fazem com que a sua performance possa ser mais positiva do que a que é impactada pelos ciclos políticos eleitorais. O Brasil vai ter um fluxo comercial muito grande no setor de alimentação. Eu tenho participado de diferentes conferências no mundo todo e o termo “segurança alimentar”, que é a capacidade de equilibrar o fornecimento de alimentos com o tamanho da população, tornou-se onipresente, mesmo em fóruns que falavam só de dívida de mercados emergentes e projeções de inflação. Quem são os quatro maiores produtores de alimentos no mundo hoje? Os Estados Unidos, que são o maior produtor mundial, mas são deficitários na balança comercial, a China, que é importadora líquida de alimentos, por causa do tamanho da população, a Índia, que é uma grande produtora, mas ainda tem muita ineficiência, muita propriedade baseada apenas na agricultura de subsistência, e o Brasil, que é o país onde você tem realmente o que eu gosto de chamar de “teto retrátil” para a produção agrícola, por conta de nossos “rios voadores”, de nossos índices pluviométricos e do nosso acesso a recursos hídricos. O Brasil é o grande ator dessa coisa toda, é uma superpotência do agronegócio. O Brasil pode ser a Arábia Saudita dos alimentos no mundo.

Agora, há muitos gargalos de infraestrutura para escoar toda essa produção, que acabam aumentando o chamado “custo Brasil”. Até que ponto isso pode nos prejudicar nesse processo?

— Nós nos acostumamos a dizer que o Brasil é muito competente da porteira para dentro, mas tem dificuldade de escoar a produção porque tem estradas em más condições, poucas ferrovias e portos que não funcionam. Num contexto em que você tem uma gigantesca atenção voltada para segurança alimentar, isso passa a ser um problema global. E problemas globais geram possibilidades de solução global. Então, o estoque de investimento disponível para o Brasil hoje, para ajudar a resolver nosso déficit de infraestrutura, é muito grande.

O sr. está dizendo que o Brasil poderá, enfim, deixar de ser o país do futuro para ser o país do presente, mesmo num cenário complicado para a economia global?

— Eu adoro aquela frase do filósofo espanhol José Ortega y Gasset: “Yo sou yo e mis circunstancias”. O Brasil é o Brasil e suas circunstâncias. E quais são as circunstâncias? Olha que dado fenomenal: o mundo hoje tem oito bilhões de pessoas. Até 1º de janeiro de 2050, haverá mais dois bilhões de pessoas no planeta. Ou seja, o crescimento populacional líquido nos próximos 27 anos será de dois bilhões de pessoas. Sabe quanto tempo levou para humanidade ter dois bilhões de pessoas? 1927 anos. Agora, o mundo tem hoje pouco mais de 190 países e nos próximos 27 anos só haverá crescimento populacional líquido em nove: Índia, Paquistão, Nigéria, Uganda, Etiópia, Quênia, República Democrática do Congo e um crescimento marginal nos Estados Unidos. Nós crescemos com noção de que Brasil tinha a quinta maior população do mundo, abaixo de China, Índia, Estados Unidos e Indonésia. Mas hoje já fomos ultrapassados pela Nigéria e pelo Paquistão. Se você fizer uma geografia do crescimento populacional no mundo, com exceção dos Estados Unidos, ele vem todo do mundo emergente e muito da África.

O sr. fala dessas circunstâncias favoráveis ao Brasil, mas a gente observa hoje um quadro preocupante, com a desaceleração da economia chinesa e o “subdesempenho” da economia global, que o sr. mesmo mencionou. Isso não tem de entrar na conta também?

