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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Síntese Histórica do Instituto Histórico e Geográfico do DF

Síntese Histórica do Instituto Histórico e Geográfico do DF:

Sucedendo o Instituto Histórico e Geográfico de Brasília (8/12/1960) O IHG-DF foi fundado pelo Ministro Saulo Diniz em 3 de junho de 1964. 

Com sede à SEP/Sul Entre Quadras 703/903, Conjunto C, o Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal consta de instalações próprias projetadas pelo arquiteto Milton Ramos. 

É uma entidade promotora de cultura e ativadora da pesquisa especializada em Histó- ria e Geografia do Distrito Federal, sem fins lucrativos, reconhecida de Utilidade Pública nos termos da Lei no 2.233/98 do Governo do Distrito Federal tem por finalidade:

Estudar, divulgar e estimular o conhecimento da História e da Geografia, especialmente do Distrito Federal;

Coletar material e documentos que testemunhem os primórdios e a evolução da Capital Federal, mantendo-os em exposição permanente, ou por ocasião de eventos comemorativos de suas efemérides;

Promover conferências, seminários, simpósios, congressos, cursos, campanhas, ciclos de estudos, pesquisas, exposições e outros eventos vinculados às atividades da instituição;

Cultuar a memória dos grandes vultos da História de Brasília e do Brasil;

Prestar assistência de natureza didática e pedagógica ao educando.

Aprimorar técnicas diversas, por meio da troca de saberes tradicionais e da criação de tecnologia alternativa, visando uma prática de preservação dos fatos históricos e geográficos de Brasília e do Brasil.


As visitas às instalações do IHG-DF, de alunos, professores e visitantes são orientadas e atendidas pelos professores disponibilizados pela Secretaria de Educação do DF. 

As atividades desenvolvidas são:

Aulas expositivas sobre as primeiras manifestações favoráveis à interiorização da Capital do Brasil, discussões e debates na imprensa e no parlamento brasileiro, no período que antecedeu à mudança da capital para o planalto central; as missões com finalidade de reconhecer e demarcar o local da instalação da Nova Capital; o processo de construção e inauguração de Brasília; o processo de consolidação de Brasília como capital federal;

Explicações sobre fatos e mapas históricos e geográficos relacionados à História de Brasília e sobre exposições de caráter geográfico, geológico e histórico;

Projeção de filmes e fitas de vídeos sobre diversos aspectos da história, geografia e vida no Distrito Federal.


Para a realização destas atividades, o IHG-DF mantém:

Um Museu de Brasília, que mostra em exposição permanente de fotografias, recortes de jornais e outros materiais, a História da Capital, desde as primeiras ideias de interiorização. A obra e a vida do fundador da nossa cidade, Juscelino Kubitschek, e ainda o registro das palestras, conferências e sessões memorialistas realizadas em sua sede em fitas-cassete, vídeos e fotografias.

Uma exposição sobre a década de 50, que compõe o quadro da História daquele período.

Uma biblioteca que proporciona aos usuários do IHG-DF, oportunidade de aprender a História e a Geografia local e geral como outros assuntos de interesse histórico e pedagógico.

O acervo museológico dispõe ainda de peças de inestimável valor histórico como, por exemplo: a primeira estação de rádio usada em Brasília para comunicar-se com o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro; a cadeira onde se sentou o Presidente Juscelino Kubitschek na 1a Missa oficial realizada aqui, antes da inauguração da cidade, no dia 3 de maio de 1957; o jepp Maracangalha que serviu Bernardo Sayão e Juscelino Kubitschek nas visitas às obras durante a construção da cidade; um baú de madeira que pertenceu à Missão Cruls (1892); a cadeira de barbeiro usada por JK desde o Rio de Janeiro até a Fazendinha JK, em Luziânia; a lápide em mármore que cobria a 1a sepultura do Presidente Juscelino Kubitschek no cemitério Campo da Esperança; e mais, livros, documentos e tantos outros objetos que são o testemunho da história de Brasília.

Seu quadro social compõe-se de 120 sócios acadêmicos oriundos das mais seletas camadas culturais de nossa sociedade e de outras cidades, contando ainda com mais de uma centena de sócios correspondentes em quase todos os Estados do Brasil.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

China, uma síntese histórica- Carmen Licia Palazzo

 Dei essa palestra online para um grande número de estudantes. Coloco aqui o texto, deixando claro que o escrevi como apoio para uma apresentação oral seguida de debate, mas talvez interesse a alguns amigos. Já tratei do tema em outros textos que postei anteriormente, mas sempre acrescento algo mais. Foto minha de Suzhou, a cidade das sedas e dos jardins.


Uma breve síntese histórica para entender a China contemporânea

Carmen Lícia Palazzo

Apresentarei o que em geral apresento para meus alunos de História como uma aula introdutória sobre a China. Provavelmente quem leu meus artigos já está a par de muito do que eu vou falar aqui, mas acho que pode servir de base para depois desenvolver um diálogo a partir das perguntas de vocês.

Eu morei na China durante aproximadamente sete meses. Já havia estudado História da China anteriormente, com foco mais voltado para a Rota da Seda e o encontro de culturas. Atualmente trabalho em uma pesquisa sobre a arte na Rota da Seda, especialmente dos séculos VI ao XV, mas no caso da China eu me estendi mais no estudo da sua história. 


Durante vários anos fui professora no Curso de História do UniCeub aqui em Brasília e justamente depois de já ter tido um certo conhecimento teórico sobre aquela civilização, pois muitos consideram (e eu concordo com eles) a China mais uma civilização do que um país, é que eu tive a oportunidade de passar sete meses lá, com sede em Shanghai, mas viajando intensamente por grande parte do território, de norte a sul, desde o porto de Macau até não apenas Beijing mas também o corredor do Gansu  e o oásis de Dunhuang, na entrada dos desertos de Taklamakan e de Gobi.


Deixo claro que o meu enfoque é o de historiadora.

E eu considero que, para entender a China contemporânea é importante observar o que nós, historiadores, denominamos de mentalidades na longa duração. A modernidade na China não deve ser vista como uma ruptura porque ela traz consigo uma tradição de muitos milênios que é preciso ter em conta para o entendimento da sociedade chinesa e de como os chineses se veem.


A primeira consideração importante é a de que a China é a única civilização cuja escrita atual tem suas raízes em caracteres que datam de pelo menos 3.500 anos. O início para o qual existe testemunho material da escrita chinesa é aproximadamente o do ano 1.500 a.C. Os caracteres que receberam esta datação foram escritos em ossos de animais, em carapaças de tartarugas e no interior de objetos de bronze usados em diversos rituais e descobertos em escavações arqueológicas relativamente recentes, várias delas datando do século XIX. Tais objetos estão disponíveis em diversos museus chineses. Aliás a museologia é altamente desenvolvida na China e coleções magníficas podem ser encontradas em diversas cidades, em muitas regiões do país. Os chineses prezam contar sua História.


