Fundação de pesquisa do Itamaraty vira think tank olavista durante a pandemia
Sob Ernesto Araújo, blogueiros, militantes, fundamentalistas religiosos e teóricos da conspiração substituem diplomatas e professores em palestras
André Duchiade
O Globo, 14/05/2020
Na gestão do chanceler Ernesto Araújo, diplomatas e professores de Relações Internacionais
foram trocados por palestrantes cujo traço em comum é serem seguidores e alunos de
Olavo de Carvalho.
Blogueiros, militantes e colunistas pró-governo federal, fundamentalistas religiosos e teóricos da conspiração, quase todos sem nenhuma atuação anterior na área diplomática ou internacional, têm promovido ideias anticientíficas e de teor doutrinário e ideológico em seminários na Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), órgão de pesquisa e divulgação do Itamaraty.
As conferências, que começaram no ano passado, ganharam um fôlego renovado durante a
pandemia de Covid-19. Alta consensualidade, paranoia, especulações desprovidas de evidências e pouco-caso com parâmetros científicos são marcas dos debates patrocinados pelo Ministério das Relações Exteriores durante o surto, que não contam com a presença de embaixadores ou de professores de Relações Internacionais.
Nos dois debates já realizados em torno do tema “A conjuntura internacional no pós-coronavírus”, nesta semana e na anterior, houve quem comparasse o uso de máscaras aos gulags de Stalin, quem dissesse que críticos de Ernesto Araújo o são por “uma questão psicológica e espiritual” e que o ex-presidente americano Barack Obama é um “radical de extrema esquerda”.
Nem todos os palestrantes são caricaturescos, e nem todos os temas e intervenções são necessariamente disparatados. Na primeira conferência, o jornalista Leonardo Coutinho, que por 17 anos foi da revista e Veja e hoje trabalha em um think tank em Washington, fez uma exposição ao mesmo tempo ponderada, pertinente e conservadora, questionando limitações e incongruências do multilateralismo.
Foi dele que partiu, salvo engano, o único vestígio de questionamento à atuação do governo brasileiro durante a pandemia:
— Organismos multilaterais não são poços de virtudes, imunes a interesses políticos ou infalíveis. Mas isto não nos exime da necessidade de tomar nossas próprias decisões. Erramos ao não pensarmos autonomamente, ao não ter a coragem de tomar decisões antecipadamente — afirmou.
Por outro lado, em todas as exposições, não foi enfatizada uma só vez que acontece no mundo uma pandemia real, de uma nova doença altamente infecciosa e letal, que, caso não seja enfrentada com medidas de distanciamento social, provocará o sobrecarregamento de hospitais e milhões de mortes. Pelo contrário, seria possível assistir aos debates e concluir que a Covid-19 é imaginária.
À exceção de Coutinho, todos os oradores são ligados a Olavo de Carvalho e escrevem na internet. O ideólogo do governo insistentemente nega que haja perigos reais no novo coronavírus, tendo afirmado há apenas três dias que “o medo de um suposto vírus mortífero não passa de historinha de terror para acovardar a população”.
Os discípulos de Olavo não chegaram tão longe na Funag, mas passaram perto nas teorias da conspiração: o youtuber e tuiteiro Leandro Ruschel começou relacionando a pandemia às “elites que buscam manipular a opinião pública” e “não fazem isso de forma tênue, mas através do conflito”; o português José Carlos Sepúlveda, oriundo da Tradição, Família e Propriedade (TFP), relacionou a emergência do trabalho remoto ao “velho hábito da esquerda de dizer que é preciso mudar o homem todo, e inclusive de misturar o lazer com o trabalho”.
De gravata borboleta, Evandro Pontes, ex-professor de direito comercial convertido em polemista reacionário, disse que “os países que têm sofrido confinamento viviam renascimento conservador, como Israel, Itália e Espanha”, enquanto não se “ouve falar em confinamento em Argentina, Cuba e México”. Os dois países europeus têm governos de centro-esquerda e já reabriram suas economias, assim como Israel, governado pela direita, enquanto os latino-americanos mantêm seus isolamentos.