— Nós estamos vivendo agora uma conjuntura difícil para alguns mercados emergentes, inclusive a China, que é o mais importante deles. Mas a Índia, por exemplo, que ultrapassou a China como país mais populoso do mundo há quatro meses, vai crescer 6% este ano. A Indonésia mais de 4%. Isso quer dizer que, no próximo quarto de século, o crescimento da população e da economia virá do E7, aquele grupo de países emergentes de grande contingente populacional do qual eu falei no início da nossa conversa. Os países do E7 vão crescer muito e a experiência internacional mostra que, quando você tem crescimento tão vertiginoso a partir de uma renda per capita razoavelmente baixa, a demanda por alimentos aumenta. Se a Índia, que tem renda per capita de US$ 3.000, continuar a crescer 6% ao ano, como está ocorrendo, a renda per capita vai dobrar em 12 anos. O que acontece quando você sai de uma renda per capita de US$ 3 mil para US$ 6 mil? Você come mais. Isso vai levar a uma mudança estrutural no mapa de demanda por alimentos no mundo. Se você associar essa mudança ao redesenho das cadeias globais de valor e ao potencial do Brasil na produção de alimentos e nos campos de energia e da economia verde, o cenário é muito favorável ao País.

Em que medida o Brasil já está se beneficiando com esse novo quadro?

— Essa é uma das razões pelas quais o Brasil está caminhando para ter uma corrente comercial de US$ 1 trilhão. Mesmo num ano difícil como 2022, a corrente comercial do País chegou a US$ 600 bilhões, a maior da história. Em 2022, o Brasil teve o maior superávit comercial da sua história. Em 2022, o Brasil teve o maior nível de exportações da sua história. De 2019 a 2022, o comércio brasileiro cresceu com todas as regiões do mundo. Em 2022, o Brasil também foi o principal destino de investimento estrangeiro direto como proporção do PIB, dentre as economias do G20 (grupo que reúne as 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia). Em termos nominais, o Brasil oscilava entre o 5º e o 6º lugar na lista dos países que mais atraem investimentos diretos do exterior. Foi para o 3º lugar e o montante de capital que entrou como percentual do PIB nominal é o maior da história. Isso tem muito que ver com essa mudança no cenário internacional, no qual o Brasil tende a ser um jogador muito importante.

O (banco de investimento) Goldman Sachs lançou há cerca de 2 meses um paper chamado ‘The rise of geopolitcal swing states’ (a ascensão dos países oscilantes na geopolítica), em referência aos swing states da política americana, que de vez em quando pendem para o lado democrata e de vez em quando para o lado republicano. Nesse estudo, eles analisam por que o Brasil se tornou um ator indispensável na produção mundial de alimentos e de energia e eventualmente na transição para a economia verde. É um diagnóstico que reforça a visão sobre o papel relevante que caberá ao Brasil nesse novo quadro global.

Desde que deixou o comando do Banco do Brics, o sr. tem circulado bastante pelo mundo e conversado com muitos investidores estrangeiros. Como eles estão vendo o novo governo e o que mudou até agora em relação ao que ocorreu em 2021 e em 2022? Como está a imagem do Brasil lá fora?

Eu estou muito impressionado. Os números que mencionei há pouco falam por si mesmos e mostram que os investidores estrangeiros diretos tinham noção clara de que estava acontecendo algo na economia brasileira naquele período. Há algumas semanas fiz a palestra de abertura num congresso internacional de hidrogênio verde e o montante de recursos que você tem na Europa, particularmente na Alemanha, para investir na produção de hidrogênio verde no Brasil, é enorme. O Brasil tem uma experiência longa em bicombustíveis e um horizonte promissor pela frente. Eu também estive este ano numa reunião em Cingapura e muita gente queria saber de investimentos no Brasil. Ouvi de um investidor de infraestrutura de Cingapura uma coisa interessante, que em 2022 o Brasil estava no sexto ano e meio de reformas estruturais. Em 2019, eu me lembro de estar conversando com um analista de mercados emergentes de um grande banco europeu e ele dizer o seguinte: “Hoje, o Brasil é o epicentro do processo de reformas estruturais no mundo emergente”. E ele tinha razão. Nós fizemos as reformas da Previdência e trabalhista, privatizamos a Eletrobras, realizamos diversas concessões, vendemos diversas empresas controladas por estatais, mudamos os marcos regulatórios do saneamento, da navegação de cabotagem, das ferrovias e do gás natural e melhoramos o ambiente de negócios. Concluímos também o maior acordo comercial entre blocos da história, que é o acordo do Mercosul com a União Europeia. Não foi pouca coisa.