Diferente dos hieróglifos do Egito, os caracteres chineses atravessaram milênios, transformaram-se, mas vários deles mantiveram sua estrutura ou alguma referência com os de um distante passado. Os testemunhos das origens milenares da escrita estão justamente presentes em diversos museus e são motivo de orgulho também para as novas gerações. As crianças chinesas sabem que estão aprendendo uma caligrafia que tem origem nos seus mais remotos ancestrais e, apesar de toda a modernidade presente nas escolas,  escrever é uma arte que continua tendo considerável prestígio no país. 

Outro motivo de orgulho para os chineses diz respeito ao fato de que, embora o longevo império tenha enfrentado muitas invasões e, em duas oportunidades, tenha sido governado por etnias estrangeiras – os mongóis da dinastia Yuan (1271 até 1368) e os manchus, da dinastia Qing (1636 até 1911) – sempre prevaleceu a cultura e a escrita chinesas bem como a estrutura da administração largamente influenciada pelo Confucionismo. Dada a grande extensão territorial do império, a formação da burocracia, para o funcionamento do núcleo central da Corte e até as mais remotas províncias era uma preocupação constante. 

Desde muito cedo foram organizados concursos que selecionavam os candidatos mais capacitados para exercer diversas atividades como funcionários imperiais. Os primeiros concursos dos quais se têm registro datam do ano de 650. No entanto, sua implementação de maneira regular passou a ser realizada pela dinastia Song (960-1279), mais precisamente a partir do século X, mantendo-se de forma ininterrupta até sua extinção em 1905, no período final do império Qing, tendo durado portanto por quase dez séculos.


Com pequenas variações pontuais, o conteúdo dos concursos imperiais exigia o conhecimento aprofundado e a capacidade de interpretação de dois conjuntos de obras essenciais da cultura chinesa: os Quatro Livros e os Cinco Clássicos. Resumidamente pode-se dizer que os textos considerados como os mais importantes destas obras eram os Diálogos de Confúcio com seus estudantes (os Analectos), os escritos de Mêncio, um discípulo de Confúcio mas que desenvolvera algumas ideias próprias, os Anais com descrições históricas e o I Ching, ou Livro da Sabedoria. 

Considerando-se que os concursos só foram abolidos no início do século XX, pode-se constatar a importância do Confucionismo e da cultura clássica e sua permanência no universo mental da sociedade chinesa na longa duração. E como a aprovação nos diversos níveis dos concursos imperiais eram um significativo instrumento de ascensão social,  o estudo, os ensinamentos de Confúcio e os professores eram também muito valorizados, valorização esta que se tornou uma das características mais fortes da cultura da China. 


Na cidade de Jiading, próxima a Shanghai, há um interessante museu dos Concursos, nos quais há alguns modelos de provas e informações sobre os conteúdos. E, o que é uma curiosidade bem interessante: um colete com cola escrita nele e que foi apreendido de um candidato que tentava assim levar escrito uma parte dos conteúdos que deveriam ser decorados.

Um aspecto importante da civilização chinesa é a defesa da sua integridade territorial. Em épocas nas quais a Europa estava fragmentada em feudos a China já era uma monarquia absolutista preocupada com a defesa de suas fronteiras e com a manutenção de uma corte centralizada e imperial. Em alguns períodos houve reinos que combateram entre si, dentro do território de cultura chinesa, no entanto sempre emergiu dos períodos de lutas uma dinastia aglutinadora e forte. 


A construção da Grande Muralha, que foi realizada no decorrer de séculos, é emblemática da preocupação com a defesa territorial e, embora ela não tenha sido efetiva para deter todas as invasões, era afirmativa de um poder imperial que reinava sobre uma civilização unificada por diversas características culturais e entre elas por uma mesma escrita, ainda que existissem e ainda existam inúmeros dialetos. Nem sempre a dinastia governante era de origem chinesa, portanto “han”. A mais conhecida dinastia estrangeira que conquistou a China, ainda que adotando largamente a cultura chinesa, foi a dos mongóis. Kublai Khan, neto de Gengis Khan, chefe mongol que unificara diversas tribos do norte, fundou a dinastia Yuan, após conquistar a China. É a corte de Kublai Khan que  está relatada no famoso livro de Marco Polo. 

Crises no abastecimento agrícola e um grande descontentamento entre o mandarinato chinês, que era preterido em altos cargos pelos mongóis e até mesmo por outras nacionalidades, foram responsáveis, entre outros fatores, pela queda dos Yuan após quase um século no poder.  A ascensão de uma dinastia novamente de etnia chinesa que se autodenominou Ming, ocorreu em 1368 e foi um dos mais brilhantes períodos da arte da porcelana e da pintura na China.  Mas, em 1644, as constantes invasões de novas tribos do norte, que sempre cobiçavam o rico Império do Meio, levaram à desestabilização dos Ming, enfraquecidos, por sua vez, por novas crises econômicas e altos impostos. Os invasores manchus destronaram o imperador Ming em 1644 e assumiram o que viria a ser a derradeira dinastia, a dos Qing, antes da República. Foi um período de muitas realizações principalmente no reino de dois brilhantes imperadores, Kangxi e Qianlong.


Em seus relacionamentos com o exterior, a China teve fases muito distintas e isto influenciou bastante o seu desenvolvimento. Na Antiguidade e no início do que no Ocidente nós chamamos de Idade Média, o comércio de produtos chineses foi de longo alcance através de uma intensa movimentação de mercadores que, posteriormente, ficou conhecida como Rota da Seda. Através de estradas, caminhos e até mesmo oásis nos desertos, principalmente o de Taklamakan e o de Gobi, circularam caravanas nas quais estavam presentes também alguns peregrinos e aventureiros, mas formadas sobretudo por comerciantes que levavam até os portos do Mediterrâneo oriental e ocidental as manufaturas chinesas muito prezadas nas cortes europeias, entre elas as sedas e as lacas. Às mercadorias chinesas, somava-se também ao longo da Rota todo um comércio oriundo de outras partes da Ásia, como tapetes, perfumes e temperos.


