Mercosul: Solução de Controvérsias e Questões institucionais
Paulo Roberto de Almeida
Questões respondidas ao Professor Xxxx (para dissertação)
QUESTÕES
1. Qual sua avaliação sobre o atual mecanismo de solução de controvérsias do Mercosul? As modificações implementadas desde a assinatura do Tratado de Assunção foram satisfatórias tanto do aspecto prático quanto político? Há espaço para o seu aprimoramento mantendo o caráter intergovernamental do bloco?
PRA: Como referido na pergunta, se trata de um mecanismo, mas esse era o caso do primeiro instrumento, o Protocolo de Brasília (1991). Com o Protocolo de Olivos (1998), o mecanismo se converteu, aparentemente, em “tribunal de revisão”, ou seja, um mecanismo permanente para apresentar soluções para as controvérsias entre os Estados membros, ou entre estes e os instrumentos fundacionais e regulatórios do Mercosul. O problema atual não está tanto no mecanismo, mas no que funciona atrás, antes, ou depois dele, e como a composição dos membros do “mecanismo” de Assunção afeta as decisões que serão, e são, tomadas pelo colegiado. O Mercosul é um bloco infelizmente marcado pela preeminência dos executivos nacionais sobre todos os seus mecanismos (de tomada de decisão, por exemplo) e instâncias regulatórias e decisórias, o que faz com que determinadas decisões nunca são tomadas, ou quando são, não são, ao que parece, aplicadas. Metade das normas do Mercosul não foram internalizadas.
Um aprimoramento poderia ser um verdadeiro tribunal, com poder “constitucional” – ou seja interpretativo, e mesmo consultivo a priori – e com poderes executórios, sobre os Estados, o que provavelmente nunca será o caso. Mas, mesmo se o fosse, provavelmente um tribunal desse tipo seria desacreditado rapidamente, pois os países eventualmente infratores – e como tal sancionados por um tribunal desse tipo – não cumpriria suas decisões. Ou seja, teríamos um tribunal supranacional para um esquema intergovernamental, o que talvez não funcione corretamente. Atualmente, é um fato que países desrespeitam critérios, normas, decisões e tratados do bloco sem que nada os constranja ou obrigue ao cumprimento de seus deveres. O quadro é tanto mais lamentável que os Estados membros preferem essa “flexibilidade”, a ter de enfrentar, de verdade, suas obrigações sob os instrumentos existentes.
2. A possibilidade prevista do ‘forum choice’ para a solução de controvérsias é um ponto benéfico para a resolução de controvérsias ou se mostra como um elemento que traz consigo em certa medida um descrédito ao mecanismo de solução mercosulino?
PRA: A possibilidade, em si, não é negativa, embora não exista uma padronização quanto aos casos que podem ir para um fórum ou outro. O descrédito é trazido por outros elementos, e não exatamente pelos mecanismos impessoais, e de verdade técnicos, estabelecidos pelos mecanismos de solução de controvérsias. O descrédito deriva dos descumprimentos seguidos, sem sanções, de normas básicas do bloco sem que os países levantem os casos, justamente, em face dos dispositivos. Bastam dois exemplos neste âmbito: as barreiras ilegais, arbitrárias, no limite criminosas impostas por argentinos (sem repressão do Estado), nas fronteiras do Uruguai, contra a livre circulação de bens e pessoas num sentido ou noutro. O caso não foi jamais considerado pelo sistema por oposição argentina. O outro exemplo é o das barreiras também ilegais e arbitrárias contra bens e serviços brasileiros impostas pelo Estado argentino, jamais levadas à consideração do tribunal de revisão, ou de qualquer outra instância de solução de controvérsias, neste caso por conivência das autoridades brasileiras, que renunciaram vergonhosamente a defender os interesses dos seus próprios empresários (e atuam no sentido de fazer o Mercosul perder legimidade).
3. O autor Andrés Malamud salienta, ao analisar as controvérsias envolvendo os membros do Mercosul, que em várias oportunidades as querelas foram resolvidas por meio da intitulada ‘Diplomacia Presidencial’. Tal recurso é característica marcante do Mercosul e continua a ser colocado em prática? A sua utilização afeta positivamente, negativamente ou simplesmente não afeta a existência dos recursos institucionais previstos para a solução de controvérsias?
PRA: A “diplomacia presidencial”, em si, já é algo eminentemente negativo, tal como vem sendo exercida no Mercosul, e no plano puramente unilateral, ou bilateral, do Brasil, já que colocando presidentes, sem o preparo técnico suficiente, na primeira linha de discussão e de decisão de questões importantes. Essa “diplomacia” – que não é uma, na verdade – só deveria servir para conversas e consultas, jamais para decisões de primeira instância, como vem ocorrendo com certa frequência no Mercosul. Aplicada então o sistema de solução de controvérsias é um absurdo completo, pois não será uma solução de controvérsias e sim simples acomodação política, por vezes contra alguns dispositivos importantes dos acordos formais entre os países. Ela deveria ser abolida, em não apenas para tais efeitos, mas também para diversos outros temas também. Presidentes só deveriam se reunir depois de muitas reuniões técnicas e depois que os diplomatas tenham aplainado o terreno e preparado todos os acordos, transparentes, claros, formais, para assinatura deles. Presidentes só podem entrar no processo depois que todos os detalhes, contornos, implicações de qualquer tema diplomático – no sentido amplo – tenham sido examinados cuidadosamente pelos assessores, já que os próprios, como é sabido, não dominam dossiês (e alguns sequer leem papéis). Seria preciso reverter a atual tendência, negativa, de exacerbação (e banalização) das cúpulas presidenciais, carregadas de retórica e produzindo algumas decisões lamentáveis.