Estes e comentários análogos foram feitos sob o beneplácito e os elogios de Roberto Goidanich, ministro de segunda classe do MRE (nível hierárquico uma etapa antes do de embaixador) que foi promovido a presidente da Funag em março do ano passado e atuou como moderador.
Sob sua gestão, ainda no ano passado, diplomatas e professores de Relações Internacionais tornaram-se personas non-gratas na Funag, que, aos poucos, se converte em um centro de estudos da obra de Olavo de Carvalho. No ano passado, aconteceram mais de 10 de outras palestras como as sobre a Covid-19, sempre em mesas sem estudiosos que de fato atuam em âmbito internacional para fazer contrapontos.
A prática contrasta fortemente com a tradição da fundação, criada em 1971, seja em governos de esquerda ou direita. Tradicionalmente, seus presidentes eram embaixadores em final de carreira, como Jerônimo Moscardo, que foi secretário pessoal do ex-presidente Castelo Branco, e, mesmo conservador, presidiu a instituição durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, assim como Gilberto Saboia, também conservador e presidente em 2011 e 2012.
Procurado, o Itamaraty respondeu que os debatedores não foram pagos e que “todos os palestrantes dos seminários são pessoas reconhecidamente bem informadas e capacitadas. A Funag busca oferecer à sociedade brasileira elementos de reflexão para uma visão abrangente que possa se somar a outras já difundidas em vários setores, inclusive em veículos da grande mídia. A Funag espera que essa contribuição incentive o pluralismo do pensamento na sociedade brasileira”.
Professor de Relações Internacionais da FVG-SP, Guilherme Casarões afirma que a Funag sempre teve “gente de vários perfis intelectuais e perfis acadêmicos diferentes”, mas que isso apagou-se na gestão Araújo. Ele observa que, desde 2013, publicou muitas críticas às políticas externas dos governos Dilma e Temer, mas, na época, isso “nunca o impediu de ser convidado” a falar na fundação, pois “opositores ou críticos não eram tratados como inimigos”.
Para Casarões, o propósito dos encontros atuais são a agitação, a propaganda e o doutrinamento, com incitações às bases radicalizadas do governo que o ex-embaixador Rubens Ricupero chama de “franjas lunáticas”. Somados, os vídeos dos dois debates têm quase 8 mil visualizações, número pequeno para militantes digitais de direita, mas estratosférico para debates de política externa. Ao aproximar o Itamaraty do núcleo duro do bolsonarismo, o chanceler procura legitimá-la, à melhor maneira populista:
— É uma forma de dar legitimidade à política externa a partir da militância. Araújo escreveu que a política externa reflete os anseios do povo. É um discurso propriamente fascista, como se ele tivesse a única chave para entender o povo. Ao fazer eventos olavistas, ele busca que parte dos eleitores se engagem na política externa, de um modo que nunca aconteceu. Até o governo Dilma e Temer, a área era um detalhe. Ao aproximar a política externa da narrativa bolsonarista, seu objetivo é encontrar respaldo.
Há, ainda, a possibilidade de doutrinação de diplomatas, expostos a interlocutores que não teriam espaço em nenhuma grande chancelaria do mundo. Ademais, candidatos ao Instituto Rio Branco costumam estudar as palestras da Funag, e há o temor de que Olavo venha a se tornar referência no exame.
Para Rodolfo de Camargo Lima, professor de ciência política da Universidade Católica Temuco, no Chile, que estuda aparelhamento na política externa brasileira, ainda é cedo para saber a profundidade do alcance dos tentáculos olavistas na política externa brasileira, sendo necessária maior transparência do governo federal para a realização deste estudo. Ele observa contudo, que já é possível perceber um forte alinhamento na Funag:
— A Funag tinha um papel de think tank na área de Relações Internacionais, mas agora atua como instituto de pesquisa do núcleo ideológico presidencial. Há um ímpeto revolucionário, no sentido de repensar, de destruir o que vinha sendo feito — afirmou.