Na movimentação da Rota da Seda, chegaram à China os primeiros muçulmanos. Recentemente têm ocupado o noticiário internacional os problemas que ocorrem entre o governo chinês e os muçulmanos uigures do Xinjiang. E aqui eu gostaria de explicar para vocês que não se trata, porém, do único grupo de praticantes do Islã na China, já que os de um grupo denominado Hui têm como ancestrais os mercadores persas e árabes que, desde provavelmente o século VIII não apenas circularam em território chinês nos caminhos da Rota da Seda, mas muitos ali se estabeleceram, casaram-se com mulheres chinesas e, com o passar dos séculos, adquiriram feições, hábitos e o idioma chinês. 

MAPA DOS UIGURES

Os Hui são considerados um grupo à parte dos chamados chineses Han pelo fato de serem muçulmanos, no entanto em suas feições e na maior parte de seus hábitos (excetuando-se o consumo de porco) pouco diferem dos chineses e são, algumas vezes,  denominados “chineses Hui”. Este grupo raramente se envolve nas questões que tornam tão complicada a convivência dos muçulmanos uigures com os chineses.

Os muçulmanos uigures, porém, são de etnia túrquica ou turcomena. Eles não tem feições chinesas, seu idioma é de origem turcomena. Os uigures não têm nenhuma relação étnico-linguística com os muçulmanos Hui e vivem na chamada Região Autônoma do Xinjiang Uigur, que já foi chamado não oficialmente de Turquestão Chinês. Trata-se de uma região que beira muitos conflitos, pois faz fronteira com a Mongólia, o Cazaquistão, o Quirguistão, o Tajiquistão, o Afeganistão e a Cachemira, disputada entre a Índia e o Paquistão. E, em uma pequena parte, a região faz fronteira também com a Rússia.

A Região Autônoma do Xinjiang Uigur abriga todo um leque de etnias: uigures, chineses, casaques, tajiques, russos e outros. No passado, esteve ligada a uma Confederação de Povos Nômades, porém durante muito tempo foi parte do império chinês até que, no século XIX, no rastro das reivindicações nacionalistas que eclodiam pelo mundo, viu surgir, no seu interior, as primeiras manifestações separatistas. Mais adiante, já no século XX, ocorreram atentados terroristas graves, matando chineses. Por outro lado, em 1980, os chineses apoiaram a luta dos talibãs contra os russos, permitindo, inclusive, que muçulmanos uigures fossem participar da guerra. Mais adiante, os talibãs retribuíram o apoio mas, na Região Autônoma do Xinjiang, apoiando os uigures em suas ações terroristas contra o governo chinês. 


Trata-se, portanto, de uma complicada questão de ordem política, mais do que religiosa, mas que ocasiona graves problemas regionais. Governos do Oriente Médio, mesmo muçulmanos, também não interferem na repressão chinesa aos uigures, pois não consideram que se trate de perseguição de caráter religioso, mas de uma questão política interna da China. O desinteresse dos sauditas pelos muçulmanos uigures levou a críticas bastante contundentes, no entanto não alterou em nada as relações da Arábia Saudita com a China. 

Durante grande parte do período imperial, os chineses sempre acolheram a diversidade religiosa, ainda que às vezes privilegiando mais os budistas ou mais os taoístas, mas tendo sempre Confúcio como o seu fundamento, já que era o confucionismo a  literatura clássica vinculada ao funcionamento da burocracia. No entanto, desde os tempos da Rota da Seda, foi frequente a presença não apenas de muçulmanos mas também de cristãos, principalmente nestorianos e de judeus, na China, com maior frequência nos grandes centros comerciais, como Suzhou, Hangzhou, Kaifeng, Xi’an, entre outros. 


Sobre a convivência dos chineses com o cristianismo, é interessante destacar a presença dos jesuítas nos tempos do Império. Esse é um capítulo muito rico e de encontros culturais importantes entre os europeus e o Oriente. Os missionários jesuítas, muito estimulados pela história de Francisco Xavier no Japão, dedicaram-se também às atividades de catequese no Império do Meio, porém ali tiveram uma experiência bastante distinta da japonesa, desenvolvendo um rico relacionamento com os letrados da Corte e algumas vezes diretamente com os próprios imperadores, entre os séculos XVI e XVIII. 


A entrada de ocidentais no interior da China era difícil, pois dependia de autorização do imperador. Entre os primeiros missionários jesuítas, destacaram-se os italianos Michele Ruggieri e Matteo Ricci. Ambos teceram excelentes relações com altos funcionários da Corte e, com habilidade, conseguiram permissão para deixar Macau, que era o enclave comercial português e porta de entrada no império para penetrar no interior do continente, onde estabeleceram missões em mais de uma cidade. 

No entanto, o mais importante foram os relacionamentos que Riccci desenvolveu com o mandarinato, aprendendo o idioma, ensinando muito do que tinha aprendido no Colégio Romano (atual universidade Gregoriana) para os chineses e, afinal, sendo reconhecido como um legítimo mandarim. Mais adiante, já no período da dinastia Qing, outros jesuítas cientistas chegaram a ocupar altos postos na Corte, dois deles, Ferdinand Verbiest e Adam Schall von Bell,  como diretores do Observatório Astronômico Imperial. Os jesuítas encantaram-se com o confucionismo, com a estrutura dos exames imperiais e escreveram relatos nos quais reconheciam a China como uma civilização com a qual era gratificante dialogar. 


A China, que havia estado na vanguarda de grandes avanços, como a invenção da bússola, do papel, dos juncos que navegavam com muita agilidade, no século XVIII começava a se fechar aos contatos com o exterior, restando apenas os jesuítas para fazer uma ponte entre a ciência ocidental, que já tinha progredido muito, e os letrados chineses, em geral muito conservadores e literários. Crescia entre o mandarinato a ideia de que o Império do Meio poderia ser autossuficiente e pouco dependeria do exterior. Os progressos na catequese não foram grandes e os padres jesuítas foram bastante criticados por outras ordens porque  acabaram atuando mais como cientistas do que como missionários. 

Os jesuítas europeus permaneceram na China até a extinção da Ordem, em 1773, muitas vezes contando com o apadrinhamento de grandes imperadores, como Kangxi e Qianlong, e seus relatos e as cartas que enviavam para a Europa foram responsáveis pela construção de uma imagem positiva do Império chinês no Ocidente e pela difusão da chamada moda das “chinoiseries”. O século XVIII foi importante também na introdução do chá chinês na Inglaterra (antes do chá que depois passou a ser cultivado na Índia) e na larga demanda pela porcelana e pelas lacas chinesas, principais produtos importados pelos europeus.