Agora, você pode desperdiçar essa oportunidade ou subaproveitá-la, estancando o processo de reformas estruturais e não indo adiante no tema das concessões e privatizações, criando instabilidade jurídica. Hoje, o que está acontecendo é que você tem lado a lado esse quadro favorável ao País e uma certa polifonia por parte do governo brasileiro, com a tentativa de reversão de privatização da Eletrobras e do marco do saneamento, que confunde os investidores. Havia mais unidade quando o (ex-ministro da Economia) Paulo Guedes era a grande voz internacional da economia brasileira. Uma característica da gestão econômica do Paulo Guedes é que havia muita coordenação entre os diferentes atores. Se você pegar o (Gustavo) Montezano (ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), o Adolfo Sachsida (ex-ministro de Minas e Energia e ex-secretário de Política Econômica), o Caio (Paes de Andrade, ex-presidente da Petrobras e ex-secretário de Desburocratização do Ministério da Economia) e eu, entre outros da equipe econômica na época, a gente tem uma visão de mundo baseada em economia de mercado, na concorrência, na liberalização comercial. Por meio dessa mesma visão de mundo, você cria um consenso que tem força.

Como essa “polifonia” do atual governo está a afetando a percepção dos investidores diretos estrangeiros?

— É como se houvesse duas forças magnéticas operando ao mesmo tempo. Há uma força que demanda mais cuidado, na linha do “vamos ver o que esta nova administração vai fazer”. Isso desacelera ou modula o interesse dos investidores. Ao mesmo tempo, os países precisam comer. Você precisa criar alternativas energéticas, tem de promover a transição verde. A minha impressão é de que, entre esse polo mais atraente do Brasil e o outro, que sugere mais cautela, o polo mais atraente acaba se sobrepondo. Tudo isso, como eu falei há pouco, é mais forte do que os ciclos políticos eleitorais. É como se o Brasil tivesse uma espécie de rede protetora, que muitos países não têm, para evitar os piores cenários possíveis. É um privilégio, mas por vezes serve também para desencorajar a realização de reformas mais ambiciosas. Agora, os investidores percebem claramente que, apesar dessa polifonia mais central, há muitos governadores bons no Brasil, como os do Paraná, de Goiás, do Mato Grosso, do Rio Grande do Sul, de São Paulo, de Minas. Tem gente que está percebendo o que está acontecendo no mundo e está ajustando, no que lhes cabe, os seus discursos e as estruturas de políticas públicas para fazer frente a essa oportunidade.

O curioso é que, durante o governo Bolsonaro, a narrativa predominante dizia que a imagem do Brasil lá fora era a pior possível, que o Brasil estava isolado e era um pária no cenário global. No entanto, houve esse desempenho que o sr. mencionou há pouco, com números espetaculares no setor externo. E agora, quando prospera a narrativa de que teria chegado um “redentor”, que vai colocar o Brasil de volta no centro dos acontecimentos e atrair bilhões e bilhões de dólares ao Brasil, os investimentos estrangeiros diretos no País caíram 40% nos primeiros seis meses do governo Lula, segundo os dados do Banco Central, e há incertezas em relação ao que pode acontecer na economia. Como o sr. avalia essa dicotomia entre a realidade dos números e as narrativas?