4. Alguns estudiosos consideram que o Mercosul deveria instituir um tribunal de justiça mercosulino supranacional, para que houvesse a possibilidade da criação e consolidação de uma lei “comunitária”, nos moldes do que já ocorre na União Europeia e na Comunidade Andina de Nações. Outros propugnam pela criação de um Tribunal Permanente. Qual sua opinião sobre o tema?
PRA: Tal possibilidade poderia ter sido, talvez, implementada na primeira fase do Mercosul, quando ele ainda estava em construção e parecia haver uma disposição dos países para aceitar mecanismos constrangedores de sua liberdade para decidir sobre questões relevantes da vida do bloco – como políticas industriais, comerciais, etc. Mas isso suporia que eles caminhassem, efetivamente, para a integração, sem manter reservas, mecanismos protecionistas, regimes fiscais contraditórios e até opostos entre si. As crises enfrentadas pelos países não foram aproveitas para a tarefa de convergência e sim para aprofundar ainda mais as medidas especiais de caráter nacional, quando não totalmente opostas ao regime geral previsto nos instrumentos do bloco. Não creio que, atualmente, seja possível caminhar para isso; já não existe mais ambiente para isso.
5. O trabalho realizado no âmbito dos grupos e subgrupos de trabalho do Mercosul é suficiente para o avanço do processo de integração ou outras medidas são necessárias? A incorporação aos direitos nacionais tem sido satisfatória em todos os Estados membros?
PRA: Não! Existem estudos que apontam que mais da metade das normas consensualmente aprovadas (sim, pois o mecanismo decisório é baseado no veto, livre, aberto, discricionário) não são internalizadas e não entram em vigor. Existem acordos do próprio ano de fundação do Mercosul, 1991, que jamais entraram em vigor. Os grupos de trabalho podem até possuir alguma autonomia técnica, mas suas sugestões de medidas não necessariamente passarão pela primeira instância decisória, o grupo Mercado Comum, de caráter executivo. Nenhuma medida pode ser eficiente se os governos decidem não implementá-la simplesmente.
6. Diante da atual conjuntura do Mercosul, qual a opção que será adotada? Pelo aprofundamento da integração e/ou pelo alargamento do bloco? Em que medida o Brasil exerce influência por uma e/ou outra opção?
PRA: Já escrevi bastante sobre a questão, e remeto aqui ao capítulo final de um livro sobre o Mercosul de que participei, recentemente: “Perspectivas do Mercosul ao início de sua terceira década”, In: Elisa de Sousa Ribeiro (coord.), Direito do Mercosul. Curitiba: Editora Appris, 2013, 683 p.; ISBN: 974-85-8192-208-9; cap. 33, p. 661-676. De toda forma, o alargamento não é solução, na ausência de uma correção real nos problemas detectados, entre eles o descumprimento das regras básicas pelos próprios membros originais. Os novos entrantes são justamente conhecidos por pretenderem diminuir ainda mais os requerimentos impositivos do Mercosul (como a Tarifa Externa Comum, por exemplo, ou o simples requisito da abertura recíproca ou para terceiros, sob acordos negociados). Pode-se prever, assim, uma erosão ainda maior do grau de aprofundamento do bloco no seus conteúdo essencial, ou seja, comercial, e sua mutação para o palanque político de retórica vazia em torno da integração em que ele parece ter se convertido nos últimos anos. O papel do Brasil foi convergente com essa perda de expressão do conteúdo econômico do Mercosul – sua razão de ser essencial – e sua conversão nesse instrumento de retórica política em que ele se transformou desde alguns anos até a atualidade. Não parece haver intenção de fazê-lo retornar aos seus fundamentos, o que é lamentável.
7. Sociedade civil dos Estados nacionais e o Parlamento do Mercosul. Qual o papel exercido por ambos até o momento como eventuais orientadores de políticas no âmbito do Mercosul?
PRA: Papel meramente acessório, além da retórica vazia e do democratismo de superfície. Não existe sociedade civil do Mercosul, e sim apenas grupos de interesses que se articulam para impulsionar demandas corporativas, o que justamente contribuiu para retirar o Mercosul de seu eixo principal, que de natureza econômica e de cunho comercialista. Quem pretender negar essas realidades estará negando o próprio Mercosul. Ele pode ser outras coisas além de econômico e comercial, mas se não cumprir seus requisitos básicos, ele poderá ser tudo menos um bloco de integração. Quanto ao Parlamente, ele não tem funções verdadeiras e atua apenas como caixa de ressonância dos grupos políticos dos parlamentos nacionais; carece totalmente de poderes decisórios e sua existência se aparenta mais a turismo parlamentar do que a um mandato definido, consequente, ainda que puramente consultivo. Sua criação foi um ato de demagogia política e um erro, além de ser um custo inútil para as sociedades dos países membros.