No entanto, a sensação de grande poder e de invulnerabilidade que, durante muitos séculos, foi uma característica do Império do Meio, independente de qual a dinastia que estivesse reinando, e mesmo de qual a etnia, foi se esvaindo no decorrer de todo o século XIX, ainda que a corte Qing não abrisse mão de grande luxo e de uma mão de ferro para governar as províncias. As mudanças que ocorriam no rastro da Revolução Industrial envolviam principalmente os processos de modernização da Europa, dos EUA e do Japão.


Os europeus entraram em uma fase de modernização acelerada, pois justamente a Revolução Industrial havia permitido importantes avanços na construção de navios, tanto da marinha de guerra quanto da mercante. A Companhia das Índias Orientais, uma companhia charter britânica, fazia a rota comercial da Índia e da China. Por outro lado, os chineses, que no século XVIII tinham se interessado pelo conhecimento científico dos jesuítas, foram deixando de lado os avanços navais por considerar que o império dificilmente seria atacado ou entraria em alguma guerra importante. Abrir mão da modernização da frota  chinesa foi um descuido que posteriormente custou muito caro para a dinastia Qing, então reinante.

No século XIX, havia um descompasso entre a modernização acelerada da Europa, que alavancava o imperialismo, e a China, cujo império enfrentava inúmeras dificuldades além da pressão das potências ocidentais para ceder na abertura de seus portos aos navios estrangeiros.  

Os problemas internos enfrentados pela dinastia manchu eram inúmeros, entre eles uma prolongada e grave crise alimentar, resultado de problemas climáticos com grandes enchentes e diques mal conservados, impostos cada vez mais altos cobrados dos agricultores e, entre os altos funcionários da Corte, um embate persistente entre os defensores da modernização do império e os conservadores, avessos a ideias vindas de fora que contrariassem as tradições chinesas.


A partir de 1850 houve um recrudescimento da crise econômica e os grandes imperadores como Kangxi e Qianlong, que apesar de serem de dinastia manchu, eram admirados pela população em geral, estavam no passado. Com imperadores menos carismáticos e também menos capacitados na gestão do Estado, os chineses elegeram a dinastia como culpada por todos os problemas e surgiram reações populares de caráter nacionalista pedindo a derrubada dos Qing.

Uma  das guerras internas mais trágicas de toda a história da China imperial e que causou milhões de mortos (há uma estimativa de 20 milhões de vítimas diretas ou indiretas da guerra) foi a chamada Revolta Taiping, que teve início no ano de 1851 e só terminou em 1864. O líder que deu início ao levante, Hong Xiu Quan, dizia-se cristão, mas fazia, em seus discursos, um amálgama do esoterismo taoísta e algumas referências ao cristianismo, que provavelmente havia aprendido de missionários estrangeiros, e se anunciava como filho de Deus e irmão mais jovem de Jesus. Apesar do desvairio de suas afirmações, conseguiu muitos adeptos porque pregava um mundo mais justo e melhores condições de vida para os camponeses que viviam em situação muito precária. 

A difícil derrota dos Taiping, após 14 anos de uma luta devastadora só ocorreu com a ajuda das potências ocidentais que, apesar de seu caráter imperialista, desejavam obter concessões da China, mas não a deposição da dinastia reinante. Um oficial americano, Frederick Ward , e um britânico, Charles Gordon, comandaram os soldados chineses na luta contra os revoltosos Taiping. 


O mandarinato, independente de ser do grupo conservador ou modernizante, também se posicionou contra a Revolta, que conseguiu apoio da parte mais pobre da população.

Neste clima de descontentamento e de violência ocorreram também duas guerras oriundas de agressões externas para extrair vantagens sobretudo comerciais do Império, as chamadas Guerras do Ópio, que podem também ser consideradas como dois episódios de uma mesma guerra. O vício dos chineses em ópio era antigo. Inicialmente usado pela medicina tradicional como medicamento para diversos males, seu consumo foi se tornando um hábito de sociedade, inclusive entre o mandarinato, transformando-se em um vício em larga escala, principalmente a partir do século XVIII. A produção interna atendia bem a demanda até o século XVII, mas com o aumento do consumo os comerciantes chineses passaram a importa-lo dos ingleses, que abasteciam seus navios na sua possessão indiana de Bengala, onde havia grandes plantações de papoula. 


A Companhia das Índias Orientais tinha o monopólio deste comércio e, da China, levava de volta em seus navios o muito apreciado chá chinês, altamente consumido na Grã Bretanha principalmente a partir do século XVIII. As transações entre os britânicos e chineses ocorriam no único porto então aberto para tal, que era o de Cantão (Guangzhou) e assim mesmo sob diversas restrições e intermediações de funcionários imperiais.

Como os chineses tinham pouco interesse em produtos europeus e consideravam que o Império produzia quase tudo o que eles necessitavam, a Balança Comercial entre ambos os países era deficitária para os britânicos e apenas a exportação ópio indiano poderia melhorar a situação.. No entanto, alguns imperadores tentaram frear o seu consumo não medicinal, considerando que o vício, alastrado inclusive entre altos funcionários da Corte, estava prejudicando o país. 

A partir de 1831 começaram a ser feitas tentativas firmes para reprimir o seu uso e, em 1839 teve início uma repressão muito dura e bem organizada em todo o Império. Um funcionário de confiança da Corte e que administrava o porto de Cantão ordenou, no mesmo ano de 1839, a apreensão de 20.000 caixas de ópio de Bengala ali desembarcadas e fez uma queima pública de todas elas. Tal apreensão e destruição de um produto desembarcado pela Companhia das Índias Orientais foi considerada uma afronta aos britânicos tendo início, então, aquela que ficou conhecida como Primeira Guerra do Ópio. A Grã-Bretanha enviou seus navios de guerra para fazer o bloqueio de diversos portos chineses. 


Como a China encontrava-se em grande desvantagem tecnológica em relação aos europeus e sobretudo a sua marinha nunca tinha se modernizado, já que os mandarins mais conservadores não acreditavam em algum possível ataque por mar, em 1842 os chineses foram derrotados e tiveram que assinar o Tratado de Nanjing, que seria o primeiro do que depois foi denominados “Tratados Desiguais”.  

Pelo Tratado de Nanjing ficava estabelecido que a China pagaria uma elevada indenização aos britânicos, cederia a eles Hong Kong e abriria mais quatro portos (Ningbo, Xangai, Xiamen e Fuzhou) além de Cantão, que antes da guerra era o único que recebia navios estrangeiros. Na verdade, essa abertura dos portos era o principal objetivo das potências ocidentais, demanda que se coadunava com as características do imperialismo do século XIX. E, abertos à Grã Bretanha, ficavam então os referidos portos abertos também às demais potências europeias e ao Japão.