— Eu me lembro muito de uma entrevista do Carlos Alberto Parreira, quando o Brasil disputou a semifinal da Copa de 1994 contra a Suécia e ganhou de 1 a 0, com gol de cabeça do Romário. Na coletiva de imprensa, um repórter disse para ele: “Professor Parreira, o Brasil jogou feio, jogou mal, e a imagem do futebol brasileiro é sempre da alegria.” Aí o Parreira falou o seguinte: “Olha, eu aprendi a ver o jogo pelos números. Quantas vezes o meu goleiro foi vazado? Quantas vezes o time adversário fez uma jogada de linha de fundo e cruzou para a nossa área? Quantas vezes a gente agrediu o gol adversário? Quantas vezes a gente chutou de meia distância com perigo?” Então, por meio dos números, o Parreira mostrou que a performance do Brasil tinha sido boa. O Brasil foi para a final com a Itália e ganhou o título nos pênaltis. Essas coisas também valem agora, para a economia. Se você pensar em qualquer Nação hoje, na ótica do que a gente chama no Brasil de uma forma bem ampla de “imagem do País no exterior”, vai ver que todos os países têm seus problemas. Se a gente olhar a França, tem gente que verá ali elementos de decadência. Se olhar a Inglaterra, idem. Se olhar a China, vão fazer críticas à política econômica e ao regime de governo. Se olhar os Estados Unidos, vão dizer “poxa, esse é um país que tem a crise dos opioides, está muito polarizado”.

Na sua opinião, então, a imagem do País lá fora não tem tanto impacto nas decisões dos investidores estrangeiros?

— A imagem de um país no exterior é importante. Não estou dizendo que não seja. Mas ela precisa ser contrastada com uma realidade mais concreta, que é a realidade dos números. Se o Brasil chegou a esses números em 2021 e em 2022, todos relacionados ao exterior, e se a imagem do Brasil era tão ruim quanto se dizia, a gente pode chegar mesmo à conclusão de que a imagem não é tão importante assim -- e isso não é verdade. Acho que imagem é uma coisa muito importante. Então, se a imagem do Brasil nesse período foi ruim, quando o Brasil aumentou a sua fatia no comércio internacional, aumentou a sua fatia como destino de investimentos estrangeiros diretos e concluiu o maior acordo comercial entre blocos da história, que é o acordo do Mercosul com a União Europeia, há algo estranho aí, que merece uma reflexão mais profunda.

O acordo do Mercosul com a União Europeia pode até ter sido concluído, como o sr. diz, mas não foi implementado, “subiu no telhado”, como se diz por aí.

— Ele precisa ser assinado.

Houve restrições de parte da Europa, em decorrência de posições adotadas pelo governo Bolsonaro, em especial na área ambiental, que acabaram retardando a formalização do acordo.

— Mas o acordo estava fechado. Era uma questão de insistir na percepção de que as metas de comércio, de meio ambiente, de formação de parcerias e joint ventures são mais fáceis de alcançar com o acordo do que sem o acordo. A gente fez também o acordo com o Efta (Associação de Livre Comércio Europeia), que reúne aqueles europeus muito ricos que não adotam o euro (Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça) e começou o processo de adesão formal à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Ou seja, tudo isso se deu nesse período do qual a gente está falando.

Como o sr., que participou da negociação do acordo do Mercosul com a União Europeia, vê a perspectiva de sua assinatura agora e restrições do atual governo à liberalização das compras governamentais, que estava na versão original?