8. O empresariado brasileiro e uruguaio tem reclamado sobre a impossibilidade de assinatura de acordos de comércio bilaterais (sem a participação do Mercosul) com outros parceiros. Há alguma possibilidade reverter esse quadro? A “Aliança do Pacífico” representa uma grande concorrência para em termos políticos e comerciais para o Mercosul?
PRA: Não existe uma proibição estrito senso, apenas uma decisão política do Conselho que poderia ser reformada por uma outra decisão, desde que os membros de comprometessem de atender requisitos básicos de cláusula de nação mais favorecida cada vez que negociassem algum acordo com uma terceira parte. Não há concorrência direta da Aliança do Pacífico, mas é um fato que os membros desse novo bloco estão comprometidos com uma real abertura recíproca e com sua integração produtiva (ou seja, de investimentos, comércio, etc.) em direção do Pacífico e com outras regiões, em contraposição com as posições protecionistas e as posições introvertidas, ou seja, para dentro, que caracterizam atualmente o Mercosul. O Mercosul virou um avestruz.
9. A adoção de medidas protecionistas e unilaterais adotadas, sobretudo, pelo governo argentino, tem sido bastante criticada. Tem sido também objeto de críticas uma relativa tolerância do Estado brasileiro no que se refere a adoção das referidas práticas. Qual seria a forma ideal de solução de tais controvérsias?
PRA: Ao menor sinal de descumprimento das regras básicas do Mercosul, o Brasil deveria chamar a atenção da Argentina, bilateralmente e no plano do bloco. Não ocorrendo satisfação, o Brasil deveria iniciar simplesmente o tratamento do assunto no âmbito dos mecanismos existentes do Mercosul; sem sucesso tampouco nessa fase, ele deveria apelar para os mecanismos de solução de controvérsias do sistema multilateral de comércio, ou seja, da OMC. Em último caso, se aplicariam retaliações. A inoperância do governo brasileiro durante todos esses anos é uma renúncia inaceitável de soberania, uma cumplicidade violadora dos compromissos assumidos sob o Mercosul, uma erosão da legitimidade do bloco, e um prejuízo igualmente inaceitável para os empresários que se prepararam para enfrentar a concorrência e fizeram investimentos para conquistar mercados nos países membros. Em todas as hipóteses, o governo do Brasil traiu os interesses nacionais e os princípios basilares do Mercosul, ou seja, atuou de forma irresponsável no plano interno e externo.
10. Fala-se que o Mercosul “esqueceu” de seus ideais comerciais e de livre comércio. Há críticas sobre, por exemplo, o fato de que ainda há exceções à TEC. Finalmente, fala-se, ainda que o Mercosul adotou um viés político/ideológico que não é condizente com as intenções originais do bloco, notadamente ilustrado com a controversa suspensão do Paraguai e a admissão da Venezuela como membro pleno. Quais suas observações sobre tais colocações?
PRA: Não se trata apenas de que existam exceções à TEC, pois elas podem existir. Se trata de que existem exceções nacionais à TEC, que não deveriam existir, simplesmente. A distorção política, e o afastamento do bloco de seus objetivos básicos, por decisões de caráter altamente equivocado no plano da adesão às normas do direito internacional, representam mais uma contaminação ideológica indevida do que o reflexo de alguma grande avaliação de caráter político ou econômico. O tratamento dado aos casos do Paraguai e da Venezuela, na cúpula de Mendoza (2012) foi totalmente errado, nas forma e no conteúdo: se descumpriram normas básicas dos instrumentos existentes, inclusive do próprio Protocolo de Ushuaia, supostamente usado para suspender o Paraguai; essa exclusão foi totalmente irregular e no limite ilegal. Quanto ao “ingresso” da Venezuela ele também foi totalmente irregular, ilegal e arbitrário, sem respeitar as regras básicas do bloco. Medidas políticas que fizeram o Mercosul retroceder tremendamente em matéria de substrato jurídico. Ambas medidas lançam descrédito sobre o Mercosul, e não contribuem em nada para sua coesão interna e respeitabilidade internacional.
11. Em que medida a eventual assinatura de um acordo de livre comércio entre a UE e o Mercosul afetará ambos os blocos? É possível afirmar que tal assinatura permitirá com que o Mercosul saia de seu presente estado de letargia?
PRA: Se ocorrer, o que é altamente improvável nas condições atuais, será um acordo inócuo, incapaz de mudar substantivamente o modo de funcionamento do Mercosul. A UE poderia ter, se tanto, alguns ajustes a fazer nos seus mecanismos protecionistas da área agrícola, e o Mercosul poderia ser “levado” a operar uma maior abertura industrial, mas as resistências de ambos os lados são fortes, justamente. Ou seja, se houver algum acordo, ele será limitado, parcial, delongado, pouco expressivo, em outros termos, inócuo.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 26 de novembro de 2013.