Não havia, da parte dos europeus, nenhum interesse em derrubar a dinastia Qing, com a qual, em diversos aspectos, eles mantinham um relacionamento bastante amigável e lucrativo. O que existia era o desejo de abrir a China ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros, já que nenhum europeu esperava conquista-la ou integra-la às suas possessões, reconhecendo a especificidade chinesa, a força de um império milenar ainda que extremamente atingido por crises de vários tipos. 


Entre 1856 e 1860 ocorreu a que ficou conhecida como Segunda Guerra do Ópio, com características muito semelhantes à anterior, desencadeada em resposta a um episódio de vistoria chinesa ao navio Arrow e às atividades de sua tripulação. Na mesma ocasião, houve o assassinato de um missionário francês, o que fez com que a França decidisse entrar também na guerra, apoiando os britânicos. Nova derrota para a China, novo tratado desigual, desta vez o de Tientsin, com mais portos sendo abertos aos navios mercantes europeus e japoneses.

Entre as vantagens conseguidas pelos europeus no rastro das derrotas chinesas, estava, desde o final da primeira Guerra do Ópio, o estabelecimento de “concessões”, além da abertura dos portos. Nelas, os estrangeiros poderiam residir sem que ficassem sujeitos às leis chinesas, mantendo seus hábitos, suas escolas e toda uma estrutura administrativa como se fosse território internacional.  Entre os exemplos que ficaram mais conhecidos e que foram mais bem sucedidos estavam a concessão britânica de Xangai, que se manteve de 1845 até 1943, e a francesa na mesma cidade, entre 1849 e 1943. 

Ainda que as concessões tenham sido uma exigência dos vencedores da guerra,  muitos chineses consideraram-se beneficiários delas pois, em diversos casos, e em especial na de Xangai, ocorreu a criação de  novos empregos e, durante a Revolta Taiping, serviu de refúgio para muitos mandarins e outros chineses que temiam a barbárie dos revoltosos. O grande desenvolvimento cosmopolita de Xangai é atribuído, mesmo pelos chineses, à presença de ocidentais em diversas atividades na cidade.


O século XIX, todo ele, vai ser de muitos conflitos também internos e em geral envolvendo sempre dois grupos opostos da elite letrada, que se constituía no corpo de funcionários mais qualificado de toda a administração imperial. Tais grupos eram o dos conservadores e o dos adeptos de uma rápida modernização tanto da Economia quanto do sistema escolar, muito engessado em função do programa dos concursos imperiais, todo ele focado nos Clássicos chineses. Deste embate entre tradição estrita e modernização vai surgir uma nova revolta, que ficará conhecida como a Guerra dos Boxers ou dos Punhos Justiceiros.

Para entender a Guerra dos Boxers é importante conhecer o contexto no qual ela ocorreu. A província de Shandong, onde se iniciaram os confrontos, era um importante centro do Taoísmo, abrigando também muitos centros budistas e a cidade natal de Confúcio, Qufu. Era – e ainda é – uma  região de muitas memórias da civilização chinesa e na qual seus habitantes, principalmente aqueles ligados a atividades camponesas, tinham   algumas práticas esotéricas de raízes ancestrais. Nessa mesma região, como resultado dos Tratados Desiguais, o Império havia arrendado aos alemães a baía onde ficava a cidade de Qingdao, na qual também se instalaram alguns outros europeus, principalmente britânicos. Eram indivíduos ligados ao comércio ou missionários, que fundaram escolas na região. 

Os missionários eram bem vistos por parte da população, pois ensinavam novas técnicas em suas escolas e eram contrários à deformação dos pés das meninas, estendo as possibilidades de estudo também a elas.  Para os conservadores, no entanto, este ambiente de modernidade era considerado ofensivo às práticas ancestrais chinesas, especialmente arraigadas na província de Shandong.


Neste quadro, ao qual somava-se a crescente crise econômica e o empobrecimento dos camponeses, uma sociedade esotérica de cunho altamente nacionalista e messiânico que se denominava Punhos Justiceiros (conhecidos no Ocidente como Boxers) insuflou a população com discursos contra os estrangeiros, acusados de  perturbar os ancestrais com seus investimentos modernos, como a construção de estradas de ferro e do telégrafo. Aos missionários, acusavam de bruxaria e de assassinato de crianças para extrair seus órgãos para rituais religiosos. O nome Punhos Justiceiros devia-se a um tipo de luta que o grupo praticava e que era considerada “mágica”, impedindo que, em uma guerra, as balas dos opositores os atingissem.

A Corte manchu ficou em dúvida se os apoiava apenas para não arriscar novos levantes da população contra ela ou se ficava neutra em relação à revolta. Afinal, venceram os mandarins próximos ao imperador que o aconselharam a dar apoio aos Boxers, o que desencadeou nova guerra contra os europeus e os japoneses, já que as Legações em Beijing foram atacadas, violando-se assim o território dos diplomatas estrangeiros. A reação foi rápida, os europeus, os norte-americanos e os japoneses enviaram tropas, atacaram os Boxers e os derrotaram, numa guerra relativamente curta que durou entre 1899 e 1900. 

O imperador Guangxu e sua tia Cixi, conhecida como a Imperatriz Viúva e que era a verdadeira eminência parda do Império, tinham se refugiado em Xi’an durante o conflito, procurando não se envolver diretamente nele, mantendo uma atitude bastante dúbia já que principalmente ela tinha um relacionamento amigável com os diplomatas estrangeiros em Beijing. Os estrangeiros, por sua vez, embora sendo alvo dos ataques nacionalistas dos Boxers, também não pretendiam derrubar a dinastia Qing e então, com os Boxers derrotados em 1901, foi assinado um Protocolo através do qual eram extraídas, do governo chinês, altas indenizações. 

A China, a cada derrota, a cada guerra perdida, como havia sido  o caso nas duas Guerras do Ópio e na dos Boxers, via suas finanças severamente comprometidas com as indenizações, passava pela situação humilhante de se mostrar tecnologicamente fragilizada, com precárias condições de combate, tendo ainda que enfrentar o imperialismo japonês, que lhe havia subtraído a Coréia como Estado Tributário (no conflito de 1894-95). A tudo, somava-se o avanço dos russos, que cobiçavam parte do território chinês ao norte.