— Eu tenho uma visão econômica de mundo mais liberal. Por meio de compras governamentais liberalizadas, com mais concorrência, a tendência é de que haja um aumento da eficiência e a diminuição dos custos. Agora, para prosseguir com a dinâmica do acordo Mercosul-União Europeia, acredito que é importante que as conversas não fiquem só centralizadas na questão ambiental e nas compras governamentais, mas que ambos os blocos entendam com muita clareza que, se de fato haverá uma fase agora de subdesempenho da economia internacional, por conta do protecionismo de alguns dos principais atores globais, como os Estados Unidos e a China, as oportunidades vão minguar. No momento em que você tem a perspectiva de implementar um processo de liberalização progressivo no comércio entre o Mercosul e a União Europeia durante os próximos 15 anos, isso automaticamente vai estimular a formação de parcerias econômicas e dos fluxos comerciais de parte a parte. O Brasil ganha mais um grande mercado e facilita as regras para investimento europeu e para que eles usem o País como uma importante plataforma para alcançar outros mercados na América Latina. Os grandes acordos de comércio na realidade são acordos de investimento. Veja o caso dos Estados Unidos, do México e do Canadá, em que há um fluxo de investimentos industriais, manufatureiros para o México, cujo principal destino é o próprio mercado americano.

Como a política ambiental na Amazônia, a eventual exploração de petróleo no que chamam de Foz do Amazonas, pode influenciar o investimento estrangeiro e a percepção do Brasil no exterior?

— O Brasil tem uma responsabilidade primordial com o seu próprio desenvolvimento e o seu próprio interesse nacional. Dito isso, nós fazemos parte de diferentes convenções internacionais de proteção do meio ambiente, inclusive da Amazônia. A questão sustentabilidade não significa necessariamente a intocabilidade ou da “museificação” dos recursos naturais. Nós precisamos tomar cuidado com a utilização de discursos protecionistas que se valem desse verniz ambiental para fechar mercados, subsidiar produtores e discriminar o Brasil. Outro elemento que a gente tem que levar em conta é que cada vez mais caem no gosto do consumidor internacional os produtos que têm selo verde, que tem uma boa relação entre emissão de carbono e produção, processos de produção que são sustentáveis. Essa não é apenas uma característica de proteção comercial, mas também de preferência do consumidor. Precisamos estar atentos a isso.

Para finalizar, uma palavra sobre a candidatura do Brasil à OCDE, chamada pelo presidente Lula de “clube de países ricos”, que não será “prioridade” para o atual governo. Como o sr. avalia essa decisão?

—Todos os países que tiveram um aumento de renda considerável, uma prosperidade considerável, por meio de atividades de comércio exterior e atração de investimentos, fizeram isso em parceria com países ricos. Acredito que não existem exemplos mais eloquentes que os da China e da Coreia do Sul. Não há nada contra países ricos. E na OCDE há países de menor desenvolvimento relativo, como Costa Rica, Chile e México. A importância da OCDE vai muito além disso. Por que a adesão à OCDE é importante? Porque daria uma característica única ao Brasil. O Brasil seria o único país a ser membro do Brics, com a Rússia, a China, a Índia e a África do Sul, do G20 e da OCDE.

Os acordos comerciais e de investimentos do presente e do futuro não são mais os velhos tratados de tarifas e cotas. Eles são também entendimentos sobre padrões: trabalhistas, de propriedade intelectual, de compras governamentais. Se a gente está na OCDE, tem mais capacidade de influir no desenho disso, para beneficiar a nossa economia, do que se ficar de fora. Caso contrário, você deixa de ter uma mão na modelagem dos grandes marcos jurídicos dos tratados. Ao participar desse grupo, a gente fica também mais habilitado para outras geometrias de acordos comerciais. Se a gente for negociar um acordo comercial com Cingapura, com os Estados Unidos ou com o Japão, muito daquilo que foi trabalhado e ensaiado no âmbito da OCDE vai ser também aplicado. Além disso, depois da crise de 2008, muitos investidores, sobretudo aqueles de característica internacional, passaram a abraçar critérios de governança abraçados pela OCDE. Para entrar na OCDE, você tem de fazer uma série de lições de casa prévias. Então, se isso tiver continuidade, o Brasil vai se credenciar também a girar a chave do cofre para receber esses recursos, porque os próprios estatutos desses fundos de investimento facilitam a alocação de recursos em um país que abraça os parâmetros adotados pela OCDE. O Brasil criaria uma camada adicional de investimento para sua economia.

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