Nesse contexto terrivelmente conturbado da segunda metade do século XIX e até o início do século XX destacou-se, às vezes nos bastidores, mas também muitas vezes na linha de frente, a Imperatriz Viúva Cixi. Concubina do imperador Xianfeng, com a sua morte ainda muito jovem, em 1861, ela chegou ao poder por ser a mãe do único filho homem do imperador, alçado ao trono ainda criança. Cixi, junto com a esposa oficial de Xianfeng, Cian, assumiu a regência que depois passou a exercer sozinha tanto por suas manobras bem sucedidas quanto por um certo desinteresse de Cian. Desde que tomou as primeiras decisões políticas, Cixi nunca mais deixou o controle político do império. Com a morte do seu próprio filho colocou um sobrinho no trono, também criança e voltou a ser regente.

Há claras evidências de que foi com muita dificuldade que Cixi manteve o equilíbrio entre a valorização da milenar cultura chinesa que ela, mesmo sendo manchu, admirava, e a inevitável modernização, que entrava no império através dos europeus, dos norte-americanos e dos japoneses. Foi também Cixi que, antes de morrer, indicou aquele que seria o último imperador, Puyi.


De toda a movimentada história da China podem ser destacadas algumas considerações importantes: 

1. O confucionismo sempre permeou e continua permeando as mentalidades chinesas mesmo após a abolição dos concursos imperiais, pois ele continua sendo considerado um clássico da literatura e sobretudo da cultura chinesa.


2. A humilhação da derrota em diversos conflitos, com as potências impondo a abertura dos portos e sobretudo as pesadas indenizações, foi provavelmente o aspecto mais visível da decadência imperial; 


3. A manutenção da integridade territorial, apesar de todos os conflitos, o que permitiu que a China, mais adiante, pudesse se recuperar e recuperar seu orgulho. Sempre houve o entendimento, da parte do Ocidente, de que o Império do Meio não seria conquistado e nem mesmo se constituiria em algum tipo de protetorado, ainda que tenha ocorrido um considerável avanço de caráter imperialista em mais de uma oportunidade.

A integridade civilizacional da China nunca esteve sob ameaça e, pelo contrário, os estrangeiros sempre demonstraram certo fascínio pelo que lá encontravam em matéria de arte e de filosofia. Por outro lado, os embates internos entre mandarins conservadores e modernizantes foram uma parte importante dos problemas enfrentados pelos imperadores e pela imperatriz Cixi. Os letrados confucionistas custaram muito a entender que o programa dos exames imperiais, calcado em estudos puramente literários, não preparava os candidatos e futuros funcionários para a realidade do mundo nos séculos XIX e XX, mas em 1905, antes mesmo da vitória dos republicanos, os exames foram extintos. 

Os missionários protestantes tiveram um papel relevante na modernização de certos setores da China ainda durante o tempo do império, principalmente na introdução de novas tecnologias e da medicina ocidental. Houve um intercâmbio importante entre as técnicas da medicina tradicional chinesa e a medicina praticada nos EUA, por exemplo. 


Voltando ao tema da passagem do império para a república, sem uma personalidade forte para comandar o Império com a morte de Cixi, em 1908, e sem que o alto mandarinato tivesse conseguido se articular em torno de um projeto de monarquia constitucional que já tinha começado a ser esboçado, mas que nunca, efetivamente, foi levado adiante, os defensores da República conseguiram ganhar muitos adeptos. 

A vitória da Revolução Republicana, sob a liderança de Sun Yat-Sen foi reconhecida sem maiores traumas já em 1911 e, em fevereiro de 1912, Puyi, o último imperador, ainda uma criança de seis anos de idade, abdicou do trono. Os republicanos venceram fazendo apelo ao fato de que o império era governado por uma dinastia estrangeira, de origem manchu, mostrando a corrupção que era endêmica na estrutura do mandarinato, mas também pelos altos impostos cobrados principalmente dos camponeses. O discurso nacionalista apontando igualmente para a influência das grandes potências estrangeiras fortaleceu a criação do Guomintang, partido centralizador, pouco democrático, mas extremamente nacionalista, que apelava para a restauração do orgulho chinês. 


Tanto Sun Yat-Sen quanto Chiang Kai-Shek eram populistas e nacionalistas e casados cada um deles com uma das filhas de uma família da elite na China, a família Soong, cujo apoio foi importante na escolha de quadros republicanos. Depois que Chiang ordenou o massacre de milhares de comunistas que ele desejava expurgar do Kuomintang/Guuomindang, porém, a então viúva de Sun, Ching Ling (Soong) rompeu com a família que se posicionou ao lado de Chiang. O rompimento foi permanente e essa é uma história que por si só vale outra palestra...


 Até a emergência de Mao e a implementação do socialismo na China, as grandes famílias tradicionais estiveram no controle da República. Já a ideia de hierarquia, de centralização das decisões políticas permaneceu na passagem do Império para a República, da mesma maneira que permanecerá também durante e depois de Mao. E, na verdade, até hoje.


Concluindo esta breve apresentação sobre a história da China, eu gostaria de destacar alguns pontos que considero importantes para entender o presente. O primeiro deles é justamente o de que a força da hierarquia, que tinha raízes milenares com as lições de Confúcio, se mantém como regra até os dias atuais. Houve um hiato de banimento da literatura Clássica e do Confucionismo em particular e este hiato foi durante o curto espaço de tempo da Revolução Cultural (1966-1976). Pois bem, não por acaso, os mentores da Revolução Cultural recrutaram para a temível Guarda Vermelha, jovens de 12 a 18 anos de idade, mas a maior parte deles entre 12 e 16 anos, a idade da rebeldia. 


A ideia era erradicar por completo as ideias confucionistas e mesmo a influência dos pais, convencendo os jovens de que os novos tempos pediam novas lideranças que não fossem intelectualizadas. Foram fechadas escolas e universidades e os livros Clássicos jogados no lixo. Adolescentes entre 12 e 16 anos encarregaram-se desse tipo de faxina para erradicar a cultura Clássica. No entanto, em uma cultura como a chinesa, tal disparate não poderia durar muito e a Revolução Cultural foi um hiato na longa duração da história da China.

A valorização do estudo e dos mestres atravessou os anos mais conturbados de guerras e de revoltas e, excluindo-se o período da Revolução Cultural, manteve-se firme em toda a China. Atualmente, mesmo com a espantosa modernização do país é muito claro o incentivo dado a pesquisas arqueológicas que trazem à tona uma história muito antiga. Quem visita o país encanta-se com a qualidade dos seus museus, repletos de objetos de muitas épocas passadas e para os quais há informações de muito boa qualidade.


Xi Jinping na minha opinião não deve ser entendido como um ditador nos moldes ocidentais. Embora trate-se de um líder autoritário, configura-se mais como um autocrata com características imperiais, quem sabe um déspota esclarecido, do que um ditador moderno como nós já tivemos a experiência na Europa e na América Latina. Trata-se de um homem culto, oriundo de uma família admiradora de Confúcio e cujo pai sofreu nas mãos da Guarda Vermelha. A China nunca foi uma monarquia constitucional. De um Império fortemente centralizador, claramente absolutista, ela passou para uma República com líderes pouco democráticos, com Sun Yat-Sen, Yuan Shikai, Chiang-Kai Shek e depois Mao. 

A prática religiosa não é proibida na China desde que os líderes de cada grupo não façam intervenção na política e nem se manifestem, em seus púlpitos, em assuntos não religiosos. Não há nenhuma restrição para falar de Buda, de Lao Tse, de Jesus  ou de Maomé dentro de cada grupo no entanto todos devem se ater a questões teológicas e não de comportamento ou estrutura da sociedade. Os chineses são muito supersticiosos, eles mantém seus cultos aos ancestrais, seus talismãs e diversas formas de espiritualidade, na China, convivem com o pensamento marxista, que aliás atualmente é bastante diluído e diz respeito apenas à importância de um partido único e da liderança de uma personalidade forte para desenvolver o país. Budistas tibetanos lamaístas e muçulmanos uigures são reprimidos por questões territoriais e não teológicas.


A reaproximação da China com os EUA vai se dar em 1971, quando Henry Kissinger se encontra com Zhou en Lai, Kissinger que vai ser Secretário de Estado de Nixon e depois de Ford, de 1973 a 1977. O encontro oficial de Mao com Nixon, preparado habilmente por Kissinger vai se dar em fevereiro de 1972. E o fim do envolvimento dos EUA com a Guerra do Vietnã, que era um problema no relacionamento com a China, vai se dar entre 1973 e 1975. Dali para a frente justamente a relação entre as duas potências, China e EUA vai ter várias fases e aí se pode acompanhar os acontecimentos em relatos de História Contemporânea.

Eu vejo como pequena a possibilidade de democratização da China em moldes ocidentais, porque são pelo menos cinco mil anos de uma história de centralização do poder, mas também porque atualmente a modernização do país tem sido favorável  às pessoas comuns, ao povo em geral. Os governos de Hu Jintao e agora de Xi Jinping não são excludentes, eles apostaram e apostam na inclusão dos chineses, com grande ênfase na inclusão pela educação, pela modernidade. 

É esse esforço de inclusão que faz toda a diferença para que, apesar de todo o seu autoritarismo, o governo tenha um considerável apoio popular. Não estou defendendo a autocracia contra a democracia, apenas tentando entender o contexto político do país sem enxergá-lo com as lentes de quem está de fora. E sem considerar que as mesmas soluções e modelos políticos possam ser aplicados a todas as sociedades de maneira indiscriminada.


No entanto, é importante considerar que o atual governo do Xi Jinping é muito mais centralizador e mesmo controlador do que foi o do seu antecessor Hu Jintao.  Segundo alguns observadores na própria China, ele estaria sendo muito bem sucedido na melhoria das condições de vida da população e, para tal,  deixaria as colocações de abertura política para bem mais adiante, depois que tivesse havido um avanço econômico interno maior. Claro que isso pode dar errado, mas não há consenso sobre se haverá ou não algum levante da população  como ocorreu em 1989. O fato de que as condições de habitação melhoraram muito e houve também avanço na renda dos chineses faz com que a maioria se desinteresse por política. Outro dado interessante é que os chineses podem viajar para o exterior praticamente sem restrições. O governo chinês não fechou suas fronteiras, a China não é uma Cuba e muito menos o que foi a União Soviética. Tudo isso torna as nossas previsões muito frágeis. Eu não me aventura a dizer o que vai ocorrer nos próximos anos." Carmen Lícia Palazzo.

terça-feira, 27 de abril de 2021

A dominância do desenvolvimentismo no caso latino-americano - Paulo Roberto de Almeida

 A dominância do desenvolvimentismo no caso latino-americano

 

Paulo Roberto de Almeida

Professor de Economia Política no Uniceub

 

 

O desenvolvimentismo parece ter sido a doença infantil do processo latino-americano de desenvolvimento numa determinada etapa de sua história. Propagado pela Comissão Econômica para a América Latina, da ONU, desde a segunda metade dos anos 1940, ele se consagrou como a ideologia básica da CEPAL na década seguinte e persistiu como uma espécie de fantasma a pairar sobre as faculdades latino-americanas de economia durante a maior parte das décadas seguintes, mesmo se seus supostos méritos foram postos à prova durante boa parte do último terço do século XX, tendo sido praticamente dissolvido no ecletismo do aperfeiçoamento teórico e metodológico dessas faculdades em tempos mais recentes.

O desenvolvimento, como processo de transformação social e econômica, pode ser aferido com base em dados objetivos, de crescimento e distribuição de seus resultados; já o desenvolvimentismo é um conceito totalmente político, para não dizer uma ideologia. O desenvolvimentismo, como ideologia, está claramente ligado à vertente cepaliana do keynesianismo aplicado na América Latina a partir dos trabalhos de Raul Prebisch na CEPAL.

No seguimento dos trabalhos de Raul Prebisch, na CEPAL, desde o início dos anos 1950, muitos autores partiam do pressuposto de que as políticas teriam de ser necessariamente desenvolvimentistas, de forma apriorística, sem qualquer fundamentação nos dados econômicos e sem qualquer avaliação isenta dos resultados das políticas implementadas. Na verdade, o que se tinha era um processo de substituição de importações, que não é exclusivo da experiência latino-americana, e sim está presente em todas as demais experiências de industrialização, com exceção da original.

Desenvolvimentismo era um conceito de natureza política, inteiramente dependente de como cientistas políticos ou economistas do desenvolvimento manipulavam esse conceito. O historiador econômico, por sua vez, pode no máximo examinar como certas políticas contribuíram, ou não, para um processo de desenvolvimento sustentado, e a isto deveria se resumir seu trabalho de caráter histórico; o conceito em si, porém, não possui qualquer historicidade, e sim o processo real, que precisa ser examinado com base em dados objetivos, não em afirmações.

A rigor, o único processo histórico induzido por um Estado desenvolvimentista explícito foi a construção industrial realizada sob o stalinismo; todas as experiências asiáticas ou latino-americanas foram realizadas pelo setor privado, com o benefício eventual de políticas públicas, geralmente de caráter protecionista ou realizando investimentos setoriais e em infraestrutura. O Brasil, por exemplo, durante 4/5 de sua história econômica, teve seu crescimento sustentado a partir de fora, como fornecedor de produtos primários. Mas, a partir de certo momento, passou-se a privilegiar o mercado interno, e houve crescimento, que por sua vez deixou o Brasil numa situação de total disparidade em relação às médias mundiais relativas a coeficientes de abertura externa, o que é claramente negativo para o seu processo de crescimento, e mais ainda de desenvolvimento.

A América Latina poderia ter se industrializado mesmo na ausência de políticas ativas por parte dos respectivos Estados nacionais, da mesma forma como a Ásia, pois a industrialização corresponde a um processo de diversificação econômica que se reproduz de modos distintos em diferentes contextos societais. O papel do Estado no caso da AL e da Ásia tem sido sobrevalorizado indevidamente, fazendo dele o centro do processo, quando ele é um autor relevante, mas não indispensável. Aliás, a América Latina já vinha se industrializando antes da era das políticas ativas, como a Europa periférica por sinal.

Para vários autores adeptos da ideologia, só o Estado seria capaz, ou teria o dever, de arbitrar estímulos e compensações entre classes e setores da sociedade, sejam estas de que natureza forem; não se concebe que o próprio processo histórico, ou mecanismos de mercado possam ir acomodando diferenças de poder político e econômico, ou alterações patrimoniais, que sempre refletem a estrutura do processo produtivo, com determinadas categorias de produtores ficando mais ricos do que outros, e acumulando poder, portanto; talvez tenha sido o caso da Alemanha e do Japão, para ficar nos casos clássicos, mas provavelmente não foi o caso pioneiro da Grã-Bretanha e logo em seguida dos EUA. Muitos autores assumem a premissa de que esse processo tem que ser guiado por um propósito determinado, e não se pode aceitar a ideia da espontaneidade do processo histórico, que parece ter sido o caso inglês. O Estado é sempre capturado por interesses políticos, sociais e econômicos de determinados grupos que se organizam para conquistar e manter o poder político, ou seja, o governo.

Mas, a história mundial das experiências de industrialização, ou de desenvolvimento, é muito mais diversa do que a suposição de que apenas a regulação estatal de políticas industriais pode superar um suposto atraso, que é sempre relativo. Um economista americano de origem russa, Alexander Gerschenkron, formulou hipóteses bastante interessantes sobre as “vantagens do atraso”, ou seja, o fato que os países retardatários não precisam reproduzir todo o processo dos itinerários originais, e podem partir da tecnologia mais avançada, já disponível quando eles começam seu próprio itinerário de industrialização.

Vários outros exemplos podem ser examinados. Quais são eles? Se conhece a Alemanha do século XIX, o Japão no século XIX, a Coreia a partir dos anos 1960, e o próprio Brasil dos anos do regime militar. No período recente, tivemos mais dois exemplos de impulsos industrializadores mesmo na ausência de uma ideologia desenvolvimentista. Os dois maiores países que parecem se converter em locomotivas do crescimento, a China e a Índia, exibem taxas robustas de crescimento não como um presente do Estado, mas justamente porque se inseriram nas grandes redes produtivas da globalização capitalista, por terem feito reformas internas no sentido pró-mercado, por atraírem investimentos estrangeiros e por terem capitalistas nacionais que se lançam na competição internacional.

Em síntese, não existe um Estado desenvolvimentista, a não ser no discurso dos sociólogos. O que existe são políticas ditas desenvolvimentistas impulsionadas por certos governos durante certo tempo, mas mesmo essa caracterização é enganosa, pois o que existe, de fato, são políticas intervencionistas do governo na economia; se elas são, ou foram, desenvolvimentistas, isto só poderá ser visto ex-post. As fracassadas não entram na categoria, a despeito de terem sido exatamente iguais a outras que frutificaram e receberam essa caracterização; aí é preciso ver quais as fontes reais de crescimento, pois sem ele não existe desenvolvimentismo, e saber se houve políticas coerentes nesse sentido; as experiências bem sucedidas de industrialização da Alemanha no século XIX e do Japão no início do século XX podem ser chamadas de desenvolvimentistas? E as da Coreia a partir dos anos 1960? Certamente as da América Latina, a partir dos anos 1950 entram nessa categoria, mais por autodenominação do que por resultados efetivos, pois parece que a América Latina falhou miseravelmente em seus objetivos, a despeito mesmo de processos dinâmicos de desenvolvimento industrial; olhando a economia mundial, a participação da América Latina no comércio mundial de manufaturas, não apenas é medíocre, como recua ao longo das últimas 4 décadas, com a Ásia Pacífico tomando claramente o lugar da América Latina. Isso é desenvolvimentismo? Se for, foi completamente fracassado e frustrado.

Os países avançados, na verdade, sempre tiveram taxas mais modestas de crescimento, o que é absolutamente natural; taxas mais vigorosas só em países emergentes, a partir da segunda metade do século XX, e alguns deles tiveram comportamento errático nessa área, o que é claramente o caso da América Latina, e do Brasil; e isso não tem nada a ver com o liberalismo, pois as crises ocorreram também em governos tidos por desenvolvimentistas. Mas as políticas nacionais de desenvolvimento industrial são completamente diferentes umas das outras: as bases do crescimento da China são completamente diferentes das da Coreia, assim como ambas são diferentes das que foram seguidas na América Latina. No caso do Brasil, TODOS os seus governos, desde a primeira era Vargas, e mesmo antes, tiveram políticas industriais, geralmente de protecionismo aberto, de mercantilismo, de câmbio favorável, e de subsídios a perder de vista, todos! Algumas dessas políticas foram bem sucedidas, outras não.

Em conclusão, o desenvolvimentismo NUNCA foi objeto de um debate relevante na história econômica do século XX; no máximo foi uma construção cepaliana, ou prebischiana, que agitou as mentes de sociólogos, mais do que de economistas, da América Latina. Mas seus resultados efetivos, antes e agora, parecem ter sido frustrantes. Quais são os grandes exemplos de desenvolvimento rápido em função de tal ideologia? Quais os países que mais cresceram nos últimos 20 ou 30 anos? Eles o fizeram por força de ideias e políticas desenvolvimentistas? Duvidoso. Um dos países que mais cresceu desde os anos 1990, e que ingressou no “clube dos ricos”, a OCDE, foi o Chile. Ele o fez por políticas desenvolvimentistas? Depende do que se entende por políticas desenvolvimentistas. O Chile parece ter aderido às formulações da escola liberal de Chicago, mas mesmo isso é questionável. O que ele fez foi aproveitar suas vantagens comparativas para inserir-se no comércio internacional, algo que o velho mestre Eugênio Gudin preconizava para o Brasil desde os anos 1940. Mas, esta é uma história que precisa ser contada em outro contexto e em outra oportunidade.

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 27 de abril de 2021